“Um Inimigo do Povo” – Henrik Ibsen
Resenha
Livro – “Um Inimigo do Povo” - Henrik Ibsen – Ed. LP&M
Henrik
Ibsen (1828/1906) poderia ser, neste sentido, classificado como uma versão “burguesa”
de Shakespeare. Espécie representativa de uma era de apogeu da classe social
burguesa, desde a sua emergência revolucionária no século XVIII até sua
consolidação enquanto classe dominante do século subsequente, Ibsen trata das
questões universais dentro de um contexto histórico bastante específico.
A
arte realista, da qual Ibsen é o principal representante no Teatro, é a
expressão literária do liberalismo burguês num momento histórico ainda
impactado pela Revolução de 1789 e as revoluções burguesas europeias subsequentes.
Essa natureza progressista da burguesia já seria mitigada em meados do século
XIX sob o impacto das Revoluções de 1848, também chamadas de “Primavera dos
Povos”, quando emerge o proletariado como classe que vai paulatinamente
desafiando o poder burguês. É desse período as primeiras formulações do
socialismo utópico e, sintomaticamente, naquele mesmo ano de 1848, em
fevereiro, Karl Marx e Engels publicariam o seu “Manifesto Comunista”, o ponto
de partida para a formulação de uma teoria de organização político partidária em
benefício da emergente classe trabalhadora.
No
século XIX a burguesia desempenha esse papel contraditório: é um elemento de
progresso à medida que vai minando as bases do Antigo Regime e disseminando o
liberalismo político em oposição ao absolutismo herdeiro da Idade Média:
estende as conquistas da Revolução Francesa ao resto da Europa e de mundo. Mas já se constitui também como uma força
reacionária, quando desafiada pela proletariado agrupado nos novos centros
urbanos.
É diante
desse contexto que se pode afirmar que Ibsen foi um “Shakespeare bourgeois”
– há a abordagem das grandes questões humanas, tal qual o grande dramaturgo que
o precedeu, mas sob as circunstâncias típicas do século XIX. Shakespeare falava
de temas universais no contexto do Renascimento. Ibsen aborda os mesmos temas
universais num contexto histórico de afirmação da nova sociabilidade burguesa,
da constituição das cidades, da emergência do operariado, das revoluções que põem
abaixo o antigo regime, do nacionalismo que dá ensejo à unificação tardia dos Estados
Nacionais Europeus (Alemanha e Itália), da afirmação da ciência, das novas
tecnologias (surgimento dos telégrafos, dos bondes elétricos, dos fonógrafos, das
novas linhas ferroviárias, etc.), e da crença na inefabilidade da razão e do
progresso (consubstanciadas no positivismo, no evolucionismo e no darwinismo).
Toda
essa situação é particularmente presente na peça “Um Inimigo do Povo” (1882) em
que as tensões entre as diversas frações das classes sociais, desde o povo,
passando pela pequena burguesia, até a classe dominante, interagem em luta e
conciliação, em torno de problemas políticos de uma pequena cidade norueguesa.
Cada
setor da sociedade tem o seu porta voz em cada um dos personagens.
O
protagonista da história é o médico chamado Dr. Stockmann, idealizador de um balneário
em sua cidade natal, onde banhistas de todo o país se dirigem para tratar de suas
doenças nas águas termais, indicadas
para tratamentos renais e de pele, além do seu efeito calmante.
Seu
irmão, Peter, é o prefeito da cidade e aquele que mais se beneficiou do projeto
do médico. Isso porque a construção do Balneário levou desenvolvimento e
riqueza aos habitantes do vilarejo, consolidando o apoio popular ao governo.
Entretanto,
Dr. Stockmann descobre através de uma pesquisa científica que as fontes das
águas do Balneário estavam irremediavelmente poluídas – os graves erros de
saneamento, decorrentes de falhas da administração pública, estavam colocando
em risco a saúde dos banhistas.
Como
homem da ciência, o protagonista é inicialmente movido pela ingênua crença de
que a sua descoberta seria resolvida em termos práticos: o balneário deveria
ser interditado e a verdade deveria ser dita à toda comunidade. Desconsidera,
neste primeiro momento, todo o problema político oriundo da divulgação da
contaminação das águas, impactando negativamente o seu irmão Peter, que preside
a cidade.
Dr.
Stockmann acredita na boa fé de todos os envolvidos: a poluição das águas (ou
seja, a “verdade”) deve ser dita sem rodeios ao povo e os dirigentes políticos,
baseados no estudo científico, devem se limitar a executar as obras de
engenharia para resolução do problema.
Num
primeiro momento, Hovstad, diretor do jornal “Mensageiro do Povo” e Alasken,
presidente da “Associação dos Pequenos Proprietários de Imóveis”, apoiam e
incentivam Dr. Stockmann a dar publicidade a sua descoberta. O primeiro dirige
um jornal de orientação democrática e popular e se propõe ser o porta voz do
povo. O segundo, que a todo momento fala em “moderação”, representa a classe
média e a pequena burguesia, cujo horizonte
político termina na proteção dos seus direitos de propriedade.
Ambos
entendem que os setores médios, pequenos burgueses, ao estruturarem aquilo que
se chama “opinião pública”, arrastam o povo ao seu redor e por isso se arvoram
à condição de “maioria”.
Ambos
se apoiam em Dr. Stockmann não em razão de alguma convicção em torno da verdade
e do bem estar da população: desejam usar o médico para desestabilizar o governo
e granjear postos nos cargos de poder.
A
trama segue envolvendo um jogo de lutas e composições das classes sociais,
expressando aquela forma política de natureza burguesa que comentamos.
O prefeito,
ao saber dos rumores da descoberta do irmão, o confronta em sua casa, dando-lhe
as primeiras lições sobre a dimensão política de sua descoberta científica: a
notícia da contaminação da água faria com que toda a economia da cidade,
baseada nos recursos dos visitantes do Balneário, entrasse em colapso. De
maneira engenhosa, Peter igualmente mina o apoio político do irmão junto a Hovstad e Alasken: insinua que as obras de correção do
Balneário implicariam num aumento expressivo dos tributos, ao passo que o
pequeno burguês, a despeito da retórica jacobina, tem como primeira preocupação
a proteção do seu patrimônio.
Os
encargos tributários e o desmantelamento da economia local fazem com que os
diferentes partidos políticos se unifiquem contra Dr. Stockmann. A verdade
irrefutável da contaminação da água é relativizada pela força dos interesses
políticos. Afirmam que o médico exagera. Insinuam que Dr. Stockmann busca se
beneficiar da destruição do Balneário comprando ações da empresa com baixo
valor no mercado. Caluniam o médico e insinuam que ele está louco ou bêbado.
Talvez
a cena mais impressionante da peça está no 4º ato quando Dr. Stockmann, ainda
movido por uma genuína boa-fé, mesmo após ter sido abandonado pelos seus correligionários,
convoca uma grande assembleia popular para noticiar a sua descoberta.
Como
um homem da ciência, sem qualquer traquejo político, sai da plenária
desmoralizado pelo seu irmão, que lá comparece para contestá-lo, e também por Hovstad
e Alasken, este último como “presidente” da assembleia. A direita que preside a
cidade (Peter), o centro político moderado (Alasken) e a esquerda liberal e
democrática (Hovstad) se unificam contra Dr. Stockmann que, por votação quase
unanime, sai da assembleia designado como o “Inimigo do Povo”. Apenas um bêbado
votou no médico, ou seja, apenas o bêbado se alinhou à verdade do que de fato
ocorria no Balneário.
Essa
experiência faz com o que o protagonista reformule a sua orientação política.
Nasce
em Dr. Stockmann uma revolta contra aquilo que ele diz ser a “opinião pública”:
tratava-se a grande massa silenciosa que segue bovinamente os partidos políticos
a grande responsável pela corrupção política. Propõe mesmo uma “guerra
revolucionária” contra a dita “opinião pública”, afirma que a democracia é a
pior forma de governo e, justamente pela sua oposição às massas, caiu na
armadilha dos demagogos políticos. Direita, centro e esquerda rechaçam o médico
ao colocá-lo contra a população.
Dr.
Stockmann é despedido da sua função de médico e toda a sua família sofre
retaliações. Inicialmente movido por um desejo sincero e genuíno de fazer o bem
à sua cidade e ao seu povo, chega ao final da peça à conclusão pessimista de
que a verdadeira liberdade se situa dentro da alma do homem solitário.
Essa
revolta de Dr. Stockman contra o povo e as massas ignorantes, em certo sentido,
já adianta algumas reflexões que exsurgem ao final do século XIX; um pensamento
filosófico para além do impulso
cartesiano e cientificista do qual o precursor mais lembrado foi Friederich Nietzche;
a ira do protagonista ao fim da peça em muito se assemelha à revolta contra o “homem
niilista” do filósofo alemão.
O
evolucionismo, o determinismo social e o positivismo pavimentaram o caminho do
colonialismo europeu em África e Ásia. A missão civilizatória enunciada na
ideia do “Fardo do Homem Branco” criou o neocolonismo, o imperialismo, a
partilha territorial, o racismo com verniz cientificista e o massacre das
populações – estima-se que no Congo, sob ocupação francesa, houve o extermínio
de 60% da população. Em China, a Guerra do Ópio (1839-1842 e 1856-1860) levada
adiante pelo imperialismo Britânico disseminou em larga escala o uso de
entorpecente que adoeceu a sociedade chinesa. A razão e o progresso levaram o
mundo à barbárie e ao conflito armado, materializado na Primeira Guerra Mundial
(1914/1918). O cientificismo de Dr. Stockmann igualmente o alçou à condição do “inimigo
do povo”.
Se
Ibsen foi um “Shakespeare burguês”, em “Um Inimigo do Povo” ele já antecipa esse
esgarçamento do regime político dirigido
pela burguesia. A solução que ele aponta, certamente reacionária, de “luta
revolucionária” contra o povo, é, em todo o caso, também um sintoma do fim de
uma era de otimismo em torno do Capital e de suas formas políticas de natureza liberal
e burguesa.
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