“A Carne” – Júlio Ribeiro
Resenha Livro - “A Carne” – Júlio
Ribeiro – Ed. Iba Mendes
“Nós, os escritores naturalistas, submetemos cada fato à observação e à experiência;
enquanto que os escritores idealistas admitem influências misteriosas que
escapam à análise e permanecem por isso no desconhecido, fora das leis da
natureza” (E. Zola –
“O Romance Experimental”).
“A Carne” (1988) pode ser considerada
a mais representativa obra naturalista da literatura brasileira.
Nem tanto pelos seus méritos
literários, mas pelo fato de seu autor buscar levar até às últimas
consequências o programa enunciado pelo fundador dessa corrente literária, Émile
Zola (1840/1902), para quem a obra foi dedicada no prefácio.
O livro, ao seu tempo, constituiu um
sucesso de público e um fracasso perante a crítica especializada.
Houve diversas publicações
subsequentes ao lançamento em 1888 e até uma adaptação no cinema no ano de
1970. Por outro lado, suscitou furor e indignação na crítica pelo forte conteúdo
sexual do enredo.
Já ao tempo da publicação, despertou
uma polêmica na imprensa entre Júlio Ribeiro e o padre José Joaquim de Sena
Freitas. Num artigo irônico intitulado “A Carniça”, o padre expressa a sua
irritação perante o sensualismo predominante do texto. A protagonista da
história, chamada Helena, ou Lenita, desponta como uma intelectual altiva e com
fortes pendores aos prazeres sexuais, ao ponto de poder classificá-la como
ninfomaníaca, o que obviamente desafiava a moral da época.
O livro foi objeto da mesma
indignação de outra obra naturalista da época, qual seja, “Bom-Crioulo” (1895)
de Adolpho Caminha, que, pela primeira vez, aborda o tema do relacionamento
homossexual, vivenciado na história de dois marinheiros.
Contudo, a condenação de “A Carne”
(1888), num primeiro momento de tom moralista, prossegue na crítica literária
subsequente pelo entendimento de que o livro levou a intencionalidade da
proposta naturalista a tal limite extremo para se tornar pouco convincente. Somam-se
ao juízo negativo de “A Carne” (1988) desde o marxista Nelson Werneck Sodré, até
Álvaro Lins, José Veríssimo e Lúcia Miguel-Pereira. As críticas se relacionam à
ideia de que o naturalismo seria uma moda passageira e muito mal assimilada em
território brasileiro. Para melhor compreendê-la, faz necessário tecer alguns
comentários sobre o que foi o naturalismo literário e como ele foi assimilado
no mais conhecido livro de Júlio Ribeiro.
O que foi o naturalismo?
O ponto de partida do naturalismo
literário deu-se na França em meados do século XIX. Está inserido no contexto
histórico de afirmação do liberalismo e do iluminismo desde a Revolução
Francesa de 1789 e a 1ª e 2ª Revoluções Industriais. A reestruturação da
sociedade pela superação do antigo regime e a ascensão da burguesia como classe
social dominante foi acompanhada pela expansão das cidades e pelo
desenvolvimento dos meios de produção.
As novas indústrias do aço, do
petróleo e da eletricidade engendraram um otimismo em torno da investigação
científica. O racionalismo do século XVIII que serviu de base intelectual ao
iluminismo é levado até às últimas consequências através das novas teorias
cientificistas do século subsequente: o darwinismo social e sua teoria da
evolução das espécies; a teoria da hereditariedade de Mandel; o positivismo de
Augusto Comte, que afirma que o mais elevado estágio de evolução da humanidade
se dá em torno justamente da afirmação do método científico.
Na literatura, o naturalismo propõe
um rompimento com a tradição romântica. Em certo sentido, pode ser considerado
como uma radicalização do realismo literário, que já buscava traçar uma
literatura baseada na objetividade e na superação do idealismo e subjetivismo românticos.
A diferença é que a objetividade naturalista é alçada à condição de ciência.
Nas palavras do pai fundador do naturalismo, “fica bem entendido que todas as vezes que uma verdade é fixada pelos
cientistas, os escritores devem abandonar imediatamente sua hipótese para
adotar essa verdade”. (“Romance Experimental”).
Ou seja, o escritor precisa
considerar as leis e os preceitos científicos antes de elaborar o enredo, que
deve se adequar aos ditames da ciência. Neste
passo, o sujeito não é protagonista de sua própria história mas um figurante e
resultado das ações do meio social e das determinações de sua natureza.
A Carne
O enredo se passa no ano de 1887 numa
fazendo do interior paulista. Com a morte do doutor Lopes Matoso, sua filha
Helena, então uma jovem de 22 anos, resolve mudar-se para a casa de um amigo de
família, o coronel Barbosa.
A protagonista Lenita, desde a
infância, destacou-se por uma formação intelectual acima da média. “Leitura, escrita, gramática, aritmética,
álgebra, geometria, geografia, história, francês, espanhol, natação, equitação,
ginástica, música, tudo isso Lopes Matoso exercitou a filha porque em tudo era
perito: com ela leu os clássicos portuguesas, os autores estrangeiros de melhor
nota, e tudo quanto a havia de mais seleto na literatura do tempo”.
A formação intelectual incomum da
jovem já constitui um elemento do naturalismo. O seu interesse pela ciência irá
fazê-la se aproximar do filho do coronel, ele também um cientista, mas
misantropo, com 40 anos de idade, casado com mulher que conheceu numa viagem na
Europa. Ambos irão travar uma amizade
pelo afeto comum pela ciência, que oportunamente irá se desdobrar numa relação
afetiva irregular, dada a vigência do casamento do filho do coronel.
O relacionamento entre Lenita e
Manual Barbosa (esse é o nome do filho do coronel) é estimulado pelas
circunstâncias do meio, ao melhor estilo naturalista e a sua ideia de
determinismo. A luxúria da natureza estimula o pendor sexual da protagonista. O
cheiro doce do açúcar na moagem de cana e a natureza exuberante da fazenda
estimulam a protagonista a satisfazer os desejos da carne. A primavera é
relacionada à sexualidade:
“No espelho calmo do lago refletia-se a vegetação luxuriante que o
emoldurava (...) tudo isso se confundia em uma massa matizada, em uma orgia de
verdura, em um deboche de cores que excedia, que fatigava a imaginação. (...)
Um misto de perfume suavíssimo de cheiro áspero de raízes e de seiva, que
relaxava os nervos, que adormecia o cérebro”.
Além da natureza, os estímulos sociais
igualmente condicionam o comportamento de Lenita e o desenvolvimento de sua
sexualidade. Desperta a sua atenção, em dado momento, um casal de escravos que
se evade na mata para o sexo, o que ocorre em paralelo ao ato sexual
presenciado pela protagonista envolvendo um boi e uma vaca. Num determinado
momento, estimula o seu sadismo (de conteúdo sexual) ao presenciar o castigo de
um escravo que tentara fugir da fazenda por meio de “açoites de bacalhau”, espécie
de chicote feito de couro cru retorcido, que variavam em número, conforme a
gravidade da falta cometida.
A luxúria de Lenita altera a ordem
comum em que o macho persegue a fêmea; na história, é Lenita quem irá
voluntariamente se entregar aos braços de Manuel Barbosa. Essa situação
inusitada certamente despertou o furor negativo em torno do livro, inobstante
uma leitura mais atual do romance autorize uma reflexão acerca da condição feminina
e a sua evolução ao longo da história mais recente.
O término do enredo é trágico: Lenita
descobre a traição de Manuel Barbosa ao tempo que constata estar gravida.
Abandona a fazenda para se casar com um pretendente que havia rejeitado pouco
tempo antes. É o meio que encontra para escapar da inapelável condenação social
de uma mulher cuja gravidez se deu fora do casamento. Já Manual Barbosa, ao descobrir
o abandono de Lenita, suicida-se com veneno. Sua morte, certamente a passagem
mais interessante da obra, ocorre lentamente, com a consciência superveniente
do arrependimento, quando, semi-morto, percebe o desespero de seus pais.
Os personagens são reféns de suas
pulsações orgânicas. Não podem se furtar aos próprios instintos. Essa
realidade, confrontada com as normas sociais, engendra a tragédia e sugere a
interpretação de que o escritor, mesmo mantendo a equidistância do artista
naturalista, não deixou de considerar negativa e trágica a subversão da moral
pela carne.
Não se trata portanto de uma
literatura engajada em torno de mudanças sociais. Sua proposta, dentro da
perspectiva naturalista, é a descrição objetiva dos fatos, tal qual a do
cientista que observa fenômenos no laboratório.
Bibliografia:
DIOGO, Sarah
Maria Forte. “De Parto Monstruoso a Sucesso de Público: análise da recepção
crítica de A Carne de Júlio Ribeiro”. Universidade Federal de Uberlândia.
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