terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Ensino Jurídico e Mudança Social - Antônio Alberto Machado

Resenha#14 “Ensino Jurídico e Mudança Social” – Antônio Alberto Machado. Ed. Expressão Popular





Sobre a Obra

Antônio Alberto Machado é professor de direito da UNESP de Franca e coordena naquela universidade o NEDA – Núcleo de Estudos de Direito Alternativo. O Direito Alternativo nasceu como uma proposta de contraponto à cultura jurídica dominante, associada ao pensamento liberal, ao formalismo e à tradição positivista. Faz oposição portanto a certa perspectiva que entende o direito como ciência cuja centralidade está na norma jurídica positivada formalmente pelo Estado: esta oposição parte especialmente da análise crítica das instituições jurídicas, reconhecendo-as portanto como parte de uma superestrutura política que opera dentro de um quadro de dominação e conformação do poder.

O sentido histórico do direito

O direito entendido como “técnica”, como “conjunto de normas positivadas pelo Estado”, ou como “ciência pura” (que é ainda o entendimento dominante nas escolas de direito e na cultura jurídica como um todo) vincula-se a estágio específico de desenvolvimento histórico da burguesia, de classe revolucionária à classe dominante. Isto significa que todo o aspecto ideológico que perpassa as grandes ideias de justiça, igualdade e liberdade mantém correspondência às lutas e revoluções burguesas dos séculos XVIII e XIX, à consolidação e generalização do capitalismo e do domínio burguês. Uma vez consolidado o poder político da nova classe dominante, processa-se a adequação dos discursos às exigências políticas. Não deixa de ser sintomático que a chamada “exegese jurídica”, entendido como expressão do rigor máximo da aplicação das normas jurídicas de acordo com seu enunciado textual e literal, tenha como referência o direito civil napoleônico. Após as lutas revolucionárias que derrubaram o antigo regime francês, a nova conformação de classes exigiu naquele momento histórico um novo arranjo jurídico que daria sustentação e legitimidade política ao Estado moderno e constitucional, não se admitindo, por suposto, uma prática jurídica que aceitasse, por exemplo, interpretações minimamente flexíveis dos textos legais. Como ponto de partida para o seu estudo, Machado identifica neste modelo positivista-liberal – forjado, portanto, num momento de revoluções e mudanças da conformação do poder político – um esgotamento, ou “uma crise”.


A Crise do direito liberal e o alternativismo

A “crise” do modelo positivista e liberal é o seu ponto de partida. Ainda que no estudo o autor não trabalhe especificamente o tema do Direito Alternativo, sua pesquisa pode ser também interpretada como parte daquele movimento de juristas, estudantes e demais profissionais da área. Os alternativistas, ao se depararem com o direito ideologizado, entendido pelo senso comum como “neutro”, operando basicamente como meio de controle social e manutenção da ordem, vão apontar para um movimento oposto que coloca a prática jurídica como fonte de transformação social. Antônio Alberto Machado denomina a nova proposta de atuação como “praxis”, expressão que sugere a conjugação da teoria e prática numa dialética que envolve um norte político frente aos conflitos de classes.

Os limites e potencialidades do direito enquanto meio de transformação social vão sendo entendidos de uma forma bastante variada: tal qual aqueles movimentos de frente única no âmbito da política da esquerda (reformista ou revolucionária), o direito Alternativo vai admitir maior ou menor aceitação da tese da atuação institucional, ora como forma de transformação ora como forma de consentimento e pacificação dos conflitos, da praxis jurídica para a justiça social mais ou menos associada à luta revolucionária pelo socialismo, aos distintos entendimentos sobre o papel e significado político do Estado burguês. As variadas perspectivas sinalizam, por ora, que o debate reforma e revolução ainda está na ordem do dia. As distintas filiações políticas, neste caso, vão ter conseqüências práticas na forma como se pensa os fins do direito e, particularmente, os seus limites históricos.

Reivindicamos a importância das críticas ao modelo positivista lançadas pelo movimento alternativista como parte de uma estratégia geral de despertar da consciência política dos estudantes ou mesmo profissionais da área do direito. Como o próprio texto de Machado nos mostra, a maioria dos operadores, doutrinada e deformada por ensino e cultura jurídica meramente cartorial, burocrática, ideologizada, etc, tem uma percepção bastante despolitizada da realidade, o que implica, analisando casos jurídicos individualmente, em decisões judiciais ou outras manifestações de operadores claramente reacionárias. Eventualmente, o posicionamento do judiciário sobre determinadas questões é radicalmente conservador, mesmo ao senso comum e ao conjunto de idéias dominantes – aqui nos vem à mente penas privativas de liberdade para crimes de bagatela, uso de violência policial em manifestações públicas, ações de reintegração de posse com claríssima sinalização da prevalência do poder econômico. Não raro, os exemplos acima vão sendo justificados/legitimados pela “literalidade da lei”. Dura lex, sed lex.

Duas Problematizações

Para os fins da nossa humilde e rápida resenha, faremos duas problematizações. A primeira diz respeito ao sentido da “crise do modelo positivista-liberal”. A segunda diz respeito aos limites do próprio papel do direito enquanto forma de transformação social.

A proposta de mudanças curriculares surge na pesquisa de Alberto Machado como sendo parte de uma “exigência” da própria realidade do cenário político e jurídico do país. A exigência é fruto de uma crise do modelo liberal-positivista. A constituição de 1988, a promoção de uma nova série de direitos coletivos e difusos, os graves problemas sociais decorrentes do neoliberalismo e as pressões por mudanças na situação de desigualdade do país criaram nova conjuntura que exige do profissional do Direito certa maturidade política para compreender que sua intervenção enquanto jurista, promotor, advogado, etc., deve contemplar as novas exigências do Estado Democrático de Direito.

Em certa passagem da pesquisa, o autor sugere que os direitos sociais enunciados pelo texto constitucional brasileiro implicariam num regime socialista. Temos aqui um problema que não parece ter sido fechado pelo estudo. A admissão de que a efetivação dos direitos sociais elencados ideologicamente pelo extenso rol de direitos sociais e econômicos “socialistas” da constituição de 1988 exclui o que há de mais essencial na estruturação destes direitos: a existência de relações capitalistas de produção, alienação e exploração do trabalho, propriedade privada (ainda que tenha "função social"), o imperialismo, ou seja, a dominação econômica a partir da relações centro e periferia, além da própria conformação desigual e combinada do capitalismo mundial, entre outros.

A “eficácia” do Estado ou do direito quando medida pela “eficácia das normas jurídicas dentro do capitalismo” pressupõe aceitação tácita de que a transformação social seja possível dentro do marco institucional: uma consequência desta perspectiva é a não compreensão de que a alternativa frente à crise do modelo positivista-liberal é, esta sim, uma nova forma mais “eficaz” de controle social e pacificação dos conflitos de classe. De maneira análoga aos tempos da revolução francesa e da exegese napoleônica, os novos operadores do direito “alternativo” credenciam-se como gestores qualificados para atuar em realidades complexas de trabalho e dominação. O sentido da “crise”, portanto, deixe de pertencer ao trabalho. O sentido da “crise” e sua superação apenas servem ao capital quando a práxis jurídica não implica a luta ativa, coletiva e consciente contra o capitalismo.

Cabe aqui perguntar qual é o espaço para uma luta jurídica anticapitalista. E este é o ponto que colocamos como segunda e última problematização.

Como Alberto Machado coloca em seu texto, o Estado opera num sentido literalmente conservador, sua lógica de pacificação de conflitos tem como escopo evitar tensões que prejudiquem a ordem social e econômica sobre o qual se mantém. Está longe das nossas possibilidades nem mesmo iniciar uma discussão sobre limites e potencialidades do direito enquanto transformação social. Nossa provocação, neste ponto, refere-se a uma parte específica do problema. Se o estudo de Machado sugere em diversas partes a necessidade de o direito ser uma ferramenta de transformação social como forma de superar o modelo liberal-positivista, poderíamos igualmente inverter a ordem dos fatores. A possibilidade de mudança social pelo direito pode também admitir a exigência da mudança social para a transformação do Direito e a superação radical do modelo liberal e positivista.

A bem da verdade faremos justiça de dizer que o autor leva em consideração os dois aspectos – mudança social e mudança do paradigma jurídico. “Logo, as perspectivas de mudança social e transformação democrática da sociedade, por meio do direito, estão, de alguma forma, vinculadas à revisão do modelo de ensino jurídico liberal/positivista vigente até hoje no país. Se não é rigorosamente certo dizer que a mudança social e da mentalidade jurídica depende, de modo determinista, da revisão dos paradigmas do ensino jurídico; será, no entanto, correto supor que ambas as coisas, ensino jurídico e mudança social, estão ligadas entre si numa relação, se não de causa e efeito, pelo menos de fator e conseqüência” (Pág.232). Entretanto, sentimos falta de mais reflexão sobre esta dialética que envolve o direito e a revolução social e, especialmente, o problema da transformação do direito pela transformação social, eixo, talvez, negligenciado a favor da transformação social pela transformação do direito. Menos reforma e mais revolução.

O que existe, finalmente, é uma lacuna teórica que deve ser preenchida pelos revolucionários sobre o problema do direito para a revolução anticapitalista. O estudo do Antônio Alberto Machado vale como provocação para mais produção alternativas e contra-hegemônicas.

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