“Capítulos de História Colonial” – Capistrano de Abreu
Resenha Livro - “Capítulos de História Colonial” –
Capistrano de Abreu – Coleção Biblioteca Básica Brasileira – Senado Federal
INVASÃO DE BANDEIRA PAULISTA À MISSÃO JESUÍTICA
“A entrada de Jesús María, no rio Pardo, já em águas da
lagoa dos Patos, qual a descreve Montoya, dará ideia resumida dos processos
empregados nestas expedições.
No dia de São Francisco Xavier (3 de Dezembro de [1]637),
estando celebrando a festa com missa e sermão, cento e quarenta paulistas com
cento e cinquenta tupis, todos muito bem armados com escopetas, vestidos de
escupis, que são ao modo de dalmáticas estofadas de algodão, com que vestido o
soldado de pés à cabeça peleja seguro das setas, a som de caixa, bandeira
tendida e ordem militar, entrando pelo povoado, e sem aguardar razões,
acometendo a Igreja, disparando seus mosquetes.
Pelejaram seis horas, desde as
oito da manhã até as duas da tarde.
Visto pelo inimigo o valor dos cercados e que os mortos seus
eram muitos determinou queimar a igreja, aonde se acolhera a gente. Por três
vezes tocaram-lhe fogo que foi apagado, mas à quarta começou a palha a arder e
os refugiados viram-se obrigados a sair. Abriram um postigo [fortificação] e
saindo por ele a modo de rebanho de ovelhas que sai do curral para o pasto, com
espadas, manchetes e alfanjes lhes derribavam cabeças, truncavam braços, desjarretavam
pernas, atravessavam corpos. Provavam os aços de seus alfanjes [espadas] em
rachar meninos em duas partes, abrir-lhes as cabeças e despedaçar-lhes os membros.
Compensará tais horrores a consideração de que por favor dos
paulistas pertencem agora ao Brasil as terras devastadas?”.
*************************************************************************************************
*************************************************************************************************
A
passagem supracitada desde já revela a marca maior da obra e do historiador: “Capítulos
da História Colonial” (1907) de Capistrano de Abreu se situa nos albores da
historiografia brasileira, mas, como veremos, é uma obra pioneira.
A passagem mencionada refere-se a um conflito que perpassa
de 1558 a 1750 com a posterior dissolução das missões jesuíticas no Brasil no
contexto das reformas pombalinas. Inicialmente, os bandeirantes paulistas
partiam em busca do gentio devassando as matas e abrindo novas frentes de
comunicação e posterior povoamento. Todavia, as ações dos bandeirantes, lembra
Capistrano de Abreu, seriam facilitadas quando dirigidas às reduções jesuítas:
lá os índios já estão agrupados, alguns já falam a língua nacional ou o
espanhol e estão relativamente pacificados.
Mas aqui, gostaríamos de frisar alguns aspectos em que se
distingue um historiador a frente de seu tempo – daí o seu pioneirismo. Ao seu
tempo, Capistrano de Abreu pouco contava com muitas das ferramentas teórico-
metodológicas que a História desenvolveu dentro de uma disciplina ou ciência
específica e que dentro das universidades são lecionadas através de cursos de
filosofia da História, teoria da História ou filosofia da História. Ao seu
tempo, Capistrano de Abreu (1853-1927) cursou a Faculdade de Direito de Recife,
não terminou a graduação, considerando sempre tratar-se de momento em que não
havia cursos superiores de História.
Em 1878, Capistrano de Abreu presta concurso para a Biblioteca
Nacional e é aprovado em primeiro lugar. Em 1883, presta concurso para professor
de História do tradicional Colégio D. Pedro II do Rio de Janeiro donde é
aprovado e nomeado no mesmo ano, antes de completar 30 anos. Exerce o
magistério durante 16 anos.
Capistrano de Abreu foi discípulo daquele que é considerado
fundador da historiografia brasileira, Varnhagen, e de certa maneira, é
tributário do procedimento historiográfico positivista. Todavia, uma leitura
atenta de “Capítulos da História Colonial”[1],
assenta propostas que vão além do positivismo historiográfico.
Antes de desenvolver esta tese, um parêntese: o que é o
positivismo historiográfico?
Sabe-se que a História e a memória remontam desde os gregos
e as narrativas de Homero. Todavia, a História enquanto uma disciplina ou
ciência autônoma, pensada e estruturada de forma autônoma em face da filosofia,
a cargo do ofício do historiador, é um fenômeno histórico de fins do séc. XIX.
Remete-se
aqui a Leopold Von Ranke, que justamente se insere dentro de um contexto
histórico em que o mundo das ideias e o pensamento social tinham pretensões de
aferir critérios de cientificidade e imparcialidade equivalentes aos
conhecimentos da biologia ou mesmo da física/matemática. O Positivismo está
associado a este contexto e estes pressupostos: “die geschichte wie es
eigentlich gewesen hat” ou “a história como de fato ocorreu”, ou seja, o
historiador seria apenas um porta voz imparcial de fatos que se extraem de
fontes e documentos históricos. Tal ilusão de imparcialidade deixa de lado alguns
pontos: ao retratar o passado, o historiador faz escolhas a todo momento, seja
sobre quais fontes irá usar, seja sobre qual a margem de importância de cada
fonte; o historiador está a todo momento sendo chamado a interpretar as fontes
ou mesmo o passado e desde já toda a interpretação envolve diferentes momentos
de subjetividade; as próprias palavras e a linguagem não são neutras e mesmo a
escolha das palavras pode consciente ou inconscientemente revelar desde
preconceitos até intencionalidades políticas[2].
“Capítulos da História Colonial” deve ser interpretada como
uma obra de seu tempo, um livro de 1907, quando a historiografia Brasileira
ainda era bastante incipiente. Mas observa-se como o autor possui um vasto
domínio das fontes primárias, combinado com um senso crítico que leva-o a se afastar
de um certo ufanismo que informa a historiografia positivista tradicional. Em
muitas passagens, o autor foge dos lances tradicionais dados aos grandes
eventos, e busca explicar o passado a partir do que falaria muito depois em “História
do Cotidiano”. É o que se depreende de algumas
passagens sobre a cidade do Rio de Janeiro dos inícios do séc. XIX:
RIO DE JANEIRO – 1800
“Os homens jogavam, frequentemente cafés, iam às casas de
pasto, palestravam sobre assuntos muito limitados, quase sempre vida alheia. Os
acontecimentos mais comezinhos deformavam-se em intermináveis comentários
maliciosos. Abundavam as alcunhas. Mesmo a morte se desrespeitava. Se morria
alguém com fama de Santo, se aparecia algum cadáver incorrupto, estabelecia-se
um reboliço na população e a procura de relíquias assumia as mais indiscretas
formas. Se ao contrário corria que a alma se perdera, corriam logo boatos
prodigiosos, assombram-se as casas e sentia-se a proximidade das trevas
exteriores onde há choro e ranger de dentes. Ainda hoje se nota isto no
interior”.
Todavia, mesmo para uma obra de 1907, há alguns desacertos
que merecem ser ponderados. Ainda que estivesse ausente os pressupostos teórico
metodológicos que em Caio Prado Júnior possibilitaram interpretar de forma mais
objetiva nosso passado colonial e concretizar um “sentido da colonização”[3],
faltou uma maior atenção à Capistrano de Abreu ao instituto da escravidão e do
Negro que na sua narrativa é tratado majoritariamente como problemas meramente étnicos.
Sabe-se que o que sustenta a opulência dos senhores de engenho, o trabalho nas
minas auríferas e todas as demais atividades produtivas é predominantemente –
no período analisado – o trabalho escravo, em menor parte indígena e em maior
parte, negro. Capistrano subestima mesmo os Quilombos e as diversas formas de
resistência, das fugas, da sabotagem ou mesmo do levante e destruição de
Engenhos. Um primeiro Estudo específico sobre o Quilombo dos Palmares seria
lançado só em 1946 por Edson Carneiro[4].
Em que pese limitações metodológicas que provocaram
certamente conclusões problemáticas, especialmente quando se trata do problema
do Negro, da escravidão e formas de resistência, bem como do problema da
economia política da colônia, desde o exclusivismo comercial, do latifúndio, do
trabalho escravo e do sentido da colonização, seria certamente anacrônico
imputar a Capistrano de Abreu responsabilidade pessoal por todos estes limites
de seus “Capítulos”. O livro deve ser observado como parte de um momento
específico da historiografia nacional, anterior à geração de 1930 (Sérgio Buarque
de Holanda, Gyberto Freyre e Caio Prado Jr.). Sua leitura, todavia, surpreende,
pois vai além das possibilidades dadas pelo positivismo. O leitor terá acesso a
uma narrativa cativante e toda sorte de documentações de 3 séculos da História
do Brasil e, com algumas ressalvas, poderá conhecer particularidades de todos
os quadrantes do país de 1500-1800. Não só sobre a sociedade, mas mesmo sobre os
recursos naturais e geográficos, os rios, as delimitações de fronteira e suas
histórias (Tratados de Tordesilhas, de Madrid e de Santo Ildefonso), as
plantas, os animais e até a culinária do país.
E para os marxistas brasileiros, lembrar sempre as premissas
de Lênin: partir da análise concreta da situação concreta o que exigiu sempre
um vasto e profundo estudo sobre a questão nacional. Esta é uma tarefa premente
para todos revolucionários.
[1] Em
que pese o próprio título da obra sugerir uma forma de se escrever a história
associada à ideia dos “Grandes Eventos”
[2] M.
Löwy compara a ilusão positivista da neutralidade do conhecimento ao princípio
do Barão de Münchhausen. Sua
história é a seguinte: o barão prussiano seguia com o seu cavalo por uma densa
floresta quando se deparou com um pântano. Confiante de si, Münchhausen seguiu
em frente e o pântano começou a tragá-lo para dentro, a sugá-lo para o interior
da lama. Procede de forma análoga o positivista com ilusões de querer
puxar seus cabelos quando propõe a ilusória imparcialidade do discurso.
[3] “O sentido da colonização” volta-se ao atendimento dos interesses
comercais portugueses e é com base neste comércio – já antes explorado pelos
lusitanos nas índias – que se conformará toda estrutura social, política,
administrativa, etc. A colônia nada mais é do que uma empresa comercial
destinada exclusivamente à grande exportação. Como um “resquício” deste passado
colonial, enxerga-se a ausência de preocupação pela metrópole em desenvolver
internamente sua colônia. Ver Resenha: http://esperandopaulo.blogspot.com.br/2014/02/formacao-do-brasil-contemporaneo-caio.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário