domingo, 20 de abril de 2025

INTRODUÇÃO À TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES

 

INTRODUÇÃO À TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES


A todo o direito que o ordenamento jurídico confere a determinado titular, existe de forma correspondente um dever, ou uma obrigação. E todo o direito confere ao seu titular a possibilidade de promover uma ação que lhe assegure esse mesmo direito. No âmbito do Direito de Família, o direito do menor de idade à pensão alimentícia tem como contrapartida o dever alimentar do detentor do poder familiar. No âmbito do Direito Constitucional, o direito à educação assegurado no artigo 205 da CF/88 gera a obrigação do Estado através das instituições de ensino público de fornecer os serviços de formação e qualificação profissional. No âmbito do Direito Tributário, o direito a um determinado benefício fiscal está sujeito à obrigação do Ente Público de dispensa do recolhimento do tributo, mesmo em prejuízo do erário, mas sempre diante de uma hipótese prevista em lei. Descumprindo o dever alimentar, ao credor há o direito de ingressar com a ação de alimentos. Descumprindo o Ente Público a lei autorizadora da isenção tributária ou de um serviço público como o acesso à Educação, caberá ao cidadão postular o seu direito perante o Poder Judiciário, seja através de uma ação declaratória seja através de uma ação constitutiva.   

O sentido de “obrigações” no âmbito do Direito Civil tem um alcance mais restrito.   

A Teoria Geral das Obrigações consiste num capítulo específico do Direito Civil que disciplina as relações negociais, ou seja, os atos de intercâmbio de bens e serviços. Envolve ainda a reparação de danos, quando surge a obrigação de indenizar oriunda de um ato ilícito. E ainda pode dizer respeito ao dever de restituir benefícios injustamente auferidos em detrimento de outrem, ou seja, o enriquecimento ilícito (artigo 884 CC/02). Assim, quando falamos de obrigações, estamos basicamente falando de contratos (ou de maneira mais ampla, de negócios jurídicos), da responsabilidade civil e de atos unilaterais que são “fontes de obrigação”, como o pagamento indevido ou enriquecimento ilícito, ou seja, obter uma vantagem econômica em detrimento de outrem sem justa causa.

Apesar do aparente alto nível de abstração do estudo da Teoria Geral das Obrigações, há na verdade uma dimensão bastante prática nesse capítulo do Direito Privado. É um assunto do qual nos ocupamos no dia a dia. Na nossa vida estabelecemos a todo momento relações negociais ou sofremos ou causamos danos geradores de responsabilidade civil que estão sujeitas ao regime das obrigações. Ao contratar um serviço de um pintor, estabelece-se uma obrigação consubstanciada no contrato de prestação de serviços: o pintor obriga-se a pintar a casa e o contratante obriga-se a remunerar o serviço. Ao colidir e abaloar um carro estacionado na garagem, agindo com negligência, o causador do acidente (do ato ilícito) obriga-se a indenizar a vítima restituído os valores de reparação do veículo e até os prejuízos pelo tempo em que o proprietário se viu privado do bem. (artigo 186 c/c 927 CC). Aquele que aufere uma vantagem indevida em dinheiro deve se obrigar a restituir o valor ao seu titular, com correção monetária, sob pena de enriquecimento ilícito. (artigo 884 CC/02).

A mais conhecida definição de obrigação no sentido técnico aqui tratado é aquela oriunda do Direito Romano. A definição dada pelas Institutas de Justiniano é: obrigação é um vínculo jurídico (obligatio est juris vinculum) que nos obriga a pagar alguma coisa, fazer ou deixar de fazer.

Clóvis Beviláqua, mentor do Código Civil de 1916, definiu obrigação como “relação transitória de direito, que nos constrange a dar, fazer ou não fazer alguma coisa, em regra economicamente apreciável, em proveito de alguém conosco juridicamente relacionado, ou em virtude da lei, adquiriu o direito de exigir de nós essa ação ou omissão”.

Washington de Barros Monteiro define obrigação como “relação jurídica, de caráter transitório, estabelecida entre devedor e credor e cujo objeto consiste numa prestação pessoal econômica, positiva ou negativa, devida pelo primeiro ao segundo, garantindo-lhe o adimplemento através do seu patrimônio”.

De maneira mais didática, Sílvio de Salvo Venosa define obrigação “como uma relação jurídica transitória de cunho pecuniário, unindo duas (ou mais pessoas), devendo uma (o devedor) realizar uma prestação à outra (o credor).”.  

A obrigação envolverá sempre uma relação jurídica, um vínculo que liga duas ou mais pessoas. Trata-se de uma relação jurídica, diferentemente de uma relação puramente moral ou religiosa, nas quais a lei não estabelece sanção pelo seu descumprimento e que são indiferentes do ponto de vista estritamente do Direito. Pode ser considerada uma obrigação moral o dever de visitar um amigo querido internado no hospital. Pode ser considerada uma obrigação religiosa não comer carne no feriado da sexta feira santa. Mas essas não são obrigações jurídicas e, a princípio, não se revestem de relevância ao Direito ao ponto de sancionar aquele que descumpre o tal dever moral ou religioso. Em alguns momentos, os limites entre o Direito e a moral são mais tênues. Um exemplo de uma obrigação jurídica com dimensão moral é a hipótese do ato de ingratidão do donatário que pode ocasionar a revogação da doação (artigo 555 do CC/02).

Essa relação jurídica irá sempre envolver a figura do credor e do devedor. São os dois lados da obrigação, também denominados sujeitos da relação obrigacional.

O sujeito ativo da obrigação é o credor, ou seja, aquele que tem interesse em que a prestação seja cumprida. Devedor é a pessoa que deve praticar certa conduta, determinada atividade, em prol do credor, ou de quem este determinar. Trata-se da pessoa sobre a qual recai o dever de efetuar uma determinada prestação.

O objeto da relação obrigacional é a prestação, o que vem a ser justamente o elemento que irá vincular os sujeitos: a prestação pode ser dar algo, fazer algo ou deixar de fazer algo. Dentro da obrigação de dar, se insere a obrigação de pagar quantia certa.  

A prestação sempre terá uma dimensão patrimonial, ou seja, poderá ser convertida em pecúnia que é um termo latino que significa dinheiro. (Em Roma, “pecus” era o significado da palavra gado, que era utilizado como moeda de troca. Do termo, veio também a palavra “pecuária”).

A prestação sempre terá um conteúdo patrimonial e conversível em dinheiro. Ainda que haja uma obrigação de fazer (por exemplo, eu me obrigo a pintar um quadro) o seu descumprimento, se não comportar a execução específica, poderá ser convertido em perdas e danos, ou seja, numa indenização pelo descumprimento da obrigação em benefício do credor.

Essa possibilidade de conversão da obrigação em perdas e danos está presente de maneira mais evidente nas obrigações infungíveis, ou seja, aquelas em que só é possível ser cumprida por determinado devedor, sem possibilidade de substituição. Contrato um violinista famoso para fazer uma apresentação no meu casamento. Esse violinista não comparece no dia e hora marcados. Aqui, a única saída ao credor é a conversão da obrigação de fazer (apresentação de violino pelo artista famoso) nas perdas e danos, que é a indenização pecuniária, que abrange os danos emergentes e os lucros cessantes, nos termos do artigo 402 do CC/02, e, em alguns casos, até mesmo os danos morais (artigo 186 e 927).

As obrigações têm ainda um outro aspecto que as diferenciam, que é a sua natureza transitória. Ao contratar um serviço, como a instalação de um fogão no meu apartamento, temos a expectativa de que após a execução dos trabalhos, de forma satisfatória, e com o pagamento, a obrigação será extinta. As partes, num contrato, podem estabelecer relação por um longo período, mas ainda assim não é um vínculo que se caracteriza pela eternidade. O ciclo natural da obrigação é o seu nascimento e a sua extinção, seja com o adimplemento, ou seja, o cumprimento do avençado, seja nos casos de mora (inadimplemento parcial) ou inadimplemento total, quando o credor poderá se munir do processo judicial para executar um crédito ou pedir a indenização das perdas e danos pelo descumprimento do pactuado.

Do exposto, verificamos o caráter universal e abstrato dos Direitos das Obrigações, que fez com que mantivesse uma estrutura que se manteve desde a época do Direito Romano, obviamente trilhando uma linha de evolução. Hoje em dia, apenas o patrimônio do devedor responderá por suas dívidas (artigo 391 CC/02) enquanto em Roma o devedor poderia responder por suas dívidas não só com os seus bens, mas com a sua liberdade, estando sujeito a ser um escravo por dívidas. Por outro lado, os elementos da estrutura obrigacional, suas fontes e o seu alcance são tão amplos que se pode dizer ser talvez um dos ramos do Direito de maior dimensão universal. As obrigações regem a vida comum dos particulares e, mesmo sem sabermos, estamos a todo momento sujeito às suas regras.

Bibliografia: VENOSA, Sílvio de Salvo. “Direito Civil – Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos”. Ed. Atlas,  


terça-feira, 25 de março de 2025

“Primeiras Estórias” – João Guimarães Rosa

 “Primeiras Estórias” – João Guimarães Rosa



Resenha Livro - “Primeiras Estórias” – João Guimarães Rosa – Global Editora

“Nunca me contento com alguma coisa. Como já lhe revelei, estou buscando o impossível, o infinito. E, além disso, quero escrever livros que depois de amanhã não deixem de ser legíveis. Por isso acrescentei à síntese existente a minha própria síntese, isto é, incluí em minha linguagem muitos outros elementos, para ter ainda mais possibilidade de expressão” (João Guimarães Rosa, 1965).

João Guimarães Rosa nasceu em 27 de junho de 1908 em Cordisburgo, um pequeno arraial situado na região central do Estado de Minas Gerais.

Iniciou os seus estudos de idiomas estrangeiras aos 6 (seis) anos, quando teve seus primeiros contatos com o francês.

Nas palavras do próprio escritor:

“Eu falo: português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto, um pouco de russo; leio sueco, holandês, latim e grego (mas com o dicionário agarrado); entendo alguns dialetos alemães; estudei a gramática: do húngaro, do árabe, do sânscrito, do lituano, do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do checo, do finlandês, do dinamarquês; bisbilhotei um pouco a respeito de outras. Mas tudo mal. E acho que estudar o espírito e o mecanismo de outras línguas ajuda muito à compreensão mais profunda do idioma nacional. Principalmente, porém, estudando-se por divertimento, gosto e distração.”.

O autor de “Grande Sertões: Veredas” desde o início da vida já mostrava sua vocação para o estudo.

Com apenas 16 anos, ingressou no curso de medicina da Universidade de Minas Gerais, no ano de 1925. Após alguns anos medicando no interior de Minas Gerais, serviu como médico voluntário durante a Revolução Constitucionalista de 1932. Um ano depois, foi aprovado em concurso como Oficial Médico no 9º Batalhão de Infantaria para, depois, ser aprovado em concurso do Itamaraty, aprovado em 2º lugar, tornando-se diplomata, profissão que exerceria até o final da vida.

Tradicionalmente, afirma-se que a literatura de João Guimarães Rosa é uma expressão tardia do regionalismo literário e do movimento modernista da década de 1930, do qual os autores mais conhecidos são Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz e José Lins do Rego.

O modernismo regionalista foi pioneiro em retratar as condições das classes populares, notadamente o sertanejo, o jagunço, o caboclo, o camponês sob o domínio do senhor de  engenho ou a pequena burguesia dos incipientes centros urbanos nordestinos, captando as contradições e ambuiguidades do homem através da análise psicológica. Até então, as classes populares vinham sendo retratadas na literatura romântica e realista/naturalista de forma incidental e sem maiores preocupações em torno das complexidades do homem pertencente às classes populares.

Certamente, João Guimarães Rosa é um herdeiro desse avanço concretizado pelos modernistas da década de 1930. Entretanto, qualificar João Guimarães Rosa como um “autor regionalista” é discutível e isso por duas razões.

O modernismo regionalista ainda tem um tom pitoresco.

O exame da vida social nos engenhos de açúcar em José Lins do Rego (“Fogo Morto”) ou dos retirantes da seca em Graciliano Ramos (“Vidas Secas”) parte do ponto de vista do homem da cidade confrontado com um mundo diferente, em vias de extinção.  (São histórias que retratam o período de decadência econômica e civilizatória dos senhores de engenho do nordeste, cujos domínios são paulatinamente degradados em função do desenvolvimento produtivo capitalista instaurado pelas Usinas.).

O modernismo regionalista tem ainda um forte componente telúrico.  As histórias brotam da terra, com o protagonismo do sertão nordestino como motivo determinante dos enredos: desde a economia do açúcar e do algodão, passando pelos efeitos sociais da seca, o cangaço e o messianismo religioso, todos esses elementos humanos parecem estar subordinados à realidade da terra, estão plenamente aclimatados, podendo-se dizer que o sertão (espaço) exerce protagonismo igual ou até maior do que o sertanejo (personagens).

Em Guimarães Rosa esses dois aspectos, o pitoresco e o telúrico, perdem importância.

O Sertão ganha uma nova dimensão universal.

Os conflitos em torno da terra, a exploração dos latifundiários ou da violência dos cangaceiros nos regionalistas são substituídos em Guimarães Rose pelos grandes temas universais: qual o limite entre o bem e o mal? Como se situa a condição humana dada a inevitabilidade da morte? Quem é Deus? De que forma é possível definir o sentimento do amor?

Diferentemente da literatura puramente telúrica, o Sertão de Guimarães Rosa não condiciona a conduta dos personagens. O Sertão é nada menos do que um palco onde se encena o drama universal em torno das grandes questões humanas. Neste ponto, trata-se de uma obra que pode ser alçada ao patamar da mais alta literatura universal, ao lado de Dostoievsky no romance ou Shakespeare na dramaturgia.

Outro aspecto que o diferencia bastante do regionalismo modernista é a experimentação na linguagem. O escritor tinha literalmente um projeto linguístico próprio.

Lendo os contos de “Primeiras Estórias” (1962) dá-se mesmo a sensação de que estamos lendo um livro em outro idioma, parecido, mas diferente do português. A criação de palavras novas (neologismo) serve para expandir ao máximo a capacidade de expressão do pensamento através da linguagem.

 Foram dois os livros de contos publicados por João Guimarães Rosa.

O primeiro é o seu livro de estreia, denominado “Sagarana” (1946). Já “Primeiras Estórias” pode ser considerada obra da plena maturidade do escritor, publicada alguns anos depois do seu mais alto empreendimento literário: “Grande Sertão: Veredas” (1956).

“Primeiras Estórias” foi lançada na década de 1960, período de grandes transformações no Brasil, com o desenvolvimento acelerado da indústria por meio do Plano de Metas traçado por  Juscelino Kubitschek. Trata-se de um tempo de acentuada transição demográfica no país, com a migração da população do campo para a cidade, fenômeno simbolicamente representado pela construção de Brasília (1956 a 1960).

Esse processo histórico está presente nos contos do escritor mineiro.

Dois contos “Primeiras Estórias” tratam justamente da construção de uma nova cidade no meio do nada, vista sob o olhar de uma criança. “As Margens da Alegria”, a estória que abre o volume de contos, retrata uma viajem de avião sob um vasto campo onde se construirá uma cidade. E “Os Cismos”, o livro que fecha as estórias, retoma essa mesma história, agora para retratar a angústia dessa criança confrontada com a convalescência de sua mãe.

História vista sob o olhar de uma criança reforça uma visão de mundo marcada pela perplexidade e pelo mistério.

Esses dois contos revelam aquela superação do modernismo regionalista que nos referimos anteriormente. Pode-se dizer se tratar de uma coroação do fim daquele mundo dos engenhos de açúcar, o esfacelamento da sociedade patriarcal estruturada na tradição econômica herdada do Brasil Colonial.

Novamente, o Sertão agora passa a ser o palco por onde passam homens e mulheres que suscitam os grandes problemas universais.

quarta-feira, 5 de março de 2025

“Pedra Bonita” – José Lins do Rego

 “Pedra Bonita” – José Lins do Rego

 



Resenha Livro – “Pedra Bonita” – José Lins do Rego – Ed. Civilização Brasileira – Série “Literatura Brasileira Contemporânea”.

 

“A obra de José Lins do Rego é mais, muito mais do que um documento sociológico; é qualquer coisa de vivo, porque o seu criador lhe deu o próprio sangue, encheou-a dos seus gracejos e tristezas, risos e lágrimas, conversas, doenças, barulhos, disparates, e da sua grande sabedoria literária. Deu-lhe o hálito da vida. Essa obra não morre tão cedo. É eternamente jovem, como o povo; é eternamente triste, como o povo. É o trovador trágico da província”. Otto Maria Carpeaux.

 

VIDA E OBRA DE JOSÉ LINS DO REGO

 

José Lins do Rego Cavalcanti (1901/1957) nasceu no Engenho Corredor numa cidade do interior da Paraíba chamada Pilar.

 

Fez os estudos secundários em Itabaiana e na Paraíba (atual João Pessoa).

 

Aos quatorze anos de idade, muda-se para o Recife, concluindo o secundário no Ginásio Pernambucano, prestigioso colégio nordestino, por onde passaram Ariano Suassuna e Clarice Lispector.

 

Na sequência, em 1919, matricula-se na Faculdade de Direito de Recife, onde conhece e se relaciona com o escritor José Américo de Almeida, um pioneiro daquilo que ficou conhecido como a literatura modernista regionalista, da qual fizeram parte Graciliano Ramos, Jorge Amado e Rachel de Queiroz. O pioneirismo deu-se através da publicação do livro “A Bagaceira” publicado em 1928 e considerado o marco inicial daquele movimento.

 

Durante a Faculdade de Direito, o nosso escritor conhece Gilberto Freire, de quem receberia o estímulo para se dedicar à arte voltada para as raízes locais. Não seria exagero dizer, nesse sentido, que os romances de José Lins do Rego sejam uma expressão literária daquela civilização do açúcar tão bem descrita por Freire no seu “Casa Grande e Senzala.” (1933). O processo lento e paulatino da decadência da economia do açúcar e o declínio da sociedade patriarcal por ela engendrada também encontram paralelo na obra do sociólogo pernambucano, nas duas obras subsequentes: “Sobrados e Mucambos” (1936) e “Ordem de Progresso” (1960).

 

Também não seria incorreto dizer que José Lins do Rego tenha sido ao mesmo tempo um romancista e um memorialista. A leitura dos livros que compõe o seu “Ciclo da Cana de Açúcar” retrata diretamente experiências da vida do escritor.

 

Desde a sua infância no Engenho de Açúcar do Avô, situado no interior da Paraíba; na sua adolescência quando é matriculado num colégio de freiras longe dos domínios da Fazenda Santa Rosa; e o seu retorno, já formado em Direito, à casa do avô. Cada um desses períodos da vida de José Lins do Rego são retratados pela literatura memorialista através do personagem fictício Carlos.

 

A partir de sua infância em “Menino de Engenho” (1932); passando pela adolescência com “Doidinho” (1933); e a chegada da vida adulta através de “Banguê” (1934).

 

Daí a importância particular de se conhecer a trajetória da vida de José Lins do Rego, que é indicativa de boa parte das suas obras. São histórias que retratam o período de decadência econômica e civilizatória dos senhores de engenho, cujos domínios são paulatinamente degradados em função do desenvolvimento produtivo instaurado pelas Usinas.

 

Antigos potentados e grandes senhores de engenho se vêm reduzidos à pobreza por dívidas contraídas junto aos usineiros, cujas fábricas têm uma produtividade incomparável com as antigas técnicas de produção de açúcar herdadas do período colonial.

 

Os usineiros se organizam em sociedades empresariais, emprestam dinheiro aos proprietários de terra com juros usurários e endividam até as famílias mais ricas, que se vêm compelida a entregar as suas terras aos seus credores. A concentração ainda maior de terras é reflexo daquela mudança de horizontes. É justamente este momento em que a grandeza dos engenhos de açúcar já  pertencia irremediavelmente ao passado que é objeto de descrição dos livros de Lins do Rego.  

 

Efetivamente, o escritor presenciou em vida um mundo prestes a desabar: e a decadência da tradicional civilização do açúcar, cujas origens remetem aos primórdios do período colonial, é incorporada à visão de mundo do escritor e do personagem que o representa nos romances.

 

Depois de quase três séculos de predomínio econômico no Brasil, a economia do açúcar decai de forma vertiginosa já em meados do século XIX, sendo substituído pelo café produzido no vale do Paraíba e no interior de São Paulo.

 

A decadência é algo que também aparece nitidamente em algumas histórias de Graciliano Ramos, escritor que mantinha vínculo de amizade com Lins do Rego. Há um evidente paralelo entre o velho senhor de engenho José Paulino do engenho de Santa Rosa (Lins do Rego) e Paulo Honório de São Bernardo (Ramos): o primeiro retratado por Lins do Rego de forma mais lírica e poética e o segundo retratado por Graciliano Ramos de forma mais árida e distante (não necessariamente marcada pela memória afetiva, como no caso do autor de “Fogo Morto”).

 

PEDRA BONITA

 

Há ainda um segundo elemento marcante na produção literária de José Lins do Rego. Trata-se da qualidade telúrica das suas histórias. Elas brotam da terra, com o protagonismo do sertão nordestino como motivo determinante dos enredos: desde a economia do açúcar e do algodão, passando pelos efeitos sociais da seca, o cangaço e o messianismo religioso, todos esses elementos humanos parecem estar subordinados à realidade da terra, estão plenamente aclimatados, podendo-se dizer que o sertão (espaço) exerce protagonismo igual ou até maior do que o sertanejo (personagens).

 

Essa dimensão telúrica foi levada até às últimas consequências na obra “Pedra Bonita” (1938).

 

Nela duas localidades do sertão nordestino são literalmente alçadas às principais personagens do enredo: a Vila do Açú e Pedra Bonita.

 

Duas localidades que mantém hostilidade por conta de um passado trágico.

 

A cidade de Açu é representativa de um Brasil Oficial, da Igreja Católica dirigida pelo Padre Amâncio e das instituições estatais representadas pelo Prefeito, Coronel Clarimundo, que alcançou o poder por seu o maior comerciante de algodão do local. E pelo juiz de Direito, Dr. Carmo, que vive a contragosto com sua família naquela cidade maldita e isolada dos centros urbanos.  

 

Já Pedra Bonita é a representação de um Brasil fora do controle da institucionalidade. Nela estão os cangaceiros e os líderes religiosos messiânicos que desafiam o Estado e a Igreja, tal qual “Canudos” desafiou a República Velha.

 

A rivalidade desses dois vilarejos, desses dois protagonistas, teve origem através de um evento mantido em segredo até a metade do livro.

 

A história se passa alguns anos após a grande seca de 1904. (Essa experiência traumática está viva na lembrança dos personagens.).  

 

Açu é em todos os aspectos um lugar triste. Nunca cresceu, jamais se desenvolveu ou teve algum fausto. A única coisa grande na vila é a Igreja. Padres sem ambição eram encaminhados ao Açu para passar “dias apertados”. O local é frequentado por umas poucas beatas. Dá-se a impressão de que o trabalho diário de celebrar as missas para essas 4 ou 5 almas é uma atividade completamente inútil.

 

Padre Amâncio chega ao Açu jovem e movido por um sincero desejo de salvar as almas do vilarejo. Sabia de antemão que aquele era um lugar maldito, para onde todos se recusam a ir. Ainda assim, abandona uma promissora carreira eclesiástica para lançar-se à atividade missionária. Abraça Açu com a grande expectativa, a despeito da má fama da cidade.

 

20 anos de trabalho fizeram envelhecer 40 anos em Padre Amâncio.

 

Chegou a Açu cheio de vigor e vontade de ser útil ao povo. Esse povo, tão maldito como a sua terra, demonstra a todo o momento não fazer jus aos cuidados do missionário. A maledicência naquele vilarejo é constante. A tragédias de alguns não geram a solidariedade mas as intrigas e o deboche. Homens diariamente se reúnem em frente a uma árvore tamarineira para dizer coisas obscenas e falar mal dos outros. As intrigas políticas em torno do poder local tornam o ambiente ainda mais degradante. O abandono e a pobreza cobram o seu preço e produzem as suas tragédias. As mulheres da igreja atendem às missas para o atendimento de um dever, de uma formalidade, e também se distinguem pela maledicência. Padre Amâncio surge como um único fio de esperança, representa ao menos uma expectativa de tempos melhores. Mas o idealismo do padre é paulatinamente quebrado pela brutalidade da realidade e da terra. Ao final da história, é vencido pelo cansaço e pela velhice.

 

Uma maldição do passado é a justificativa para o abandono e atraso do Açu.

 

Essa maldição é revelada ao personagem Antônio Bento, um jovem de 17 anos que é sacristão e afilhado do padre Amâncio. É rejeitado por todos os moradores do Açu por ser oriundo de Pedra Bonita, a cidade (protagonista) hostil, a causa de todos os males do Açu.

 

O sacristão ignora a razão da hostilidade, escondem-lhe desde menino o segredo da Pedra Bonita. Posteriormente, descobrimos a origem da rivalidade dos vilarejos.

Há muitos anos, um líder messiânico arrebata o sentimento religioso dos sertanejos para constituíram em Pedra Bonita uma comunidade devotada à adoração da figura escatológica do líder. Essa liderança messiânica demanda o sexo das mulheres jovens para gerar a gravidez e o nascimento de crianças que deveriam ser mortas. O sangue as crianças serviria como fonte para a salvação da humanidade.

 

Um parente distante de Antônio Bento atua como a figura de Judas. Foge de Pedra Bonita e denuncie os crimes daquela cidade às autoridades de Açu, que retornam com a força policial e dizimam todos os habitantes da comunidade religiosa. O paralelo com Canudos é evidente.

 

“Pedra Bonita” é além de tudo um belo retrato do banditismo social dos cangaceiros. Curiosamente, a violência dos bandoleiros em nada se diferencia do Estado, representado pelos volantes, a polícia estatal que trava uma guerra sanguinária contra os cangaceiros. O sertanejo convive com a desgraça de ser ora brutalizados pelos cangaceiros que roubam, matam e violam as mulheres. E, posteriormente, atacados pelas forças do Estado que prendem e matam todos aqueles suspeitos de colaborar com os bandidos.    A figura do volante e do cangaceiro sequer se distinguem.

 

Pedra Bonita talvez tenha sido a mais triste história contada em prosa do sertão nordestino.

domingo, 19 de janeiro de 2025

“A Mulher Sem Pecado” – Nelson Rodrigues

 “A Mulher Sem Pecado” – Nelson Rodrigues



Resenha livro - “A Mulher Sem Pecado” – Nelson Rodrigues – Editora Nova Fronteira

Quando Nelson Rodrigues escreveu sua primeira peça de teatro tinha apenas 29 anos de idade.

Era então um jovem jornalista em início de carreira, perseguido por dificuldades financeiras, de modo que a sua aproximação com o teatro não parece sido algo premeditado. Nelson Rodrigues acreditava, então, que a sua vocação literária era o romance, mas recorreu às peças de teatro, nesse primeiro momento, com a finalidade de socorrer-se do apuro financeiro.

Tanto foi assim que, originalmente, o autor optou por escrever uma comédia, num tempo em que o teatro brasileiro se reduzia basicamente aos dramalhões, ao teatro musicado e às comédias de costumes, com uma conotação folhetinesca que remonta à história do romance brasileiro, inaugurado formalmente com “A Moreninha” (1844) de Joaquim Manuel de Macedo.  

Esse projeto inicial acabou se convertendo na tragédia “A Mulher Sem Pecado” (1941), qualificada pelo crítico Sábato Magaldi, como uma das “peças psicológicas” do escritor, ao lado de outras obras qualificadas como “peças místicas” e “tragédias cariocas”.

O que era para ser uma peça de apelo comercial e popular acabou se tornando o ponto de partida de uma mudança de paradigma na dramaturgia nacional. Nela vemos de forma embrionária todos os elementos que alçariam Nelson Rodrigues à condição do criador do teatro moderno brasileiro. A história linear, com um início, meio e fim, é subvertida para traçar diferentes planos que emergem no palco, representando, ao lado dos fatos, a memórias e o inconsciente dos personagens. Utiliza-se , em determinadas passagens, o microfone para enunciar, ao lado dos diálogos, as cogitações, os pensamentos e o inconsciente dos personagens. Os temas convencionais do teatro folhetinesco são deixados de lado em detrimento de tragédias que suscitam temas tabus como incesto,  o estupro, a fatalidade da infidelidade conjugal, o impulso pela morte, a loucura e o suicídio.

A primeira encenação de “A Mulher Sem Pecado” ocorreu em dezembro de 1942 no Teatro Carlos Gomes do Rio de Janeiro.

O tema central da peça é a impossibilidade da fidelidade conjugal.

O protagonista Olegário é movido por ciúmes doentio e compulsivo em relação à sua bela esposa, chamada Lídia. Cadeirante há sete meses por conta de uma doença, uma ideia fixa move o marido: saber se foi ou não traído por sua mulher, desde o seu convalescimento.

Olegário suborna pessoas para vigiar Lígia na rua. Rebela-se mesmo contra a ideia de que sua mulher já tivera outros namorados antes do casamento. Expressa em determinados momentos um ideal segundo o qual o verdadeiro amor conjugal não possa ter qualquer conotação sexual.

 (E, contraditoriamente, em determinados momentos o seu ciúmes compulsivo parece ser movido por um desejo remoto de ver a sua mulher o traindo com outro homem.).  

Algumas falas do protagonista são representativas dessas variações do medo da traição e do desejo pela infidelidade da “mulher sem pecado”.

- “Sabes o que eu acharia bonito, lindo num casamento? Sabes? Que o marido e a mulher, ambos, se conservassem castos, castos um para o outro, sempre, de dia e de noite. (...) Conhecer o amor, mesmo do próprio marido, é uma maldição. E aquela tem a experiência do amor deve ser arrastada pelos cabelos”.  

- “A mulher bonita se satisfaria como namorada lésbica de si mesmo”

E numa cena de delírio, Olegário imagina um quarto de onde não sairiam ele, Lídia e o suposto amante, por toda a eternidade. O receio da infidelidade, nessa imagem, tem uma dimensão do absoluto, ao propor a existência atemporal (“por toda a eternidade”) do triângulo amoroso.

Olegário está no limiar entre a sanidade e a loucura. Na verdade, é a dúvida em torno da fidelidade da mulher  que forja a sua própria insanidade. O próprio protagonista afirma escutar vozes e ter visões, mas, por ter consciência do seu próprio delírio, ainda não fora inteiramente aniquilada a sua lucidez. Nas suas falas, revela-se uma tensão permanente em que está sempre prestes a romper a censura do seu consciente, ao ponto de torna-lo ridículo aos olhos de Lídia, quando sugere com miudezas cenas e imagens de amantes travando relações eróticas com sua mulher.  

O impacto da conduta do marido sobre Lídia dará o fim trágico da peça.

Lídia, desde a doença do marido, adquire o hábito de chamá-lo de "meu filho". Num dado momento, instada por Olegário a beijá-lo, revela timidamente uma repugnância sexual em relação ao marido. Os acessos de raiva do protagonista, na sua permanente desconfiança da honestidade da mulher, irá levar a “mulher sem pecado” a revalidar a sua própria honestidade.

Num diálogo com mãe de Olegário, uma mulher louca que não a compreende, Lídia revela pela primeira vez o desejo de matar o marido. Ainda afirma a vontade de ser seviciada sexualmente por outro macho num lugar deserto. Confessa ter beijado um funcionário do marido. Finalmente, resolve fugir da casa do marido para viver um romance com Umberto, o chofer da casa.  

 Ao final da peça, descobrimos que a paralisia de Olegário foi forjada com a finalidade exclusiva de testar a fidelidade de Lídia. Logo após revelar a verdade da doença, o marido recebe a carta da esposa lhe noticiando a sua fuga com o amante. Dentro do estilo típico das tragédias cênicas, Olegário termina mantando-se com um tiro na cabeça.  

 Brasil e Teatro Moderno

A importância do escritor Nelson Rodrigues no Teatro Brasileiro reside no fato de ter inaugurado e consolidado o modernismo na dramaturgia nacional. Até então, o teatro brasileiro se baseava na comédia de costumes, nos dramalhões e o no teatro musicado herdado do século XIX. Com a nova dramaturgia do escritor carioca, temos uma expressão mais consistente da psicologia humana, das contradições entre o desejo erótico e as regras sociais, e das frequentes transgressões morais de personagens que deixam de ser caricaturas superficiais para terem uma feição radical do homem comum, com todas as suas contradições.

A partir de “A Mulher Sem Pecado” (1942) e principalmente “Vestido de Noiva” (1943), temos um novo tipo de arte, com enfoque nos conflitos psicológicos, sem prejuízo do sarcasmo e da ironia, em que os personagens são frequentemente levados a transgredir os limites da ordem e da moral, particularmente no campo do erotismo. Enquanto antes o teatro era basicamente uma fonte de divertimento, agora passa a ter uma intencionalidade muito mais ampla, para expressar, na forma de arte, os desejos e perversões humanas ocultas e mascaradas pelas conveniências sociais. Abre-se também espaço para a experimentação formal, para o irreal e o  fantástico dentro das peças, e para a exploração de novos temas, inclusive temas tabus, particularmente o da tragédia humana decorrente do impulso sexual que leva à degradação moral.

Os elementos essenciais da dramaturgia de Nelson Rodrigues podem ser resumidos, de fato, na expressão “a vida como ela é”. Temas como a virgindade violada, os ciúmes, o incesto, a prostituição, a corrupção política e a canalhice humana denotam uma arte que busca de forma exacerbada a veracidade: a verdade se revela em situações limite, como na descoberta da traição, nos instantes que antecedem a morte ou nos pactos de mortes entre amantes, neste último caso, respondendo ao reconhecimento de que em vida não é possível manter a real  autenticidade, ante as proibições convencionadas socialmente. Há sempre nas peças certos momentos de explosão dos desejos reprimidos como o evento culminante de revelação das razões subjacentes às atitudes de cada personagem.  A verdade oculta se revela nas situações mais dramáticas.

Outro aspecto característico das peças de teatro do nosso escritor é a sua vinculação com o período histórico do Brasil de meados do século XX. Suas principais peças foram escritas entre a década de 1940/1960, momento em que o país vivia um rápido processo de urbanização, industrialização, transição demográfica do campo para a cidade e, de forma correspondente, uma veloz mudança de padrões comportamentais. O jornalismo de massas, o rádio popular, a expansão do futebol, a criação de Brasília e a nova faceta mais urbana da sociedade brasileira encontram densa  expressão do teatro de Nelson Rodrigues, nitidamente pelo fato de o próprio autor ter atuado com destaque na imprensa carioca, de onde retira inspiração para consecução de suas “tragédias cariocas”.

Na conjuntura internacional, as peças estão situadas no contexto do pós II Guerra Mundial e da Guerra Fria, quando exsurge um sentimento de urgência relacionado aos riscos de um conflito nuclear generalizado que colocasse o mundo a baixo. Essa percepção de que o mundo poderia acabar dentro de quinze minutos é explorada como justificativa para a exposição das paixões sexuais, dentro da lógica de que “tudo é permitido” quando “tudo está prestes a acabar”.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

“Hamlet” - William Shakespeare

 “Hamlet” - William Shakespeare



Resenha Livro - William Shakespeare – Ed.LP&M – Tradução Millôr Fernandes

“Hamlet” é considerada a mais filosófica das peças de William Shakespeare. Sua primeira encenação ocorreu no verão de 1600, na época do chamado teatro elisabetano, dentro do reinado da rainha Elizabeth I (1558/1603).

O contexto histórico é o do renascimento, aclimatado às condições da Inglaterra, com a retomada da arte clássica grega e romana e os impactos culturais decorrente de importantes transformações nas áreas do conhecimento, da economia e da política.

As grandes navegações tornaram conhecidos os territórios da América, pouco tempo depois do desenvolvimento da teoria heliocêntrica de Nicolau Copérnico, redimensionando radicalmente a percepção do homem diante do mundo e confrontando-os como povos desconhecidos.  

Tratava-se do alvorecer da modernidade, quando foram se constituindo os primeiros Estados Modernos, com o pioneirismo de Portugal através da Revolução de Avis (1383/1385), e a formação do absolutismo monárquico, com a centralização do poder político e administrativo do Estado na figura do monarca.

O modo de produção feudal foi cedendo espaço ao comércio e às cidades (burgos), com a consolidação de uma nova classe social, a burguesia, que, cem anos depois, seria alçada ao poder através da Revolução Francesa e da disseminação de suas ideias pelos séculos XVIII e XIX. A reforma protestante pavimentou a perda do monopólio da arte pela Igreja Católica. No ramo da tecnologia, houve a descoberta e disseminação da imprensa, que ampliou consideravelmente a circulação de ideias; houve o desenvolvimento da astronomia, dos meios de navegação e de armas de pólvora, sem as quais o navegadores não teriam condições de conquistar o novo mundo e implementar suas colônias de “povoamento” ao norte e “exploração” ao sul.

“Hamlet” é uma peça que expressa esse momento de transição, da idade média à modernidade.

Pode-se dizer que o seu protagonista representa um primeiro sinal nas artes do homem moderno: diferentemente dos heróis de cavalaria das histórias medievais, o Príncipe herdeiro da coroa dinamarquesa é um ser eivado de contradições, hesitante, que em determinados momentos revela não saber para onde vai e nem quem é, o que aparece no monólogo mais conhecido da história do teatro, que começa com o “Ser ou não ser? – eis a questão”.

Trata-se de uma tragédia cujo tema principal é o da vingança de Hamlet pela morte de seu pai, Rei da Dinamarca.

A versão oficial justificou a morte do monarca pela picada de uma serpente nos jardins do castelo real. No primeiro ato, o príncipe de Elsinor ainda está de luto pela morte do pai e demonstra profunda frustração com a sua mãe, a rainha Gertrudes. Menos de dois meses após a morte do marido, a rainha casa-se com o tio de Hamlet, um homem libertino chamado Cláudio, que é alçado à coroa como novo Rei em substituição ao irmão.

Cláudio faz orgias e representa a desmoralização do trono da Dinamarca perante os olhos do povo: utilizando uma expressão da peça, “a gota do mal, uma simples suspeita, transforma o leite da bondade no lodo da infâmia.”.  

As novas circunstâncias do Reino, com a súbita morte do Rei e o imediato casamento da Rainha com Cláudio, “antes mesmo que gastasse as sandalhas com que acompanhou o corpo do meu pai”, causa repugnância ao Príncipe.  

“Havia algo de podre no Reino da Dinamarca” – eis outra expressão da peça que é hoje conhecida por todos.

E a descoberta do mal acontece já no primeiro ato, quando da aparição do fantasma do Rei destronado perante o seu filho, quando lhe revela a farsa de Cláudio. Corroborando as suspeitas iniciais do Príncipe, descobrimos que o Rei foi assassinado por seu irmão para lhe tomar o trono, com o beneplácito da Rainha.

A súbita aparição do fantasma indica um mau agouro ou o início de uma catástrofe: a revelação do fratricídio dá início ao tema central da peça, qual seja, a mobilização de Hamlet, com as suas hesitações, para vingar a morte do pai.   

A estratégia utilizada pelo protagonista é a de simular a loucura pela morte trágica do Rei para com isso dissimular os seus planos perante o Tio e a Rainha. Entretanto, nos monólogos de Hamlet, que são interpretados pelos demais personagens como sintomas da loucura, o que se verifica é o uso da ironia e da retórica como meios de desmascarar a hipocrisia e o cinismo daqueles que circundam o poder. A loucura de Hamlet, enunciada através do discurso, serve para se evidenciar a realidade, incluindo a crítica propriamente política, expressa na ridicularização de Polônio, um conselheiro de estado que se notabiliza pela bajulação aos poderosos e pelo oportunismo.

Uma passagem crucial da peça é a iniciativa de Hamlet de convidar um grupo de artistas para fazer uma encenação teatral a ser exibida ao Rei e à corte.  

A história que seria encenada teria o mesmo enredo da trágica morte enunciada pelo fantasma. Ao exibir uma trama em que o Rei é assassinado por alguém próximo, de confiança irrestrita,  para lhe roubar o trono, Hamlet quer com isso ver qual seria a reação de seu tio. Pede ao seu amigo de confiança Horácio que observe de perto Cláudio ao final da peça: a proposta é utilizar a arte para explorar o remorso na consciência do novo Rei e, a partir da sua reação, ter a certeza da versão da morte trazida pelo fantasma.

A encenação da “peça dentro da peça” marca um segundo momento do enredo: Cláudio e Gertrudes saem do espetáculo constrangidos, dando veracidade às denúncias do Rei assassinado. A partir deste momento, Hamlet não mais tem dúvidas do que aconteceu com o seu pai. E a partir daqui Cláudio passa a demonstrar em suas falas a sua autoria do assassinato   e a sua intenção de afastar o seu sobrinho da Dinamarca, encaminhando-o para a Inglaterra, com ordens para ser executado.

Uma interpretação interessante da peça envolve a remissão dos personagens a orientações filosóficas presentes no contexto em que a história foi escrita.

Como dito, essa foi a mais filosófica das peças de Shakespeare. Nela não predominam os diálogos, mas aos solilóquios de Hamlet, os seus monólogos interiores, enunciados na forma de versos, que vão denotando questões existenciais típicas do pensamento filosófico. Abordam-se temas como os da morte, o envelhecimento, o desejo de vingança, a audácia e a covardia na ação política, o complexo edipiano de Hamlet perante a mãe, a corrupção política, da arte como forma expressão da realidade (encenação de “peça na peça”.).  

Há em Hamlet algo de maquiavélico. Maquiavel foi o mais popular filósofo do renascimento. É discutível que Shakespeare tenha lido “O Príncipe” já que, ao que consta, a primeira tradução em inglês da obra data de 1640, décadas depois da morte do autor. Mas em todo o caso, a noção de que a luta desesperada pelo poder admite a adoção de todos os meios possíveis, sem exame de moralidade, foi o que levou Cláudio a matar o rei Hamlet: os fins justificam os meios. E o mesmo maquiavelismo se relaciona com a ideia de que a luta política também exige uma habilidade teatral, com a qual o protagonista Hamlet simulou a sua loucura para executar o seu plano de vingança.

O rei deve reunir em si os atributos da virtude e da fortuna. A ausência de um ou de outro dará ensejo ao trágico fim da peça com o esfacelamento de toda a família real dinamarquesa.

Há em Horácio, o melhor amigo de Hamlet, elementos do estoicismo de Sêneca, pensador romano cujas peças de teatro influenciaram profundamente o teatro elisabetano. Hamlet admira seu amigo por sua serenidade e resignação. A disposição de espírito apropriada para quem aparenta a aceitar o que a fortuna o reserva desperta é atributo que desperta a simpatia de Hamlet por Horácio, ele próprio, um estudante de filosofia.

Ao fim e ao cabo, como é típico das tragédias, as controvérsias são dirimidas através da morte violenta.

Cláudio é morto após ser atravessado pela espada de Hamlet. A Rainha Gertrudes bebe por acaso um copo de vinho envenenado pelo Rei que deveria servir o príncipe e também falece. O protagonista é morto num duelo, também no último ato. Ofélia, amada por Hamlet, morre por suicídio. E a história termina com a marcha fúnebre de toda família real dinamarquesa....   

Sobre William Shakespeare

Não seria exagero dizer que William Shakespeare foi o maior dramaturgo da história das artes cênicas, desde as primeiras experiências do teatro grego, por volta do século VI a.C. É, em todo o caso, indene de dúvidas que as suas peças foram a que mais tiveram encenações por todos os cantos do mundo, com traduções para todas línguas modernas e as mais diversas adaptações na literatura e no cinema.

“Hamlet”, “Romeu e Julieta”, “Rei Lear” e “Otelo” foram não só exaustivamente encenadas mas serviram de ponto de partida para a criação e o desenvolvimento do Teatro Moderno. Ou seja, encontram-se ecos das tragédias e comédias shakespearianas em toda a produção cênica subsequente.

Para pegarmos o exemplo de “Otelo”, cuja tragédia teve como esteio a intervenção diabólica do personagem “Iago”, pode-se encontrar reverberações dessa história em peças teatrais de José de Alencar a Nelson Rodrigues, respectivamente através das peças “Demônio Familiar” e “Toda Nudez Será Castigada”, cada uma com os seus respectivos “Iagos”. Em Alencar, na figura de “Pedro”, um escravo que se utiliza de vivacidade e malícia para tumultuar a vida doméstica e satisfazer os seus interesses pessoais; e em Nelson Rodrigues pela na figura de “Patrício”, outro manipulador que corrompe tudo e todos que gravitam ao seu redor. Obviamente, os dois exemplos do teatro nacional se estendem a todo o resto do mundo.

A despeito da ampla repercussão das obras de Shakespeare, há muitas lacunas na biografia do artista, o que talvez se justifique por se tratar de um homem que viveu e atuou no século XVI, há mais de quinhentos anos, portanto. Quando escreveu a maior parte de suas peças, havia pouco mais de um século que os Europeus atingiram a América pela primeira vez; há noventa anos de diferença entre as principais peças do escritor inglês e a descoberta do Brasil, para se ter uma dimensão.

As primeiras alusões ao nome de Shakspeare em documentos históricos datam de 1592 quando foi publicada na imprensa londrina uma crítica (desfavorável) de uma de suas peças. No início do século subsequente, poucos anos após a sua morte, houve a primeira compilação de suas peças.

Sabe-se que o grosso da atividade intelectual do dramaturgo deu-se entre 1590-1613. Há até hoje o registro de 38 peças de Shakespeare, além de poemas e sonetos. Àquele tempo, não havia uma divisão de tarefas envolvendo o autor do roteiro, o diretor, o ator, o empresário e a equipe técnica. As companhias de teatro da época eram formadas por dez a quinze membros e funcionavam como cooperativa. Todos recebiam e participavam dos lucros. Além de escrever as peças, Shakespeare atuava como ator  e o que poderíamos dizer, não sem algum,  anacronismo como “empresário” que articulava e comercializava as encenações.

Os teatros da era elisabetana eram feitos de madeira, a céu aberto, com um palco que se projetava à frente, em volta do qual se punha a plateia de pé. Ao fundo havia duas portas, pelas quais os atores entravam e saíam. Não havia cenário, de tal forma que a peça começava com a entrada do primeiro ator e terminava à saída do último. Como havia uma grande proximidade do público – mormente se considerando inexistir microfone ou aparelhos amplificadores de som – trejeitos e expressões faciais dos atores eram bem percebidas. Em nenhuma hipótese havia atriz: mesmo as personagens femininas eram desempenhadas por homens.

Estima-se que milhares de pessoas assistiram as encenações de Shakespeare.

As peças foram já àquele tempo reunidas e comercializadas em livro. (O advento da imprensa através do trabalho de Johann Gutenberg deu-se cerca de 150 anos antes do nascimento do dramaturgo).

As informações disponíveis indicam que o Shakespeare terminou a vida em boas condições financeiras, o que se deu através do êxito de seu trabalho como dramaturgo. Contudo, ao final da vida, as encenações foram prejudicadas por conta da disseminação na peste negra na Inglaterra.

  Quadro: "A Visão de Hamlet" - Pedro Américo 


sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

“Um Inimigo do Povo” – Henrik Ibsen

 “Um Inimigo do Povo” – Henrik Ibsen

Resenha Livro – “Um Inimigo do Povo” - Henrik Ibsen – Ed. LP&M




 O crítico literário Otto Maria Carpeaux em seu “Estudo Crítico Sobre Ibsen” não hesita em dizer que o escritor norueguês foi o maior dramaturgo do século XIX.

Henrik Ibsen (1828/1906) poderia ser, neste sentido, classificado como uma versão “burguesa” de Shakespeare. Espécie representativa de uma era de apogeu da classe social burguesa, desde a sua emergência revolucionária no século XVIII até sua consolidação enquanto classe dominante do século subsequente, Ibsen trata das questões universais dentro de um contexto histórico bastante específico.

A arte realista, da qual Ibsen é o principal representante no Teatro, é a expressão literária do liberalismo burguês num momento histórico ainda impactado pela Revolução de 1789 e as revoluções burguesas europeias subsequentes. Essa natureza progressista da burguesia já seria mitigada em meados do século XIX sob o impacto das Revoluções de 1848, também chamadas de “Primavera dos Povos”, quando emerge o proletariado como classe que vai paulatinamente desafiando o poder burguês. É desse período as primeiras formulações do socialismo utópico e, sintomaticamente, naquele mesmo ano de 1848, em fevereiro, Karl Marx e Engels publicariam o seu “Manifesto Comunista”, o ponto de partida para a formulação de uma teoria de organização político partidária em benefício da emergente classe trabalhadora.

No século XIX a burguesia desempenha esse papel contraditório: é um elemento de progresso à medida que vai minando as bases do Antigo Regime e disseminando o liberalismo político em oposição ao absolutismo herdeiro da Idade Média: estende as conquistas da Revolução Francesa ao resto da Europa e de mundo. Mas  já se constitui também como uma força reacionária, quando desafiada pela proletariado agrupado nos novos centros urbanos.

É diante desse contexto que se pode afirmar que Ibsen foi um “Shakespeare bourgeois” – há a abordagem das grandes questões humanas, tal qual o grande dramaturgo que o precedeu, mas sob as circunstâncias típicas do século XIX. Shakespeare falava de temas universais no contexto do Renascimento. Ibsen aborda os mesmos temas universais num contexto histórico de afirmação da nova sociabilidade burguesa, da constituição das cidades, da emergência do operariado, das revoluções que põem abaixo o antigo regime, do nacionalismo que dá ensejo à unificação tardia dos Estados Nacionais Europeus (Alemanha e Itália), da afirmação da ciência, das novas tecnologias (surgimento dos telégrafos, dos bondes elétricos, dos fonógrafos, das novas linhas ferroviárias, etc.), e da crença na inefabilidade da razão e do progresso (consubstanciadas no positivismo, no evolucionismo e no darwinismo).

Toda essa situação é particularmente presente na peça “Um Inimigo do Povo” (1882) em que as tensões entre as diversas frações das classes sociais, desde o povo, passando pela pequena burguesia, até a classe dominante, interagem em luta e conciliação, em torno de problemas políticos de uma pequena cidade norueguesa.

Cada setor da sociedade tem o seu porta voz em cada um dos personagens.

O protagonista da história é o médico chamado Dr. Stockmann, idealizador de um balneário em sua cidade natal, onde banhistas de todo o país se dirigem para tratar de suas doenças  nas águas termais, indicadas para tratamentos renais e de pele, além do seu efeito calmante.  

Seu irmão, Peter, é o prefeito da cidade e aquele que mais se beneficiou do projeto do médico. Isso porque a construção do Balneário levou desenvolvimento e riqueza aos habitantes do vilarejo, consolidando o apoio popular ao governo.  

Entretanto, Dr. Stockmann descobre através de uma pesquisa científica que as fontes das águas do Balneário estavam irremediavelmente poluídas – os graves erros de saneamento, decorrentes de falhas da administração pública, estavam colocando em risco a saúde dos banhistas.

Como homem da ciência, o protagonista é inicialmente movido pela ingênua crença de que a sua descoberta seria resolvida em termos práticos: o balneário deveria ser interditado e a verdade deveria ser dita à toda comunidade. Desconsidera, neste primeiro momento, todo o problema político oriundo da divulgação da contaminação das águas, impactando negativamente o seu irmão Peter, que preside a cidade.

 

Dr. Stockmann acredita na boa fé de todos os envolvidos: a poluição das águas (ou seja, a “verdade”) deve ser dita sem rodeios ao povo e os dirigentes políticos, baseados no estudo científico, devem se limitar a executar as obras de engenharia para resolução do problema.

Num primeiro momento, Hovstad, diretor do jornal “Mensageiro do Povo” e Alasken, presidente da “Associação dos Pequenos Proprietários de Imóveis”, apoiam e incentivam Dr. Stockmann a dar publicidade a sua descoberta. O primeiro dirige um jornal de orientação democrática e popular e se propõe ser o porta voz do povo. O segundo, que a todo momento fala em “moderação”, representa a classe média e a pequena burguesia,  cujo horizonte político termina na proteção dos seus direitos de propriedade.

Ambos entendem que os setores médios, pequenos burgueses, ao estruturarem aquilo que se chama “opinião pública”, arrastam o povo ao seu redor e por isso se arvoram à condição de “maioria”.

Ambos se apoiam em Dr. Stockmann não em razão de alguma convicção em torno da verdade e do bem estar da população: desejam usar o médico para desestabilizar o governo e granjear postos nos cargos de poder.

A trama segue envolvendo um jogo de lutas e composições das classes sociais, expressando aquela forma política de natureza burguesa que comentamos.

O prefeito, ao saber dos rumores da descoberta do irmão, o confronta em sua casa, dando-lhe as primeiras lições sobre a dimensão política de sua descoberta científica: a notícia da contaminação da água faria com que toda a economia da cidade, baseada nos recursos dos visitantes do Balneário, entrasse em colapso. De maneira engenhosa, Peter igualmente mina o apoio político do irmão junto a Hovstad e Alasken: insinua que as obras de correção do Balneário implicariam num aumento expressivo dos tributos, ao passo que o pequeno burguês, a despeito da retórica jacobina, tem como primeira preocupação a proteção do seu patrimônio.

Os encargos tributários e o desmantelamento da economia local fazem com que os diferentes partidos políticos se unifiquem contra Dr. Stockmann. A verdade irrefutável da contaminação da água é relativizada pela força dos interesses políticos. Afirmam que o médico exagera. Insinuam que Dr. Stockmann busca se beneficiar da destruição do Balneário comprando ações da empresa com baixo valor no mercado. Caluniam o médico e insinuam que ele está louco ou bêbado.

Talvez a cena mais impressionante da peça está no 4º ato quando Dr. Stockmann, ainda movido por uma genuína boa-fé, mesmo após ter sido abandonado pelos seus correligionários, convoca uma grande assembleia popular para noticiar a sua descoberta.

Como um homem da ciência, sem qualquer traquejo político, sai da plenária desmoralizado pelo seu irmão, que lá comparece para contestá-lo, e também por Hovstad e Alasken, este último como “presidente” da assembleia. A direita que preside a cidade (Peter), o centro político moderado (Alasken) e a esquerda liberal e democrática (Hovstad) se unificam contra Dr. Stockmann que, por votação quase unanime, sai da assembleia designado como o “Inimigo do Povo”. Apenas um bêbado votou no médico, ou seja, apenas o bêbado se alinhou à verdade do que de fato ocorria no Balneário.

Essa experiência faz com o que o protagonista reformule a sua orientação política.

Nasce em Dr. Stockmann uma revolta contra aquilo que ele diz ser a “opinião pública”: tratava-se a grande massa silenciosa que segue bovinamente os partidos políticos a grande responsável pela corrupção política. Propõe mesmo uma “guerra revolucionária” contra a dita “opinião pública”, afirma que a democracia é a pior forma de governo e, justamente pela sua oposição às massas, caiu na armadilha dos demagogos políticos. Direita, centro e esquerda rechaçam o médico ao colocá-lo contra a população.

Dr. Stockmann é despedido da sua função de médico e toda a sua família sofre retaliações. Inicialmente movido por um desejo sincero e genuíno de fazer o bem à sua cidade e ao seu povo, chega ao final da peça à conclusão pessimista de que a verdadeira liberdade se situa dentro da alma do homem solitário.

Essa revolta de Dr. Stockman contra o povo e as massas ignorantes, em certo sentido, já adianta algumas reflexões que exsurgem ao final do século XIX; um pensamento filosófico para além do  impulso cartesiano e cientificista do qual o precursor mais lembrado foi Friederich Nietzche; a ira do protagonista ao fim da peça em muito se assemelha à revolta contra o “homem niilista” do filósofo alemão.  

O evolucionismo, o determinismo social e o positivismo pavimentaram o caminho do colonialismo europeu em África e Ásia. A missão civilizatória enunciada na ideia do “Fardo do Homem Branco” criou o neocolonismo, o imperialismo, a partilha territorial, o racismo com verniz cientificista e o massacre das populações – estima-se que no Congo, sob ocupação francesa, houve o extermínio de 60% da população. Em China, a Guerra do Ópio (1839-1842 e 1856-1860) levada adiante pelo imperialismo Britânico disseminou em larga escala o uso de entorpecente que adoeceu a sociedade chinesa. A razão e o progresso levaram o mundo à barbárie e ao conflito armado, materializado na Primeira Guerra Mundial (1914/1918). O cientificismo de Dr. Stockmann igualmente o alçou à condição do “inimigo do povo”.

Se Ibsen foi um “Shakespeare burguês”, em “Um Inimigo do Povo” ele já antecipa esse  esgarçamento do regime político dirigido pela burguesia. A solução que ele aponta, certamente reacionária, de “luta revolucionária” contra o povo, é, em todo o caso, também um sintoma do fim de uma era de otimismo em torno do Capital e de suas formas políticas de natureza liberal e burguesa.