domingo, 14 de agosto de 2022

A Literatura de José Mauro Vasconcelos

 A LITERATURA DE JOSÉ MAURO DE VASCONCELOS



 


Resenha Livro – “Coração de Vidro” – José Mauro Vasconcelos – Ed. Melhoramentos.  

 

“Era uma vez.... uma fazenda imensa.

No pátio do fundo existia uma mangueira moça.

Pelos campos bem verdes e iluminados de sol, eram criados os cavalos de corrida.

Na mata, os passarinhos aprendiam a cantar livremente.

E o vento – e que vento doce! – balouçava os grandes milharais, que cada vez se tornavam mais cor de fogo.

No lago, os peixes vermelhos nasciam para mais tarde ser transportados aos aquários da cidade.

Tudo era lindo, muito lindo, na fazenda.

Mas os homens estragavam tudo....”.

 

O livro mais conhecido do escritor fluminense José Mauro Vasconcelos certamente é “Meu Pé de Laranja Lima” (1968), espécie de relato autobiográfico da infância do escritor, vivenciada na pobreza de um bairro de subúrbio de Bangu/RJ.

 

As fantasias de uma criança que cultiva amizade com uma árvore de laranjeira do seu quintal, o encanto produzido pela imaginação dos menores, que conseguem abstrair as dificuldades da vida e encará-la com ternura e alegria, certamente cativou leitores de todas as idades e fez de Vasconcelos um dos poucos escritores brasileiros que pôde viver exclusivamente dos direitos autorais de sua obra.   

 

Façanha que encontra poucos paralelos no Brasil: Érico Verissimo, Jorge Amado e Monteiro Lobato são outros poucos exemplos de escritores de uma literatura ao mesmo tempo popular, acessível a todos e de rara qualidade estética.

 

“Meu Pé de Laranja Lima” vendeu mais de dois milhões de exemplares, tendo sido publicada em 15 países. “Rosinha Minha Canoa” (1962) foi a primeira obra de sucesso do nosso escritor, que igualmente relata um mundo encantado e fantástico, em que o pescador mantém dialogo e afeto com sua canoa, cuja origem advém de uma árvore capaz de sentir e de se comunicar. E esta pequena novela “Coração de Vidro” teve mais de 650.000 exemplares vendidos, publicações em 10 países, traduções em três idiomas e mais de 70 edições no Brasil.

 

A popularidade de Vasconcelos, por diferentes razões, não se traduziu em reconhecimento na academia. Aliás, a própria figura do escritor representa a mas completa oposição a tudo o que se posse considerar acadêmico.

 

De família pobre, nascido no estado do Rio de Janeiro, aos nove anos mudou-se para a casa dos tios em Natal/RN. Chegou a frequentar dois anos do curso de medicina naquele estado, mas a sua personalidade irrequieta e aventureira o faria abandonar o curso e retornar ao Rio de Janeiro a bordo de um navio cargueiro, levando uma simples maleta de papelão como bagagem.

 

Nesta peregrinação pelo país a fora, trabalhou como treinador de boxe, carregador de bananas na capital do Rio de Janeiro, pescador do litoral fluminense, professor primário num núcleo de pescadores no Recife, garçom em São Paulo. Além de escritor, foi ator de cinema e modelo.

 

Em dado momento de sua vida, se junto aos irmãos Villas Bôas, sertanistas e indigenistas, enveredando-se pelo sertão da região do Araguaia, contando povos indígenas desconhecidos e cartografando terras. O contato direto com aqueles povos sertanejos e indígenas criaria as condições para o escritor fazer relatos minuciosos (ainda que sua arte realista enveredasse para o fantástico, com animais e árvores falantes) dos povos do Araguaia, no seu já mencionado “Rosinha Minha Canoa” e no romance “O Garanhão das Praias” – ambos tratando de missões “civilizatórias” junto aos povos sertanejos e indígenas dos rincões do país.

 

Este “Coração de Vidro” (1964) segue o mencionado estilo de fantasia e ternura, desta vez retratando em pequenos capítulos a vida e o triste fim de personagens (animais e plantes) de uma fazenda.

 

Num lugar onde havia pássaros cantando em liberdade, peixes nadando e se relacionando num açude, cavalos de corrida e uma mangueira denominada Candoca, que mantém um carinho especial por uma criança com quem conversa diariamente:

 

“Dona Candoca era uma árvore que morava no fundo do pátio da fazenda.

 

Sendo moça e cheia de sonhos, alegre e transbordante de ternura, trazia sempre a sua capa verde, e brilhante, para ser iluminada pelo Sol e prateada pelos fios da lua.”

  

A ganância dos homens rompe o equilíbrio da natureza. E a velhice faz com que a criança que antes se conectava com a fauna e a flora, esqueça, ao envelhecer, aquele mundo de sonhos que, contraditoriamente, era o mais próximo do “real”, assim entendido como a sintonia e pertencimento do homem na natureza.

 

A ganância faz com que o homem capture o passarinho, coloque-o numa gaiola, ou pesque o peixinho e coloque-o num aquário, para ser posteriormente vendido.  O cavalo de corrida passa a servir o homem em corridas de aposta, até quando, após o acidente, quebra sua pata e torna-se inutilizado, sendo, ao final, abandonado para ser comido pelos urubus. E Dona Candoca, que tinha tanto amor pela criança, se vê abandonada e esquecida quando o pequeno se transforma em adulto, deixar de viver o mundo de fantasia e esquece dos tempos que conversava com a mangueira.

 

A literatura de José Mauro de Vasconcelos tem aquela emotividade transbordante (frequentemente transmitida no texto na forma de “ternura”) que Sérgio Buarque de Holanda menciona como traço que distingue o brasileiro dos demais povos.

 

Há um evidente paralelo entre a missão literária do nosso escritor e o conceito de homem cordial do grande historiador autor de “Raízes do Brasil” (1936):

 

  “Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade — daremos ao mundo o “homem cordial” . A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. Seria engano supor que essas virtudes possam significar “ boas maneiras” , civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante. Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo — ela pode exprimir-se em mandamentos e em sentenças. Entre os japoneses, onde, como se sabe, a polidez envolve os aspectos mais ordinários do convívio social, chega a ponto de confundir-se, por vezes, com a reverência religiosa. Já houve quem notasse este fato significativo, de que as formas exteriores de veneração à divindade, no cerimonial xintoísta, não diferem essencialmente das maneiras sociais de demonstrar respeito. Nenhum povo está mais distante dessa noção ritualista da vida do que o brasileiro” Holanda. S. B. Pg 146-7

 

Em tempos de (re)nascimento de um novo movimento nacionalista brasileiro, ainda embrionário, mas pulsante e em franco crescimento, a leitura deste escritor é meio certo para fazer com que nós brasileiros amemos cada vez mais o nosso país.

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