domingo, 23 de setembro de 2018

“A Guerra Guaranítica” – Tau Golin


“A Guerra Guaranítica” – Tau Golin



Resenha Livro – “A Guerra Guaranítica: o levante indígena que desafiou Portugal e Espanha” – Ed. Terceiro Nome – Coleção Brasil Rebelde

É bastante usual escutar-se certo senso comum segundo o qual o povo brasileiro é pacífico, conciliador, cordial, não se rebelando face às injustiças que grassam toda a evolução histórica do país. Esta mesma história revela que o senso comum, operando como uma ideologia[1], desconsidera revoltas e rebeliões que remetem pelo menos desde o início da colonização.

O Quilombo dos Palmares ainda no séc. XVII foi um exemplo de organização que em si desafiou os poderes constituídos em Brasil e Lisboa. O Quilombo não tinha um programa político definido nem fazia propaganda política seja pelo fim do tráfico de escravos seja pelo fim da própria escravidão. 

Mas um núcleo populacional situado no interior do atual estado de Alagoas (Serra da Barriga) bem como seu rápido crescimento tornando-se o maior quilombo de então provocou o medo de que o movimento se alastrasse, para não dizer os efetivos prejuízos causados aos proprietários da região que perdiam sua mão de obra para o quilombo. Seu final foi a completa destruição e morte do refúgio de negros, índios ou até brancos que por diferentes razões rompiam com a sociedade colonial e buscavam uma outra alternativa societária, por sinal, bastante influenciada pela cultura Banto.  

As Guerras Guaraníticas (1753/1755) também foram um movimento que, como Palmares, abria uma polarização entre os poderes constituídos e setores oprimidos da população. Todavia, tratou-se de um movimento muito diferente de Palmares, coincidindo, no entanto, com o mesmo fim trágico.

Como se sabe, desde o início da colonização durante séculos a região meridional do país foi objeto de guerras e disputas territoriais envolvendo as coroas portuguesa e espanhola. No início da colonização, o tratado que deveria delimitar as fronteiras corresponderia ainda ao defasado Tratado de Tordesilhas de 1494 que estabelecia uma linha divisória ao norte no atual estado do Pará (Belém) e ao sul pela cidade de Laguna. O tratado não impediu que bandeirantes paulistas e mineiros avançassem sobre os domínios espanhóis na caça de índios e promovendo o comércio. O domínio da região da bacia do rio prata que abrange os atuais estados do Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai e era estratégico – por este roteiro passavam  traficantes de mercadorias que comerciavam sem pagar os impostos relativos à coroa espanhola.

O ponto de partida das Guerras Guaraníticas foi todavia o Tratado de Madrid (1750). Numa conjuntura em que as animosidades entre espanhóis e portugueses foram reduzidas com o casamento do rei espanhol com uma filha dos Bragança, Portugal e Espanha determinaram neste tratado a entrega pelos espanhóis dos “Sete Povos das Missões[2] enquanto o Império Luso Brasileiro em permuta entregaria a Colônia do Sacramento onde até então cinco guerras envolvendo as duas coroas tiveram lugar.

O Tratado de Madrid também previa uma expedição local conduzida pelas duas coroas para se definir os contornos das fronteiras do meridiano. O critério geral adotado pelo Tratado de Madrid foi o do uti possidetis – a posse e a fixação em determinado lugar confeririam o domínio definitivo do território.
A região das sete missões, conforme o pactuado pelas coroas, deveria ser liberada do domínio dos índios sob a condução dos padres jesuítas. A organização política local dava-se através da liderança não tanto dos padres como se costuma supor mas dos caciques indígenas, a maioria de origem guarani, e que mantinham, através de relações familiares, um domínio envolvendo dezenas de milhares de pessoas – estima-se só na região de Sete Povos 30 mil indígenas.

Ante o ultimato das tropas portuguesas e espanholas quanto à exigência dos índios abandonaram suas terras, as lideranças caciques se dividiram. Alguns setores buscavam negociar e protelavam o ataque sobre as missões – no limite ganhavam tempo para se preparar militarmente. Alguns setores mais radicalizados afirmavam que a terra em que habitavam fora concedida por Deus e só ele poderia tirá-los de lá. Com o avanço das tropas, o principal dirigente militar Sepé Tiaraju defendia uma guerra de movimento em campos abertos, evitando sempre um embate final e frontal – os índios atacavam também em poucos bandos através de estratégias de guerrilha, como a tática de deixar nos campos vacas e cavalos a serem apropriados pelo elemento estrangeiro e depois o ataque aos soldados que caíam na armadilha.

Em que pese as enormes dificuldades operacionais de mobilizar um exército com cavalaria para adentrar um terreno fechado, encharcado pelas chuvas, por enchentes e pelo frio, a campanha luso-espanhola saiu vitoriosa – os índios que lá habitavam também chamados de missioneiros se dispersaram pelo território que em que hoje se situa o Rio Grande do Sul. Foram reduzidos pela força e obrigados de certa forma a se inserir na sociedade colonial em condições de decadência. Ainda assim aqueles índios guaranis deixariam importantes influências que marcam a cultura e os costumes gaúchos.

“É notável que o cotidiano contemporâneo rio-grandense sustente-se ainda na herança indígena. Expressões identitárias icônicas, como assado/churrasco (a espetada de carne tribal), o mate/chimarrão e dezenas de alimentos constitutivos da “comida caseira” vêm do universo nativo”.  (Pg. 168).

O fato é que a violência do aparato repressivo do estado, no Brasil, resultou em novas tragédias que são parecidas com as Guerras Guaraníticas. Cada reintegração de posse de lutadores sem terra e sem teto experimentam ainda hoje a intransigência da classe dominante com as formas mais simples e embrionárias de resistência como a luta pela terra e pela moradia – direitos democráticos elementares. Sete Missões ou Canudos em fins do séc. XIX tiveram o mesmo fim trágico que o bairro do pinheirinho em São José dos Campos quando a polícia militar sob a direção do governo estadual do PSDB expulsou milhares de famílias de um bairro consolidado para atender aos interesses econômicos da especulação imobiliária .

Sepe Tiaraju por sua vez teve um fim tão trágico quanto zumbi[3]. Encontrado após ter levado uma queda de cavalo, foi levado até as autoridades espanholas, quando teve seu corpo queimado por pólvora. Levou um tiro de misericórdia e teve sua cabeça arrancada. Se há uma lição ao longo destas tragédias é a de que a história do povo brasileiro envolve a presença de movimentos e lideranças que, a seu modo, se insurgiram contra a ordem estabelecida – a segunda lição é que a ausência de uma organização político-militar bem como o relativo isolamento de movimentos revolucionários inviabilizaram por ora uma transformação revolucionária no país, com a derrota política de uma classe dominante que secularmente serviu-se da violência sem escrúpulos contra os setores oprimidos da população.

Igreja de São Miguel das Missões


[1] Ideologia no sentido em que falam o marxismo, qual seja, um conjunto de ideias que beneficiam a classe dominante mas que se revelam como se fossem de interesse universal.
[2] Este é o nome que se deu ao conjunto de sete aldeamentos indígenas fundados pelos Jesuítas espanhóis na Região do "Rio Grande de São Pedro", atual Rio Grande do Sul
[3] Na verdade há duas versões na historiografia acerca da morte de Zumbi. A primeira: após constatar a derrota definitiva da resistência, Zumbi teria se matado jogando-se de um morro. A segunda, mais convincente, diz que o líder morreu em combate.  

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