sábado, 30 de julho de 2016

"As Aventuras de Karl Marx Contra o Barão de Münchhausen" - Michael Löwy

Resenha Livro – 229 -  “As Aventuras de Karl Marx Contra o Barão de Münchhausen – marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento” – Michael Löwy – Ed. Cortez



“Os membros e partidários de classe colocada objetivamente em uma situação revolucionária, cujos interesses coletivos e individuais coincidem com o desenvolvimento da sociedade, escapam à ação dos freios psíquicos que intervêm na percepção cognitiva da realidade social: ao contrário, seus interesses concorrem para acuidade da percepção dos processos de desenvolvimento, dos sintomas de decomposição da ordem antiga e dos sinais precursores da nova ordem da qual eles aguardam a chegada... Não afirmamos absolutamente com isso que este rumo leva à verdade absoluta: pretendemos unicamente dizer que as referidas posições são um melhor ponto de partida e uma melhor perspectiva na busca da verdade objetiva, por certo relativa, mas muito mais integral, muito mais completa, com relação ao nível dado de desenvolvimento do saber humano”.  Adam Shaff

O Golpe de Estado perpetrado no Brasil no primeiro semestre não só instituiu um governo apoiado em frações mais direitistas da burguesia nacional (com endosso do imperialismo) mas sinaliza uma mudança de direção frente a uma tendência mundial: a crise capitalista exige governos de enfrentamento ainda mais duros junto aos trabalhadores. Antigos governos de colaboração de classe dos quais não só o modelo petista mas mesmo outras direções muito mais progressistas na América Latina hoje colocam-se em risco.

O Golpe contra Zelaya em Honduras e de Fernando Lugo  No Paraguai em 2002, igualmente perpetrados pela direita e também no sentido de supressão de alternativas políticas reformistas ou democrático-populares que ganharam popularidade após a avassaladora retirada de diretos de cidadania no contexto neoliberal no início dos anos 1990, tem seu ponto de chegada no Brasil, fazendo com que os Marxistas já possam observar como a crise estrutural capitalista se conforma numa crise institucional e sistêmica não só na periferia mas em semi-periferias de peso do capitalismo mundial (Brasil).

Importa-nos aqui chamar atenção para o fato de que o golpe de estado se desenvolve não como um acontecimento político, um simples fato político atípico, mas como parte de um desenvolvimento histórico, de um processo em curso. Pode-se falar em um golpismo ou em um programa golpista em marcha que teria diversas frentes: no mundo do trabalho, já se fala por exemplo no aumento das idades das aposentadorias, além de reformas na CLT, mudanças aqui no sentido de reduzir os custos do empregador em face dos direitos do trabalhador. Mas para os fins desta resenha interessa-nos mencionar aquilo que poderíamos colocar como a expressão mais evidente no debate público do golpismo no âmbito da educação. Pois o programa golpista na educação tem nome e sobrenome: trata-se do “Projeto Escola Sem Partido”, uma iniciativa de setores reacionários e pouco preparados no debate teórico, que partilham de uma premissa mirabolante de que os estudantes brasileiros estariam sendo doutrinados por uma cartilha marxista conforme inclusive diretrizes dos próprios materiais oficiais de educação. Mas tal projeto vai além ao incidir sobre a atuação do próprio professor, que poderia ser interditado ao propor discussões em sala de aula a depender de seu conteúdo “ideológico”. E usamos propositalmente as áspas na palavra ideologia pois aqui adentramos ao interessantíssimo livro de Michel Löwy.

O ensaio foi publicado na década de 1980 mas é de uma atualidade assombrosa, especialmente quando se deparamos com propugnadores de uma ideia reacionária de se falar numa “escola sem partido”, o que, quando verificamos mais de perto nos discursos de um deputado Marcel Von Hatten PP/RS – uma espécie de Olavo de Carvalho mirim da Câmara dos Deputados Gaúcha e militante em nível nacional do projeto – significa uma escola sem “Ideologia”. A ideologia no senso comum pode ser entendida como ideias político-partidárias, eventualmente tendenciosas, sejam elas de direita ou de esquerda.

Agora o tipo de reflexão que Michael Löwy propõe em sua sagaz crítica ao positivismo – que, ainda que não formalmente, persiste como orientação metodológica com bastante força no mundo acadêmico, é: existe algum tipo de conhecimento no âmbito das ciências humanas (história, geografia, sociologia e filosofia) axiologicamente neutro, e portanto, livre de “ideologia” ? Mais uma vez insistimos nas aspas da palavra ideologia como uma espécie de alerta ao leitor: como o próprio Michel Löwy nos remete, talvez não há mesmo dentro da ciências sociais, palavra mais polissêmica (com mais de uma significação) que ideologia.

O Princípio do Barão de Münchhausen

O Barão de Münchhausen ilustra com ironia uma certa confusão nos termos da discussão em torno do que dentro das ciências sociais se discute como sociologia do conhecimento. Sua história é a seguinte: o barão prussiano seguia com o seu cavalo por uma densa floresta quando se deparou com um pântano. Confiante de si, Münchhausen seguiu em frente e o pântano começou a tragá-lo para dentro, a sugá-lo para o interior da lama. E então o Barão antes de ser tragado pelo pântano com seu cavalo começou a puxar os seus cabelos e com isso supostamente teria se salvado. Tal história serve como uma ilustração de toda uma tradição teórica na sociologia que de uma forma ou de outra entendeu ser possível buscar atingir a verdade através do método científico, inclusive para as ciências do espírito, o que não raro implicava numa equiparação entre as ciências da natureza e das ciências sociais. Uma verdade objetiva livre de julgamentos de valor pelo cientista, que se despe de forma voluntaria de seus preconceitos, de seus valores pessoais e de sua visão social de mundo até atingir verdades tão objetivas quais aquelas do tipo: o céu gira em torno do sol. Seria possível fazer uma análise objetiva sobre os acontecimentos em França em 1789 tal qual os da física experimental? O Positivismo é a corrente teórica metodológica que mais bem ilustra tal assertiva da hipótese do Barão de Münchausen e está presente de forma ideológica (sem aspas, na concepção marxista do termo[1]) do projeto Escola Sem Partido . E daqui para frente toda uma série de questionamentos poderiam partir, o que seria analisado por Löwy a partir da contribuição do historicismo e em particular da Sociologia do Conhecimento de Mahnheim e do Marxismo.  

As questões que perpassam todo o ensaio e que serão analisado pelo crivo de diversos autores do postivismo, historicismo e marxismo são estas: “Quais são as condições para tornar possível a objetividade nas ciências sociais? O Modelo científico-natural da objetividade é operacional para as ciências históricas? É concebível uma ciência da sociedade livre de julgamentos de valor e pressupostos político-sociais? Não é, a ciência social, necessariamente “engajada”, isto é, ligada ao ponto de vista de uma classe ou grupo social?”.

E sinalizando nestas últimas questões podemos apontar para como o marxismo tratou historicamente do conjunto desta questão. Na verdade houve muitas respostas distintas e mesmo contraditórias quanto ao problema da ciência/ideologia mesmo dentro do marxismo. Ainda no século XIX a força das ideias positivistas e cientificistas tiveram tamanha influência que se pode constatar sua influência mesmo no seio do marxismo, em Bernstein, que em última análise, sintomaticamente renegou a teoria da revolução em Marx e propugnou o revisionismo quanto à sua intervenção política, o que ele diria que teria de uma certa forma retirado o caráter estritamente científico de seus estudos. Kautsky igualmente propugnou com o seu marxismo ortodoxo ideias que tiveram alguma interface com o positivismo e também sintomaticamente retirou de sua teoria o caráter revolucionário.

Michael Löwy faz um longo inventário de diversas vertentes do marxismo, mas o que importa ressaltar aqui são algumas ideias de próprio Marx. Ainda que este não tenha desenvolvimento uma teoria específica do conhecimento, é quando se refere por exemplo à transição entre à economia clássica da burguesia à economia vulgar e sua coincidência com a passagem histórica da burguesia desde uma classe numa etapa histórica em que desempenha um papel revolucionário para a partir de entre 1830 consolidar-se como uma classe efetivamente no poder e, nesse sentido, interessada em  desempenhar um papel ideológico (e vulgar do conhecimento) é que passamos a conferir as primeiras noções entre sujeito, classe e conhecimento, um tema que seria abordado de maneira sistemática no livro “História e Consciência de Classes” de Lukács. É no que o Löwy chama de marxismo historicista (Lukácks, Gramsci e Goldman) que parece haver as melhor fontes das respostas para suas cogitações, das quais extraímos uma conclusão apenas a título de ilustração:

“Quanto a nós, pensamos que o ponto de vista potencialmente mais crítico e mais subversivo é o da última classe revolucionária, o proletariado. Mas não há dúvida de que o ponto de vista do proletariado não é de forma alguma uma garantia suficiente do conhecimento da verdade social: é somente o que oferece a maior possibilidade objetiva de acesso à verdade. E isso porque a verdade é para o proletariado uma arma indispensável para sua auto emancipação. As classes dominantes, a burguesia (e também a burocracia, em outro contexto) têm necessidade de mentiras e ilusões para manter seu poder. Ele, o proletariado, tem necessidade de verdade...”.

Não temos com esta resenha a pretensão de substituir uma leitura densa (e recompensante) como a deste livro. Aqui, apenas demos algumas pinceladas e reivindicamos a incrível atualidade do tema referente à epistemologia, à sociologia do conhecimento e às melhores condições do marxismo enfrentar o desafio de descobrir a realidade com mais objetividade que as demais tradições teórico metodológicas vigentes. Como uma boa analogia descrita no livro, trata-se talvez de um pintor, sendo que aquele que postula as aspirações do proletariado coloca-se num plano mais alto, nestes tempos históricos.                





[1] Diz Michael Löwy: “Para Marx, a ideologia é uma forma de falsa consciência correspondendo a interesses de classe: mais precisamente, ela designa o conjunto das ideias especulativas e ilusórias (socialmente determinadas) que os homens formam sobre a realidade, através da moral, da religião, da metafísica, dos sistemas filosóficos, das doutrinas políticas e econômicas etc. 

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