terça-feira, 29 de março de 2016

“Revolucionários: Ensaios Contemporâneos” – Eric J Hobsbawm

“Revolucionários: Ensaios Contemporâneos” – Eric J Hobsbawm 



Resenha Livro - 215 - “Revolucionários: Ensaios Contemporâneos” – Eric J Hobsbawm – Ed. Paz e Terra 

“Pode ser que a forma mais simples de enfocar o problema de minha geração seja através da introspecção, ou, se se preferir, da autobiografia. Um intelectual de meia idade, e razoavelmente bem estabelecido, dificilmente pode considerar-se um revolucionário no sentido real da palavra. Porém, alguém que se tenha considerado um comunista durante quarenta anos tem pelo menos muito a recordar para contribuir à discussão. Pertenço, talvez como um de seus membros sobreviventes mais jovens, a um meio hoje virtualmente extinto, o da classe média judia da Europa central posterior à Primeira Guerra Mundial. Este meio viveu sob o triplo impacto do colapso do mundo burguês em 1914, da Revolução de Outubro e do antissemitismo. Para a maioria de meus parentes austríacos mais velhos, a vida normal terminou com o assassinato em Sarajevo. Quando diziam “em tempo de paz”, queriam dizer antes de 1914, quando a vida de “gente como nós” se abria ante eles como um caminho amplo e reto, previsível mesmo em suas imprevisões, comodamente segura e enfadonha, que compreendia desde o nascimento e passava pelas vicissitudes da escola, profissão, noites de ópera, férias de verão e vida em família, até o túmulo no Cemitério Central de Viena. Depois de 1914, tudo foi catástrofe e sobrevivência precária. Sobrevivíamos a nós mesmos e sabíamos. Fazer planos a longo prazo parecia algo sem sentido para pessoas cujo mundo havia ruído já por duas vezes em dez anos (primeiro com a guerra, mais tarde com a Grande Depressão).”

O depoimento supracitado é do historiador marxista Eric J. Hobsbawm, morto em 2012. Trata-se certamente do mais importante historiador do mundo moderno e contemporâneo das últimas gerações.

Hobsbawm tem uma vasta produções bibliográfica envolvendo as suas análises das Revoluções Francesas e Revolução industrial Inglesa – consignadas como a era da “dupla revolução” envolvendo 1789 e 1848 em “Era das Revoluções”; Sua análise da fase da expansão do capital, das suas repercussões pelo mundo em “Era do Capital”; e sua tese do “curto século XX” que teria como ponto de partida a Revolução Russa e conclusão a queda do mundo soviético em “Era dos Extremos”.

O historiador britânico é capaz de conjugar minucioso exame analítico se servindo sempre das chaves explicativas do marxismo – sem, ao certo, fazê-lo por meio dogmático – e ao mesmo tempo produz uma narrativa abundante de detalhes e fatos que revelam um assombroso repertório cultural. Neste livro, uma compilação de artigos, ensaios e palestras, somos a todo momento surpreendidos com análises em que as explicações vão se dar a partir de exemplos históricos desde países da Ásia, África e América Latina. Esta erudição vasta combinada com um rigoroso método analítico fizeram daquele historiador e seus livros, fontes seguras para uma aprendizagem do passado. Estes “Ensaios Contemporâneos” dividem-se nos seguintes tópicos: “Comunistas”, em que se descreve a origem e a conformação de alguns partidos comunistas europeus no âmbito da terceira internacional; “Anarquistas” onde há algumas considerações gerais sobre tal movimento e sua intervenção prática na Guerra Civil Espanhola; “Marxismo”, com algumas resenhas envolvendo pensadores em voga nos anos 1960 como Althusser e Karl Korsch; “Soldados e Guerrilhas” em que se discute as razões do fracasso norte americano no Vietnã, como se conforma o golpe de estado, dentre outras ideias; e finalmente “Rebeldes e Revoluções” com temas variadores desde Maio de 1968 até a geografia urbana das revoluções

Os Partidos Comunistas e a III Internacional

Sabe-se que desde Marx supunha-se necessária a criação de uma organização internacional dos trabalhadores. Uma questão complexa para o movimento operário seria a forma como esta organização internacional lidaria frente as organizações proletárias de cada país. No contexto da II Internacional, o que dilacerou qualquer possibilidade de solução de continuidade a esta coordenação entre os partidos operários nacionais e a luta internacional foi a primeira guerra mundial – com a exceção de pouquíssimos grupos, destacando-se a vigorosa denúncia de Lênin na Rússia – os partidos social democratas capitularam ao social chauvinismo e apoiaram suas respectivas nações na Guerra. Ou seja, enquanto a tática justa era de denunciar a Guerra (1914) como uma Guerra imperialista, voltada à repartição do domínio neocolonial e uma nova configuração de fronteiras na Europa, sendo certo que o papel reservado à classe trabalhadora era o de servir como bucha de canhão para suas burguesias, a social-democracia por sua vacilação política junto à classe dominante levou junto à si os trabalhadores e a II Internacional à ruína.

Seria no contexto da terceira internacional comunista, sob o impacto da revolução vitoriosa de outubro, que seriam erigidos os partidos comunistas. Já é notória uma certa crítica segundo a qual o internacionalismo da III Internacional consistia na suposição de que uma dada situação internacional implicava reações idênticas em partidos situados em contextos muitos distintos.

Houve problemas nesse sentido aqui no Brasil, no que se refere às primeiras tentativas de análise de conjuntura. Já é conhecida a interpretação feita pelas primeiras gerações de comunistas ligados ao PCB de que as relações de produção no campo do Brasil eram do tipo feudal ou semi-feudal, o que certamente decorria de uma análise mecanicista e influenciada pelos modelos interpretativos externos. Sabe-se que o feudalismo é um modo de produção baseado numa relação pessoal de vassalagem em que não há qualquer margem de remuneração pecuniária e em que há um forte lastro entre ou vínculo entre os servos e sua gleba. Dentro deste esquema interpretativo, uma tática adotada para agitar e organizar os camponeses imigrantes da fazenda de café seria supostamente a luta pela terra. Ocorre que a análise das relações de produção estavam equivocadas: como Caio Prado Jr. demonstraria depois, o sentido de nossa colonização é todo ele formatado como um empreendimento comercial destinado ao mercado externo. E mais: no que se refere às fazendas de café, já temos a superação do trabalho escravo, tratando-se de um empreendimento comercial com lastro capitalista.

A tática adequado junto ao setor camponês ao que parece não era terra, mas melhores condições de trabalho e remuneração. Fizemos todo este resgate apenas como forma de apontar os riscos que envolvem a construção de um partido cujas diretrizes, para usar uma expressão de Lênin, não partem da “análise da situação concreta”, no caso, da realidade brasileira.

Todavia, existe um outro lado da moeda. A existência de um partido internacional coordenado e articulado, lembra Hobsbawm, cumpriu um decisivo na luta contra o fascismo desde as frentes populares, contribuindo para a sua articulação, especialmente em locais onde não havia conjuntura revolucionária.

Ademais, diferente do que possa parecer, em cada país, diante de suas particularidades, resultou-se em desdobramentos diferentes de partidos comunistas.
A história do movimento político marxista Inglês pode remeter ao séc. XIX. Sabe-se que Marx chegou a depositar alguma esperança nos anos de 1840 que o movimento operário inglês poderia dar um salto qualitativo, de seu trade-unismo (reformismo) para um patamar revolucionário.

Esta esperança decorria do fato da Inglaterra ser o país capitalista mais avançado e o único com um movimento de trabalhadores da massas. Todavia, a série de revoltas e insurreições que varreu a Europa em 1848 passou imune na Inglaterra. Posteriormente, perderiam Marx e Engels tal otimismo, mesmo com a greve geral inglesa em 1880. O marxismo apenas começaria a se difundir na Inglaterra também nos anos de 1880. O movimento operário inglês fora hegemonizado até então pelos Cartistas, um movimento iniciado na década de 1830, com reivindicações bastante tímidas, a “Carta do Povo”, que pleiteava Sufrágio Universal Masculino, Eleição Anual, Participação de Operários no Parlamento e Voto Secreto. Havia ainda uma fração política ainda mais à direita, os Fabianos, que se opunham à luta de classes e defendiam o “gradualismo” por meio de reformas.

Posteriormente, o Labor Party hegemonizaria a maior massa de todo este setor reformista – a formação do Partido Comunista Inglês (1920) foi antes uma somatória de pequenos grupos que havia saído do Labor Party, fazendo com que Zinoviev afirmasse que a “Inglaterra é o local onde se faz progressos mais lentos”.

Temos por outro lado um exemplo bastante vitorioso da conformação do partido comunista, o Partido Comunista Italiano. Antes da Guerra, havia dirigentes do porte de Gramsci na prisão e algo em torno de 2000 militantes e com a queda do fascismo, sua base subiu para a casa de centena de milhares, tornando-se um partido de massas. A razão do êxito do Partido Comunista Italiano é que ele galvanizou o movimento de resistência antifascista na Itália, serviu como base de apoio para esta luta. Infelizmente, na década de 1970 este partido capitularia ao ponto de ser um dos expoentes do eurocomunismo (uma forma de reformismo), o que é tópico de uma outra história.

Os ensaios seguem abordando as experiências de partidos, movimentos, guerrilhas, golpes de estado, etc. O fato do historiador Eric J. Hobsbawm ser de certa forma contemporâneo dos eventos poderia criar algumas objeções de imparcialidade, mas este debate de neutralidade dentro da história já parece estar superado: o que importa é rigor argumentativos, análises convincentes que se dão por meio de fontes, dados, raciocínios bem desenvolvidos e claros. E tudo isso, está presente em seus trabalhos. Para os marxistas, certamente será sempre fundamental conhecer a obra de Hobsbawm, já que suas cogitações envolvem igualmente temas que nos são caros.
   

terça-feira, 15 de março de 2016

“Marx – Ciência e Revolução” – Márcio Bilharino Naves

“Marx – Ciência e Revolução” – Márcio Bilharino Naves 



Resenha Livro – 214 - “Marx – Ciência e Revolução” – Márcio Bilharino Naves – Ed. Quartier Latin 
Márcio Naves é formado em Direito pela USP, doutor  em Filosofia pela Unicamp e professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas daquela Universidade. Coordena o CeMarx, centro de estudos sobre marxismo e tem importante atuação na difusão do pensamento e obras do filósofo francês Louis Althusser aqui no Brasil.

Temos em mão um sintético livro acerca das principais ideias de Marx na forma de um itinerário: de forma concisa e objetiva o autor logrou expor, sem ser superficial, as principais ideias forças de Marx conforme sua particular evolução intelectual.

Antes de passarmos à obra propriamente dita, um rápido comentário sobre o subtítulo.

Marx, Ciência e Revolução. O destaque aqui dá-se em torno da “ciência” e reforçamos aqui o fato de que Marx ele próprio ter desenvolvido por um lado um método científico, ou seja todo um pressuposto teórico-metodológico cuja vocação é a busca pela verdade – algo que soa ambicioso aos ouvidos de alguns pós-modernos para quem a verdade seria inteligível ou uma mera construção aleatória. E mais. Marx parte da análise objetiva e da crítica para a partir dela atuar na realidade – aqui inaugurando uma nova perspectiva filosófica, qual seja, “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo”.

O que queremos pontuar aqui é que a análise científica da realidade em Marx e para os marxistas deve ser coerente com sua intervenção política – esta imbricação entre teoria e prática foi comumente chamada de práxis. Ocorre que não foram muitos aqueles que se proclamaram marxistas e que realmente estiveram dispostos a levarem esta verdade até as últimas consequências. Quando Marx analisa a Comuna de Paris de 1871, fez algumas retificações sobre o que foi dito no Manifesto Comunista colocando que, se houve algum erro dentre os communards, foi talvez falta de radicalidade: neste evento também estabelece que no período de transição, o estado burguês deve ser imediatamente destruído. Esta verdade, se coerente com os pressupostos de suas análises, certamente poderia soar extravagante para o público da época, mas, aqui, o critério para a verdade está nas suas análises e na prática observada desde Paris.

Já em muitas organizações de esquerda, aquilo que é dito junto aos trabalhadores não é resultado de um minucioso exame da correlação de forças entre as classes, o exame das forças produtivas e seu estágio de desenvolvimento, as vinculações entre o imperialismo e cada fração das burguesias, a luta cotidiana de classes: o que é dito é aquilo que se traduz em melhor coeficiente eleitoral, caindo por terra qualquer possibilidade de qualificar tais organizações “de esquerda” como marxistas. Ser marxista é de certa forma colocar-se sempre como um “filósofo” que está a todo momento em busca da verdade, se servindo das melhores ferramentas teórico-metodológicas que nos foram legadas desde tal tradição filosófica: a dialética, o materialismo histórico, o exame da luta de classes e a crítica.

Karl Marx nasceu em 5 de Maio de 1818 na cidade alemã de Trier na região da Renânia. Foi filho de um advogado liberal e de mãe cujo nome era Henriette Pressburg. A família Marx era de descendência judia mas para evitar restrições sociais, converteram-se ao protestantismo. A região da Renânia à época dos primeiros anos de vida de Marx fora anexada pela França, não dentro da órbita da Prússia dos junkers, com maior liberalização de costumes. Com a derrota das forças de Napoleão, a Renânia voltou a fazer parte da Prússia com a restauração do reacionarismo e a consolidação da aristocracia feudal: e a família Marx passou por novas dificuldades.

Marx terminou em 1935 seus estudos secundários em Trévis.  No mesmo ano dirigiu-se a então minúscula e boêmia cidade de Bonn onde foi estudar Direito e onde comenta-se envolveu-se menos às aulas e mais às farras noturnas. O pai de Marx, preocupado, manda-o estudar em Berlim, então uma cidade muito maior, onde lecionava o eminente Hegel.

No tempo de estudante em Berlim Marx relaciona-se junto aos jovens hegelianos – tal vertente “relacionava a filosofia de Hegal com a organização ‘racional’ do estado prussiano, isto é, segundo os critérios do burocratismo burguês”. Já a direita Hegeliana atuava no sentido conservador, para justificar o Estado prussiano e a política de conciliação com o feudalismo.

O primeiro embate político de Marx portanto seria contra o absolutismo prussiano. Seus textos remetiam mesmo ao jusnaturalismo e a defesa do Estado de Direito, como veremos adiante. Após a conclusão de seu curso universitário e vendo-se impedido na Prússia dos junkers de obter uma cadeira como professor universitário, Karl Marx partiu para a carreira de jornalista. Junto aos hegelianos de esquerda, fundou-se o Gazeta Renana, periódico de que Marx viria a ser Redator Chefe. Nas intervenções do jovem Marx deste período, ainda há em larga escala sua influência hegeliana. Defendia-se o Estado de Direito contra o Estado Absolutista, propugnado através de um programa democrático-radical e reformas do Estado Prussiano. Para Marx, seguindo o jusnaturalismo, o Estado deve ser a encarnação do interesse geral, sendo que todo interesse particular implica em algo “estranho à natureza do estado”.

O jusnaturalismo significa a ideia de que existem certos valores antecedentes ao estado, inerentes ao homem, e que,  no limite, deveriam ser resguardados e jamais suprimidos pelo estado. Razão e liberdade, por exemplo seriam valores a serem resguardados pelo estado. O periódico Gazeta Renana seria proibido em 1843.

É bastante pouco comentado as intervenções deste jovem Marx jusnaturalista em embate com o absolutismo. Em parte deve-se ao fato de que sua noção de estado daria um salto qualitativo radical em obras posteriores. Mas o que deve ser válido assinalar é seu engajamento numa militância dura, o que o faria, após o fechamento da Gazeta Renana, mudar-se à Paris, onde viria a conhecer de perto o movimento operário francês e publicar importantes obras como “Sobre a Questão Judaica”, “Crítica da Filosofia de Direito de Hegel – Introdução” e “Manuscritos Econômicos-filosóficos”.

O próximo momento importante dentro do itinerário é a descoberta da classe operária e do trabalho de uma forma geral como componentes essenciais para se compreender o problema da alienação. A crítica aqui encontra-se frente a Feuerbach. Este último desenvolve uma crítica da alienação religiosa em a “Essência do Cristianismo” – Marx traduz a alienação religiosa de Feuerbach para o âmbito do trabalho

“Assim o operário, no dizer de Marx nos Manuscritos econômicos-filosóficos, “torna-se tanto mais pobre quanto maior é a riqueza que ele produz”, do mesmo modo que quanto mais o homem “põe em Deus, menos ele retém em si mesmo”. 

Na questão judaica, a questão da emancipação também é estabelecida num grau superior. Não se trata para Marx de uma mera emancipação de um povo religioso, mas de uma emancipação do homem que envolve a luta pela superação de um trabalho alienado, estranhado.

O itinerário de Marx segue seu roteiro pelas obras de juventude até a Ideologia Alemã, um momento decisivo e de transição, onde conceitos fundamentais e conhecidos como estrutura e superestrutura surgem. Mas são especialmente nas obras de maturidade e no Capital que podemos encontrar uma perspectiva científica da Marx identificando a subsunção formal do capital em relação ao trabalho, uma noção mais bem talhada de modo de produção, a noção de que a superestrutura também influencia a estrutura diante de exemplos práticos do catolicismo das relações de produção feudal (refundação do materialismo histórico). Numa síntese, o que o autor sugere é que não é possível conhecer a obra de Marx a partir de uma outra obra deslocada – exige-se situá-la dentro de sua específica evolução intelectual, destacando-se que será no final de sua vida, em “O Capital” que as noções científicas de Marx estarão mais bem depuradas.

E para que continuar estudando Marx? O autor revolucionou uma série de áreas do conhecimento. Rompeu com concepções ideológicas da histórica. Estabelece interpretações sobre o domínio e exploração do trabalho, o que é urgente no contexto da reestruturação produtiva. Desenvolve uma teoria crítica em plena vigência sobre o modo de produção capitalista. E lança bases para uma teoria de transição, incluindo aspectos da organização para luta dos trabalhadores.

quinta-feira, 10 de março de 2016

“A Revolução de 1930 – Historiografia e História”- Boris Fausto

“A Revolução de 1930 – Historiografia e História”- Boris Fausto



Resenha Livro - 213 - “A Revolução de 1930 – Historiografia e História”- Boris Fausto – Ed. Companhia das Letras 
O filósofo húngaro György Lukács observou que a única ortodoxia no marxismo está em seu método. O que ele quis dizer é que aos marxistas, ao se servirem da teoria de Marx para a análise social, suas únicas premissas inderrogáveis são os pressupostos teórico metodológicos. Ou para sermos mais precisos, nossa única intransigência teórica são materialismo histórico e o materialismo dialético.

No que se refere à história, um erro fundamental e de uma má aplicação do marxismo seria o de buscar adequar uma determinada realidade aos esquemas tais quais foram examinados pelos clássicos, Marx, Engels e Lênin. O erro consiste em algo como “torturar” as fontes históricas até elas dizerem o que queremos ouvir: por exemplo a sequência dos modos de produção observados no processo de desenvolvimento histórico europeu: escravismo - feudalismo – capitalismo – socialismo. Este foi o caso de nossos primeiros (e pioneiros) historiadores marxistas, mas certamente aqui não devemos fazer um mau juízo de valor: não é o tema desta resenha, mas a recepção das ideias socialistas no Brasil foi um processo tortuoso/difícil e é natural que marxistas como Astrogildo Pereira ou mesmo Nelson Werneck Sodré violassem a regra de ouro de Lukács, implicando em interpretações mecanicistas de nossa história.

“A Revolução de 1930” de Boris Fausto é antes de tudo uma obra de discussão historiográfica que irá dialogar com uma série de interpretações que em parte estão influenciadas por um pensamento de esquerda mecanicista. Uma corrente de pensamento tradicional é a de entender o fenômeno político que remonta ao fim da República Velha e a Ascensão da Aliança Liberal encabeçada por Getúlio Vargas como uma nova composição de classes no poder: a destituição do poder das oligarquias cafeeiras ligadas ao imperialismo inglês e uma frente política que envolve uma fração militar que representaria as classes médias (tenentes) e um novo bloco burguês industrial. Aliás, este esquema interpretativo remete mesmo às diretrizes políticas da III Internacional daquele período segundo a qual os partidos comunistas deviam fazer bloco junto aos setores progressistas da burguesia para derrotar os elementos mais atrasados (“feudais”) dentro de uma estratégia que poderíamos classificar como etapista. O que é interessante é que Boris Fausto, que está fora da perspectiva marxista, passa a analisar minuciosamente os dados referentes à composição geográfica do país, elementos de sua realidade econômica, participação dos grupos sociais na renda nacional e ao descer dos esquemas teóricos aos dados concretos, observa que “a teoria não bate com a realidade”.

A discussão sobre a presença de um feudalismo ou semifeudalismo no Brasil já foi superada e um marxista que estabeleceu esta crítica de forma pioneira: Caio Prado Júnior. O feudalismo envolve camponeses se subordinando por laços pessoais ao seu senhor e uma relação de vassalagem – o trabalhador tem interesse, num plano de lutas, por terras. No Brasil desde meados do séc. XIX pode-se falar mesmo num  empreendimento comercial do café em que os barões detém a terra, os instrumentos de trabalho e compram ou alugam a força de trabalho – o trabalhador tem interesse, num plano de lutas, por melhores condições de trabalho e remuneração.

Não se pode falar de outro modo que a Revolução de 1930 foi conduzida por uma burguesia industrial coesa e organizada. O que havia no brasil era uma relação de interdependência entre a indústria e o ramo do café, e este último ainda respondia por 70% da economia nacional – e as políticas em defesa do café continuaram após a revolução de outubro, havendo apenas um deslocamento relativo das elites políticas de São Paulo. A Aliança Liberal correspondia a uma coligação de oligarquias dissidentes atrás de mais concessões, com maior destaque para o Rio Grande do Sul e Minas Gerais, que se viu prejudicada com a quebra da lógica da política do café com leite diante da escolha do sucessor paulista Júlio Prestes por Washington Luiz.

Um elemento mais radical a ser considerado são os tenentes, um movimento dos escalões mais baixos das forças armadas – são partidários do nacionalismo, do liberalismo e da centralização política. Alguns advogam a tese da salvação militar (fenômeno aliás recorrente na américa latina) no sentido de arrancar o país do domínio das oligarquias. Todavia, gradualmente, os tenentes vão sendo alijados do poder político. Conforme Boris Fausto relata:

“Embora Vargas tenha se apoiado nos “tenentes” durante os primeiros anos da década de 1930, e algumas aberturas nacionalistas difusas se devam à influência destes, a consolidação do novo governo dependia da homogeneização do aparelho militar. Isso implicava a liquidação do tenentismo como força autônoma que, a cada passo, ameaçava corroer a disciplina, sem prescindir dos “tenentes” individualmente, e o combate às organizações radicais, cuja influência ideológica, por meio da figura de Prestes, crescia nas Forças Armadas. Esses objetivos foram perseguidos por alguns quadros militares, cujo representante exemplar foi Góis Monteiro, e implicaram a condenação do Clube 3 de Outubro morte lenta”.

Diante deste quadro, a Revolução de 1930 aparece não mais como um alijamento de uma fração de classe por outra, mas pelo estabelecimento daquilo que Boris Fausto chama de “Estado de Compromisso”.

“O Estado de compromisso, expressão do reajuste nas relações internas das classes dominantes, corresponde, por outro lado, a uma nova forma de Estado, que se caracteriza pela maior centralização, o intervencionismo e não restrito apenas à área do café, o estabelecimento de certa racionalização no uso de algumas fontes fundamentais de riqueza pelo capitalismo internacional (Código de Minas, Código de Águas). 


A maior centralização é facilitada pelas alterações institucionais que põem fim ao sistema oligárquico. Intocadas em suas fontes de poder, estas subsistem como força local, embora possa haver a troca de grupos ligados ao “antigo regime”, por outros situados na oposição. Entretanto, as oligarquias se subordinam agora ao poder central, com a perda do controle direto dos governos dos estados, onde são instalados interventores federais.”


Como dizíamos, Boris Fausto tem como ponto de partida a crítica de uma certa historiografia que parte de algumas premissas que se chocam com as análises de fato. Todavia sua interpretação também deve ser submetida a algumas ponderações. O autor parece partilhar de uma orientação weberiana e em sua análise acaba dando peso exagerado nas instituições, particularmente no Estado e nos dirigentes políticos, como fonte dos desmembramentos políticos. As classes operárias ainda que estejam em maturação no período ainda poderiam ter sido melhor analisadas: não fossem relevantes, não teriam sido objeto da legislação trabalhista e sindical criadas naqueles anos. E não só os operários, as greves, o Bloco Operário e Camponês e o PCB mas a massa de trabalhadores livres e pobres que compunham os quase 30 milhões de almas daquele tempo deveria ser melhor observados já que estamos falando de períodos contemporâneos à Revolução Russa e Revolução Mexicana, além de crise mundial do capitalismo – como falava Lênin, uma era de crise, guerras e revoluções, e que ia muito além dos bastidores do poder.

segunda-feira, 7 de março de 2016

“Sandino – Vida e Obra” – João Pedro Stédile e Mônica Baltodano (Org.)

“Sandino – Vida e Obra” – João Pedro Stédile e Mônica Baltodano (Org.)



Resenha Livro - 212 - “Sandino – Vida e Obra” – João Pedro Stédile e Mônica Baltodano (Org.) – Ed. Expressão Popular 

“O patriotismo a que você apela é o que me tem mantido rechaçando a força com força, desconhecendo em absoluto toda intromissão do seu governo nos assuntos interinos de nossa nação, e demonstrando que a soberania de um povo não se discute mas se defende com as armas na mão. Firmado nisso é que respondo a você que, para chegar a esse acordo de paz efetivo com o general José María Moncada, impomos como primeira condição, absolutamente indispensável, a retirada das forças estadunidenses sob seu comando de nosso território. Não acredito ser demais informar a você que as propriedades estrangeiras ficarão garantidas por nós, nicaraguenses, que por forças de um governo estranho, porque toda intromissão estrangeira em nossos assuntos só traz perda da paz e ira do povo”. Augusto César Sandino. 

O nome de Sandino é frequentemente remetido à revolução sandinista de 1979, às jornadas de lutas que derrotou a ditadura sanguinária de Somoza que durante 40 anos governara aquele país. A Frente Sandinista de Libertação Nacional, todavia, é uma solução de continuidade de lutas guerrilheiras das quais Sandino serviria como uma espécie de ícone, de referência política. Coube ao principal dirigente político da Revolução Sandinista de 1979, Carlos Fonseca, um trabalho primordial de resgate daquele guerrilheiro camponês que atuou entre os anos 1920-30 num movimento contra a intervenção imperialista norte-americana no país, pela autonomia nacional e contra a espoliação das oligarquias e em defesa dos mais humildes. 

Há de se ter em mente que a posição geográfica da Nicarágua implicou desde os momentos coloniais numa acirrada disputa entre as nações imperialistas sobre o pequeno país– localizado na América Central fazendo divisa ao sul com a Costa Rica e ao norte com Honduras, sua posição possibilitava uma passagem entre os oceanos atlântico e pacífico e seria objeto, principalmente pelos EUA, de debates para construção de um canal aos moldes do canal do Panamá. A economia do país inicialmente se dava em torno do gado em latifúndios até uma revolução que transformou a economia com as plantações de café. 

Sua independência em relação à Espanha deu-se em 15.09.1821 e de certa maneira pode ser comparada a do Brasil: nos dois países a emancipação política foi antes um processo dirigido e acertado pelas elites e, mais importante, não implicando uma real autonomia da nação. Enquanto no Brasil, a independência em relação à Portugal transferiu a dependência econômica do país em relação à Inglaterra, na Nicarágua, os espanhóis saem de cena para uma intervenção decisiva e direta dos norte-americano na vida política e econômica. 

Não se pode esquecer neste contexto a chamada Doutrina Monroe (1823) que formalmente estabelecia a noção de “América para os americanos” mas que na prática busca criar uma justificativa ideológica para imperialismo do norte junto aos países latino americanos – com a revolução industrial do norte dos estados unidos e especialmente após a guerra de secessão, os EUA se estabeleceriam como uma potência econômica em busca de mercados diante de sua indústria, o que envolvia o engajamento mesmo de forças militares e intervenção direta diante da política interna dos países, especialmente daqueles que despertassem interesses estratégicos. 

Qual é o ponto de partida para o início da militância de Sandino? Podemos situá-la desde fins do séc. XIX. Assim, diz no prefácio, Mônica Baltodano

“Nos fins do séc. 19, o regime econômico feudal dá mostras de esgotamento. Os setores populares aparecem com força na guerra dos índios de Matagalpa em 1881, o que favorece as ideias liberais. Em 1893, triunfa a revolução liberal dirigida por Zelaya que empreende algumas reformas inspiradas na Revolução Francesa, o que lhe proporciona certa autonomia. Os Estados Unidos impõem a renúncia de Zelaya por meio da nota Knox e, a partir daí, se inicia a intervenção aberta na Nicarágua, o país passou a ser um protetorado  estadunidense”.

Sandino vem de origem humilde e trabalha com pai como comerciante de grãos durante a  juventude. Sai da Nicarágua em 1921 e passa por diversos países até chegar ao México onde trabalha como mecânico em companhias petroleiras transnacionais. Desde o México recebe notícias de novas intervenções dos yankees e é motivado a regressar à Nicarágua em 1926. Trabalha como operário na mineração e de lá organiza um grupo de companheiros que retira dinamite dos armazéns e toma as armas para se incorporar à luta. Trata-se inicialmente de uma luta entre liberais e conservadores, tendo os liberais como liderança José María Moncada. Em 4 de maio de 1927, como é previsível, uma solução pactuada é feita sob o nome emblemático de “o pacto do espino negro” ou “traição do espino negro” – Moncada aceita render-se com a promessa de eleições vigiadas pelos Estados Unidos e chama os rebeldes a depor as armas. 

Aqui está o início das forças rebeldes sandinistas: Sandino decide não se render, viaja a Segovias, escolhe os mais decididos combatentes (não mais do que 30) e dará início a seu movimento guerrilheiro nas montanhas que perdurará pelos próximos anos culminando na expulsão dos norte-americanos em 1933. 

“Não sou nem sequer militar, nada mais do que um camponês que luta pela autonomia de seu povo.
Que haja trabalho e atividade para todos. Sou partidário de que a terra seja do Estado. Nesse caso particular de nossa colonização no coco, inclino-me por um regime de cooperativa. 
(....) a natureza inspira e dá força. Tudo nela nos ensina. A cidade nos desgasta e nos reduz. O campo: não para encerrar-se egoisticamente nele, mas para marchar para a cidade e melhorá-la”. 

Sandino representa o início da guerra de guerrilhas rurais e as derrotas que infringiu à Guarda Nacional (que contava com todo apoio do aparato repressivo estrangeiro) expressa a superioridade moral do Exército Defensor da Soberania da Nicarágua. A justeza da causa sandinista diz respeito à forma como a luta nacionalista imbricava questões concretas – a defesa da soberania era do interesse dos mineiros e dos camponeses sem terra. Um outro aspecto a ser tomado em consideração é que a Nicarágua de então não possuía classe operária e sua burguesia ainda era muito residual. Não houve imigração de trabalhadores europeus portadores de ideias socialistas como no Brasil e outros países, fazendo com que as orientações políticas liberais ou conservadoras fossem as únicas que estivessem preponderantes dentre as classes dominantes. Quanto aos oprimidos, constataram de maneira bastante objetiva as interfaces entre a dominação interna e a espoliação imperialista, passando a uma política patriota – o socialismo viria a influenciar mais detidamente o movimento na Nicarágua a partir da influência da revolução cubana de 1959. 

José Martí, Augusto César Sandino e Carlos Fonseca são três representantes da luta pela autonomia da América Latina que se serviram do repertório político de seu tempo. Um traço distintivo de Sandino é sua dignidade, sua moralidade revolucionária, seu ascetismo, sua personalidade incorruptível. 

“Se por força do destino perdesse todo o meu exército, no que não acredito, fique o senhor sabendo, meu estimado amigo, que em meu arsenal de guerra conservo cem quintais de dinamite que acenderei com minhas próprias mãos, colocando-me no centro; e, no cataclismo que produzirá esta explosão, a detonação será ouvida à distância de 400 quilômetros, e aqueles tenham a ventura de ouvi-la serão testemunhas de que Sandino morreu, mas que não admitiu que mãos profanas de traidores e invasores profanassem seus despojos, pois só Deus onipotente e os patriotas de coração saberão julgar minha obra”

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

“Martí – e as Duas Américas” – Pedro Pablo Rodriguez

“Martí – e as Duas Américas” – Pedro Pablo Rodriguez 



Resenha Livro - 212 -  “Martí – e as Duas Américas” – Pedro Pablo Rodriguez – Ed. Expressão Popular 


A experiência colonial da América Portuguesa e da América Espanhola encontraria vastas particularidades na história, dentre elas, uma particularmente visível: o processo de descolonização. A independência política brasileira foi sob certo sentido um processo pactuado entre elites políticas desde a Europa e desde os trópicos, manejado de tal forma que a vasta unidade territorial brasileira foi preservada, com poucos e localizados conflitos regionais. Fenômeno distinto pôde ser observado na América espanhola em que o processo de descolonização foi muito mais conflituoso, envolveu diretamente a participação de uma certa elite política local bastante influenciada por ideias liberais e republicanas, culminando, outrossim, numa maior repartição territorial – em que pese as ambições de um Bolívar, que, dentro daquele contexto de emancipação, defendia a união de todos os povos latino-americanos. 

José Martí foi um pensador, jornalista e ativista político cubano que viveu e atuou politicamente no último quartel do século XIX sendo um representante original daquela elite política liberal engajada nas jornadas de luta pela emancipação da América Latina, e, no caso mais especificamente de Martí, de Cuba e Porto Rico. Viveu durante muitos anos como correspondente político fazendo jornalismo no México,  Guatemala, Venezuela e Estados Unidos, além de ser fundador do Partido Revolucionário Cubano (1892). 

Este trabalho de Pedro Rodriguez busca fazer todo um intinerário do pensamento político de José Martí, desde sua juventude:

“Martí, adolescente, manteve-se a par do desastre espanhol com a anexação de Santo Domingo, da vitória dos liberais mexicanos frente ao império de Maximiliano, e do triunfo do norte abolicionista sobre o Sul escravagista nos Estados Unidos. As principais características do contexto sócio político era o liberalismo, o republicanismo, o progresso técnico e científico e a luta pela abolição da escravatura”. 

Ressaltamos que muitas destas questões ainda estavam pendentes no universo próximo de Martí. A escravidão apenas foi abolida em Cuba 1886, quando Martí já contava com 33 anos e residia em Nova York como correspondente. A vitória do norte na guerra de secessão nos EUA implicava na vitória do modelo de desenvolvimento industrial que privilegiava o incentivo à vinda de imigrantes europeus, a industrialização associada à superexploração do trabalho, resultando em greves e distúrbios sociais, fatos que não passaram despercebidos em suas crônicas. Ainda que não se colocava como um socialista stricto senso, Martí foi um igualitarista e paulatinamente vai observando como as contradições do regime capitalista mantêm vínculos com a criação de monopólios e lastros de interesses junto aos detentores do poder político. Por isso, são nas “Cenas de Nova York” que Martí está mais próximo de um crítico mais objetivo do capitalismo, ainda que com todos os seus limites de um homem liberal, republicano e igualitarista, defensor intransigente da unidade e autonomia latino americanas.

Antes de sua passagem pelos EUA, José Martí esteve na Guatemala governada por Justo Rufino Barrios e posteriormente na Venezuela de Guzman Blanco. Tinha como política evitar ao máximo evitar constrangimentos no sentido de intervir diretamente na política interna dos países: como pensador, poeta e jornalista, tinha objetivos mais amplos voltados à consecução da unidade latino americana, à sua defesa diante de ameaças de violação de sua soberania frente ao imperialismo norte americano, que se concretizava, por exemplo, na tentativa da criação de um canal na Nicarágua. Desde estes países, também atuava pela independência tardia de Cuba e Porto Rico: 

“E (seu) primeiro passo foi buscar unificar a ação da emigração cubana, para o que fundou o Partido Revolucionário Cubano, em 10 de Abril de 1892. 

Eleito seu delegado – original maneira com que, nas bases do partido, foi denominado seu dirigente máximo, de todos os pontos de vista uma forma de reforçar a representatividade desse cargo eletivo -, Martí concebeu essa organização política como ensaio da “república nova”, ainda que seu propósito imediato fosse preparar a guerra para a independência das últimas duas possessões espanholas da América. De fato, em sua opinião, o férreo domínio colonial apenas admitia o enfrentamento pelas armas”. 

E ainda desde sua acolhida na Venezuela, Guatemala e México, pôde constatar e desenvolver uma ideia reiterada: o fato de que concepções políticas importadas/ exógenas não têm o condão de dar solução aos dilemas da América Latina ou mesmo da América como um todo. Assim, mesmo no que se refere ao liberalismo, observa como o ideário liberal fica a meio do caminho diante de dirigentes autoritários como Guzman Blanco (Venezuela) que virtualmente o expulsara do país. O que ocorre é que os ideários liberais no contexto latino americano são distorcidos de forma a resultar no velho caudilhismo autoritário, com perseguição aos oposicionistas ou a qualquer participação ativa popular. 

De outro lado, o mesmo raciocínio é levado ao extremo por José Martí quanto ao socialismo e ao anarquismo que seriam igualmente inadequados em solos americanos, dentre outras razões, pela sua violência intrínseca.      

Todavia, esta não aceitação do socialismo, diante do contexto histórico vivido pelo autor, pode ser tomada como algo formal. Martí tinha uma tendência igualitarista bastante clara e sempre se manifestava a favor dos humildes, em que pese algumas diferenças quanto às táticas do movimento operário anarquista de então quanto ao uso de bombas. E mais: Martí foi o mais avançado dentre aqueles liberais emancipadores da América espanhola, seja pela sua plena posição anti-imperialista seja por sua vanguardista posição em defesa dos povos pré-colombianos: Martí foi um intransigente defensor da América por causo dos índios e por causa da mistura das raças junto a estes povos, o que sempre buscava delinear, junto com as belezas naturais nativas, de forma poética. Tanto o sonho de Bolívar quanto o de Martí seguem pendentes, o da unificação dos povos americanos, sem qualquer fronteiras, desta feita compartilhando todas as riquezas de forma solidária, sob a bandeira do socialismo. 

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

“Bem Vindo ao Deserto do Real!” – Slavoj Zizec

“Bem Vindo ao Deserto do Real!” – Slavoj Zizec 



Resenha livro –  211- “Bem Vindo ao Deserto do Real” – Slavoj Zizec – Ed. Boitempo

O filósofo esloveno S. Zizec é um caso raro de pensador/intelectual com certo prestígio fora do âmbito acadêmico. Se considerarmos que o supracitado também desenvolve trabalhos na área de crítica de cinema (é especialista na obra de Hitchock) bem como nos estudos de psicanálise, pode-se aferir a razão pela qual suas teses acerca dos assim denominados “cutural studies” perpassam temas tão vastos como reflexões sobre produções de cinema, implicações da política internacional  diante da paranoia criada pelos eventos de 11 de Setembro de 2002 e as respectivas relações da política com a psicanálise lacaniana. Outro dado a ser considerado é que Slavoj Zizec é um pensador com bastante inserção na Indústria Cultural, contando, só no Brasil, com a publicação de pelo menos 7 livros, além de palestras e entrevistas por todo mundo: Zizec costuma participar especificamente de eventos caros à reflexão e debates dos destinos da esquerda mundial, como é o caso do Marxism Festival, realizado anualmente, sob organização do SWP, Socialist Workers Party (Ver uma de suas palestras aqui: https://www.youtube.com/watch?v=_GD69Cc20rw )

“Bem vindo ao Deserto do Real” reúne 5 ensaios cujo eixo temático é a reação norte-americana aos eventos de 11.09.2002  Em primeiro lugar, constata-se uma mudança radical na orientação da política internacional norte-americana se comparada aos quadros de referência da fase da Guerra Fria. A lógica de “guerra ao terror” implica ao “estado de ameaça terrorista eternamente suspenso”. Ademais, ataques preventivos são justificados, com o sem o aval de países aliados, em que pese o fato inédito do inimigo não mais circunscrever-se em territórios nacionais. Zizec a todo instante reitera a nova dimensão da guerra que se coloca, uma guerra esvaziada de sua substância, algo sintomático de nossos tempos, sem soldados se enfrentando nas trincheiras e sem baixas aparentes, guerra travada diante de computadores que são operacionalizados desde longe. 

Outro aspecto a se destacar frente ao 11 de Setembro que de forma contumaz trouxe os norteamericanos de volta à realidade – de volta ao “Real” e não mas acompanhando guerras de Ruanda ou Iugoslávia desde o conforto da Televisão – é a restauração da inocência do patriotismo americano. 

“Aqui, a ironia última é que, a fim de restaurar a inocência do patriotismo americano, o establishment conservador americano mobilizou o principal ingrediente da ideologia politicamente correta que ele oficialmente despreza: a lógica da vitimização. Apoiando-se na ideia de que a autoridade é conferida (apenas) aos que falam  da posição de vítima, ele se baseava no seguinte raciocínio implícito: “Agora nós somos as vítimas, e é isso que legitima o fato de falarmos (e agirmos) de uma posição de autoridade”. Assim, quando se ouve hoje o slogan de que terminou o sonho liberal da década de 1990, que, com os ataques ao WTC, fomos violentamente atirados ao mundo real, que acabaram os tranquilos jogos intelectuais, devemos nos lembrar de que esse chamado enfrentamento da dura realidade é ideologia em estado puro. O slogan de hoje, “Americanos, acordem!” é uma lembrança distante do grito de Hitler, “Deutschland, erwache!”, que, como Adorno escreveu há muito tempo, significava exatamente ao contrário”. 

Interessante sondar demais implicações dos usos e abusos da lógica da vitimização não só dentro do jogo da política internacional, mas nas traumáticas interações pessoais a partir das quais grupos de combate às opressões buscarão consolidar seus espaços de poder. Dentre as diversas variáveis nesta complexa equação que envolve a experiência humana, certamente há de se destacar aquilo que genericamente colocaríamos como vontade da potência. De outro modo, desde o ponto estritamente pessoal, exercer o papel de vítima é bastante diferente de ser vítima da exploração e da opressão – no primeiro caso trata-se de um oportunismo, de um cretinismo do qual não estão isento negros e especialmente feministas, Gays, Lésbicas e afins. A interpelação ideológica identificada com eficiência por Zizec é parte de sua análise que envolve a teoria crítica – com influências e citações de autores da Escola de Frankfurt como T. Adorno – a psicanálise lacaniana, a filosofia e especificamente a dialética hegeliana e uma orientação política que o coloca entre os socialistas e a democracia radical. 

Dentro destes pressupostos, qual deve ser a leitura dos marxistas diante da obra de Slavoj Zizec? Nem todas as assertivas do filósofo esloveno devem ser encaradas sem reservas. Suas observações sobre Cuba, por exemplo, são bastante superficiais: identifica apenas a aparência dos fenômenos sociais da ilha, qual seja, as construções e edifícios tombados e datados de mais de meio século, automóveis antigos rondando cidades que parecem ter parado no tempo e cita como referência o romance de Pedro Juán Guthiérrez, um raivoso dissidente e jornalista que mora livre na ilha a difamar o regime de Fidel. Zizec de outro lado não faz nenhum  comentário sequer ao embargo econômico e pouco diz sobre a evolução histórica e econômica de Cuba, que engendrou “atraso” – poderia igualmente comparar o “atraso” com dados socioeconômicos de Cuba e de outras capitais latinoamericanas. Outro erro a se destacar dentre os ensaios de Zizec parece o de associar a China a uma espécie de capitalismo de estado, desconsiderando o secular estado de opressão e espoliação estrangeira pelo qual os chineses lutaram.

De outro lado, entendemos que Slavoj Zizec é um autor que vale a pena ser conhecido e lido pela esquerda revolucionária. Não necessariamente pelas respostas ou sínteses que oferece mas especialmente pelas as perguntas que formula. Bons filósofos não necessariamente são aqueles que formulam as respostas corretas mas aqueles que problematizam, fazem perguntas que nos inquietam, instigam-nos a pensar. E aqui o filósofo e particularmente o psicanalista Zizec ganha maior relevância e tem maior contribuição para o marxismo. Dentro da tradição Marxista, foi Althusser um dos primeiros a vislumbrar as relações entre o materialismo histórico e dialético e a psicanálise e Zizec surge como uma original solução de continuidade. Um pequeno exemplo de como este casamento pode-nos ser concretamente relevante está na crítica da ideologia da livre escolha do multiculturalismo liberal, consoante Safatle no posfácio da obra, in verbis:  

“Esta politização da defesa da irredutibilidade do sujeito marca a maneira com que Zizec entra no debate da contemporaneidade. Lembremos, por exemplo, como ela é mobilizada na viabilização de sua crítica contra a ideologia da “livre escolha” própria ao multiculturalismo liberal, ideologia cujo ápice será o uso da noção de gender como construção performativa do sexual. Pois a experiência da negatividade do sujeito indica, entre outras coisas, como o desejo não se satisfaz na assunção de identidades ligadas a particularismos sexuais. O sujeito é aquilo que nunca é totalmente idêntico a seus papeis e identificações sociais, já que seu desejo insiste enquanto expressão da inadequação radical entre o sexual e as representações do gozo (seja na forma de identidades como: gay, lésbica, queer, SM, Andrógino). Isto permite a Zizec afirmar que a tolerância  da multiplicidade liberal (“cada um pode ter sua forma de gozo”) esconde a intolerância diante da opacidade radical do sexual. O que não deve nos surpreender, já que a falsa universalidade do Capital acomoda-se muito bem a esta multiplicidade. Todas estas reivindicações identitárias (que se dão principalmente na esfera do mercado: para cada identidade um targed com uma linha completa de produtos e uma linguagem publicitária específica) estão subordinadas à falsa universalidade do capital”.    

Um bom ponto de partida para dizer em alto e bom som que os marxistas leninistas devem estar contra a ideologia de gênero ensinada nas escolas.  

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

“Os Advogados e a Ditadura de 1964” – Fernando Sá, Oswaldo Munteal e Paulo Emílio Martins (Org.) – Ed. Puc Rio Editora Vozes

“Os Advogados e a Ditadura de 1964” – Fernando Sá, Oswaldo Munteal e Paulo Emílio Martins (Org.) – Ed. Puc Rio Editora Vozes





Resenha Livro - 210 - “Os Advogados e a Ditadura de 1964: A defesa dos perseguidos políticos no Brasil” – Fernando Sá, Oswaldo Munteal e Paulo Emílio Martins (Org.) – Ed. Puc Rio Editora Vozes

Resenha dedicada à Sheila Évelin que gentilmente presenteou-me com um exemplar desta edição. 


O ofício do historiador pode não ter o reconhecimento social devido, mas certamente tem uma enorme relevância. É função do historiador investigar o passado para construir a narrativa que deverá consolidar uma memória da sociedade, a memória social. Podemos sondar a importância da memória social fazendo algumas comparações com a memória individual, a memória de nossas vidas pessoais. Precisamos de uma memória para com ela criarmos uma identidade, buscar referências, desde que somos aquilo que fazemos, somos o resultado de nossas experiências – consoante Marx, não é uma essência que determina o ser social, mas o contrário, é o ser social que determina a sua essência. Para além da identidade e suas referências pessoais, a memória tem um elo particular com a aprendizagem. Trata-se aqui daquela fórmula bastante conhecida de que os erros cometidos estão aí para servirem como aprendizagem. E aqui retomamos o conceito de memória social e sua relevância dentro do ofício do historiador. É necessário prestigiar o trabalho daqueles que constroem a memória social principalmente acerca de períodos da história onde há grandes evidências e um consenso de que o conjunto da sociedade esteve em erro – consolidar e ativar uma memória para que períodos tenebrosos da história não se repitam. 

Ainda que muito já tenha sido escrito, debatido e filmado acerca do período da ditadura militar no Brasil, ainda há muito o que avançar no que se refere a consolidação de uma memória que se certifique de que as torturas, as prisões arbitrárias em que os acusados eram tidos como incomunicáveis, a supressão do habeas corpus, dentre outros, não se repitam. Uma das pendências daquele período é a abertura completa de todos os arquivos da ditadura militar e há hoje famílias que dependem de informações para descobrir o paradeiro de entes, nem que seja para enterrar seus mortos dignamente. E como prova de que este passado não está nem um  longe de “repetir-se como farsa”, está em tramitação no Congresso Nacional uma “Lei Anti Terrorismo” que em nada fica devendo aos Atos Institucionais ultra autoritários do período em exame. Esta lei anti terror não define o que é terrorismo, ou muito mal o define, se servindo da ideia de terrorismo que absolutamente nunca teve qualquer atuação objetiva no Brasil, como de grupos como ISIS., mas que, com aplicação no Brasil, teria clara aplicação junto a movimentos sociais e grevistas. Um duro golpe ao movimento dos trabalhadores e populares, com um discurso ideológico muito semelhante ao conceito de “Segurança Nacional” dos militares. 

Diante de todos estes elementos, toda iniciativa que se volta para o período entre abril de 1964  e1985 com o objetivo de consolidar a memória social e trazer relatos sobre aquele tempo, esclarecer e disseminar o que ocorreu no período militar brasileiro, deve ser saudado. 

“Os Advogados e a Ditadura de 1964” corresponde uma série de artigos redigidos por historiadores, jornalistas e pesquisadores acerca de um grupo, na verdade um pequeno grupo de advogados que na prática exerceram um papel de enorme relevância na defesa jurídica de diversos acusados e presos durante a ditadura. Em geral estes advogados não tinham uma ideologia política marxista ou comunista como muitos dos réus, mas eram movidos por sentimentos humanistas, ora por ideais democráticos. E está fora de dúvidas  que salvaram vidas e evitaram torturas, importando ressaltar que, por suas iniciativas e combates jurídicos, sofreram eles próprios, prisões e sequestros. Com a exceção de um Sobral Pinto e Dalmo Dallari, a grande parte destes advogados também deve ser desconhecida do grande público como Heleno Fragoso, um grande jurista com grandes conhecimentos técnicos e que chegou a ser sequestrado pelos militares como forma de intimidação, e Eny Moreira, uma ativista jurídica incansável que começou como estagiária do escritório de Sobral Pinto no Rio de Janeiro e terminou como uma das idealizadoras do projeto “Brasil Nunca Mais”.

O “Projeto Brasil Nunca Mais” se insere também dentro da importância da preservação da memória histórica. Como estagiária, Eny escutava de Sobral Pinto relatos de que todos os processos de perseguidos políticos da ditadura do Estado Novo varguista foram incinerados, inviabilizando o trabalho de pesquisa acerca das dimensões da repressão, apuração de responsabilidades civis do estado, etc. Diante disso foi sendo consolidado o projeto “Brasil Nunca Mais” que resultou num livro de igual nome, uma obra que serviu como ponto de partida para constatação das violações de direitos humanos na ditadura.
Revisionismo histórico pela direita

Diante das lamentáveis cenas de hienas e coxinhas se manifestando nas ruas de São Paulo no ano de 2015, não só contra o governo do PT, mas contra ideias de esquerda e democracia, contra movimentos sociais e alguns pela intervenção militar, necessário observar que o ponto de partida para a defesa de militares no poder por esta gente é o esquecimento histórico ou revisionismo que irá mesmo subverter os fatos falando numa “revolução” de 1964 para a partir daí supor uma “paridade” de armas entre um aparato ideológico militar estatal com o apoio incondicional dos estados unidos contra minúsculos grupos divididos em pequenas frações pela luta armada, quando não indivíduos ou grupos, intelectuais ou movimentos, sem qualquer engajamento com luta violenta contra a ordem (como o PCB) e ainda assim presos, torturados e mortos, como os casos de Vladimir Herzog e do operário Manoel Filho. 

O conceito de “revolução” não é dos historiadores nem dos cientistas sociais, mas foi literalmente importado da física como chave explicativa para explicação de fenômenos sociais. Na física a revolução descreve o movimento de um corpo em órbita, a conclusão de um período completo considerando um ponto central de referência (que num círculo é o seu raio) é uma revolução. Observe que a revolução na física é um movimento que completa todo um período, para ficar com o exemplo do círculo, mas que acaba chegando ao mesmo ponto de chegada. Os historiadores ao se apropriarem do conceito de revolução não a imaginam necessariamente a esse movimento de um ponteiro de um relógio de movimentação em 360º e volta ao mesmo ponto. Do que se trata efetivamente a Revolução para as análises históricas são de mudanças estruturais de grande vulto, que põem em movimento das classes sociais e que portanto envolvem mobilização de massas, e não raro se expressam em guerras civis. 

Ora se observarmos o que aconteceu no Brasil e seu pré 1964 nada disso estava colocado. De fato havia uma divisão no país que remetia ao impasse criado já desde a renúncia de Jânio e a insatisfação com a posse de Jango que teve que ser arranjada dentro do esquema parlamentarista, só depois readaptada ao presidencialismo. João Goulart insistiu em suas reformas de base mas pouco se lembra que estas Reformas estavam muito longe sequer de resolver as tarefas que uma revolução burguesa democrática digna. Sua maior ambição e que mais de fato assustou a nossa tacanha classe dominante golpista foi o aumento do salário mínimo. Sua reforma agrária foi bastante tímida, reservada às terras que faziam margem às rodovias. Duas grandes manifestações, uma no Rio em defesa das Reformas com 100 mil, e outra em São Paulo, pela Família e em Defesa da Propriedade e contra o Comunismo, mediram-se forças. E o golpe veio por meio de uma série de movimentações que revelaram como a maior parte do dispositivo militar capitulara aos golpistas: tropas de Mourão Filho saíram de Juiz de Fora-MG em direção ao Rio de Janeiro-RJ, e alguns incidentes pontuais no dia 1º de Abril como a invasão da sede da UNE marcaram aquilo que foi de fato um Golpe de Estado. 

“Em março de 1964, é derrubada a ordem constitucional até então vigente em nosso país. Um golpe militar, não uma revolução, como era intitulada pelo grupo golpista, destitui o presidente da República democraticamente eleito, João Goulart e, junto com ele, o regime político fundado em 1946.

Correto afirmar que este episódio significou, como declara Toledo (2004), um golpe contra a democracia brasileira que se voltava pela ampliação da cidadania política dos trabalhadores rurais e urbanos, um movimento contra as reformas sociais e econômicas, um golpe contra o frutífero debate teórico-ideológico e cultural que estava em andamento no Brasil”. (PG 177)

Acerca do livro, além das resenhas dos advogados ativistas, há uma parte de anexos, com depoimento de perseguidos torturados, fazendo assim uma complementação entre o advogado e agora seu respectiva assistido e um artigo específico sobre aspectos jurídicos do período ditatorial. Mas pelo volume de informações sobre o período registrado, este livro interessa certamente a um publico muito mais amplo que o de operadores de direito. E como colocamos, em tempos de revisionismo histórico e de Lei Anti Aterrorismo, e de lutas concretas como a de abertura dos arquivos da Didatura Militar, este livro é um verdadeiro instrumento de conscientização.