Resenha Livro – 229 - “As Aventuras de Karl Marx Contra o Barão de
Münchhausen – marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento” – Michael Löwy
– Ed. Cortez
“Os membros e partidários de classe colocada objetivamente
em uma situação revolucionária, cujos interesses coletivos e individuais
coincidem com o desenvolvimento da sociedade, escapam à ação dos freios
psíquicos que intervêm na percepção cognitiva da realidade social: ao contrário,
seus interesses concorrem para acuidade da percepção dos processos de
desenvolvimento, dos sintomas de decomposição da ordem antiga e dos sinais
precursores da nova ordem da qual eles aguardam a chegada... Não afirmamos
absolutamente com isso que este rumo leva à verdade absoluta: pretendemos
unicamente dizer que as referidas posições são um melhor ponto de partida e uma
melhor perspectiva na busca da verdade objetiva, por certo relativa, mas muito
mais integral, muito mais completa, com relação ao nível dado de
desenvolvimento do saber humano”. Adam
Shaff
O Golpe de Estado perpetrado no Brasil no primeiro semestre
não só instituiu um governo apoiado em frações mais direitistas da burguesia
nacional (com endosso do imperialismo) mas sinaliza uma mudança de direção
frente a uma tendência mundial: a crise capitalista exige governos de
enfrentamento ainda mais duros junto aos trabalhadores. Antigos governos de
colaboração de classe dos quais não só o modelo petista mas mesmo outras direções
muito mais progressistas na América Latina hoje colocam-se em risco.
O Golpe contra Zelaya em Honduras e de Fernando Lugo No Paraguai em 2002, igualmente perpetrados
pela direita e também no sentido de supressão de alternativas políticas
reformistas ou democrático-populares que ganharam popularidade após a
avassaladora retirada de diretos de cidadania no contexto neoliberal no início
dos anos 1990, tem seu ponto de chegada no Brasil, fazendo com que os Marxistas
já possam observar como a crise estrutural capitalista se conforma numa crise
institucional e sistêmica não só na periferia mas em semi-periferias de peso do
capitalismo mundial (Brasil).
Importa-nos aqui chamar atenção para o fato de que o golpe
de estado se desenvolve não como um acontecimento político, um simples fato
político atípico, mas como parte de um desenvolvimento histórico, de um
processo em curso. Pode-se falar em um golpismo ou em um programa golpista em
marcha que teria diversas frentes: no mundo do trabalho, já se fala por exemplo
no aumento das idades das aposentadorias, além de reformas na CLT, mudanças
aqui no sentido de reduzir os custos do empregador em face dos direitos do
trabalhador. Mas para os fins desta resenha interessa-nos mencionar aquilo que
poderíamos colocar como a expressão mais evidente no debate público do golpismo
no âmbito da educação. Pois o programa golpista na educação tem nome e
sobrenome: trata-se do “Projeto Escola Sem Partido”, uma iniciativa de setores
reacionários e pouco preparados no debate teórico, que partilham de uma
premissa mirabolante de que os estudantes brasileiros estariam sendo
doutrinados por uma cartilha marxista conforme inclusive diretrizes dos
próprios materiais oficiais de educação. Mas tal projeto vai além ao incidir
sobre a atuação do próprio professor, que poderia ser interditado ao propor
discussões em sala de aula a depender de seu conteúdo “ideológico”. E usamos
propositalmente as áspas na palavra ideologia pois aqui adentramos ao interessantíssimo
livro de Michel Löwy.
O ensaio foi publicado na década de 1980 mas é de uma
atualidade assombrosa, especialmente quando se deparamos com propugnadores de uma
ideia reacionária de se falar numa “escola sem partido”, o que, quando
verificamos mais de perto nos discursos de um deputado Marcel Von Hatten PP/RS –
uma espécie de Olavo de Carvalho mirim da Câmara dos Deputados Gaúcha e militante
em nível nacional do projeto – significa uma escola sem “Ideologia”. A
ideologia no senso comum pode ser entendida como ideias político-partidárias,
eventualmente tendenciosas, sejam elas de direita ou de esquerda.
Agora o tipo de reflexão que Michael Löwy propõe em sua sagaz
crítica ao positivismo – que, ainda que não formalmente, persiste como
orientação metodológica com bastante força no mundo acadêmico, é: existe algum
tipo de conhecimento no âmbito das ciências humanas (história, geografia,
sociologia e filosofia) axiologicamente neutro, e portanto, livre de “ideologia”
? Mais uma vez insistimos nas aspas da palavra ideologia como uma espécie de
alerta ao leitor: como o próprio Michel Löwy nos remete, talvez não há mesmo
dentro da ciências sociais, palavra mais polissêmica (com mais de uma
significação) que ideologia.
O Princípio do Barão de Münchhausen
O Barão de Münchhausen ilustra com ironia uma certa confusão
nos termos da discussão em torno do que dentro das ciências sociais se discute
como sociologia do conhecimento. Sua história é a seguinte: o barão prussiano
seguia com o seu cavalo por uma densa floresta quando se deparou com um pântano.
Confiante de si, Münchhausen seguiu em frente e o pântano começou a tragá-lo
para dentro, a sugá-lo para o interior da lama. E então o Barão antes de ser
tragado pelo pântano com seu cavalo começou a puxar os seus cabelos e com isso supostamente
teria se salvado. Tal história serve como uma ilustração de toda uma tradição
teórica na sociologia que de uma forma ou de outra entendeu ser possível buscar
atingir a verdade através do método científico, inclusive para as ciências do
espírito, o que não raro implicava numa equiparação entre as ciências da
natureza e das ciências sociais. Uma verdade objetiva livre de julgamentos de
valor pelo cientista, que se despe de forma voluntaria de seus preconceitos, de
seus valores pessoais e de sua visão social de mundo até atingir verdades tão
objetivas quais aquelas do tipo: o céu gira em torno do sol. Seria possível
fazer uma análise objetiva sobre os acontecimentos em França em 1789 tal qual
os da física experimental? O Positivismo é a corrente teórica metodológica que
mais bem ilustra tal assertiva da hipótese do Barão de Münchausen e está
presente de forma ideológica (sem aspas, na concepção marxista do termo[1])
do projeto Escola Sem Partido . E daqui para frente toda uma série de
questionamentos poderiam partir, o que seria analisado por Löwy a partir da
contribuição do historicismo e em particular da Sociologia do Conhecimento de Mahnheim
e do Marxismo.
As questões que perpassam todo o ensaio e que serão
analisado pelo crivo de diversos autores do postivismo, historicismo e marxismo
são estas: “Quais são as condições para tornar possível a objetividade nas
ciências sociais? O Modelo científico-natural da objetividade é operacional
para as ciências históricas? É concebível uma ciência da sociedade livre de
julgamentos de valor e pressupostos político-sociais? Não é, a ciência social,
necessariamente “engajada”, isto é, ligada ao ponto de vista de uma classe ou
grupo social?”.
E sinalizando nestas últimas questões podemos apontar para
como o marxismo tratou historicamente do conjunto desta questão. Na verdade
houve muitas respostas distintas e mesmo contraditórias quanto ao problema da
ciência/ideologia mesmo dentro do marxismo. Ainda no século XIX a força das
ideias positivistas e cientificistas tiveram tamanha influência que se pode
constatar sua influência mesmo no seio do marxismo, em Bernstein, que em última
análise, sintomaticamente renegou a teoria da revolução em Marx e propugnou o
revisionismo quanto à sua intervenção política, o que ele diria que teria de
uma certa forma retirado o caráter estritamente científico de seus estudos.
Kautsky igualmente propugnou com o seu marxismo ortodoxo ideias que tiveram
alguma interface com o positivismo e também sintomaticamente retirou de sua
teoria o caráter revolucionário.
Michael Löwy faz um longo inventário de diversas vertentes do
marxismo, mas o que importa ressaltar aqui são algumas ideias de próprio Marx.
Ainda que este não tenha desenvolvimento uma teoria específica do conhecimento,
é quando se refere por exemplo à transição entre à economia clássica da
burguesia à economia vulgar e sua coincidência com a passagem histórica da burguesia
desde uma classe numa etapa histórica em que desempenha um papel revolucionário
para a partir de entre 1830 consolidar-se como uma classe efetivamente no poder
e, nesse sentido, interessada em
desempenhar um papel ideológico (e vulgar do conhecimento) é que
passamos a conferir as primeiras noções entre sujeito, classe e conhecimento,
um tema que seria abordado de maneira sistemática no livro “História e
Consciência de Classes” de Lukács. É no que o Löwy chama de marxismo
historicista (Lukácks, Gramsci e Goldman) que parece haver as melhor fontes das
respostas para suas cogitações, das quais extraímos uma conclusão apenas a
título de ilustração:
“Quanto a nós, pensamos que o ponto de vista potencialmente
mais crítico e mais subversivo é o da última classe revolucionária, o
proletariado. Mas não há dúvida de que o ponto de vista do proletariado não é
de forma alguma uma garantia suficiente do conhecimento da verdade social: é
somente o que oferece a maior possibilidade objetiva de acesso à verdade. E
isso porque a verdade é para o proletariado uma arma indispensável para sua
auto emancipação. As classes dominantes, a burguesia (e também a burocracia, em
outro contexto) têm necessidade de mentiras e ilusões para manter seu poder.
Ele, o proletariado, tem necessidade de verdade...”.
Não temos com esta resenha a pretensão de substituir uma
leitura densa (e recompensante) como a deste livro. Aqui, apenas demos algumas
pinceladas e reivindicamos a incrível atualidade do tema referente à epistemologia,
à sociologia do conhecimento e às melhores condições do marxismo enfrentar o
desafio de descobrir a realidade com mais objetividade que as demais tradições
teórico metodológicas vigentes. Como uma boa analogia descrita no livro,
trata-se talvez de um pintor, sendo que aquele que postula as aspirações do
proletariado coloca-se num plano mais alto, nestes tempos históricos.
[1]
Diz Michael Löwy: “Para Marx, a ideologia é uma forma de falsa consciência
correspondendo a interesses de classe: mais precisamente, ela designa o
conjunto das ideias especulativas e ilusórias (socialmente determinadas) que os
homens formam sobre a realidade, através da moral, da religião, da metafísica,
dos sistemas filosóficos, das doutrinas políticas e econômicas etc.
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