quarta-feira, 19 de outubro de 2016

“Capítulos de História Colonial” – Capistrano de Abreu

“Capítulos de História Colonial” – Capistrano de Abreu



Resenha Livro - “Capítulos de História Colonial” – Capistrano de Abreu – Coleção Biblioteca Básica Brasileira – Senado Federal

INVASÃO DE BANDEIRA PAULISTA À MISSÃO JESUÍTICA

“A entrada de Jesús María, no rio Pardo, já em águas da lagoa dos Patos, qual a descreve Montoya, dará ideia resumida dos processos empregados nestas expedições.

No dia de São Francisco Xavier (3 de Dezembro de [1]637), estando celebrando a festa com missa e sermão, cento e quarenta paulistas com cento e cinquenta tupis, todos muito bem armados com escopetas, vestidos de escupis, que são ao modo de dalmáticas estofadas de algodão, com que vestido o soldado de pés à cabeça peleja seguro das setas, a som de caixa, bandeira tendida e ordem militar, entrando pelo povoado, e sem aguardar razões, acometendo a Igreja, disparando seus mosquetes. 

Pelejaram seis horas, desde as oito da manhã até as duas da tarde.

Visto pelo inimigo o valor dos cercados e que os mortos seus eram muitos determinou queimar a igreja, aonde se acolhera a gente. Por três vezes tocaram-lhe fogo que foi apagado, mas à quarta começou a palha a arder e os refugiados viram-se obrigados a sair. Abriram um postigo [fortificação] e saindo por ele a modo de rebanho de ovelhas que sai do curral para o pasto, com espadas, manchetes e alfanjes lhes derribavam cabeças, truncavam braços, desjarretavam pernas, atravessavam corpos. Provavam os aços de seus alfanjes [espadas] em rachar meninos em duas partes, abrir-lhes as cabeças e despedaçar-lhes os membros.

Compensará tais horrores a consideração de que por favor dos paulistas pertencem agora ao Brasil as terras devastadas?”.

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A passagem supracitada desde já revela a marca maior da obra e do historiador: “Capítulos da História Colonial” (1907) de Capistrano de Abreu se situa nos albores da historiografia brasileira, mas, como veremos, é uma obra pioneira.

A passagem mencionada refere-se a um conflito que perpassa de 1558 a 1750 com a posterior dissolução das missões jesuíticas no Brasil no contexto das reformas pombalinas. Inicialmente, os bandeirantes paulistas partiam em busca do gentio devassando as matas e abrindo novas frentes de comunicação e posterior povoamento. Todavia, as ações dos bandeirantes, lembra Capistrano de Abreu, seriam facilitadas quando dirigidas às reduções jesuítas: lá os índios já estão agrupados, alguns já falam a língua nacional ou o espanhol e estão relativamente pacificados.

Mas aqui, gostaríamos de frisar alguns aspectos em que se distingue um historiador a frente de seu tempo – daí o seu pioneirismo. Ao seu tempo, Capistrano de Abreu pouco contava com muitas das ferramentas teórico- metodológicas que a História desenvolveu dentro de uma disciplina ou ciência específica e que dentro das universidades são lecionadas através de cursos de filosofia da História, teoria da História ou filosofia da História. Ao seu tempo, Capistrano de Abreu (1853-1927) cursou a Faculdade de Direito de Recife, não terminou a graduação, considerando sempre tratar-se de momento em que não havia cursos superiores de História.

Em 1878, Capistrano de Abreu presta concurso para a Biblioteca Nacional e é aprovado em primeiro lugar. Em 1883, presta concurso para professor de História do tradicional Colégio D. Pedro II do Rio de Janeiro donde é aprovado e nomeado no mesmo ano, antes de completar 30 anos. Exerce o magistério durante 16 anos.  

Capistrano de Abreu foi discípulo daquele que é considerado fundador da historiografia brasileira, Varnhagen, e de certa maneira, é tributário do procedimento historiográfico positivista. Todavia, uma leitura atenta de “Capítulos da História Colonial”[1], assenta propostas que vão além do positivismo historiográfico.

Antes de desenvolver esta tese, um parêntese: o que é o positivismo historiográfico?

Sabe-se que a História e a memória remontam desde os gregos e as narrativas de Homero. Todavia, a História enquanto uma disciplina ou ciência autônoma, pensada e estruturada de forma autônoma em face da filosofia, a cargo do ofício do historiador, é um fenômeno histórico de fins do séc. XIX. 

Remete-se aqui a Leopold Von Ranke, que justamente se insere dentro de um contexto histórico em que o mundo das ideias e o pensamento social tinham pretensões de aferir critérios de cientificidade e imparcialidade equivalentes aos conhecimentos da biologia ou mesmo da física/matemática. O Positivismo está associado a este contexto e estes pressupostos: “die geschichte wie es eigentlich gewesen hat” ou “a história como de fato ocorreu”, ou seja, o historiador seria apenas um porta voz imparcial de fatos que se extraem de fontes e documentos históricos. Tal ilusão de imparcialidade deixa de lado alguns pontos: ao retratar o passado, o historiador faz escolhas a todo momento, seja sobre quais fontes irá usar, seja sobre qual a margem de importância de cada fonte; o historiador está a todo momento sendo chamado a interpretar as fontes ou mesmo o passado e desde já toda a interpretação envolve diferentes momentos de subjetividade; as próprias palavras e a linguagem não são neutras e mesmo a escolha das palavras pode consciente ou inconscientemente revelar desde preconceitos até intencionalidades políticas[2].

“Capítulos da História Colonial” deve ser interpretada como uma obra de seu tempo, um livro de 1907, quando a historiografia Brasileira ainda era bastante incipiente. Mas observa-se como o autor possui um vasto domínio das fontes primárias, combinado com um senso crítico que leva-o a se afastar de um certo ufanismo que informa a historiografia positivista tradicional. Em muitas passagens, o autor foge dos lances tradicionais dados aos grandes eventos, e busca explicar o passado a partir do que falaria muito depois em “História do Cotidiano”.  É o que se depreende de algumas passagens sobre a cidade do Rio de Janeiro dos inícios do séc. XIX:

RIO DE JANEIRO – 1800

“Os homens jogavam, frequentemente cafés, iam às casas de pasto, palestravam sobre assuntos muito limitados, quase sempre vida alheia. Os acontecimentos mais comezinhos deformavam-se em intermináveis comentários maliciosos. Abundavam as alcunhas. Mesmo a morte se desrespeitava. Se morria alguém com fama de Santo, se aparecia algum cadáver incorrupto, estabelecia-se um reboliço na população e a procura de relíquias assumia as mais indiscretas formas. Se ao contrário corria que a alma se perdera, corriam logo boatos prodigiosos, assombram-se as casas e sentia-se a proximidade das trevas exteriores onde há choro e ranger de dentes. Ainda hoje se nota isto no interior”.

Todavia, mesmo para uma obra de 1907, há alguns desacertos que merecem ser ponderados. Ainda que estivesse ausente os pressupostos teórico metodológicos que em Caio Prado Júnior possibilitaram interpretar de forma mais objetiva nosso passado colonial e concretizar um “sentido da colonização”[3], faltou uma maior atenção à Capistrano de Abreu ao instituto da escravidão e do Negro que na sua narrativa é tratado majoritariamente como problemas meramente étnicos. Sabe-se que o que sustenta a opulência dos senhores de engenho, o trabalho nas minas auríferas e todas as demais atividades produtivas é predominantemente – no período analisado – o trabalho escravo, em menor parte indígena e em maior parte, negro. Capistrano subestima mesmo os Quilombos e as diversas formas de resistência, das fugas, da sabotagem ou mesmo do levante e destruição de Engenhos. Um primeiro Estudo específico sobre o Quilombo dos Palmares seria lançado só em 1946 por Edson Carneiro[4].  

Em que pese limitações metodológicas que provocaram certamente conclusões problemáticas, especialmente quando se trata do problema do Negro, da escravidão e formas de resistência, bem como do problema da economia política da colônia, desde o exclusivismo comercial, do latifúndio, do trabalho escravo e do sentido da colonização, seria certamente anacrônico imputar a Capistrano de Abreu responsabilidade pessoal por todos estes limites de seus “Capítulos”. O livro deve ser observado como parte de um momento específico da historiografia nacional, anterior à geração de 1930 (Sérgio Buarque de Holanda, Gyberto Freyre e Caio Prado Jr.). Sua leitura, todavia, surpreende, pois vai além das possibilidades dadas pelo positivismo. O leitor terá acesso a uma narrativa cativante e toda sorte de documentações de 3 séculos da História do Brasil e, com algumas ressalvas, poderá conhecer particularidades de todos os quadrantes do país de 1500-1800. Não só sobre a sociedade, mas mesmo sobre os recursos naturais e geográficos, os rios, as delimitações de fronteira e suas histórias (Tratados de Tordesilhas, de Madrid e de Santo Ildefonso), as plantas, os animais e até a culinária do país.

E para os marxistas brasileiros, lembrar sempre as premissas de Lênin: partir da análise concreta da situação concreta o que exigiu sempre um vasto e profundo estudo sobre a questão nacional. Esta é uma tarefa premente para todos revolucionários.






[1] Em que pese o próprio título da obra sugerir uma forma de se escrever a história associada à ideia dos “Grandes Eventos”

[2] M. Löwy compara a ilusão positivista da neutralidade do conhecimento ao princípio do Barão de Münchhausen. Sua história é a seguinte: o barão prussiano seguia com o seu cavalo por uma densa floresta quando se deparou com um pântano. Confiante de si, Münchhausen seguiu em frente e o pântano começou a tragá-lo para dentro, a sugá-lo para o interior da lama. Procede de forma análoga o positivista com ilusões de querer puxar seus cabelos quando propõe a ilusória imparcialidade do discurso.  

[3] “O sentido da colonização” volta-se ao atendimento dos interesses comercais portugueses e é com base neste comércio – já antes explorado pelos lusitanos nas índias – que se conformará toda estrutura social, política, administrativa, etc. A colônia nada mais é do que uma empresa comercial destinada exclusivamente à grande exportação. Como um “resquício” deste passado colonial, enxerga-se a ausência de preocupação pela metrópole em desenvolver internamente sua colônia. Ver Resenha: http://esperandopaulo.blogspot.com.br/2014/02/formacao-do-brasil-contemporaneo-caio.html

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