“O Cortiço” – Aluísio Azevedo
Resenha Livro - “O Cortiço” –
Aluísio Azevedo – Ed. Principis
Aluísio Azevedo (1857/1913) foi
talvez o primeiro escritor brasileiro que pôde sobreviver de sua própria pena.
Como pontua o crítico Alfredo
Bosi, o escritor conseguiu por certo tempo viver apenas do seu trabalho de
jornalista, caricaturista e romancista, mas apenas para conquistar o “pão”, sem
a “manteiga”; ou seja, com o seu trabalho literário obteve apenas o mínimo para
subsistir, após se mudar do seu estado natal no Maranhão para o Rio de Janeiro,
então capital do Brasil.
Nascido em São Luís/MA, ele
próprio foi vítima dos estigmas sociais e preconceitos que retrataria em seus
livros. Num tempo em que o divórcio era uma realidade impensável, sua mãe
casou-se em segundas núpcias com o seu pai, este último vice-cônsul de
Portugal. O matrimônio ocorreu sem aprovação da Igreja, gerando escândalo
naquela cidade provinciana.
O seu segundo romance, denominado
“O Mulato” (1881), é uma crítica pioneira desse conservadorismo da sua terra
natal. Conta a história de um jovem bacharel formado na Europa, mas mestiço de
cor, e não aceito pela alta sociedade local, a despeito dos seus méritos
intelectuais e morais. Vive uma história de amor com uma mulher branca, mas o
casamento é impedido pela família da moça, dada a diferença racial, ensejando,
ao final, uma tentativa de fuga dos consortes, que iria se transformar em
tragédia.
Esse romance despertou a fúria da
elite maranhense, incluindo o clero, fazendo com que o escritor, a convite de
seu irmão, o teatrólogo Arthur Azevedo, se mudasse para a capital do Império,
no ano de 1876. Lá estudaria pintura na escola de Belas Artes e colaboraria
como escritor e caricaturista em jornais e revistas.
Essa situação, envolvendo o trabalho
de artista e a luta pela sobrevivência, explica a diferença de qualidade
literária dos seus romances. Ao mesmo tempo em que se ocupou de criar uma nova
arte experimental, fortemente influenciada pelas ideias do escritor francês
Emile Zola, precisava produzir escritos palatáveis ao gosto popular, se
quisesse sobreviver de sua pena.
Os seus trabalhos mais
importantes para a história da literatura brasileira são aqueles que serviram
de ponto de partida para a nova estética naturalista: “O Mulato” (1881), “Casa
de Pensão” (1884) e “O Cortiço” (1890). Em paralelo, publicou obras
folhetinescas, de apelo mais comercial, algumas delas ainda presas à estética
romântica. Ainda assim, obras como “Filomena Borges” (1884), “Livro de uma
Sogra” (1895) e o “O Coruja” (1890) não deixam de ser fontes interesses para o
leitor de hoje entrar em contato com a cultura, os costumes e a sociedade do
Rio de Janeiro na época do II Império (1840/1889).
Pode-se dizer que Aluísio Azevedo
é o maior expoente do naturalismo literário no Brasil.
Não foi o único escritor
naturalista e nem mesmo o primeiro. Antes do lançamento de “O Mulato” (1881)
frequentemente mencionado como o ponto de partida do naturalismo brasileiro, ainda
no ano de 1877, Inglez de Souza lançaria o romance regionalista “O Coronel
Sagrado”, que deve ser situado como o marco inicial daquele movimento literário
no Brasil, junto com os seus outros dois trabalhos mais conhecidos do público:
“O Missionário” de 1888 e “Contos Amazônicos” de 1893.
Em todo o caso, Inglez de Souza é
pouco conhecido até os dias de hoje, talvez pelo fato de ter sido um paraense,
que viveu e escreveu apenas sobre a realidade do povo da Amazônia, algo muito distante
do centro cultural do Brasil, situado no Rio de Janeiro. Por conta disso,
Aluísio Azevedo, se não foi o primeiro naturalista, é certamente o mais
conhecido deles.
O Naturalismo literário tem como
premissa a ideia de que o comportando humano e os fenômenos físicos são regidos
pelas mesmas leis naturais.
Esta etapa da evolução histórica
da literatura acentuou um sentido geral de objetividade que advinha já da 3ª
Fase do Romantismo e do Realismo. No caso do Naturalismo, a objetividade ganha
contornos de cientificidade, havendo mesmo uma proposta de fusão entre a arte e
a ciência. Enquanto na escola romântica, a salvação humana está no retorno do
homem ao seu estado natural, no Naturalismo, a salvação dá-se em torno da
explicação científica do mundo, mediante a descrição empírica dos fenômenos
sociais. Não raramente, fatos sociais se equivalem aos fatos da natureza,
revestidos da mesma fatalidade.
Este tipo de arte suscita boas fontes
históricas para o leitor dos dias de hoje. A descrição do Cortiço no romance homônimo
de Aluísio Azevedo possibilita um contato direto com a realidade do subúrbio do
Rio de Janeiro do século XIX, descrevendo os tipos populares, como o taverneiro
português João Romão, o capoeirista Firmo ou a mulata sensual Rita Baiana.
É certo, contudo, que este
protagonismo dos tipos populares ainda é parcial neste romance, publicado em
1890. O grande protagonista d’o Cortiço é o próprio espaço territorial, que se
apresenta ao leitor como um organismo social, com uma vida própria, tendo,
ironicamente, os personagens o caráter mais paisagístico. A comparação com um
formigueiro, dentro da perspectiva naturalista, não seria de todo errada.
Assim é descrita a forma como foi
se constituindo o cortiço:
“E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e
lodosa, começou a minhocar, a fervilhar, a crescer um mundo, uma coisa viva,
uma geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro e
multiplicar-se como larvas no esterco”.
A história se passa no bairro de
Botafogo, no Rio de Janeiro, onde João Romão, um português avarento que vive em
função do lucro, constitui um cortiço, onde gente do mais baixo extrato social
irá constituir suas casas. São lavadeiras, trabalhadores braçais, vagabundos,
capoeiras, pedintes, prostitutas e gente da pequena burguesia que irão
construir sua vida no cortiço. Romão também é proprietário de uma venda para
monopolizar o comércio dos bens de primeira necessidade aos seus inquilinos,
além de emprestar dinheiro com juros de agiota.
Cada ato por ele praticado tem a
finalidade de obter alguma vantagem financeira, seja através da exploração do trabalho
alheio, seja por meio de um auto sacrifício que não revela qualquer traço de
moralidade ou heroísmo mas expressa em tom de caricatura o típico português pão
duro:
“Sempre em mangas de camisa, sem domingo nem dia santo, não perdendo
nunca a ocasião de assenhorar-se do alheio, deixando de pagar todas as vezes
que podia e nunca deixando de receber, enganando os fregueses, roubando nos
pesos e nas medidas, comprando por dez réis de mel coado o que os escravos furtavam
da casa dos seus senhores, apertando cada vez mais as próprias despesas, empilhando
privações, trabalhando e mais a amiga como uma junta de bois.”.
João Romão ascende
financeiramente através do trabalho, ainda que norteado pela especulação e pelo
proveito da desgraça alheia. O seu vizinho Miranda, por outro lado, representa
outra forma de manifestação da elite econômica brasileira. Casou-se com uma
mulher com grandes dotes financeiros, que fez dele um barão. Herdou o dinheiro
sem precisar trabalhar, mas teve como contrapartida que engolir o orgulho de
ver sua mulher, a verdadeira dona da riqueza, lhe trair com outros homens e o humilhar perante a
sociedade fluminense. Aguentava a mulher para não perder a fortuna financeira.
Há no início da história uma
rivalidade entre João Romão e Miranda. O primeiro é exemplo representativo da
burguesia que ascende através do trabalho, da avareza, da exploração e da
atividade especulativa. O segundo é o exemplo representativo da nobreza, da
riqueza herdada sem o exercício do trabalho e o consequente suor do próprio
rosto. Ambos ao final da história entram em simbiose: João Romão, após
conquistar o dinheiro que lhe tornaria rico, deseja agora conquistar os títulos
de nobreza do seu vizinho e para isso lança-se como candidato de casamento à
filha do Miranda. Não bastava a aquisição da riqueza, mas a sua ostentação
através dos títulos de Barão ou Visconde.
No que concerne aos extratos
populares, o livro também tem o mérito de descrever algumas nuanças das
diversas camadas sociais do povo. Há desde o velho Libório, um mendigo que
representa o mais alto grau da miséria material, até a presença de setores do
uma pequena burguesia citadina: “estudantes pobres com uma pontinha de cigarro
a queimar-lhes a penugem do buço”; “contínuos de repartição pública”,
“caixeiros de botequim”, “artistas de teatro”, “condutores de bonde” e
“vendedores de bilhete de loteria”.
O grande mérito de “O Cortiço”
foi o de introduzir ao romance brasileiro algum protagonismo aos extratos
sociais mais baixos da sociedade brasileira. Desde o romantismo, passando pelo
Realismo, de José de Alencar a Machado de Assis, serão predominantes as
referências aos proprietários de terra e aos capitalistas das cidades: a alusão
ao popular aparecia até o “Cortiço” de forma bastante incidental. Já em O
Cortiço, vemos mais de perto as manifestações populares: as festas de domingo,
os sambas, as brigas de vizinho, a maledicência, a miséria material que leva ao
crime e à prostituição.
Entretanto, seria apenas a partir
da literatura Modernista, especialmente em sua fase Regionalista, que os
extratos populares seriam alçados à uma verdadeira condição de protagonismo. Em
Aluísio de Azevedo, o povaréu que reside no cortiço se assemelha mais a uma
massa de gente, a um conjunto uniforme de tipos sociais embaralhados. Existe o
quadro, que é o cortiço, e dele derivam as figuras, que são os personagens.
Já a partir dos livros de
Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz e Guimarães Rosa, o personagem oriundo do
povo passa a ser alçado a verdadeira condição humana, descrevendo-os agora não
como uma massa indistinguível, mas como o homem integral, eivado de todas as
suas contradições.
Bibliografia:
“História Concisa da Literatura
Brasileira” – Alfredo Bosi.
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