“Alves & Cia” – Eça de Queirós
“Alves & Cia” – Eça de Queirós
Resenha Livro - “Alves & Cia” –
Eça de Queirós – Ed. Iba Mendes – Livro # 1
“Este foi um artista que completou dignamente o ciclo de sua rotação.
Passou pelas revoltas acesas do demolidor, feriu os melindres da pátria, menoscabou
lhe as crenças, achincalhou lhe as tradições, numa esfuziante saraivada de
sarcasmo e desdém, e quando sentiu a vida declinar-lhe, interrompeu a obra
admirável de panfletário e construiu essa torre de bronze, onde encastelou a
velha alma lusa, tal qual ela se nos apresenta, com as suas grandezas e
imperfeições.”. (Frota
Pessoa – “Crítica e Polêmica” – 1902).
José Maria de Eça de Queirós nasceu
em 25 de novembro de 1845 na Póvoa de Varzim em Portugal. Seu pai fora magistrado,
formado em Direito em Coimbra e amigo pessoal de Camilo Castelo Branco,
expoente do romancismo português.
Aos dezesseis anos Eça de Queirós
também ingressou no curso de Direito em Coimbra, quando publicou seus primeiros
trabalhos literários. Posteriormente, o escritor exerceria a advocacia e o
jornalismo, até o ano de 1870, quando ingressou na administração pública na
condição de gestor da vereança de Leiria. O fato é de destaque desde que Leiria
é o local onde se passa a maior parte dos eventos de um dos seus livros mais
conhecidos, “Crime do Padre Amaro”. (1875)
Em 1873, Eça de Queirós ingressa na
carreira diplomática, exercendo cargos oficiais em Havana, Newcastle e Bristol.
É a partir deste período que escreve os seus principais romances: “O Primo
Basílio” (1878), “Os Maias” (1888), além do mencionado “Crime” de 1875.
Não seria exagero dizer que foi um
dos maiores escritores portugueses de todos os tempos, sendo certamente o ponto
mais alto do romance em língua portuguesa do século XIX.
Foi precursor do realismo literário
em língua portuguesa, movimento que propunha a superação da tradição romântica,
a ela se opondo especialmente no que toca à idealização da realidade: a
proposta no realismo é descrevê-la de forma objetiva, com a intenção crítica, o
que em Eça de Queiroz se dá através da caricatura, ou seja, do humor. A
caricatura, ademais, sempre vai realçar algumas caraterísticas mais peculiares
do personagem de forma intencionalmente exagerada.
O marco inicial do realismo em
Portugal se deu em torno da Questão Coimbrã.
Trata-se de uma batalha intelectual
em torno da literatura que opôs de um lado a tradição romântica, com o seu
conservadorismo, formalismo e academicismo e de outro lado jovens estudantes de
Coimbra que salientavam a falsidade na forma romântica de percepção da
realidade e propunham não só a mera descrição objetiva do mundo mas uma crítica
que ensejasse transformações sociais. Esses jovens ficaram depois conhecidos
como “Geração de 70”.
Fala-se em batalha intelectual por se
tratar efetivamente de um conflito cuja dimensão ia além do problema literário:
tratava-se de uma lide envolvendo o tradicionalismo/conservadorismo em oposição
à modernização/liberalismo.
Ainda sob o impacto da Revolução
Francesa e das revoluções burguesas subsequentes, os jovens escritores,
particularmente Eça de Queiroz, tinham intenção de ridicularizar e demolir
velhas tradições: desde o casamento e a fidelidade conjugal em “Primo Basílio”,
passando ao falso moralismo do clero e a beatice carola de mulheres desocupadas
em “O Crime do Padre Amaro.”.
A arte realista é a expressão
literária do liberalismo burguês num momento histórico ainda impactado pela
Revolução de 1879 e as revoluções burguesas europas subsequentes. Trata-se de
uma época muito anterior ao completo estado de composição do liberalismo hoje
visto.
De uma certa maneira, a própria
evolução histórica de Portugal, país pioneiro na Europa na sua constituição de
Estado Nacional desde a Revolução de Avis (1383), mas país retardatário no que
diz respeito ao desenvolvimento do capitalismo industrial, especialmente se
comparado a países como Inglaterra, França e Alemanha: este desenvolvimento
histórico suis generis faria muito provavelmente com que a disseminação de
ideias liberais e republicanas em Portugal ensejasse maiores conflitos diante
da sobrevivência e resquício do misticismo religioso. Lá o peso da tradição fez
com que a monarquia acabasse em 1910, mais de vinte anos depois do Brasil e
mais de um século depois da França.
Dentre as principais características
do realismo literário podemos citar a objetividade em oposição ao subjetivismo
que informam as narrativas românticas; a crítica social com um intuito
reformador, podendo se dizer que a proposta realista coincide com a visão
social de mundo burguesa no contexto do capitalismo em sua fase industrial.
Ênfase na descrição da vida cotidiana, de modo que os cenários passam também a
remeter ao ambiente urbano, local onde se encontram os tipos sociais,
desnudando especialmente os interesses pessoais que informam a conduta de
padres, beatas, bacharéis, jornalistas, comerciantes etc.
Esta forma descritiva foge bastante
da tendência da idealização romântica, dando uma feição mais humana e
verdadeira aos personagens em suas relações. Por vezes, esse realismo está
contaminado da visão de mundo liberal e o seu consectário mais evidente: o
individualismo, sugerindo a percepção de que os personagens não se mobilizam
para nada que não seja o seu interesse imediato.
A orientação dada às primeiras obras
de Eça de Queiroz é a da crítica demolidora da sociedade arcaica de Portugal,
naquilo que poderíamos chamar de uma “primeira fase” de sua evolução literária,
que vai de 1870 e 1880.
Num segundo momento, o tom sarcástico
com que trata sua pátria é substituído por uma maior condescendência e até
mesmo ternura em relação a Portugal.
Essa reconciliação pode ser
relacionada à maturidade do escritor, que abandona o tom combativo e militante
de um jovem escritor da chamada “geração de 1970”, esta última forjado nos
embates com a tradição romântica dentro da polêmica “Questão Coimbrã”.
Outra explicação para a reconciliação
com o seu país poderia estar relacionada com as saudades da pátria de alguém
que passou os últimos anos de sua vida exercendo atividade diplomática em
países distantes de sua terra natal.
A novela Alves & Cia (1925) num
primeiro momento sugere pertencer à fase realista do escritor, na sua descrição
burlesca de um caso de triângulo amoroso, resolvido da forma menos heroica possível.
Contudo, uma leitura talvez mais detida da obra sugira se tratar de um texto de
transição, se considerando o final peculiar do tal triângulo amoroso.
ALVES & CIA
“Alves & Cia” (1925) corresponde
a um texto inacabado de Eça de Queiroz. Foi descoberto por seu filho José Maria
de Eça de Queiroz e publicado postumamente em 1925 em conjunto com uma série de
inéditos encontrados no espólio do escritor.
Consta que os originais foram
encontrados numa “mala de ferro, onde
dormiam há mais de um quarto de século”. De acordo como o filho do
escritor, “eram cento e quinze folhas
soltas, sem título nem menção de data, cobertas de uma letra sempre vertiginosa
e, como sempre, sem um retoque nem uma correção”. A originalidade do texto,
tanto no que diz respeito ao enredo quanto na forma como que expressa em tintas
rápidas os tipos sociais de Lisboa, denotam o brilhantismo do escritor. Afinal,
estamos tratando de um “rascunho de livro”, de natureza crua, sem as revisões
que antecedem a publicação do original.
O livro trata de um caso de infidelidade
conjugal, tal qual o “Primo Basílio” e de um amor ilícito resolvido de acordo
com aquilo que era conveniente à luz do juízo inapelável da opinião, na forma
do “Crime do Padre Amaro”.
Alves é sócio de uma casa comercial
em Lisboa. Da empresa participa Machado, um amigo de longa data, que “tinha vinte e seis ano; e era bonito moço,
com o seu bogodito louro, o cabelo anelado, e o ar elegante. As mulheres
gostavam dele”.
No dia do aniversário de quatro anos
de casado, Alves decide sair mais cedo do trabalho e surpreender sua mulher com
um colar de brilhantes.
Uma onda de felicidade o invadia
naquele dia 09 de Julho enquanto se dirigia até sua residência, satisfeito com
o presente e com o aniversário de casamento com Ludovina, até quando surpreende
a mulher e o sócio juntos no sofá de casa, abraçados, em flagrante delito de
traição.
A novela segue então tendo como
motivo a reação do capitalista diante da descoberta da traição envolvendo sua mulher
e seu sócio.
Seu orgulho ferido leva-o a expulsar Ludovina
para a casa do pai. Seu sogro comparece na residência de Alves e arranja um bom
acordo. Para não haver escândalo público pela saída repentina de Lulu do lar
doméstico, ajustam uma viagem de recreação, quitada com o dinheiro de Alves,
sem prejuízo de uma pensão mensal à mulher infiel. O arranjo pecuniário parece
agradar o sogro de Alves e sua filha, num movimento em que se beneficiam de sua
própria torpeza. Alves paga a viagem e a pensão, passando-se por ridículo.
Outro problema a ser resolvido seria
como lidar com Machado, após a sua facada nas costas de Alves. Num primeiro
momento, movido pelas emoções, o protagonista deseja resolver a situação num
duelo. Tratava-se de uma forma comum de resolução de conflitos por desagravo à
honra de um marido ofendido.
E, aqui, novamente, vemos a ironia
incendiária de Eça de Queiroz.
Dentro da premissa realista, que se
opõe a qualquer tipo de idealização, o tal duelo apenas desmoraliza Alves
perante o leitor.
Isso porque nada há de heroico na sua
resolução de se bater com Machado. Ele é a todo momento hesitante e
recalcitrante em vingar-se da traição. Vê-se dividido por um lado pelo pueril
medo da morte, e um medo ainda maior de ser riscado pela espada num duelo e
passar meses de cama; e pelo outro pela necessidade de satisfação de um orgulho
ferido pela traição.
Não há nem remotamente qualquer traço
de heroísmo na conduta dos personagens.
Ao final, Alves e Machado convocam
amigos de confiança de lado a lado para deliberarem de forma irrecorrível sobre
a forma como deveria ser tratado o caso.
Esses amigos, chamados “testemunhas”,
decidem passar panos quentes ao conflito, sugerindo que Alves “viu mais do que
deveria” e que o duelo colocaria em risco as atividades comerciais da firma.
Importa, neste passo, relatar a
reação pouco gloriosa (e hilária) de Alves ao descobrir que o duelo não ocorria:
“uma sensação de paz e de serenidade
invadia-o silenciosamente. Aquelas grandes afirmações do Nunes, um rapaz de
tanta honra, quase o convenciam de que realmente não houvera senão um galanteio”.
O triângulo amoroso é resolvido
dentro do pragmatismo com que o burguês resolve os seus problemas comerciais.
Dentro do jogo de interesses
pessoais, convinha ao Alves manter a sociedade com Machado, pelo bem da empresa
e para não dar causa à maledicência, após a saída de Ludovina de sua casa. A
situação do protagonista, abandonado no lar, sem o amparo da mulher na rotina
diária, também prevaleceu sobre o seu orgulho de marido traído. As criadas
passaram a desleixar da casa, deixar o ambiente sujo e fazer refeições
intragáveis desde quando não estavam mais sendo supervisionadas pela mulher da
casa. É mais cômodo, por todos estes motivos, esquecer a desavença.
A crítica burlesca com que os
capitalistas resolvem as suas querelas de honra denota aquela primeira fase da
obra de Eça de Queiroz, associada à critica demolidora da sociedade portuguesa.
Contudo, talvez estejamos de fato já
diante de um texto de transição, pelo que toca o fim da novela.
Ao contrário de “O Crime do Padre Amaro” e “O Primo Basílio” o amor ilícito não dá causa a uma tragédia que reforça a conduta imoral dos personagens. Ao fim e ao cabo, passados alguns anos desde o fatídico dia da descoberta da traição, os sócios se reconciliam, ao menos sugerindo alguma condescendência pelo escritor em relação aos envolvidos no triângulo amoroso.
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