Direito do Trabalho Esquematizado – Carla Teresa Martins
Romar - Parte I
Resenha Livro – Direito do Trabalho Esquematizado – Ed.
Saraiva – Coordenação Pedro Lenza
1-
Primeira Consideração Preliminar
Não é
difícil supor que um curso tradicional como o de Direito, disciplina mais antiga
a ser ministrada em nível superior no Brasil[1],
igualmente tende a ser de certa forma conservador quanto aos métodos ou mesmo
finalidades de estudo. O que gostaríamos de salientar em primeiro lugar é que
esta série de “Direito Esquematizado” talvez não seja o primeiro livro a ser
suscitado por um professor de Direito do Trabalho num estabelecimento de ensino
superior. Em particular nas unidades de ensino públicas onde não raro a vaidade
se espraia ao nível intelectual.
O que os demais ramos do conhecimento costumam se referir
como teoria ou metodologia[2]
, os juristas tratam sintomaticamente pelo nome de “doutrina”. A doutrina, ao
lado da jurisprudência e dos costumes, são fontes do direito e corresponde à
análise hermenêutica (interpretativa) das normas, dos princípios e demais
informações concernentes a dado ramo do Direito. No Direito do Trabalho a
doutrina mais autorizada (no sentido de mais prestigiada nas salas de aula ou
como causas de pedir de reclamações trabalhistas, contestações, recursos
ordinários, etc) envolvem 3 ou 4 autores. Maurício Delgado Godinho, Alice Monteiro
de Barros e Amauri Mascaro do Nascimento são os mais lembrados. Tal fenômeno
curioso revela tradicionalismo, conservadorismo e uma tendência que poderíamos
considerar mesmo da literatura brasileira encarada de forma genérica que
envolve a consolidação de poucos notáveis a quem a deferência eventualmente se
mistura com a mediocridade intelectual geral, com a falta de ideias novas e com a mera
repetição de ideias acerca de conceitos, princípios e normas – um vício da
nossa literatura tão bem retratado por Lima Barreto em seus romances, com o
discurso rebarbativo dos bachareis, prosa ociosa, repetitiva, eivado de obviedades e não raro de
mera ode aos poderosos.
Em suma, seria pouco provável que em escolas de Direito
tradicionais os cursos do “Esquematizado” sejam indicados como bibliografia de
curso. Ocorre que tais livros primam pelo aspecto didático, tem uma função
primordial de preparar bacharéis para as provas da OAB ou concursos públicos,
além de fazerem um tratamento integral da disciplina jurídica. Sua leitura não
depende de um curso de direito concluído ou em andamento pelo leitor. Um
trabalhador pode e deve ler capítulos deste livro. E aqui entramos na....
Segunda Consideração Preliminar
Direito é uma palavra polissêmica e podendo significar
distintas coisas, a forma como abordamos o Direito pode revelar uma concepção
mais geral sobre seu objeto ou sua finalidade, sua conformação histórica e os
vínculos entre a evolução das relações humanas – por exemplo da transição do
trabalho escravo para o trabalho livre no Brasil com as correspondentes
transformações jurídicas na medida em que o escravo até então não é um sujeito
de direito, mas mera res, havendo quando muito previsões no âmbito do direito penal (punição) na seara trabalhista.
No curso do Direito fala-se em matérias dogmáticas e
matérias zetéticas. As disciplinas dogmáticas envolvem mais diretamente o
chamado direito posto, o estudo das normas jurídicos em vigor dentro de cada
ramo do Direito, com seus respectivos princípios, regras de interpretação, e em
alguns casos, sistemas processuais (e aqui se fala em direito material do
trabalho e direito processual do trabalho). Em geral as disciplinas dogmáticas
são mais prestigiadas nos cursos, são em essência o conteúdo da prova para
ingresso nos quadros da OAB e concursos, que não raro cobram dos candidatos a
memorização do texto da lei. Todavia, são as matérias zetéticas como a
Introdução ao Estudo do Direito, a Filosofia do Direito ou a Sociologia do
Direto aquelas destinadas à compreensão mais global do fenômeno jurídico – aqui
não reduzido ao Direito Positivo, mas a diferentes concepções divididas pelo
jurista Alysson Leandro Mascaro em três grandes tendências da filosofia do
direito contemporâneo: (i) as correntes juspositivistas; (ii) as correntes
decorrentes da teoria crítica que em filosofia tem como origem a crítica da
economia política de Marx; (iii) uma categoria residual de filosofias de
direito não juspositivistas como o decisionismo jurídico de Schmitt (confirmado em sede recursal no âmbito da Lava Jato quando um desembargador do Tribunal Federal do Paraná afirmou que a excepcionalidade da operação autorizaria as ilegalidades cometidas por Moro) e a crítica
das múltiplas formas de poder e controle que submetem grupos estigmatizados em
Foucault.
A corrente juspositivista tem a sua hegemonia, sendo
corrente dentre o jurista médio a noção de que a prática concreta do jurista
não envolve a ponderação acerca do justo ou do não justo em dada situação com
as suas especificidades. Aliás, tal concepção do Direito, aplicado ao caso
concreto, não como uma técnica, mas como uma Arte, é muito próximo da noção de Diké da Grécia Antiga. Diké significa
concomitantemente norma jurídica emanada do poder político votado pelos
cidadãos e a própria noção de justo. Foi a partir de Sócrates que o direito
deixa de ser um argumento manipulado pelos sofistas, uma narrativa que se impõe
pela retórica e pelo poder de persuasão e passa a ser uma espécie de verdade a
ser perquirida pela razão.
Mas, desde Marx e particularmente Pachukanis, temos que o Direito
tal como conhecemos é um fenômeno moderno, especificamente capitalista, havendo
uma relação de múltiplas determinações entre ambos, Direito e Capitalismo. E o juspositivismo que é a
maior expressão dessa especificidade do Direito seria um conjunto de conhecimentos
sob o qual não se espraiam outros saberes como a história, a sociologia ou
mesmo a linguagem: Hans Kelsen, principal expoente do juspositivismo, fala em
ciência pura do Direito reforçando um certo senso comum segundo o qual o Direito é um
conhecimento especializado das normas jurídicas em vigor, regras
igualmente jurídicas (pré-determinadas) de interpretação, princípios
consolidados - ao jurista não consta
cogitar acerca do justo mas da aplicação da norma certa em cada caso concreto.
A jurisprudência, as decisões dos tribunais vão assumindo um caráter também
normativo através de súmulas vinculantes e novas figuras processuais como Incidente
de Assunção de Competência (Art. 947 CPC)[3],
o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (976 CPC) além da previsão do
recurso de Reclamação quando há violação da competência e das decisões
vinculantes dos tribunais superiores– são institutos que por um lado buscam a
segurança jurídica, a isonomia e ausência de decisões conflitantes dentre os
tribunais, além de maior celeridade processual quando causas repetitivas passam
a ser julgadas sumariamente conforme a orientação jurisprudencial decidida. Por
outro lado, a jurisprudência vinculante se desdobra na prática na conformação
de novas normas jurídicas, por sinal emanadas não pelo poder legislativo, mas
através da atividade legiferante ampliada do Poder Judiciário.
Quanto ao Juspositivismo, preleciona Alysson Mascaro
“O juspositivismo, em termos quantitativos, é aquele que
mais alcança a prática do jurista e do teórico do direito contemporâneo. A
maioria dos profissionais do direito, pela limitação teórica, pela prática e
pelas estruturas institucionais do
direito contemporâneo, exerce um ofício cujo pensamento é adstrito às normas do
Estado”.
Há por detrás desta vertente dominante uma noção –
denunciada por Lênin ao seu tempo – de que o Estado (e o Direito) pairam sobre
a sociedade com seus conflitos, e, com os olhos vendados (Deusa Romana Justitia) a representar uma
neutralidade impossível. Incide o Direito sobre os conflitos intersubjetivos
por um lado promovendo a pacificação social e por outro lado conseguindo a “justiça”
que se confunde com o direito positivo.
Lênin em diversos artigos e em seu importante trabalho “Estado
e Revolução” revela como esta noção ideológica de um Estado que paira sobre a
luta de classes como um instrumento de mediação dos conflitos garantindo ordem,
segurança e previsibilidade nas relações pessoais, obrigacionais, contratuais,
etc.; tal percepção envolverá as ilusões dos reformistas quanto ao papel do
estado, que é, acima de tudo, um instrumento de dominação de uma classe pela
outra e não um órgão de mediação neutro perante as classes e frações de classes
em luta. (Percepção ideológica que informa a prática política dos reformistas. Uma das consequências históricas foi o apoio dos partidos de esquerda às suas respectivas burguesias nacionais no âmbito da I Guerra Mundial, contra a posição bolchevique).
Talvez a leitura do rol de direitos positivados em sede
constitucional e particularmente os artigos 5º e 7º da CF/88 com direitos
respectivamente de cidadania e dos trabalhadores gerem alguma dúvida quanto à
concepção leninista. Ocorre em primeiro lugar que os direitos positivados na
nossa constituição são fruto de uma evolução histórica donde houve lutas. A
origem do Direito são as lutas de classes, as pressões sociais por mudanças e o Direito é a expressão de um liame necessário para a reprodução e ampliação das
relações capitalistas, inclusive quanto às normas protetivas.
“Uma crítica à jurisprudência burguesa, do ponto de vista do socialismo científico, deve tomar como modelo a crítica à economia política burguesa, como o fez Marx. Para isso ela deve, antes de tudo, adentrar no território inimigo, ou seja, não deve deixar de lado as generalizações e as abstrações que foram trabalhadas pelos juristas burgueses e que se originaram de uma necessidade de sua própria época e de sua própria classe, mas, ao expor a análise dessas categorias abstratas, revelar seu verdadeiro significado, em outras palavras, demonstrar as condições históricas da forma jurídica.”PASHUKANIS, Evguiéni B. “Teoria Geral do Direito e Marxismo”. Boitempo Ed. Pg. 80.
O Direito do Trabalho tem como um dos seus preceitos
basilares o princípio da proteção. Em sede jurídica reconhece-se uma relação de
desnivelamento entre empregado e empregador – detentor dos meios de produção e
sujeito de direito que vende sua força de trabalho se ungem através de um liame
até então não possível em modos de produção pretéritos.
Tal situação de gritante desigualdade existia nos albores da
Revolução Industrial em Inglaterra ao menos até fins de séc. XIX com o maciço
trabalho infantil e feminino, sob condições insalubres e jornadas de 12 horas
de trabalho[4]. Foram greves, paralizações e eventos
históricos de grande envergadura como a Revolução Mexicana (que criou uma das
primeiras constituições sociais do mundo) e principalmente a Revolução Russa
que tiveram o condão de criar princípios e regras protetivas. Assim diz Carla Romar:
“A concepção protecionista adotada pelo Direito do Trabalho
remonta à própria formação histórica deste ramo do Direito e tem como
fundamento a constatação de que a liberdade contratual assegurada aos particulares
não poderia prevalecer em situações nas quais se revelasse uma desigualdade
econômica entre as partes contratantes, pois isso significaria, sem dúvida
nenhuma, a exploração do mais fraco pelo mais forte”.
Outrossim e de acordo com esta segunda preliminar, é de se
destacar que a concepção crítica do Direito tem seguido estudos exaustivos
acerca da filosofia do Direito, dos problemas zetéticos desta disciplina ou “ciência”,
sem adentrar no mérito dos problemas dogmáticos sob pena de: (i) perder a
oportunidade de prestar esclarecimento à classe trabalhadora acerca dos seus
direitos positivados e principalmente dos fatos de que tais direitos são fruto
de lutas no passado e estão sendo neste momento retirados; (ii) disputar a
consciência e os discursos que envolvem a reforma trabalhista, que prometia em
meados de 2017 uma diminuição do desemprego em face da diminuição do passivo
trabalhista das empresas enquanto o desemprego desde então aumentou.
As regras de proteção ao trabalhador estão sendo suprimidas
por algumas alterações substanciais do Direito do Trabalho, em prejuízo do
trabalhador, como as jornadas 12x36, a ampliação das possibilidades de
terceirização (agora nas atividades meio e fim da tomadora de serviços) e a
prevalência do negociado sobre o legislado em situações menos benéficas ao
trabalhador.
Outro fato é que as normas trabalhistas a começar pelas
composições extrajudiciais entre empregadores e empregados (Acordo Coletivo de Trabalho e Convenção
Coletiva de Trabalho) são por natureza negociadas, não se podendo dispor
contratualmente de normas de proteção, saúde e segurança do trabalho[5].
A Reforma Trabalhista (lei 13.467/17) e MP (808/17) não foram negociadas entre
patrões e trabalhadores, bem como discutidas com a sociedade, mas como mais um
ataque dos patrões em meio a um golpe de estado em curso com o objetivo de
aniquilar a economia nacional, privatizar as riquezas do país e submeter o
Brasil às principais potencias imperialistas.
Não é difícil de imaginar qual o resultado desta
Reforma Trabalhista. Envolve retrocessos que ainda não são possíveis de serem
aferidos a depender de como os tribunais irão lidar com as mudanças, bem como
de questionamento da constitucionalidade de artigos da reforma a serem julgadas
no STF. Cada um destes problemas deve ser objeto de intervenção dos marxistas-leninistas sem embargo à crítica política do Direito como um todo.
A intervenção dos comunistas no que se refere ao problema do
Direito vai além da crítica da economia política em Marx com o seu paralelo a
partir da “Teoria Geral do Direito e do Marxismo” de Pachukanis, uma obra de qualquer
forma notável ao descrever como o Direito, antes de uma superestrutura, reside
no próprio DNA do modo de produção capitalista, conferindo a partir deste modo
de produção sua especificidade histórica.
A crítica ao juspositivismo dá-se por esta perspectiva
reduzir o Direito a uma ordem escalonada de normas jurídicas em vigor, tendo
por topo a Constituição Federal e como pressuposto uma norma hipotética fundamental.
É necessário também disputar os rumos do direito positivo, levando em consideração
uma luta contra-hegemônica que envolve uma disputa política envolvendo
direitos, cada um deles conquistados com suor e sangue. Este estudo dogmático
do direito serve de esteio para o esclarecimento autônomo do próprio trabalhador,
de modo a revelar as contradições do próprio estado capitalista sem embargo de
ações judiciais mesmo em litígios individuais quando não observados os direitos
que ainda restam aos empregados e demais espécies de trabalhadores (avulsos,
domésticos, temporários, etc.).
Esta parte I da Resenha serve como justificativa para os
estudos do Direito do Trabalho desde uma orientação e propósito
marxista-leninista levando em consideração não apenas a filosofia do Direito
mas o Direito material e processual. Nas próximas partes deste Trabalho
abordaremos alguns institutos, normas jurídicas, princípios bem como as
discussões nos tribunais sobre temas como Contrato de Trabalho, Relação de
Trabalho e especificamente Relação de Emprego, Direito Internacional do
Trabalho, Direito Coletivo do Trabalho, e outros.
Para esta resenha foram lidas das páginas 1 - 633 do presente livro.
[1]
Escolas de Direito de Recife e de São Paulo fundadas em 11 de Agosto de 1826
[2]
Como nos cursos de História quando da reflexão sobre o próprio saber do passado,
há a filosofia da história, a metodologia da história e a teoria da história.
[3] Art.
947. É admissível a assunção de competência quando o julgamento de recurso, de
remessa necessária ou de processo de competência originária envolver relevante
questão de direito, com grande repercussão social, sem repetição em múltiplos
processos.
§ 1º Ocorrendo a hipótese de assunção de competência,
o relator proporá, de ofício ou a requerimento da parte, do Ministério Público
ou da Defensoria Pública, que seja o recurso, a remessa necessária ou o
processo de competência originária julgado pelo órgão colegiado que o regimento
indicar.
§ 2º O órgão colegiado julgará o recurso, a remessa
necessária ou o processo de competência originária se reconhecer interesse
público na assunção de competência.
§ 3º O acórdão proferido em assunção de competência vinculará
todos os juízes e órgãos fracionários, exceto se houver revisão de tese.
§ 4º Aplica-se o disposto neste artigo quando ocorrer
relevante questão de direito a respeito do qual seja conveniente a prevenção ou
a composição de divergência entre câmaras ou turmas do tribunal.
[4] O
atual ordenamento jurídico permite a jornada em escala de 12 por 36 horas. 12
horas de trabalho e 36 horas de descanso ininterruptos.
[5] É
nula cláusula de Instrumento Coletivo que suprime o uso obrigatório de
Equipamento de Proteção Individual.
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