“O Caso Lula” – Vários Autores
Resenha Livro – “O Caso Lula: A Luta Pela Afirmação dos
Direitos Fundamentais no Brasil” – Cristiano Zanin Martins, Valeska Teixeira
Zanin Martins, Rafael Valim (Org.) -
Editorial Astrea – ContraCorrente
“Uma crítica à jurisprudência burguesa, do ponto de vista do
socialismo científico, deve tomar como modelo a crítica à economia política
burguesa, como o fez Marx. Para isso ela deve, antes de tudo, adentrar no
território inimigo, ou seja, não deve deixar de lado as generalizações e as
abstrações que foram trabalhadas pelos juristas burgueses e que se originaram
de uma necessidade de sua própria época e de sua própria classe, mas, ao expor
a análise dessas categorias abstratas, revelar seu verdadeiro significado, em
outras palavras, demonstrar as condições históricas da forma jurídica.”
PASHUKANIS, Evguiéni B. “Teoria Geral do Direito e Marxismo”. Boitempo Ed. Pg.
80.
No
momento em que escrevemos esta Resenha a Operação Lava Jato segue o seu curso e
o momento político do Brasil está numa situação de indefinição e expectativa:
se há algo que se pode extrair das revelações do furo de reportagem da Rede
Globo de Televisão acerca de delação de empresários da JBS envolvendo
gravemente o presidente Temer é que a notícia da última quarta feira
(17.05.2017) foi uma intervenção orquestrada junto ao poder judiciário e especificamente à Operação Lava
Jato, responsável pela investigação. Foi assim também com relação à revelação
da interceptação telefônica envolvendo Lula e Dilma, ao atropelo da lei, em
conluio com a mídia, em particular com a Rede Globo, revelando uma relação de
cumplicidade entre promotores, Juizes e mídia no sentido de subverter mesmo a
ordem legal para incriminar o ex-presidente e impedir àquele momento uma
eventual nomeação de Lula à Casa Civil.
Que o
poder Judiciário se soma aos demais poderes como parte integrante do Estado,
sendo de uma forma geral aparato repressivo-ideológico a serviço da classe
dominante não deveria ser uma surpresa àqueles que compartilham a “visão social
de mundo” ou o pressuposto teórico-metodológico marxista, marxista-leninista ou
remotamente crítico. O problema é que especificamente o problema do direito e
do judiciário, em face da crise brasileira, vem se acentuando de tal maneira
que, parece-nos, a militância que se dedica a lutar e educar o povo e os
trabalhadores para os grandes embates envolvendo a nova etapa da luta de
classes que esxurge com a tomada do poder pelos golpistas[1]
precisa ela mesma de uma nova educação.
Este livro é um importante instrumento de esclarecimento
acerca do processo judicial envolvendo o ex-presidente Lula e as arbitrariedades
promovidas pela operação Lava Jato. Foram convidados diversos juristas da área
de Direito Constitucional, Direito Processual Penal e Direitos Humanos para dar
detalhamentos acerca do problema jurídico envolvendo a defesa de Lula.
Lula é digno de críticas pela esquerda em face de governos
que deixaram a desejar num sentido de ruptura anticapitalista: foi um governo
reformista quase sem reformas, em que pese algumas medidas democráticas
paliativas que num país como o Brasil estão longe de serem insignificante com
as políticas de redução da miséria, a começar pelo Bolsa Família.
Mais do que isso, e independente de suas qualidades ou
defeitos pessoais, Lula é produto de uma importante etapa de reorganização do movimento
operário e greves dos últimos 3 anos da década de 1970 que criou as bases para
um ascensão de diversos movimentos populares que fez esmorecer a ditadura
militar e deu condão para um processo contraditório de redemocratização: por um
lado através de leis como a de anistia em que houve o esquecimento das torturas
e bestialidades praticadas pelos torturadores – lei considerada constitucional recentemente
pelo STF; e por outro a consecução de uma constituição relativamente
garantista, que incorpora uma série de direitos, por exemplo o das crianças, do
meio ambiente e o da função social da propriedade, e que só poderia ser
resultado de um momento em que os movimentos sociais, pastorais, movimentos do
campo e partidos de esquerda estavam em reais condições de intervir na cena política.
Lula é o principal dirigente do PT e é uma peça estratégica
do tabuleiro político – um líder popular que na atual situação pode canalizar
um programa numa orientação diametralmente contrária à agenda de medidas de devastação
da economia nacional, retirada de direitos sociais e privatizações. As
arbitrariedades jurídicas que Lula sofre revelam algo: o aspecto jurídico aqui apenas
denuncia algo. Como a passagem supracitada do grande jurista soviético, este “algo”
não pode ser buscado na norma jurídica mas numa análise materialista, na
análise da história que situa a Operação Lava Jato em primeiro lugar como um
instrumento central da operação golpista que está em curso[2].
Infelizmente, mesmo setores da esquerda estão presas em seus
sensos comuns e a demagogia da luta contra a corrupção faz vítima nas fileiras
do movimento popular: não seria de se estranhar que “movimentos de massa” como
os da Ucrânia ou os que presentemente infestam a Venezuela, patrocinados por
provocadores a soldo do imperialismo, arrastassem bem intencionados lutadores[3].
Daí ser necessário alguns esclarecimentos básicos, mesmo jurídicos.
A Operação Lava Jato tem como inspiração a Operação Mãos Limpas
(década de 1990) de Itália. Seu procedimento na Europa foi em muito semelhante ao
que acontece no Brasil: criações de “forças tarefas” com mobilização aparatosa
e midiática o que em si fere de morte a presunção da inocência; uma perspectiva
de eliminação pelo descrédito de toda a classe política através das denúncias
de corrupção; e a popularidade do Procurador Di Pietro e Juiz Giovanni
Falconni. Desde a Itália, aliás, o Brasil importa institutos jurídicos como o
da delação premiada, além da prisão cautelar com a finalidade da delação e a execração
pública mancomunada com a mídia. O resultado na Itália da operação Mãos Limpas
foi um vácuo dentro da classe política criando condições para a ascensão do
semi- fascista Sílvio Berlusconi em
1992. Não há notícias de que a corrupção tenha diminuído na Itália desde então:
apenas de que ela tenha se tornado mais sofisticada e difícil de se combater. A
Itália continua sendo um dos países onde se detecta na população maior
sentimento de impunidade em face deste tipo de crime.
O grande problema da Corrupção é que este tem sido utilizado
como carro mote para o recrudescimento do aparato repressivo-ideológico do
estado que implicará num endurecimento do regime político como um todo: é o que
vem sendo ora proposto ora aplicado na prática como a relativização da
proibição do uso de provas ilícitas o que permitiria o uso de grampos ilegais
como forma de obtenção de prova atropelando a lei, ou mesmo a obtenção de uma
confissão por meios de coação ou tortura, como em tempos sombrios de ditadura;
violação do princípio do juiz natural com a ilícita prorrogação da competência
do processo de Lula para Curitiba e mesmo do princípio primário da
imparcialidade judiciária, quando até em entrevistas para imprensa, o Juiz
Moro, fora dos autos, vem demonstrando qual é o seu lado na lide.
Aliás, de tão parcial a posição do Judiciário, restou claro
o apoio ao ex-presidente no último dia 10.05.2017 com um ato com 50 mil pessoas em frente ao 4º Tribunal Regional Federal de Curitiba. Estamos aqui
diante de um momento importante: desde os rudimentos mais elementares do
marxismo, sabemos que a função ideológica mais primária dos tribunais é zelar
ao menos nas aparências pela imparcialidade. Quando se escancara a parcialidade
do Tribunal ao ponto de uma manifestação angariar milhares, além de transformar
Curitiba num palco de manifestação militar, com praças desfilando, denota-se que
há um desajuste, uma crise.
Todavia, a esquerda precisa avançar, e avançar aqui
significa entender que “a luta pela afirmação dos direitos fundamentais no
Brasil” não é um problema jurídico. Os autores suscitam a Lei Processual Penal
e criticam o modelo em que o Juiz que conduz a investigação seja o mesmo que
julgue. Fala-se mesmo em Processo Penal do Espetáculo (Guy Deborad) diante das
conhecidas relações promíscuas entre mídia e poder, podendo se suscitar a
abusiva condução coercitiva de Lula (sem nenhum amparo legal, desde que nunca
se recusou ao comparecimento perante o juízo do 4ª TRF) transmitida em todos os telejornais com o fito de
desmoralizar o adversário político. Suscita-se mesmo a tese do jurista Carl Schmitt
de Estado de Exceção quando numa inusitada decisão sobre eventual punição
disciplinar envolvendo o Juiz Sérgio Moro e a sua ilícita revelação das
interceptação telefônica, absolve-se o magistrado pois o desembargadores entenderam que a
Operação Lava Jato é uma “exceção” e não se enquadra no procedimento comum – e de
acordo com o jurista alemão, com alguma razão, quem decide o que é a exceção,
detém o poder[4].
Todavia, a tradição marxista avançou bastante nos
conhecimentos sobre o fenômeno jurídico e hoje mais do que nunca, precisamos estudar
com mais afinco e profundidade o direito: são juízes e promotores que estão
conduzindo junto às frações subordinadas ao imperialismo o atual rumo da
história brasileira e do golpe de estado no país. Para além de duas divisas –
por um lado o reformismo e o socialismo jurídico que irá buscar soluções no
sistema jurídico através de reformas, o que surge na maioria dos artigos, e por
outro lado, pela simples negativa com a ideia da representação em fetiche do
estado como uma ideologia – é tempo de se voltar ao velho Marx e Pashukanis,
dois autores que deram uma concretude ao direito, situando-o não dentro de uma
velha escolástica de “estrutura” e “superestrutura”, mas no próprio DNA do
capitalismo.
O Direito é um fenômeno especificamente capitalista. A forma
jurídica deriva da forma mercantil. A compra e venda da força de trabalho
esteve lastreada pelo liame jurídico dos contratos e de seu pressuposto,
pessoas dotadas de uma capacidade jurídica que referimos como Subjetividade Jurídica.
Foi necessário que rompessem com relação de dependência e domínio pessoal
que marca o modo de produção escravista e feudal e se conformassem no mercado
como sujeitos de direitos aptos a livre negociarem a força de trabalho como mercadoria para sua
compra e venda.
A existência do Direito é sistema de uma sociabilidade
voltada à acumulação lastreada em exploração do trabalho assalariado e
atravessado por contradições de classe.
Em Pashukanis, o Direito não é só ideologia e fetiche,
portanto, mas também é um fenômeno real.
Diria o grande jurista soviético que do mesmo modo que a
riqueza da sociedade capitalista assume a forma de uma enorme coleção de
mercadorias, também a sociedade se apresenta como uma cadeia ininterrupta de
relações jurídicas.
Para além da contraposição estrutura e superestrutura, o
direito é dialeticamente considerado forma do processo real de troca – o direito
está no plano da troca, ou em termos marxianos, é parte da sociedade civil.
A especificidade da relação jurídica gira em torno da
relação social engendrada entre proprietários de mercadorias. A crítica à
jurisprudência burguesa do ponto de vista do socialismo científico deve tomar
como modelo a à crítica da economia política burguesa.
Nestes termos, há algumas consequências: a luta pelo fim do
capitalismo é a luta pelo fim do direito; não há espaço para ilusões acerca de
promoção de justiça ou combate de corrupção através do direito burguês, a não
ser num âmbito limitado, contraditório e que deve estar em primeiro lugar livre
de ilusões jurídicas. O direito não é o terreno dos trabalhadores e do povo: deve ser
utilizado como um instrumento de defesa, no âmbito da tática e no limite como forma para revelar as
suas próprias contradições quanto ao seu particular e específico caráter ideológico.
Ganhar a disputa ideológica acerca da corrupção será uma
árdua batalha de entendimento do que é o Estado e do que é o Direito. De outro
modo, sempre ter em mente que não se trata de uma discussão moral mas de um
problema de base, ou do que Althusser chama de determinação.
Ademais, a curta experiência da Comuna de Paris nos trás sim algumas lições que nos servem como referência mesmo para enfrentar por fora do âmbito da moral o debate sobre corrupção: naquela revolução, cada representante do povo recebe a remuneração média de um trabalhador, nenhum centavo a mais; controle popular sobre os mandatos e revogabilidade a qualquer instante dos cargos eletivos; eletividade do cargo de juízes; fim do trabalho noturno; separação da religião do estado e fim do ensino religioso. O sistema igualitário com uma perspectiva de fim de sociedade cingida em classes sociais.
Ademais, a curta experiência da Comuna de Paris nos trás sim algumas lições que nos servem como referência mesmo para enfrentar por fora do âmbito da moral o debate sobre corrupção: naquela revolução, cada representante do povo recebe a remuneração média de um trabalhador, nenhum centavo a mais; controle popular sobre os mandatos e revogabilidade a qualquer instante dos cargos eletivos; eletividade do cargo de juízes; fim do trabalho noturno; separação da religião do estado e fim do ensino religioso. O sistema igualitário com uma perspectiva de fim de sociedade cingida em classes sociais.
Foram apenas 72 dias e esta curta experiência é um lapso que
dá conta da originalidade de uma nova forma de fazer política para além das
fronteiras do direito burguês e seu corolário, a sociedade pautada pela
produção de mercadoria e pela lei da acumulação.
[1] Setores lastreados por afinidades junto ao
imperialismo que no presente momento identificamos mas ainda não sabemos dosar
com precisão. Cerca de 25% do PIB brasileiro está vinculado à moeda
internacional. É um bom ponto de partida para se perceber a origem de uma base
de deslocamento da burguesia que irá romper com o governo Dilma e assumir um
posicionamento mais radicalmente associado aos interesses externos.
[2] Muito errado portanto o pensamento de que o Golpe de
Estado se exauriu com a retirada de Dilma R. da presidência. Mais do que isto,
a palavra de ordem que deve unificar a frente única (que não é um programa político)
é a luta contra o golpe, pela anulação de todas medidas tomadas pelos
usurpadores golpistas e pela restituição do mandato. Só este pode ser o sentido
de “Fora Temer!”.
[3] No Brasil CST/PSOL e PSTU sempre apoiam o imperialismo
e seus agentes provocadores. Quem leva esta político ao extremo é o grupelho
universitário MNN.
[4] LEI Nº 9.296, DE 24 DE JULHO DE
1996. Art. 10. Constitui crime realizar
interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou
quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não
autorizados em lei.
Pena: reclusão, de dois a quatro
anos, e multa.
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