“Dona Guidinha do Poço” – Manuel de Oliveira Paiva
Resenha Livro - “Dona Guidinha do Poço” – Manuel de Oliveira Paiva – Ed. Iba Mendes
“Dona Guidinha do Poço é uma obra
prima da arte regional. Sem as pretensões universalistas de muitos livros dos
grandes centros, esse romance encanta pela maneira como focaliza os traços
arcaicos do mundo interiorano. Manuel de Oliveira Paiva acreditava que retratar
a própria terra basta para atribuir dignidade ao trabalho literário.”. (TEIXEIRA, Ivan. “A modernidade de
Dona Guidinha”. Prefácio.).
Manuel de Oliveira Paiva é um exemplo
de escritor que, pela morte precoce, não pôde dar vazão e desenvolver ao máximo
o seu talento literário. Tratou-se de uma promissora carreira literária, interrompida
antes do tempo pela morte por tuberculose, quando o escritor tinha trinta e um
anos de idade.
Nessa curta carreira, lançou apenas
dois livros.
O primeiro romance chama-se “A
afilhada” (1889) e se passa no ambiente urbano de Fortaleza, cidade natal do
escritor.
E “Dona Guidinha do Poço” (1890), a sua obra
prima, que retrata um crime conjugal real, ocorrido no sertão do Ceará.
Escreveu ainda contos e crônicas
jornalistas. Participou dos movimentos em prol da República e da abolição da
escravatura. Desenvolveu uma literatura de tipo social e, na imprensa, defendia
o naturalismo literário, então uma novidade, como a via que artistas como ele
deviam trilhar.
Manuel de Oliveira Paiva veio de
família humilde. Seu pai era um artesão, responsável por projetar igreja e
edifícios na cidade de Fortaleza. Pertencia
a um setor social remediado, uma nova classe média citadina, num momento em que
ainda emergia a capital do Ceará. Alfabetizou-se num seminário religioso, onde
ficou apenas por um ano. Consta ter sido expulso por se recusar a denunciar um
colega infrator das regras do claustro.
Aos quinze anos, mudou-se para o Rio
de Janeiro a fim de se matricular na Escola Militar. Isso foi no ano de 1877,
poucos anos após o término da Guerra do Paraguai (1864/1870), momento em que as
forças armadas se municiavam das ideias abolicionistas e republicanas que ensejariam
as grandes transformações do país de 1888 e 1889.
A guerra fortaleceu o exército como
instituição autônoma e independente, e marcou o início do fim da monarquia. A
participação de negros egressos do cativeiro nas forças armadas tem relação
direta com o sentimento abolicionista. O Brasil indenizou proprietários que
libertaram escravos para fins de luta na guerra, com a condição de que os
libertos se alistassem imediatamente. Em áreas próximas ao conflito, os
escravos aproveitaram para escapar e alguns escravos fugitivos se ofereceram
para o exército. Havia o fato de negros, pardos e brancos lutarem ombro a ombro
contra o inimigo comum. Juntos, todos esses efeitos ajudaram a ruir a
instituição da escravidão. É certo que o influxo destas novas ideias republicanas
e abolicionistas na escola militar impressionou o jovem escritor, influenciando
o seu trabalho como jornalista e escritor. A sua origem social humilde também deve ser
relacionada com o seu ponto de vista político e literário.
O romance “Dona Guidinha” foi
encontrado no espólio de Oliveira Paiva, após a sua morte, e foi publicado por
amigos, de forma incompleta, na imprensa cearense em 1890. Passaram-se sessenta
anos até o livro ser “descoberto” pela crítica literária Lúcia Miguel Pereira
no ano de 1952. Foi pela primeira vez publicado de forma integral e desde então
passou a pertencer ao rol das grandes obras literárias brasileiras.
Ou seja, até meados do século passado,
o nosso escritor era apenas conhecido em seu Estado natal, onde efetivamente
ocupou uma posição de destaque em torno do “Clube Literário”, movimento
intelectual por ele fundado. Também colaborou num jornal local chamado “O
Libertador”, escrevendo contos e crônicas. Foi talvez o mais talentoso escritor
de um pequeno grupo de pensadores e artistas daquela província distante do
centro cultural do Império, com reduzido número de leitores, motivo pelo qual
passou a maior parte do tempo apenas conhecido no Ceará.
O seu mais importante romance se
baseia numa tragédia real envolvendo uma rica fazendeira de Quixeramobim,
chamada Maria Francisca de Paula Lessa, cúmplice do assassino de seu marido.
Na história, a protagonista, Dona Guidinha,
é uma matrona que preside os trabalhos de uma fazenda chamada Poço da Moita no
sertão cearense. Foi a rica herdeira de um capitão mor, que lhe deixou como
espólio, além das terras, muitas peças de ouro, prata e cobre.
Dona Guidinha se revela como uma sertaneja
de gênio forte, ciosa e centralizadora do seu poder. Não teve filhos, nem foi
namoradeira, quando jovem, denotando uma certa altivez masculina no espírito. É
respeitada pelos escravos e agregados, além de ter influência política junto ao
partido conservador. Casa-se com o major Joaquim Damião de Barros (Quimquim),
um homem cujo gênio se opõe por completo ao da sua mulher. Por ser de origem
pobre, dependia do nome e da riqueza da Dona Guidinha, se submetendo ao poder
irresistível da sua mulher. Não tinha a força espiritual da mulher e hesita
diante da matriarca do Poço da Moita.
A situação familiar se altera após a chegada à
Fazenda de Secundino, um sobrinho de Joaquim que fugira do Recife, por ter sido
acusado como mandante de crime de homicídio. Acolhido no Poço da Moita,
desperta a paixão de Dona Guidinha e com ela vive um romance ilícito. O caso extraconjugal aos poucos vai
despertando a atenção dos moradores, até ao ponto do escândalo.
O major desconfia do caso, após
escutar rumores e insinuações de moradores. Chega a pensar em se matar, mas o
seu espírito recalcitrante o impede de levar adiante a resolução extrema. Em
diligência à capital, entra em contato com o o bispo, com a finalidade de
validar o seu divórcio. Estamos em meados do século XIX, momento em que a
separação conjugal era uma medida mais do que excepcional; em regra, a traição
era resolvida com o assassinato da consorte, alternativa inalcançável ao
espírito fraco de Quimquim.
A matriarca descobre os intentos do
seu marido e, como vingança, contrata um matador, que sorrateiramente mata o
major. A morte sub-reptícia, através de uma facada nas costas, remete à
violência dos cangaceiros.
A tragédia se encerra com a prisão de
Dona Guidinha e o colapso da fazenda do Poço da Moita.
O romance regionalista, ao tempo de “Dona
Guidinha do Poço”, não era exatamente uma novidade. Dele já havia se ocupado
José de Alencar, outro cearense, por exemplo. Contudo, é certo que o autor de
Iracema retratou a realidade através dos livros que leu, ao passo que Oliveira
Paiva retrata o sertão cearense de acordo com aquilo que viu, escutou e
experimentou. Neste passo, estaria menos
próximo de Alencar e mais próximo de Franklin Távora, que polemizava com José
Alencar justamente pela exigência de se conhecer e experimentar a vida que
pretende retratar na literatura.
A arte de Manuel de Oliveira Paiva,
neste sentido, é telúrica.
Sua descrição da terra tem um tom lírico,
é uma poesia que vem da terra, e dessa forma, ele já prenuncia o modernismo
regionalista, do qual foram expoentes Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz,
Jorge Amado e, particularmente, o mais telúrico deles: José Lins do Rego.
O seu sertão não é apenas um rol de
descrições geográficas; é antes parte de uma paisagem que projeta o estado de
espírito dos personagens. Aquele mundo de retirantes, escravos, fazendeiros, bispos
e bacharéis se misturam com o cenário de aridez, as pastagens do gado, as
pequenas vilas e cidades. Dentro da proposta naturalista, o sertão e o sertanejo
foram um quadro único, são indivisíveis.
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