“As Vítimas Algozes” – Joaquim Manuel de Macedo
Resenha Livro - “As Vítimas
Algozes” – Joaquim Manuel de Macedo -
Poeteiro Editor Digital – São Paulo – 2014
“Se estas observações
desanimassem a caridade dos senhores para com os crioulos que em casa lhes
nascem e se criam, fariam morrer uma virtude agravada ainda mais o perigo que
correm os senhores, e os sofrimentos que experimentam os escravos.
Os crioulos são muito mais
inteligentes e maliciosos que os negros da África; e, desprezados e flagelados
pelo trato áspero da escravidão, que faz do homem instrumento material do
trabalho, e irmão da besta de carga, tornam-se inimigos ferozes; e se chega a
oportunidade da vingança, ostentam na ferocidade verdadeiro e delirante luxo de
malvadeza.
O escravo africano mata o
senhor, e se afasta do cadáver: o escravo crioulo antes de matar, atormenta e
ri das agonias do senhor, e depois de matar insulta e esquarteja o cadáver”
O
escritor romântico Joaquim Manuel de Macedo é provavelmente lembrado pelo
público por seu livro de estreia, “A Moreninha”: romance bastante popular já em
seu tempo e que retrata a juventude citadina do Rio de Janeiro de meados do
Séc. XIX, inaugurando um estilo de romance folhetinesco que aborda desde a
paisagem até os usos e costumes nacionais. O estilo literário é o romantismo,
dentro do qual, neste mesma seara, observar-se-ão posteriormente outros romances que retratam
aspectos da vida burguesa do Brasil Imperial: de Bernardo Guimarães, de José de
Alencar e dos romances da primeira fase da produção (não realista) de Machado
de Assis.
"Vítimas
Algozes” (1869) pode ser uma leitura chocante para o leitor de 2016, sendo
essencial cotejar a leitura do romance com a evolução histórica do processo
abolicionista no Brasil (desde uma interpretação crítica) e cuidando sempre em
não realizar uma leitura associada ao anacronismo, que não diz respeito apenas
à escrita da história, mas à sua leitura – e este romance, como veremos, é um
romance que tem algo de “manifesto” (apologia) e se insere num embate político
a favor da abolição da escravatura.
Cuidemos destas duas
advertências.
Anacronismo.
O Pecado do Anacronismo do qual costumam se referir os
historiadores envolve a leitura dos desejos pessoais do presente para o passado.
Anacronismo é uma palavra que advém do grego e significa em termos literais “contra
o tempo”, ou seja, erro de cronologia, consistindo em atribuir a uma época
ideias ou conceitos que não lhe são afeitos – em geral o anacronismo costuma surgir quando atribuímos ao passado cogitações associadas ao presente. Este livro de
1869 é um livro todo ele dedicado à defesa da abolição: todavia (e curiosamente)
sua leitura choca e é mesmo ofensiva por haver claros indicativos racistas.
“Vítimas algozes” são os próprios africanos escravos: Vítima
pela prepotência que a escravidão impõe ao africano. Algoz pelo dano praticado,
pela vingança ou mesmo pela imoralidade que se impõe do escravo ao seu dono. No que concerne a uma primeira advertência,
deve-se ter em mente que o livro foi escrito quando sob o país ainda vigia o
modo de produção escravista, ainda que de forma tardia em face do mundo. Em
1869, apenas no Brasil, Cuba e Porto Rico vigia a escravidão. O Brasil foi
resistente também a extinguir o tráfico de escravos, extinto em 1850 sob a
pressão das bombas navais inglesas. Apenas estes elementos já sugerem que
estamos diante de uma sociedade sob outro modo de produção – escravagista,
baseado ainda no sistema plantation, eminentemente agrário, onde grassa o
analfabetismo e a total ausência de direitos democráticos a uma residual
população de homens livres e pobres – o que diz respeito à outra visão social
de mundo dominante, distinta da visão social de mundo decorrente da erigida
sob o modo de produção capitalista, baseada na relação do trabalho assalariado,
com vasto desenvolvimento de forças produtivas (2016), em que pese a permanência
histórica da discriminação racial.
A outra advertência específica ao leitor de “As Vítimas
Algozes” diz respeito especificamente ao pacto gradual e controlado pelas
elites políticas brasileiras sobre o qual deu-se a abolição da escravatura
brasileira. O livro de Macedo é uma defesa da abolição, mas é preciso ponderar:
qual ou que tipo de abolição? Trata-se aqui por suposto de uma abolição por “via
prussiana”, controlada desde as elites, e o livro é parte de um setor já
esclarecido da classe dominante que via os inconvenientes ao modo de produção
escravista. Macedo defende que os proprietário sejam devidamente indenizados
com a abolição, além de propugnar um processo de mudanças “gradual”. E assim o
foi: em 1871 foi aprovada a lei do Ventre Livre que tornava emancipado os
escravos nascidos a partir da vigência da norma jurídica. Em 1885 foi aprovada
a lei dos Sexagenários que concede liberdade aos escravos com mais de 65 anos.
Somente em 13 de maio de 1888 através da Lei Áurea (29 anos após o nosso
romance) foi concedida a liberdade a todos os escravos.
Finalidades e Métodos da Obra
Joaquim Manuel de Macedo assim sintetiza a finalidade de sua
obra:
“Trabalhar no sentido de tornar bem manifesta e clara a
torpeza da escravidão, sua influência malvada, suas deformidades morais e
cogênitas, seus instintos ruins, seu horror, seus perigos, sua ação infernal é
também contribuir para condená-la e para fazer mais suave e simpática a ideia
da emancipação”.
Todavia, uma interpretação crítica da obra deve antes de tudo
buscar observar o que há de oculto por detrás do instituto da escravidão – e que
é revelado apenas como alguns “lapsos” ao longo das três tragédias narradas em “Vítimas
Algozes”. O escravo em primeiro lugar serve a seu dono como força de trabalho e
é do trabalho que se extrai o valor, que se extrai a riqueza, a opulência desde
o Senhor de Engenho do Açúcar, até o os garimpeiros e mineradores, passando
pelos produtores do Algodão e do Café. São muitos os argumentos levantados
contra a escravidão: “o escravo é natural e logicamente o maior inimigo do
senhor” é a toada das histórias. Mas a seguinte passagem parece ser o núcleo
que incide sobre a conveniência da abolição desde o ponto de vista das classes
dominantes (da qual o médico e professor Joaquim Manuel de Macedo era parte,
tendo sido mesmo professor dos filhos da Princesa Isabel):
“(O Escravo) Trabalhando maquinalmente, sem ideia de
melhoramentos, de progresso e de aperfeiçoamento do sistema de trabalho, sem os
incentivos de interesse próprio e com desgosto e má vontade;
Furtando nas roças, nas fábricas e nos armazéns produtos que
vão vender para embebedar-se, o que ainda diminui as forças, quando não
compromete a saúde e rouba ao trabalho dias passados na enfermaria;
Suicidando-se subitamente, ou aos poucos, quando por
nostalgia, enfezação ou desespero morno e profundo contraem e alimentam
enfermidades que acabam por matá-los;
Fugindo à escravidão por dias, semanas, meses ou para sempre,
e nos quilombos, seduzindo outros escravos para fugir como eles;
Não poupando gado e os animais, não zelando os instrumentos
rurais, não compreendendo a necessidade de cuidados, não tendo nem podendo ter
amor à propriedade do senhor, não se ocupando das perdas ou os lucros do
senhor;
Fazendo perdurar a rotina e o trabalho materializado, e por
sua indiferença, estupidez e desmazelo, contrariando, anulando e desacreditando
processos, invenções, máquinas que economizam
tempo e braços, e que explorados pela inteligente execução do homem
livre e interessado, oferecem resultados que aumentam a riqueza”.
Aqui devemos não ser anacrônicos. Havia possibilidade de em
1869 (dois anos após o lançamento do 1º Volume do Capital de Marx) este nosso
escritor romântico pudesse aferir uma crítica da economia política do instituto
da escravidão no Brasil? Em termos históricos, tal análise surgiria apenas
muitos anos depois, com “Evolução Política do Brasil” e “Formação do Brasil
Contemporâneo” de Caio Prado Jr. Mas o que observamos é que em “Vítimas Algozes”
não se cogita jamais a seguinte questão: quem lucra com o trabalho escravo? Quem
se beneficia em termos pecuniários da escravidão do negro que é “vítima e algoz” ? A crítica que
Macedo faz ao final de sua história em face da escravidão é do tipo idealista,
sempre contemporiza com o elemento branco, apenas colocando em questão um suposto
direito de um homem ser senhor do outro homem.
Há sim outras críticas reiteradas e específicas em cada
história em face do elemento Branco, mas, em consonância com o estilo literário
romântico, são críticas que não raro envolvem um tom moralista. Assim a
primeira história conta o caso da condição específica de um Criolo (Simeão)
espécie de escravo que recebe os cuidados especiais da casa grande mas
ressente-se da sua condição de escravo pelos benefícios especiais. Há a crítica
da “Venda”, local da venda de bebida, donde à noite se negocia mercadoria com
quilombos. Fonte de vícios e ponto de encontro para o planejamento de crimes.
As críticas envolvem nesta história desde uma negligente confiança ao escravo-criolo
até uma promessa não concedida de liberdade ao criolo: A liberdade não
se promete, se dá ao escravo. Este foi o elemento detonador da vingança de
Simeão que além do ódio viu sua esperança de alforria frustrada. O Criolo odeia por instinto e com reflexão. O
Escravo odeia apenas por instinto.
De maneira geral as histórias
seguem o esquema em que o escravo, por que é escravo, odeia o senhor, e
torna-se traiçoeiro, perverso, e “ingrato” – e esta reiteração acerca da
suposta ingratidão de um escravo em face do senhor revela como fica silente na
história a posição social do negro na sociedade escravagista da qual o africano
é a base sobre a qual se afere a opulência e a riqueza dos brancos, das
senhoras- moças e moços.
Tece-se crítica ao fazendeiro que se rende ao sensualismo de
uma negra e com a devassidão sexual causa a desagregação familiar,
envolvendo fatalidade de sua “nobre” senhora: o fato do fazendeiro ser visto de
dia procurando pela senzala a negra sensual é ato de escândalo e
desmoralização. Joaquim Manuel de Macedo, que também é médico, relata que
escravos associados a atividades como “cadombe” têm amplo domínio de plantas,
raízes e frutas, fazendo ora o dono da fazenda dormir, ora causando a morte dos
animais, ora, dentro de um cálculo maligno, providenciando a morte paulatina de
cada membro de família, com a fácil participação de uma mucama que servia o
café, chás ou frutas misturadas ao veneno.
São três histórias que têm portanto a finalidade do
convencimento acerca dos inconvenientes da escravidão, denunciando práticas não
apropriadas, como a criação das senhoras-moças (sinhás) junto de mucamas negras
(responsáveis estas por depravação sexual, por enviar cartas de amor e por desvirtuar
a nobreza pueril de “Cândida”, cujo nome remetia à pureza e o triste fim segue
a linha geral da obra, de proselitismo contra a escravidão advertindo sobre seus riscos).
Uma questão que poderia ser suscitada aqui é: os fins e os
meios. São muitos os lapsos de racismo que advêm do autor. Em que pese colocar
na conta da escravidão as maldades dos escravos, o leitor, mesmo precavido de
uma leitura anacrônica, não deve sair convencido de que estamos diante de uma
obra eivada de racismo – há a impressão de que o negro ou mesmo o pobre[1]
têm menores qualidades. Vejamos a descrição do vilão Pai-Raiol:
“Pai Raiol passara nesse dia ao seu quinto senhor.
Era um negro africano de trinta a trinta e seis anos de
idade, um dos últimos importados da África pelo tráfico nefando: homem de baixa
estatura, tinha o corpo exageradamente maior que as pernas; a cabeça grande, os
olhos vesgos, mas brilhantes e impossíveis de resistir à fixidade do seu olhar
pela impressão incômoda do estrabismo duplo, e por não sabermos que fluição de
magnetismo infernal; quanto ao mais, mostrava os caracteres físicos da sua
raça; trazia porém nas faces cicatrizes vultuosas de sajaduras recebidas na
infância: um golpe de azorrague lhe partira pelo meio o lábio superior, e a
fenda resultante deixara a descoberto dois dentes brancos, alvejantes,
pontudos, dentes caninos que pareciam ostentar-se ameaçadores; sua boca era
pois como mal fechada por três lábios; dois superiores e completamente
separados, e um inferior e perfeito: o rir aliás muito raro desse negro era
hediondo por semelhante deformidade; a barba retorcida e pobre que ele tinha
mal crescida no queixo, como erva mesquinha em solo árido, em vez de ornar
afeiava-lhe o semblante; uma de suas orelhas perdera o terço da concha na parte
superior cortada irregularmente em violência de castigo ou em furor de
desordem; e finalmente braços longos prendendo-se a mãos descomunais que
desciam à altura dos joelhos completavam-lhe o aspecto repugnante da figura
mais antipático”.
Nenhum personagem branco mereceu tão lamentável retrato. E o
aspecto deste e de outros personagens escravos em muito remetem a animais e não
a seres humanos, em que pese o propósito abolicionista do autor. Então estamos
diante de uma obra que adotava um discurso que rebaixa o negro a coisa (ou
pior) mas com a finalidade de extinguir a escravidão. É possível discutir
àquela época e nos dias de hoje o problema sob o ângulo de meios e fins? Os
fins nobres da obra justificam o fato do autor ao pintar o negro como algozes,
transformar ora o Pai Raiol ora a Negra Lucinda em odiáveis e execráveis seres
humanos? Esta problemática enfrentada pelo marxismo re-coloca a questão em
outros termos. O marxismo opera com a dialética, não uma dialética idealista,
mas o materialismo dialético: devendo-se prevenir que o materialismo em Marx
não se expressa numa noção vulgar de coisa ou objeto mas diz respeito à
relações sociais historicamente determinadas. Nestes termos, não se trata de
pensar em fins e meios de forma dissociada: existe uma relação de múltipla
determinação em que os fins operam e determinam os meios e os meios operam e
determinam os fins de molde que a questão deve ser encarada em sua totalidade.
Mas desde já se pode falar que a solução de compromisso adotada pela classe
proprietária brasileira, a via de concessão da liberdade dos escravos sob os
auspícios e direção da classe dominante, de forma paulatina – como ocorreu no
Brasil – só poderia ter como resultado uma brutal exclusão social do negro a posterior
e um racismo estrutural ainda vigente. O que dizemos aqui é que os meios
adotados definem os fins atingidos e que uma via de luta independente dos
escravos tal qual a que ocorreu no Haiti – ainda considerando a dimensão
territorial Brasileira – teria colocado a situação do povo negro trabalhador em
outros termos, certamente deslocando o racismo sistêmico que permanece no país –
e provavelmente tornaria a obra numa peça ainda mais racista aos nossos olhos.
A solução que “As Vítimas Algozes” apresenta tem como pior defeito não apontar
para o elemento Branco como beneficiário da extração do valor do trabalho escravo
sobre o qual construiu-se séculos de história. E este aspecto nos orienta no
seguinte sentido: problemas de fundo exigem saídas revolucionárias. A solução
de compromisso compromete a finalidade almejada.
[1] Trata-se
das referências de quando a personagem Cândida se vê perdida num Cortiço,
descrito de forma pejorativa.
Boa resenha literária, embora literatura nunca foi o meu forte, mas é sempre bom aprender coisas novas.
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