terça-feira, 11 de outubro de 2016

“Tentação” – Adolfo Caminha

“Tentação” – Adolfo Caminha



Resenha livro - “Tentação” – Adolfo Caminha – Poeteiro Editor Digital – São Paulo – 2014 

“Adelaide não dormiu, pensando na brusca resolução do marido e em mil tantas coisas fúteis que aos olhos de uma mulher inexperiente como ela, e como ela supersticiosa, adquirem estranhas proporções. Mas no meio de todas essas coisas erguia-se o vulto de um homem, que não era o Holanda, que absolutamente não se parecia com aquele que ali estava a seu lado, na cama, e de novo um extraordinário medo apoderava-se dela, um pavor inexplicável, uma covardia criminosa, que a obrigava a abrir e fechar os olhos intermitentemente.... Era o vulto do secretário...a “tentação” (...).”
                
Os autores mais citados dentre os representantes da escola do naturalismo literário são provavelmente Aluísio de Azevedo e Raul Pompéia[1]. Do primeiro, as mais famosas obras são “Casa de Pensão” (1884), “O Cortiço” (1890) e “O Mulato” (1881), este último romance contando com uma repercussão grave em sua província natal, Maranhão, exatamente por denunciar o preconceito racial de um personagem mestiço, com qualidades intelectuais, que estudou na Europa, mas que é filho de escravo e não é tolerado por aquela sociedade cingida pelo racismo que informa o instituto da escravidão. A repercussão negativa do “Mulato” obrigou Azevedo a mudar-se para o Rio de Janeiro e certamente teria causado graves impactos no autor: num romance de 1887 denominado “O Homem”, assim Aluízio de Azevedo prefacia a obra:

“Quem não amar a verdade na arte e não tiver a respeito do Naturalismo ideias bem claras e seguras, fará, deixando de ler este livro, um grande obséquio a quem o escreveu”.

O escritor cearense Adolfo Caminha também está inteiramente inserido no contexto do Naturalismo literário e merece um reconhecimento maior. De antemão, merece a lembrança pela obra “Bom Crioulo” (1895) que de forma pioneira aborda a questão do amor homossexual.

Pode-se falar que existem pontos de contato e diferenças entre o realismo e o naturalismo literários. Ambos por exemplo servem-se de uma certa objetividade no estilo e na forma narrativa, evitando o discurso rebarbativo, o subjetivismo, a retórica e a adjetivação que informam os romances típicos das fases do romantismo. Há portanto menos espaço para o adjetivo e maior espaço para o verbo, períodos mais curtos e diretos e uma maior intencionalidade de retratar de forma fiel e objetiva personagens e paisagens. Pode-se também falar que o realismo e o naturalismo estão envolvidos com a crítica social e de costumes. Todavia, o procedimento da crítica dá-se de formas distintas. Para explicarmos as diferenças, podemos resgatar como exemplos o romance supracitado de Adolfo Caminha e talvez o mais ácido e mordaz romance realista de Eça de Queiróz, “O Crime do Padre Amaro” (1875).

A crítica social do tipo realista é do tipo apriorística: o autor elege uma pauta a partir da qual o romance se desenvolve com uma intencionalidade clara de se criticar para mesmo reformar e transformar a realidade. Foi este o caso do romance de Eça e do contexto de uma geração de literatos portugueses que se insurgiam contra o atraso cultural de Portugal: a hipocrisia por de trás de relação mesquinha para com a mulher e a carolice junto à Igreja por senhoras beatas mais interessadas em intrigas do que na religião; o egoísmo humano que se sobressai ao extremo na figura de um Padre que horroriza mesmo um leitor descrente e agnóstico; a falência total da Igreja é o prenúncio em Eça de uma ambição de modernização de uma Portugal arcaica que precisa de uma renovação em face de países mais ilustrados como Inglaterra e França.

A crítica do tipo naturalista não contém este elemento apriorístico de forma acentuado. É o que vemos de forma muito clara no “Bom Crioulo”. O autor trata de um tema candente e polêmico (obviamente ainda mais polêmico no século XIX) com a mesma frieza de um cientista que analisa o reagente químico dentro de seu laboratório. Não toma, como um naturalista, partido favorável à possibilidade do amor homossexual ou, o que seria mais fácil, se coloca como um moralista condenando a priori a relação entre os marujos Amaro e Aleixo. O que há no naturalismo é uma maior equidistância entre o autor e o personagem e a história retratada. Tal fato tem duas implicações. 

A primeira é que a própria realidade é contraditória e as histórias naturalistas ao retratarem ora “O Ateneu” em Raul Pompeia com a realidade de escolas primárias em regime disciplinar “militar” para crianças, ora o racismo provinciano de “O Mulato”, ora os impactos de provincianos do maranhão na corte em “Tentação”, as histórias naturalistas naturalmente (com o perdão da expressão!) exsurgem as próprias contradições da realidade. Por isso fazem críticas sociais. E mais! As histórias naturalistas são belos retratos da história: o certo comprometimento daqueles artistas com a observação fiel da objetividade envolvem verdadeiros documentos históricos sobre costumes, hábitos, o jornalismo literário, a política, a arte e vários aspectos da vida social e cultural dos contextos da narrativa.

Tentação

A história de “Tentação” portanto está inserida no modelo do naturalismo literário. O enredo é relativamente simples. O bacharel Evaristo e sua jovem esposa Adelaide residem na longínqua província maranhense de Coqueiros e recebem uma epístola de um colega de liceu do marido convidando-o para trabalhar no Rio de Janeiro – sede da corte Imperial – para um trabalho no grande Banco Industrial. O convite empolga o bacharel que em poucos dias embarca para a corte e se instala na casa de Luís Furtado e sua esposa, D. Branca.

O desenvolvimento do Romance dá-se com as mudanças de vida dos provincianos num ambiente repleto de novidade: a própria noção que Evaristo tinha da capital do II Império era de uma espécie de Paris, donde estão os literatos, os parlamentares e o dinheiro:

“Figurava a Corte do Império uma terra legendária de aventuras e de muito dinheiro, onde, com algum trabalho, qualquer homenzinho podia fazer fortuna em poucos anos, ou, quando mais não fosse, galgar posições, eminências cobiçadas, conquistar nome – celebrizar-se. Demorava os jornais do Rio; lia [Evaristo] tudo quanto na grande capital se publicava em prosa e verso; não era estranho ao movimento literário, ao saltos-mortais da política, às artes; interessava-se, como republicano, pela saúde do monarca e pelos escândalos mais ou menos ruidosos da Rua do Ouvidor; enfim, o Rio de Janeiro era, a seus olhos estáticos, a quintessência da civilização – Paris em ponto pequeno”.

O conflito central – que dá nome ao romance – inicia-se quando se descobre-se as intenções ocultas do coração de Luís Furtado. O amigo de Evaristo é um homem garboso e já habituado às extravagâncias extraconjugais correntes da vida da corte. Luís passa a se interessar por Adelaide, uma moça de origem humilde e muito diferente das elegantes e pomposas mulheres até então conhecidas. 

Aqui não avançaremos nos desdobramentos da narrativa: nossa intenção é não atropelar a leitura de eventual interessado pela obra.

II Império

Existe um enorme interesse histórico pelas obras naturalista e por este livro de Adolfo Caminha em particular. O leitor entra em contato direto com o Rio de Janeiro do II Reinado a partir de passeios dos casais e amigos no Jardim Botânico e na Rua do Ouvidor, tem acesso ao relato das repercussões da convalescênças de D. Pedro II e de sua viagem à Europa em busca de tratamento (evento em que foi amplamente saudado pelo povo). E não se trata apenas de fatos e ambientes históricos. Podemos falar de acesso ao que se denomina história das mentalidades. É o que se cogita a partir da personagem Balbina, uma velha escrava de Coqueiro, que Evaristo e Adelaide deixaram no Maranhão. Tratava-se de uma velha escrava alforriada e que o bacharel a legara na velha casa como um objeto sem qualquer consideração. E que num pequeno diálogo, revela-se que o ser humano tem valor inferior a um passarinho:

“E Adelaide, ocultando ingenuamente o desgosto que a pungia, lembrou ao marido o fato de ter ele chorado a morte de uma patativa, antes de vir ao Rio de Janeiro.

O bacharel não disse que não, mas afirmou que o caso era diverso e que entre a patativa e a Balbina [escrava] preferia a patativa”.

O problema da política e questões como o abolicionismo e a república aparecem no romance, numa surpreendentemente sofisticada crítica social, já sinalizando como a política naquele contexto estava imbricada no privado, havia aquilo que é amplamente discutido na sociologia brasileira acerca do patrimonialismo e da confusão entre o público e o privado.

No Brasil do séc. XIX, a divisão entre partidos conservadores e liberais ou mesmo republicanos e monarquistas era antes um verniz, um molde aparente, quando na essência, havia uma elite conservadora que convergia nos interesses mais essenciais, ligados ao latifúndio, ao regime agrário exportador dependente, à exploração da mão de obra escrava ou quando muito ao abolicionismo que não envolvia um projeto de cidadania plena aos negros – Luís e Evaristo são ambos capitalistas que trabalham no Banco, mas o primeiro é monarquista e o segundo é republicano. No diálogo abaixo, discutem de maneira voraz, mas o debate é interrompido pelas mulheres e o embate termina numa mesa de jantar familiar.

“- Não Senhor, que o partido republicano está ganhando terreno aqui mesmo, na Corte, às barbas d’El-Rei! Fala-se na ida do velho à Europa; o velho está doido, já não pode governar, e o resultado é que....

- É que estás a dizer tolices...A monarquia estás guardada por sentinelas da força do barão de Cotegipe, do Visconde de Ouro Preto, do João Alfredo e de outros.... Cada um desses homens é um obstáculo contra qualquer tentativa de assalto às instituições.

Chegou a vez do bacharel rir, mas rir com gosto, dando pulinhos na cadeira.

- O Cotegipe! (e ria). O Ouro Preto (tornava a rir). O João Alfredo! No momento psicológico voam todos, como aves de arribação, para Petrópolis! Desaparecem como por encanto, somem-se na noite do medo...

- É o que pensas. A opinião deles, o povo não permitirá que eles sejam desacatados.

- O povo! – exclamou Evaristo com voz de trovão – A que chamas tu povo?

- À população do Rio de Janeiro, à população do Brasil – a treze milhões de almas que adoram o imperador!

- O povo brasileiro não se envolve nisso, meu Furtado; se fôssemos esperar pelo povo, estávamos bem arranjados”.   

O fatalismo é um mote que informa tanto as concepções ideológicas presentes por de trás do naturalismo (determinismo, darwinismo e positivismo) quanto especificamente a obra “Tentação”. Os impulsos amorosos, que levarão ao conflito, à doença mental de Adelaide, o desejo e a tragédia não envolve a escolha, o livre arbítrio dos personagens: trata-se de uma fatalidade, de algo portanto que segundo os critérios do naturalismo, têm a ver com os condicionamentos da natureza humana. Como se sabe, esta interface entre a biologia e a literatura é algo marcante de escritores daquele período histórico.

O que se sobressai e o que se extrai de mais valor, ao que tudo indica, são os retratos sociais e o panorama histórico que as obras do naturalismo literário abrem para os leitores de hoje. Como se sabe, a validade histórica das teses do determinismo e do darwinismo aplicado na sociologia hoje caducaram.  





[1] De Raul Pompeia, ver resenha de “O Ateneu” em: http://esperandopaulo.blogspot.com.br/2014/10/o-ateneu-raul-pompeia.html

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