“A Guerra Guaranítica” – Tau Golin
Resenha Livro – “A Guerra Guaranítica: o levante indígena
que desafiou Portugal e Espanha” – Ed. Terceiro Nome – Coleção Brasil Rebelde
É bastante usual escutar-se certo senso comum segundo o qual
o povo brasileiro é pacífico, conciliador, cordial, não se rebelando face às
injustiças que grassam toda a evolução histórica do país. Esta mesma história
revela que o senso comum, operando como uma ideologia[1],
desconsidera revoltas e rebeliões que remetem pelo menos desde o início da
colonização.
O Quilombo dos Palmares ainda no séc. XVII foi um exemplo de
organização que em si desafiou os poderes constituídos em Brasil e Lisboa. O
Quilombo não tinha um programa político definido nem fazia propaganda política
seja pelo fim do tráfico de escravos seja pelo fim da própria escravidão.
Mas
um núcleo populacional situado no interior do atual estado de Alagoas (Serra da
Barriga) bem como seu rápido crescimento tornando-se o maior quilombo de então
provocou o medo de que o movimento se alastrasse, para não dizer os efetivos
prejuízos causados aos proprietários da região que perdiam sua mão de obra para
o quilombo. Seu final foi a completa destruição e morte do refúgio de negros,
índios ou até brancos que por diferentes razões rompiam com a sociedade
colonial e buscavam uma outra alternativa societária, por sinal, bastante
influenciada pela cultura Banto.
As Guerras Guaraníticas (1753/1755) também foram um
movimento que, como Palmares, abria uma polarização entre os poderes
constituídos e setores oprimidos da população. Todavia, tratou-se de um
movimento muito diferente de Palmares, coincidindo, no entanto, com o mesmo fim
trágico.
Como se sabe, desde o início da colonização durante séculos
a região meridional do país foi objeto de guerras e disputas territoriais
envolvendo as coroas portuguesa e espanhola. No início da colonização, o
tratado que deveria delimitar as fronteiras corresponderia ainda ao defasado
Tratado de Tordesilhas de 1494 que estabelecia uma linha divisória ao norte no
atual estado do Pará (Belém) e ao sul pela cidade de Laguna. O tratado não
impediu que bandeirantes paulistas e mineiros avançassem sobre os domínios
espanhóis na caça de índios e promovendo o comércio. O domínio da região da
bacia do rio prata que abrange os atuais estados do Brasil, Argentina, Uruguai
e Paraguai e era estratégico – por este roteiro passavam traficantes de mercadorias que comerciavam sem
pagar os impostos relativos à coroa espanhola.
O ponto de partida das Guerras Guaraníticas foi todavia o Tratado
de Madrid (1750). Numa conjuntura em que as animosidades entre espanhóis e
portugueses foram reduzidas com o casamento do rei espanhol com uma filha dos
Bragança, Portugal e Espanha determinaram neste tratado a entrega pelos espanhóis
dos “Sete Povos das Missões[2]”
enquanto o Império Luso Brasileiro em
permuta entregaria a Colônia do Sacramento onde até então cinco guerras
envolvendo as duas coroas tiveram lugar.
O Tratado de Madrid também previa uma expedição local
conduzida pelas duas coroas para se definir os contornos das fronteiras do
meridiano. O critério geral adotado pelo Tratado de Madrid foi o do uti
possidetis – a posse e a fixação em determinado lugar confeririam o domínio definitivo
do território.
A região das sete missões, conforme o pactuado pelas coroas,
deveria ser liberada do domínio dos índios sob a condução dos padres jesuítas.
A organização política local dava-se através da liderança não tanto dos padres
como se costuma supor mas dos caciques indígenas, a maioria de origem guarani,
e que mantinham, através de relações familiares, um domínio envolvendo dezenas
de milhares de pessoas – estima-se só na região de Sete Povos 30 mil indígenas.
Ante o ultimato das tropas portuguesas e espanholas quanto à
exigência dos índios abandonaram suas terras, as lideranças caciques se
dividiram. Alguns setores buscavam negociar e protelavam o ataque sobre as
missões – no limite ganhavam tempo para se preparar militarmente. Alguns
setores mais radicalizados afirmavam que a terra em que habitavam fora
concedida por Deus e só ele poderia tirá-los de lá. Com o avanço das tropas, o
principal dirigente militar Sepé Tiaraju defendia uma guerra de movimento em
campos abertos, evitando sempre um embate final e frontal – os índios atacavam
também em poucos bandos através de estratégias de guerrilha, como a tática de
deixar nos campos vacas e cavalos a serem apropriados pelo elemento estrangeiro
e depois o ataque aos soldados que caíam na armadilha.
Em que pese as enormes dificuldades operacionais de
mobilizar um exército com cavalaria para adentrar um terreno fechado, encharcado
pelas chuvas, por enchentes e pelo frio, a campanha luso-espanhola saiu
vitoriosa – os índios que lá habitavam também chamados de missioneiros se
dispersaram pelo território que em que hoje se situa o Rio Grande do Sul. Foram
reduzidos pela força e obrigados de certa forma a se inserir na sociedade
colonial em condições de decadência. Ainda assim aqueles índios guaranis
deixariam importantes influências que marcam a cultura e os costumes gaúchos.
“É notável que o cotidiano contemporâneo rio-grandense
sustente-se ainda na herança indígena. Expressões identitárias icônicas, como
assado/churrasco (a espetada de carne tribal), o mate/chimarrão e dezenas de
alimentos constitutivos da “comida caseira” vêm do universo nativo”. (Pg. 168).
O fato é que a violência do aparato repressivo do estado, no
Brasil, resultou em novas tragédias que são parecidas com as Guerras
Guaraníticas. Cada reintegração de posse de lutadores sem terra e sem teto
experimentam ainda hoje a intransigência da classe dominante com as formas mais
simples e embrionárias de resistência como a luta pela terra e pela moradia –
direitos democráticos elementares. Sete Missões ou Canudos em fins do séc. XIX
tiveram o mesmo fim trágico que o bairro do pinheirinho em São José dos Campos
quando a polícia militar sob a direção do governo estadual do PSDB expulsou
milhares de famílias de um bairro consolidado para atender aos interesses
econômicos da especulação imobiliária .
Sepe Tiaraju por sua vez teve um fim tão trágico quanto
zumbi[3].
Encontrado após ter levado uma queda de cavalo, foi levado até as autoridades
espanholas, quando teve seu corpo queimado por pólvora. Levou um tiro de
misericórdia e teve sua cabeça arrancada. Se há uma lição ao longo destas
tragédias é a de que a história do povo brasileiro envolve a presença de
movimentos e lideranças que, a seu modo, se insurgiram contra a ordem
estabelecida – a segunda lição é que a ausência de uma organização
político-militar bem como o relativo isolamento de movimentos revolucionários
inviabilizaram por ora uma transformação revolucionária no país, com a derrota
política de uma classe dominante que secularmente serviu-se da violência sem
escrúpulos contra os setores oprimidos da população.
Igreja de São Miguel das Missões
[1] Ideologia
no sentido em que falam o marxismo, qual seja, um conjunto de ideias que
beneficiam a classe dominante mas que se revelam como se fossem de interesse
universal.
[2]
Este é o nome que se deu ao conjunto de sete aldeamentos indígenas fundados
pelos Jesuítas espanhóis na Região do "Rio Grande de São Pedro",
atual Rio Grande do Sul
[3] Na
verdade há duas versões na historiografia acerca da morte de Zumbi. A primeira:
após constatar a derrota definitiva da resistência, Zumbi teria se matado
jogando-se de um morro. A segunda, mais convincente, diz que o líder morreu em
combate.
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