“Tentação” – Adolfo Caminha
Resenha livro - “Tentação” – Adolfo Caminha – Poeteiro Editor
Digital – São Paulo – 2014
“Adelaide não dormiu, pensando na brusca resolução do marido
e em mil tantas coisas fúteis que aos olhos de uma mulher inexperiente como
ela, e como ela supersticiosa, adquirem estranhas proporções. Mas no meio de
todas essas coisas erguia-se o vulto de um homem, que não era o Holanda, que
absolutamente não se parecia com aquele que ali estava a seu lado, na cama, e
de novo um extraordinário medo apoderava-se dela, um pavor inexplicável, uma
covardia criminosa, que a obrigava a abrir e fechar os olhos
intermitentemente.... Era o vulto do secretário...a “tentação” (...).”
Os
autores mais citados dentre os representantes da escola do naturalismo
literário são provavelmente Aluísio de Azevedo e Raul Pompéia[1].
Do primeiro, as mais famosas obras são “Casa de Pensão” (1884), “O Cortiço”
(1890) e “O Mulato” (1881), este último romance contando com uma repercussão
grave em sua província natal, Maranhão, exatamente por denunciar o preconceito
racial de um personagem mestiço, com qualidades intelectuais, que estudou na
Europa, mas que é filho de escravo e não é tolerado por aquela sociedade
cingida pelo racismo que informa o instituto da escravidão. A repercussão negativa
do “Mulato” obrigou Azevedo a mudar-se para o Rio de Janeiro e certamente teria
causado graves impactos no autor: num romance de 1887 denominado “O Homem”,
assim Aluízio de Azevedo prefacia a obra:
“Quem não amar a verdade na arte e não tiver a respeito do
Naturalismo ideias bem claras e seguras, fará, deixando de ler este livro, um
grande obséquio a quem o escreveu”.
O escritor cearense Adolfo Caminha também está inteiramente
inserido no contexto do Naturalismo literário e merece um reconhecimento maior.
De antemão, merece a lembrança pela obra “Bom Crioulo” (1895) que de forma
pioneira aborda a questão do amor homossexual.
Pode-se falar que existem pontos de contato e diferenças
entre o realismo e o naturalismo literários. Ambos por exemplo servem-se de uma
certa objetividade no estilo e na forma narrativa, evitando o discurso
rebarbativo, o subjetivismo, a retórica e a adjetivação que informam os
romances típicos das fases do romantismo. Há portanto menos espaço para o
adjetivo e maior espaço para o verbo, períodos mais curtos e diretos e uma
maior intencionalidade de retratar de forma fiel e objetiva personagens e
paisagens. Pode-se também falar que o realismo e o naturalismo estão envolvidos
com a crítica social e de costumes. Todavia, o procedimento da crítica dá-se de
formas distintas. Para explicarmos as diferenças, podemos resgatar como
exemplos o romance supracitado de Adolfo Caminha e talvez o mais ácido e
mordaz romance realista de Eça de Queiróz, “O Crime do Padre Amaro” (1875).
A crítica social do tipo realista é do tipo apriorística: o
autor elege uma pauta a partir da qual o romance se desenvolve com uma
intencionalidade clara de se criticar para mesmo reformar e transformar a realidade.
Foi este o caso do romance de Eça e do contexto de uma geração de literatos
portugueses que se insurgiam contra o atraso cultural de Portugal: a hipocrisia
por de trás de relação mesquinha para com a mulher e a carolice junto à Igreja
por senhoras beatas mais interessadas em intrigas do que na religião; o egoísmo
humano que se sobressai ao extremo na figura de um Padre que horroriza mesmo um
leitor descrente e agnóstico; a falência total da Igreja é o prenúncio em Eça
de uma ambição de modernização de uma Portugal arcaica que precisa de uma
renovação em face de países mais ilustrados como Inglaterra e França.
A crítica do tipo naturalista não contém este elemento
apriorístico de forma acentuado. É o que vemos de forma muito clara no “Bom
Crioulo”. O autor trata de um tema candente e polêmico (obviamente ainda mais
polêmico no século XIX) com a mesma frieza de um cientista que analisa o
reagente químico dentro de seu laboratório. Não toma, como um naturalista,
partido favorável à possibilidade do amor homossexual ou, o que seria mais
fácil, se coloca como um moralista condenando a priori a relação entre os marujos
Amaro e Aleixo. O que há no naturalismo é uma maior equidistância entre o autor
e o personagem e a história retratada. Tal fato tem duas implicações.
A
primeira é que a própria realidade é contraditória e as histórias naturalistas
ao retratarem ora “O Ateneu” em Raul Pompeia com a realidade de escolas
primárias em regime disciplinar “militar” para crianças, ora o racismo
provinciano de “O Mulato”, ora os impactos de provincianos do maranhão na corte
em “Tentação”, as histórias naturalistas naturalmente (com o perdão da
expressão!) exsurgem as próprias contradições da realidade. Por isso fazem
críticas sociais. E mais! As histórias naturalistas são belos retratos da
história: o certo comprometimento daqueles artistas com a observação fiel da objetividade
envolvem verdadeiros documentos históricos sobre costumes, hábitos, o
jornalismo literário, a política, a arte e vários aspectos da vida social e cultural
dos contextos da narrativa.
Tentação
A história de “Tentação” portanto está inserida no modelo do
naturalismo literário. O enredo é relativamente simples. O bacharel Evaristo e
sua jovem esposa Adelaide residem na longínqua província maranhense de
Coqueiros e recebem uma epístola de um colega de liceu do marido convidando-o
para trabalhar no Rio de Janeiro – sede da corte Imperial – para um trabalho no
grande Banco Industrial. O convite empolga o bacharel que em poucos dias
embarca para a corte e se instala na casa de Luís Furtado e sua esposa, D.
Branca.
O desenvolvimento do Romance dá-se com as mudanças de vida
dos provincianos num ambiente repleto de novidade: a própria noção que Evaristo
tinha da capital do II Império era de uma espécie de Paris, donde estão os
literatos, os parlamentares e o dinheiro:
“Figurava a Corte do Império uma terra legendária de
aventuras e de muito dinheiro, onde, com algum trabalho, qualquer homenzinho
podia fazer fortuna em poucos anos, ou, quando mais não fosse, galgar posições,
eminências cobiçadas, conquistar nome – celebrizar-se. Demorava os jornais do
Rio; lia [Evaristo] tudo quanto na grande capital se publicava em prosa e
verso; não era estranho ao movimento literário, ao saltos-mortais da política,
às artes; interessava-se, como republicano, pela saúde do monarca e pelos
escândalos mais ou menos ruidosos da Rua do Ouvidor; enfim, o Rio de Janeiro era,
a seus olhos estáticos, a quintessência da civilização – Paris em ponto pequeno”.
O conflito central – que dá nome ao romance – inicia-se
quando se descobre-se as intenções ocultas do coração de Luís Furtado. O amigo
de Evaristo é um homem garboso e já habituado às extravagâncias extraconjugais
correntes da vida da corte. Luís passa a se interessar por Adelaide, uma moça
de origem humilde e muito diferente das elegantes e pomposas mulheres até então
conhecidas.
Aqui não avançaremos nos desdobramentos da narrativa: nossa
intenção é não atropelar a leitura de eventual interessado pela obra.
II Império
Existe um enorme interesse histórico pelas obras naturalista
e por este livro de Adolfo Caminha em particular. O leitor entra em contato
direto com o Rio de Janeiro do II Reinado a partir de passeios dos casais e
amigos no Jardim Botânico e na Rua do Ouvidor, tem acesso ao relato das repercussões
da convalescênças de D. Pedro II e de sua viagem à Europa em busca de
tratamento (evento em que foi amplamente saudado pelo povo). E não se trata
apenas de fatos e ambientes históricos. Podemos falar de acesso ao que se
denomina história das mentalidades. É o que se cogita a partir da personagem
Balbina, uma velha escrava de Coqueiro, que Evaristo e Adelaide deixaram no
Maranhão. Tratava-se de uma velha escrava alforriada e que o bacharel a legara
na velha casa como um objeto sem qualquer consideração. E que num pequeno
diálogo, revela-se que o ser humano tem valor inferior a um passarinho:
“E Adelaide, ocultando ingenuamente o desgosto que a pungia,
lembrou ao marido o fato de ter ele chorado a morte de uma patativa, antes de
vir ao Rio de Janeiro.
O bacharel não disse que não, mas afirmou que o caso era
diverso e que entre a patativa e a Balbina [escrava] preferia a patativa”.
O problema da política e questões como o abolicionismo e a
república aparecem no romance, numa surpreendentemente sofisticada crítica
social, já sinalizando como a política naquele contexto estava imbricada no
privado, havia aquilo que é amplamente discutido na sociologia brasileira
acerca do patrimonialismo e da confusão entre o público e o privado.
No Brasil do séc. XIX, a divisão entre partidos conservadores
e liberais ou mesmo republicanos e monarquistas era antes um verniz, um molde
aparente, quando na essência, havia uma elite conservadora que convergia nos
interesses mais essenciais, ligados ao latifúndio, ao regime agrário exportador
dependente, à exploração da mão de obra escrava ou quando muito ao
abolicionismo que não envolvia um projeto de cidadania plena aos negros – Luís e
Evaristo são ambos capitalistas que trabalham no Banco, mas o primeiro é
monarquista e o segundo é republicano. No diálogo abaixo, discutem de maneira
voraz, mas o debate é interrompido pelas mulheres e o embate termina numa mesa
de jantar familiar.
“- Não Senhor, que o partido republicano está ganhando
terreno aqui mesmo, na Corte, às barbas d’El-Rei! Fala-se na ida do velho à
Europa; o velho está doido, já não pode governar, e o resultado é que....
- É que estás a dizer tolices...A monarquia estás guardada
por sentinelas da força do barão de Cotegipe, do Visconde de Ouro Preto, do
João Alfredo e de outros.... Cada um desses homens é um obstáculo contra
qualquer tentativa de assalto às instituições.
Chegou a vez do bacharel rir, mas rir com gosto, dando pulinhos
na cadeira.
- O Cotegipe! (e ria). O Ouro Preto (tornava a rir). O João
Alfredo! No momento psicológico voam todos, como aves de arribação, para
Petrópolis! Desaparecem como por encanto, somem-se na noite do medo...
- É o que pensas. A opinião deles, o povo não permitirá que
eles sejam desacatados.
- O povo! – exclamou Evaristo com voz de trovão – A que
chamas tu povo?
- À população do Rio de Janeiro, à população do Brasil – a treze
milhões de almas que adoram o imperador!
- O povo brasileiro não se envolve nisso, meu Furtado; se
fôssemos esperar pelo povo, estávamos bem arranjados”.
O fatalismo é um mote que informa tanto as concepções
ideológicas presentes por de trás do naturalismo (determinismo, darwinismo e
positivismo) quanto especificamente a obra “Tentação”. Os impulsos amorosos,
que levarão ao conflito, à doença mental de Adelaide, o desejo e a tragédia não
envolve a escolha, o livre arbítrio dos personagens: trata-se de uma
fatalidade, de algo portanto que segundo os critérios do naturalismo, têm a ver
com os condicionamentos da natureza humana. Como se sabe, esta interface entre
a biologia e a literatura é algo marcante de escritores daquele período
histórico.
O que se sobressai e o que se extrai de mais valor, ao que
tudo indica, são os retratos sociais e o panorama histórico que as obras do
naturalismo literário abrem para os leitores de hoje. Como se sabe, a validade
histórica das teses do determinismo e do darwinismo aplicado na sociologia hoje
caducaram.
[1] De
Raul Pompeia, ver resenha de “O Ateneu” em: http://esperandopaulo.blogspot.com.br/2014/10/o-ateneu-raul-pompeia.html
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