“Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá” – Lima Barreto
Resenha Livro - “Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá” – Lima
Barreto – Ed. Brasiliense São Paulo 1956
“ ‘Iria subir, iria
remontar os ares, transmontar cordilheiras, alçar-se longe do solo, viver algum
tempo quase fora da fatalidade da terra, inebriar-se de azul e de sonhos
celestes, nas altas camadas rarefeitas...
A experiência seria de
manhã e, à noite toda, não dormiu como se, no dia seguinte, fosse se encontrar
com o amor que sonhou e, para realizá-lo agora, tinha aguardado muitos anos de
angústia e de esperança.
Veio a aurora e ele a
viu, pela primeira vez, com um interessado olhar de paixão e encantamento. Deu
a última demão, acionou manivelas, fez funcionar o motor, tomou o lugar próprio...Esperou...A
máquina não subiu’.
Eis o que havia na folha amarelecida de almaço encontrada
por mim, no ano passado, entre os papeis que Gonzaga de Sá me deixou.
Não compreendi imediatamente a significação dessa fantasia;
mas referindo a este e aquele aspecto de sua vida entendi bem que ele queria
dizer que o Acaso, mais do que qualquer Deus, é capaz de perturbar os mais
sábios planos que tenhamos traçado e zombar da nossa ciência e da nossa
vontade. E o Acaso não tem predileções”.
*
A
passagem supracitada sugere alguns traços mais peculiares deste pouco conhecido
romance (em termos de biografia) do misantropo Gonzaga de Sá, comparado por
alguns críticos ao Conselheiro Aires de Machado de Assis.
Gonzaga de Sá é personagem que antes de tudo dignifica os
baixos estratos sociais e singulariza uma narrativa cujas láureas não se
destinam a chefes de estado, heróis de guerra e/ou aos donos do poder, como é o
habitual, mas ao simples amanuense de uma certa repartição denominada “secretaria
dos cultos”. Esta é uma das grandes
inovações literárias do escritor Lima Barreto: uma nova centralidade ou mesmo
dignidade a personagens do subúrbio, desde o funcionário público com baixos
estipêndios até a paisagem privilegiada de novos horizontes da cidade carioca
para além da Rua do Ouvidor, dos Teatros de Gala e do Parque Botânico: o
próprio Gonzaga mostra-se o conhecedor incomum da cidade e de sua história,
igualmente deslocando aquele foco mesmo no que tange aos ambientes e paisagens,
desde os bondes, até os subúrbios: na periferia da cidade, contempla-se os
transeuntes trabalhadores, mulheres de vida fácil estrangeiras e as feições de
pequeno burgueses, contemplando-se um universo popular e de certa forma
antecedendo os romances regionalistas do modernismo em sua segunda fase.
É assim em “Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá” em que o narrador Augusto Machado elege um
amanuense como alguém digno de ser biografado: um personagem com cogitações
filosóficas e uma certa empatia pelos fracos ao ponto de sugerir que seria
melhor que morressem de molde a suprimir a dor em face da sociedade que
engendra todo tipo de opressão e injustiças – uma empatia relativa, já que a
compaixão pela dor é interpretada também por suposta “burrice” dos mais
humildes em acatar sua situação e particularmente os abusos dos ricos e
poderosos da República Velha; é assim também nos contos ora em “O único
assassinato de Cazuza” em que o protagonista é um “derrotado pela vida”; ora em
outro conto em que o foco narrativo se
dá pela mulher casada antes obediente ao pai e agora obediente ao marido; e de
maneira geral, ao subúrbio em detrimento das zonas nobres da cidade do Rio de
Janeiro.
Seria possível admitir que a literatura nacional de uma
certa forma já iniciara a contemplar os marginalizados a partir da literatura
do tipo naturalista, a se lembrar do “Cortiço” de Aluísio Azevedo ou mesmo
ainda no século XIX a abordar o que hoje se fala em minoria, quando se
referimos ao amor homossexual em “O Bom Crioulo” do escritor cearense Adolfo
Caminha, para citar dois exemplos. Mas há entre estes escritores e Lima
Barretos pelo menos duas diferenças substanciais: (i) na literatura do tipo
naturalista, o procedimento literário torna os objetos da narrativa como “O
Cortiço” ou “O Mulato” (e o problema racial na provinciana maranhão do séc. XIX)
a serem descritos com a objetividade e temperos do mesmo procedimento das
ciências naturais. Isto implica transformar o cortiço e particularmente toda
sorte de suas personagens antes em objeto do que em agentes, em sujeitos e
protagonistas de sua própria história. Em Lima Barreto, em outro contexto literário,
o do 1900’s literário, um eventual Cortiço seria menos um mosaico de forças
regidas por impulsos deterministas do meio social, e mais um subúrbio com
figuras concretas, personagens uti sininguli, dotados de especificidades e
humanidade particular; (ii) em conexão com (i), Lima Barreto não estava
motivado por um conjunto bastante específico de pensadores que informam a
literatura naturalista, como o positivismo que engendra a ideia de que o conhecimento
poderia ser deduzido de preceitos científicos; o darwinismo, o evolucionismo e
o determinismo social, havendo pouco espaço para o livre arbítrio dentre os
personagens. O comportamento humano estaria condicionado pelos fatores
hereditários, pelos fatores do ambiente físico e social.
Sabe-se que quando estudou sem concluir a escola Politécnica
Lima Barreto teve contato com a filosofia positivista. Este contato serviu
antes para aguçar no jovem leitor/escritor um interesse precoce por um estudo
autodidata de filosofia. Consta que Lima Barreto leu Comte, Spencer, Kant e em “Gonzaga
de Sá” vemos citações de Dostoievsky, Tolstói, Rousseau e Schopenhauer. Segundo
o biógrafo Francisco de Assis Barbosa, foi entretanto Descartes e sua filosofia
ancorada no princípio da dúvida a que mais motivou Lima Barreto – se por um
lado sua literatura se destaca por descortinar o fundo da alma do povo carioca,
por outro foi através da crítica avassaladora de quase todos os aspectos da
vida social do Brasil da Velha República que Lima Barreto se torna
provavelmente o mais importante intérprete do país dos 1900 literários. Caiu-lhe
bem um espírito crítico que adveio em termos filosóficos de uma tendência ao
ceticismo e à crítica.
O interessante é que os dois aspectos – a centralidade do subúrbio
e dos tipos populares e a cerrada crítica social em face dos diplomados com conhecimento
rasteiro; dos tipos medíocres que granjeiam projeção social e literária com
base em bajulação e nepotismo; e do racismo que grassa a vida social
inviabilizando a ascensão de vivas inteligências que se embotam no mar de
imbecilidade reinante, tal qual Isaías Caminha – estes dois polos estão no que
podemos colocar já como o ponto de partida da produção literária de Lima
Barreto. “Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá” foi iniciado antes de seu livro
de estreia e no entanto foi apenas o 4º livro publicado por Lima Barreto. O
autor preferiu lançar de início o “Recordações do Escrivão Isaías Caminhas”
(1909) e em carta a Gonzaga Duque revela que optava aparecer com “escândalo”:
certamente era o caso desta espécie de memória amarga de um mulato que busca
ascender socialmente no Rio de Janeiro e lá se depara com todo o tipo de
vícios, pessoais e institucionais, que engendram, desde a crítica, uma
narrativa insurgente em face do Brasil daquele contexto. Desde a crítica se
constata as promíscuas relações entre os jornais e os poderes, a mediocridade
do mundo dito “letrado”, o baixo nível (num sentido literal) dos políticos, a
ser retratado em tom de galhofa até sessão parlamentar em que quando muito um
deputado presta atenção nas pernas de uma bela moça em detrimento do discurso
de seu colega. As críticas se estendem desde os críticos literários que são
ignorantes quanto à arte e bajulam em troca de interesses pessoais até o
racismo vivenciado na pele do protagonista nos primeiros momentos em que pisa
no RJ – passagens que sugerem teor autobiográfico da história.
Como iniciamos, “Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá” nas
palavras de Lima Barreto é uma narrativa “cerebrina”, com passagens de
filosofia a partir das cogitações de Sá e diálogo entre o narrador e seu
biografado. Mas ainda se trata de um momento de maturação do processo criativo
de Lima Barreto: não tem a mesma força imaginativa de um país que é a
caricatura do Brasil, “Bruzundangas”; parece ser uma história um pouco sem
vida, bucólica, não à altura de “Policarpo Quaresma” e “Clara dos Anjos” em que
o leitor é atraído também em razão do enredo vivo e dinâmico. Estamos diante
dos primeiros escritos de Lima Barreto e aqui temos contato com uma personagem
que nos leva a conhecer algo sobre concepções de filosofia que em Lima Barreto
tem um tom ora de pessimismo ora amargura, mas que nem por isso se extrapola no
desespero. Antes toma um sentido oposto, uma espécie de humor triste que lembra
algumas passagens do velho Machado de Assis.
“É verdade que sempre o conheci triste; mas de uma tristeza,
por assim dizer, filosófica, geral, essa tristeza de sentir profundamente a
mesquinhez da nossa condição humana, em luta sempre com o imenso dos nossos
desmarcados sonhos e desejos. Porém, agora, a sua tristeza era mais atual, mais
terra-a-terra. Dir-se-ia que a presença do Aleixo Manuel, o afilhado, tinha
levantado do fundo da pessoa do meu amigo lembranças dolorosas que sepultara para
sempre; lembranças essas que eram o seu segredo e das quais nunca me falou e
não encontrei o mínimo indício para descobri-las nos papeis que ele me legou,
por testamento, juntamente com uma centena de livros. Lembro-me, ao escrever
estas linhas, que um dia ele me dissera:
- Já tiveste algum amor?
- Nunca.
- Olha que falo de amor! Hein?
- Compreendo.
- É preciso tê-lo.... Tenho te dito sempre que os antigos
afirmavam que Vênus é uma deusa vingativa... Não perdoa e tu sofrerás se não lhe
prestares culto...”.
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