“Khadji-Murát” – Lev Tolstói
Resenha Livro - “Khadji-Murát” – Lev Tolstói – Editora 34 –
Tradução Boris Schnaidermann
A Guerra do Cáucaso (1817 – 1864)
foi um conflito instaurado pelo Império Russo com o objetivo de expandir os seus
territórios e fronteiras em direção ao sul. Trata-se de região situada na parte
meridional da Rússia, entre o Mar Negro e o Mar Cápio, onde hoje se situa a
Geórgia, a Chechênia e o Daguestão.
Desde a Idade Média, a região do
Cáucaso foi objeto de disputa entre o Império Bizantino e as populações árabes.
Já a penetração russa da região ocorre a partir do século XVIII e XIX, com a
anexação da Geórgia em 08 de Janeiro de 1801, pelo Czar Paulo I.
A subsequente Guerra do Cáucaso
dá continuidade ao movimento de russificação da região do Cáucaso. Entretanto,
os russos encontraram duríssima resistência das tribos e populações
montanhesas, de religião muçulmana. Esses povos eram de forma indiscriminada
apelidados pelos invasores de “tártaros”,
frequentemente de forma pejorativa. Tais populações resistiram à ofensiva russa
durante os reinados de três czares, entre períodos de guerra aberta e tréguas. Ao
término do conflito, a despeito da anexação do norte do Cáucaso pelo Império
Russo, o principal líder dos rebeldes foi poupado, após jurar fidelidade ao Czar.
Uma das principais lideranças
daqueles povos camponeses das montanhas onde hoje se situa o Daguestão foi “Khadji-Murát”
que dá o nome à novela de Leon Tolstoi publicada em 1905, cinco anos antes da
morte do escritor.
Trata-se de um livro baseado nas
próprias experiências pessoais do autor.
Após abandonar a Universidade e
passar por um período de vida de completa dissipação e ócio, quando se envolve
com jogos e mulheres, em 1851, Tolstoi alista-se no exército russo. Tinha 23
anos e é engajado na Guerra do Cáucaso no período entre 1851/1852, mesmo
momento em que se passam os eventos da novela.
Khadji-Murát era um conhecido e
temido líder militar tártaro. Em certa passagem da novela, um dos personagens
afirma que se tivesse nascido na Europa, granjearia a mesma autoridade de
Napoleão Bonaparte. Começou como comandante em chefe de Chamil, esse último o
líder supremo da resistência caucasiana e terceiro imã (“sacerdote”) do Daguestão.
Entretanto, Murát irá posteriormente romper com Chamil e criar uma facção
política e militar própria. Após ver sua mãe, esposa e filhos sequestrados por
Chamil, Murát passa para o lado dos Russos. Jura fidelidade ao Czar não pela
renúncia dos seus ideais de independência política ou pelo abandono dos rígidos
preceitos religiosos, mas traça uma aliança meramente tática com os Russos,
para vingar-se do Amã.
O final da história revela como essa
aliança era frágil. Após se entregar ao comandante militar do Czar em Tiblissi,
na Geórgia, o protagonista é permanentemente vigiado pelos russos, com quem
mantem uma relação de desconfiança. Reivindica autorização para resgatar a sua
família, com a contrapartida de apoiar os russos na luta contra Chamil. Entretanto,
o seu grupo militar estava sob dura vigilância dos prepostos do Czar e cada
passo de seus membros era rastreado. Decidem assim ludibriar os russos e fogem do
seu controle, com o objetivo de levar adiante a guerra contra Chamil – o mesmo
chefe caucaciano que ao fim da Guerra também juraria fidelidade ao...Czar.
A novela descreve o encontro e o
conflito de civilizações. Há o “Ocidente”, representado pelos Russos, e o “Oriente”,
representado pelos camponeses do Cáucaso. De um lado uma monarquia absolutista
fundada no cristianismo ortodoxo e forças militares dirigidas por membros da
aristocracia russa. De outro lado, uma guerrilha de camponeses divididos em diferentes
etnias, de orientação muçulmana, com disposição de luta até a morte. Esse
conflito, em Tolstoi, assume características muito particulares que vão muito
além de uma afirmação “nacionalista” do Império Russo ou, por outro lado, da
defesa da luta independentista/separatista dos povos do Cáucaso.
Em se tratando de um escritor do
porte de Lev Tolstói, o problema da Guerra surge como uma ótima oportunidade para
retratar a complexidade da alma humana e suas contradições. O escritor não tinha
a pretensão de ser um historiador, mas de elaborar uma obra de ficção, ou mais
exatamente uma obra de literatura com lastro naquilo que viu na sua experiência
de soldado na Guerra do Cáucaso.
Isso não significa que o livro
tenha a pretensão de se passar por apartidário.
Tolstói é um crítico duro do
czarismo e especialmente da crueldade de Nicolau I, que personifica o orgulho
que cega os poderosos:
“Para que, naquele tempo, um homem estivesse à testa do povo russo,
precisava ter perdido todos os atributos humanos: tinha de ser uma criatura
mentirosa, ateia, cruel, ignorante e estúpida, e precisava não apenas sabe-lo,
mas também, estar convencido de ser o paladino da verdade e da honra e um sábio
governante, benfeitor do seu povo. Assim era Nikolai. E nem podia ser
diferente. Toda a sua vida fora uma preparação para isso (...) Existe somente
uma explicação para tão surpreendente fenômeno: o que é grande perante os
homens é uma vilania perante Deus”.
Por outro lado, existe nobreza na relação de
Murát com algumas lideranças militares russas ao Sul. O líder caucasiano é convidado
para jantar junto à residência de um aristocrata que serve na guerra como chefe
das forças russas. Em determinados casos, a conduta nobre e corajosa dos
oficiais russos desperta o respeito de Murát e de seus companheiros. Nesse
contato, há a descoberta de atos heroicos não só do lado dos montanheses mas
dos russos, criando a possibilidade de relações de confluência e não apenas de
conflito entre o “ocidente” e o “oriente”.
A despeito do notório posicionamento
pacifista de Tolstói, a guerra e a morte heroica aparecem na novela como os momentos
de maior afirmação de beleza literária.
A novela foi escrita num momento
que poderíamos chamar como pertencendo a uma segunda fase das obras de Leon Tolstói.
Os seus grandes livros como “Guerra e Paz” (1865/1869) e “Anna Kariênina”
(1875/1878) vem antes de um momento em que há uma espécie de “despertar da
consciência” que altera a visão de mundo do escritor a partir de 1880.
Consta que imediatamente após ter
publicado Anna Kariênina, Tolstói passou al por uma crise de consciência em
torno do seu passado desregrado, com um comportamento de autopunição e culpa,
que marcaria sua obra subsequente. O autor assume uma postura social-religiosa
que daria ensejo até mesmo à criação de um movimento chamado “tolstoismo” que
reunia adeptos (geralmente jovens) que se reuniam em torno do mestre. Já antes
desse período, na década de 1860, o escritor fundara uma escola para crianças
camponesas na sua propriedade rural chamada Iásnaia Poliana, quando já inicia a
defesa e a afirmação dos valores populares, a fonte do conhecimento residindo
no mujique do campo em detrimento das instituições oficiais, do Estado e da
Igreja.
Na literatura, baseando-se na
concepção de mundo do camponês russo, defende uma arte baseada na clareza de exposição e sinceridade,
isso é, nas suas palavras, “uma relação correta, isto é, moral do autor com o
seu objeto e a sinceridade, isto é, um sentimento não fingido de amor ou ódio
àquilo que o artista descreve”.
No âmbito político, o tolstoismo
pode ser qualificado como a expressão de um socialismo utópico de tipo
pacifista e avesso às instituições e à modernidade burguesa. Nele há a renúncia
da Igreja Oficial mas também a afirmação radical do cristianismo primitivo. Ao
ponto de traçar como horizonte político
do seu movimento: “cada um possuir
apenas a roupa do corpo, renunciar ao dinheiro e não se aproveitar do trabalho
alheio, inclusive de empregados domésticos. E o fundamental, evidentemente, é
não mentir.
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