domingo, 23 de junho de 2024

“Helena” – Machado de Assis

                                                “Helena” – Machado de Assis




Resenha Livro - “Helena” – Machado de Assis – Iba Mendes Editor Digital

Existe uma forma tradicional de se deliminar a obra de Machado de Assis em duas grandes fases.

Num primeiro momento, de acordo com essa teoria, seus romances estiveram circunscritos ao romantismo literário. E, com a publicação de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881), teria havido o grande salto qualitativo do escritor, quando foram estabelecidas as bases do realismo-naturalismo  literário em terras brasileiras.

Essa forma tradicional de caracterizar a obra do escritor deve ser vista com alguma ressalva.

Vistos todos os livros, de conjunto, é possível de se perceber todas as tendências intelectuais e artísticas do seu próprio tempo. Tanto na condição e escritor, como em seu trabalho como crítico literário, deu contribuições para o romantismo, realismo, naturalismo, impressionismo, parnasianismo e simbolismo, sem se filiar a nenhuma destas escolas em particular, delas, por outro lado, extraindo elementos para a criação de um estilo próprio[1].  

Válido ainda mencionar que a forma tradicional de delimitar uma fase romântica e outra realista em Machado de Assis acaba desconsiderando que o escritor transitou por outros gêneros literários que não só o romance. Publicou poemas, peças de teatro, crítica literária e crônicas jornalísticas.

Em todo o caso, também não parecer haver dúvidas de que a literatura de Machado de Assis passa por duas etapas bem diferenciadas.

Poderíamos falar de uma “fase de aprendizagem”, quando de fato predominam os elementos românticos e sua obra tem um caráter mais convencional.

Dessa primeira fase fazem parte os quatro primeiros romances do escritor fluminense: “Ressurreição” (1872), “A Mão e a Luva”   (1874), “Helena” (1876) e “Iaiá Garcia” (1876).

O divisor de águas entre a fase de maturação e o pleno vigor intelectual do artista deu—se, como dito, a partir do “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881).

A partir daqui vemos aquele desencanto pessimista misturado com o humor e a ironia que se opõem às tendências de idealização da vida e do amor, que por sua vez marcaram as obras de juventude.

A pouco verossímil qualidade atribuída aos personagens românticos, que constantemente renunciam aos seus interesses individuais em detrimento de convicções morais ou exigências sociais, como se dá com a personagem Helena em seu romance homônimo, é substituída agora pelo desnudamento do homem dotado de fraqueza, incoerência e oportunismo, como evidenciado no protagonista Brás Cubas do Memórias Póstumas.   

Em ambas as fases, contudo, verifica-se um denominador comum: a arte deve exprimir a vida e em particular o universo moral dos indivíduos.

A arte exprimindo a vida seja para idealizá-la, como ocorre na dita “fase romântica” como para copiá-la na chamada fase “realista”.

Num primeiro momento, a descrição da vida tem fins nitidamente moralizantes, sem pretensão de desafiar as regras sociais vigentes e, de certa maneira, dentro de um conformismo político.

Num segundo momento,  essa descrição da vida terá fins mais filosóficos, ao buscar desnudar as contradições do indivíduo e criticá-lo impiedosamente, autorizando, com isso, o questionamento das regras sociais vigentes.  

Neste marco, também se escuta bastante daqueles que estudam a obra de Machado de Assis um certo “apoliticismo” do escritor, que inclusive pode ser visto de uma forma negativa, especialmente nos romances da primeira etapa, que remontam ao universo burguês citadino, e, frequentemente,  desconsideram as desigualdades sociais e a principal chaga social da época: a escravidão.

Esse ponto de vista também é discutível.

Mesmo em “Helena” (1876), um livro tipicamente romântico, voltado um público feminino da classe dominante do Brasil do II Império, tanto o tema da escravidão como o da pobreza estão presentes na obra, ainda que de forma tangencial.  

Pode-se dizer que a história social está presente na narrativa machadiana mas via de regra é apenas captada como um reflexo do universo moral das individualidades – há, neste sentido, uma descrição incidental do Brasil do II Império e sua transição para a República, inclusive na sua chamada “fase romântica”. Mas, evidentemente, o romance de Machado de Assis pode ser caracterizado de diversas formas, menos como arte voltada ao proselitismo político.  

Sobre o Romance Helena.

“Helena” foi publicado em folhetins entre agosto e setembro de 1876 pelo jornal “O Globo”. Foi reunido naquele mesmo ano num volume único pelo editor Baptiste-Louis Garnier.

Consta ter sido um sucesso de público: foi, aliás, escrito quando o escritor já era conhecido e consagrado pelo pequeno público leitor da época.

A história se passa em meados do século XIX na cidade do Rio de Janeiro.

Após a morte por apoplexia do Conselheiro Vale, um rico potentado do Rio de Janeiro, seu filho e herdeiro Estácio recebe através do testamento a informação de que seu pai, conhecido em vida pela infidelidade conjugal, deixara uma filha oriunda de relacionamento ilícito. Como última disposição, o morto manifestou a vontade de que essa descendente fosse acolhida como filha legítima e parte da família.

Esta filha é Helena, a protagonista da história.

Ao chegar à casa do falecido Conselheiro, aos dezessete anos de idade, é vista com reservas, não tanto pelo seu meio irmão, mas por D. Úrsula, senhora de idade, beata e irmã do Conselheiro. Contudo, as qualidades morais de Helena e mesmo a sua beleza vão aos poucos desconstituindo todas as reservas, inclusive da severa tia de Estácio:   

Helena tinha os predicados próprios a captar a confiança e a afeição da família. Era dócio, afável, inteligente. Não eram estes, contudo, nem ainda a beleza, os seus dotes por excelência eficazes. O que a tornava superior e lhe dava probabilidade de triunfo, era a arte de acomodar-se às circunstâncias do momento e toda a casta de espíritos, arte preciosa, que faz hábeis os homens e estimáveis as mulheres”.

A afeição entre a protagonista e o seu meio irmão vão se acentuando ao ponto de sugerir cada vez mais ao leitor a existência de um amor proibido, posto que incestuoso.

Helena e Estácio cresceram em famílias separadas: não aprenderam a falar pelos lábios da mesma mãe. Quis a fortuna que entre os dois não houvesse a imagem da infância comum e a comunhão dos primeiros anos. Em plena mocidade, passaram, do total desconhecimento um do outro para a intimidade de todos os dias no lar comum. Circunstâncias que fizeram brotar um amor impossível, que, aliás, não era sequer percebido de forma consciente por Estácio.

Posteriormente, este sentimento terá outros desdobramentos diante da impactante notícia de que o Conselheiro Vale não fora efetivamente o pai biológico de Helena.

Essa descoberta se deu após Estácio confrontar Salvador, um homem em situação de miséria que morava numa chácara próxima da residência do Conselheiro.

Helena de forma clandestina diariamente visitava aquela casa, até quando seu irmão, voltando de uma caçada, viu a protagonista se despedindo daquele homem velho,  naquela palhoça em situação de abandono. Num primeiro momento, pensa se tratar de um enlace amoroso que levaria à desgraça e desmoralização de Helena, até então vista como a mais cândida das criaturas. De uma forma previsível, ao melhor estilo romântico, a pureza de intenções da protagonista será depois confirmada: Salvador era de fato o pai de Helena e não o seu amante. Já a mãe de Helena abandonou Salvador para viver em melhores condições na companhia do Conselheiro Vale, ainda que na forma de uma relação extraconjugal e clandestina. Àquele momento, Helena era uma criança: Salvador aceita o triste destino, com a esperança, depois confirmada, de que o Conselheiro premiaria sua filha pobre com um bom legado.  

Após a descoberta do segredo envolvendo o passado da protagonista, fica também evidenciada a possibilidade do amor entre Estácio e Helena: ambos não são irmãos. Mas, mesmo deixando de ser um amor incestuoso, ainda havia a barreira social, esta tão intransponível quanto a barreira moral. Reconhecida até então como filha do Conselheiro, passaria a ser identificada como descendente de um simples artesão.

Ao término da história, Helena falece após a forte comoção oriunda da revelação da do seu passado.  O amor impossível entre ela e Estácio apenas poderia se resolver através desta forma.

Machado de Assis no prefácio do livro reforça aquilo que expusemos anteriormente: Helena é uma obra de juventude, parte da fase de maturação artística.

Ainda assim, demonstrou alguma satisfação com o resultado do livro:

Esta nova edição de Helena sai com várias emendas de linguagem e outras, que não alteram a feição do livro. Ele é o mesmo da data em que o compus e imprimi, diverso do que o tempo me foi depois, correspondendo assim ao capítulo da história do meu espírito, naquele ano de 1876.

Não me culpeis pelo que lhe achardes romanesco. Dos que então fiz, este me era particularmente prezado. Agora mesmo, que há tanto me fui a outras e diferentes páginas, ouço um eco remoto ao reler estas, eco da mocidade e fé ingênua. É claro que, em nenhum caso, lhes tiraria a feição passada; cada obra pertence ao seu tempo.



[1] de Moraes, V. L. A. (2008). Helena: Construções e contradições. Revista Da Anpoll, 1(24). https://doi.org/10.18309/anp.v1i24.16

sábado, 1 de junho de 2024

A Poesia de Patativa do Assaré: o trovador nordestino

 A Poesia de Patativa do Assaré: o trovador nordestino.





Resenha Livro – “Cante lá que eu canto cá: filosofia de um trovador nordestino” – Patativa do Assaré – Ed. Vozes.

“Arguém diz que o mundo presta,

Grita mermo em arto som,

Mas é tolo e nada sabe

Quem diz que este mundo é bom.

Como é que ele tem bondade

Se a nossa felicidade

Voa como pensamento

E da praça inté no campo

O gozo é cumo relampo

Que abre e fecha num momento

Dêrne do primero dia,

Que Adão mais Eva pecou,

A rosa criou espinho,

Tudo se desmantelou.

E Deus vendo que a desgraça

De Adão, o chefe da raça,

Precisava sê comum,

Depressa sentenciou,

E uma pacela de dô,

Reservou para cada um.

(A Menina e a Cajazera)

Patativa é uma pequena ave cujo canto é fino e melodioso, imitando em alguns casos os sons do bem-te-vi. O seu nome científico é Sporophila plúmbea, que dignifica (Ave) cor de chumbo que gosta de sementes.

Foi a ave que batizou o poeta sertanejo Antônio Gonçalves da Silva (1909/2002) nascido na cidade de Assaré, situada no sertão do estado do Ceará.

A relação do poeta com o passarinho decorre da forma e do conteúdo dos seus versos.

 Na forma, pelo fato de Patativa do Assaré exprimir a sua poesia através da oralidade: desde criança, cantava em verso as histórias de sua terá natal.  Sua obra em livros na verdade são coletâneas de poemas que cantava e sabia de memória, recitando-os de cabeça até os noventa anos de idade.

No conteúdo pelo fato de sua poesia ser uma afirmação dos sentimentos da terra: a percepção direta da natureza e da sociedade rural do sertão são os fatos geradores da arte. Nela nada há de cerebrino: há uma espécie de filosofia telúrica cujas ideias estão intimamente relacionadas à experiência e a vivência com a terra. Neste último ponto, foi uma espécie de versão brasileira de Alberto Caeiro, heterônimo do poeta português Fernando Pessoa: são poetas ligados à natureza, captada através da simplicidade das palavras e de uma profunda emotividade.

A poesia exurge de forma tão natural quanto o canto da ave.

Veja neste sentido “Aos Poetas Clássicos”

“Poetas niversitário,

Poetas de Cademia,

De rico vocabularo

Cheio de mitologia;

Se a gente canta o que pensa,

Eu quero pedir licença,

Pois mesmo sem português

Neste livrinho apresento

O prazê e o sofrimento

De um poeta camponês.

(...)

Na minha pobre linguage

A minha lira servage

Canto o que minha arma sente

E o meu coração incerra,

As coisa de minha terra

E a vida de minha gente.

(“Aos poetas clássicos”).  

 De outro lado, a percepção do imediato não se limita à contemplação da natureza mas à crítica social: a denúncia do latifúndio, a exposição da miséria do retirante, o problema da manipulação política dos coronéis. Porém, o sofrimento do homem do sertão não estimula o poeta ao rompimento com os seus laços da terra. Com todos os problemas, ainda afirma que sua felicidade repousa no canto da terra onde nasceu.

Sobre a infância do poeta, válido citar a “autobiografia” tratada pelo poeta no prefácio do livro “Cante Cá que eu Canto Lá”:

“Eu, Antônio Gonçalves da Silva, filho de Pedro Gonçalves da Silva, e de Maria Pereira da Silva, nasci aqui, no Sítio denominado Serra de Santana, a três léguas da cidade do Assaré. Meu pai, agricultor muito pobre, era possuidor de uma pequena parte da terra, a qual depois de sua morte foi dividida entre cinco filhos que ficaram, quatro homens e uma mulher. Eu sou o segundo filho. Quando completei oito anos fiquei órfão de pai e tive que trabalhar muito, ao lado de meu irmão mais velho, para sustentar os mais novos pois ficamos em completa pobreza”

Apenas frequentou a escola aos doze anos e nela ficou por quatro meses, sem interromper o trabalho na roça. Apenas aprendeu a ler, e depois nunca frequentou um banco escolar. Ainda,  perdeu a visão de um olho na infância por conta de sarampo.

Aos 16 anos, comprou o violão e começou a fazer repentes e a cantar de improviso. Fazia apresentações em festas populares. E a poesia continuou a fazer parte de sua vida junto com o trabalho no campo: morreu aos 93 anos na mesma cidade de Assaré, a despeito de ter sido reconhecido como o grande poeta popular brasileiro já em vida. Basta dizer que foi agraciado ainda em vida como Doutor Honoris Causa em mais de uma universidade, além de ter sido criada uma universidade naquele estado que leva o seu nome e funciona até os dias e hoje.

O leitor que tem contato com a poesia de Patativa do Assaré é levado à conclusão de que nem sempre a afirmação da tradição está em contradição com a crítica social que sugere grandes transformações do mundo.

Sua ideologia cabocla, em oposição à modernidade, aspira a justiça social. A forma visionária e lúdica com que descreve o mundo sertanejo nos faz lembrar de um mundo rural em vias de extinção com  a troca do engenho de pau pelo engenho de ferro e depois pela Usina capitalista. Os filhos dos camponeses que se aventuram na cidade, tornam-se vítimas da exploração do patrão da indústria e estão sujeitos à desgraça do crime e da prostituição. O crescimento da cidade vai fazendo evaporar aquele mundo rural secular.

Curiosamente, essas ideias o tornariam hoje um “dissidente” em oposição à fragmentação e desmantelamento dos laços comunitários típicos da modernidade e da sociabilidade liberal e capitalista.

 

domingo, 5 de maio de 2024

“Morte e Vida Severina” – João Cabral de Melo Neto

 “Morte e Vida Severina” – João Cabral de Melo Neto



Resenha Livro – “Morte e vida severina e outros poemas para vozes” – João Cabral de Melo Neto – Ed. Nova Fronteira

“E se somos Severinos

Iguais em tudo na vida,

Morremos de morte igual,

Mesma morte severina:

Que é a morte de que se morre

De velhice antes dos trinta,

De emboscada antes dos vinte,

De fome um pouco por dia

(de fraqueza e de doença

É que a morte severina

ataca em qualquer idade

e até gente não nascida.)”.

O primeiro livro de poesias publicado pelo escritor pernambucano João Cabral de Melo Neto data de 1942, quando o artista acabara de se transferir do Nordeste ao Rio de Janeiro. Na cidade que era então o centro político e cultural do país,  entrou em contato com um círculo intelectual do qual participavam Manuel Bandeira, Vinícius de Morais e Carlos Drummond de Andrade, este último considerado por Cabral de Melo como o maior poeta brasileiro de todos os tempos. Consta ter sido convencido acerca de sua vocação de poeta após ter lido “Alguma Poesia” (1930), que reúne os mais conhecidos versos do poeta de Itabira.

Contudo, certamente o trabalho mais conhecido de Cabral de Melo Neto foi “Morte e Vida Severina” (1954/1955) escrito treze anos depois do início da sua trajetória literária.

O poema foi elaborado com a finalidade de encenação, mas por razões financeiras, sua exibição no teatro se deu apenas no ano de 1966, numa apresentação no TUCA onde se situa a PUC/SP: era um importante centro político-cultural,  que agrupava o movimento estudantil para realização de atividades como exibições de filmes, debates, assembleias, encenações teatrais e apresentações musicais. O teatro se notabilizaria com os eventos de 22.09.1977 quando uma assembleia de cerca de dois mil estudantes, convocada para a reconstrução da UNE, foi dissolvida por uma ação policial violenta, envolvendo três mil soldados, ensejando pela repressão uma nova onda de protestos estudantis que seria um dos eixos do movimento de redemocratização do Brasil.

Certamente, “Morte  e Vida Severina” tinha um claro conteúdo político, de denúncia da miséria social nordestina através do personagem Severino, representativo do retirante que abandona o Sertão, passa pelo agreste e chega ao Recife, fugindo da morte em direção ao mar tal qual as águas do Rio Capiberibe, que segue o mesmo itinerário no poema “O Rio”.

Contudo, não é propriamente a denúncia social ou a crítica política do latifúndio e da miséria da população camponesa o que dá o tom da poesia cabralina.

O que nela há de comum é o elemento telúrico, a descrição da terra natal através da memória da infância. A história da terra tratada nos poemas envolve inclusive a memória do grande líder da Confederação do Equador, Frei Caneca, novamente denotando a forte relação do poeta com as suas raízes pernambucanas, como exposto no poema “Auto do Frade” (1984).

E, além desse elemento telúrico, outro aspecto representativo da poesia de Melo Neto é a morte: no caso do seu mais conhecido poema, “a morte em vida”, e “a vida em morte”: o retirante que morre aos poucos, já envelhecido aos trinta anos de idade (“morte em vida”); e a cova para onde o retirante inexoravelmente marcha, e que corresponde à uma parte da terra que em vida queria ver dividida (“vida em morte”):

“- Essa cova em que estás,

com palmos medida,

é a conta menor que tiraste em vida.

- É de bom tamanho, nem largo nem fundo,

é a parte que te cabe neste latifúndio.

- Não é cova grande,

é cova medida,

é a terra que querias

ver dividida.”

Esses dois elementos essenciais da poesia cabralina, a morte e a descrição da sua terra natal, remontam ambas à origem do escritor.

Nascido no Recife em 09 de janeiro de 1920, passou a infância no engenho do Poço do Aleixo, em São Lourenço da Mata, interior de Pernambuco, às margens do Rio Capiberibe, que é reiteradamente mencionado nos versos. Estudou num colégio religioso, que lhe incutiu o pavor da morte.  

Válido pontuar que a maior parte dos poemas foram escritor quando o escritor residia fora do país, exercendo a função de diplomata em Espanha, Paraguai e Senegal. Foi através das suas memórias de menino que elaborou poesias carregadas de imagens, plenamente adaptáveis ao teatro e ao cinema.

A mesma arte telúrica rememorativa da infância de José Lins do Rego na sua descrição da decadência dos velhos engenhos de açúcar, e sua substituição, através da reestruturação produtiva do capitalismo tardio, em Usinas que desertificam as vilas, expulsam seus moradores da cidade e tornam todo o seu arredor, até o alcançar da vista, em plantações de cana.

Cite-se o mencionado poema “O Rio” de Cabral de Melo Neto:

“A usina possui sempre

uma moenda de nome inglês;

o engenho, só a terra

conhecida como massapê”.   

No que toca à morte, trata-se do fio condutor de pelo menos três dos seus poemas mais conhecidos: “Morte e Vida Severina”; “Auto do Frade”; e “O Rio”.  

Em Morte e Vida Severina, o retirante se depara com diferentes espécies de morte.

No seu caminho do sertão ao mar, se depara com homens carregando um defunto numa rede. Tratava-se da “morte matada”: o defunto foi assassinado à bala por conta de disputas de terra.

Depois, ao chegar em Recife e próximo ao cemitério, ao escutar o diálogo de dois coveiros, se depara com a “morte morrida”: são as mortes em alta escala dos retirantes, que morrem dia a dia, aos poucos, chegando à velhice antes dos trinta. Trata-se de uma morte não dissociada das desigualdades sociais: o coveiro prefere trabalhar no cemitério dos ricos onde o volume de trabalho é menor e há a possibilidade de se ganhar gorjetas.

A vida segue através de um fio condutor que a leva até a morte.

Este trajeto de repete no poema “O Rio” em que o Capiberibe parte do sertão para desaguar e se diluir no infinito do mar. Através dessa viagem, o poeta vai traçando as vilas, o povo e os sertanejos que se servem dos trajetos dos rios para conduzi-los até o Recife em fuga da seca. Neste itinerário, também se depara com a morte e miséria dos retirantes.

O mesmo fio desde a vida até a morte se revela por fim no poema épico “Auto do Frade” (1984). Nele se descreve o cortejo popular que acompanha o líder da revolta separatista conhecida como “Confederação do Equador”, desde a prisão até a praça pública onde será executado.

Ainda que todos os caminhos levem à morte, seja a do rio em direção ao mar, seja do retirante em direção à cidade, seja o mártir em direção à forca, ainda há um balanço positivo.

Ao final de “Morte Vida Severina”, quando Severino testemunha o nascimento de uma criança filha da miséria, o leitor é levado à conclusão de que essa vida miserável do retirante, essa “vida severina”, ainda assim é digna de ser vivida:

“E não há melhor resposta

que o espetáculo da vida:

vê-la desfiar seu fio,

que também se chama vida,

ver a fábrica que ela mesma

teimosamente, se fabrica,

vê-la bbrotar como há pouco

em nova vida explodida;

mesmo quando é assim pequena

a explosão, como a ocorrida;

mesmo quando é uma explosão

como a de há pouco, franzina;

mesmo quando é a explosão

de uma vida severina.

mesmo quando é uma explosão

como a de há pouco, franzina;  

 

Bibliografia: COIMBRA, Glayce Rocha Santos. A Morte Severina em Cândido Portinari e em João Cabral de Melo Neto. 2012. 155 f. Dissertação (Mestrado em Processos e Sistemas Visuais, Educação e Visualidade) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2012.

quarta-feira, 1 de maio de 2024

“O Conde d’Abranhos” – Eça de Queiroz

 “O Conde d’Abranhos” – Eça de Queiroz





Resenha Livro - “O Conde d’Abranhos” – Eça de Queiroz – Ed Iba Mendes

 

José Maria de Eça de Queirós nasceu em 25 de novembro de 1845 na Póvoa de Varzim em Portugal. Seu pai fora magistrado, formado em Direito em Coimbra e amigo pessoal de Camilo Castelo Branco, expoente do romancismo português.

Aos dezesseis anos Eça de Queirós também ingressou no curso de Direito em Coimbra, quando publicou seus primeiros trabalhos literários. Posteriormente, o escritor exerceria a advocacia e o jornalismo, até o ano de 1870, quando ingressou na administração pública na condição de gestor da vereança de Leiria. O fato é de destaque desde que Leiria é o local onde se passa a maior parte dos eventos de um dos seus livros mais conhecidos, “Crime do Padre Amaro”. (1875)

Em 1873, Eça de Queirós ingressa na carreira diplomática, exercendo cargos oficiais em Havana, Newcastle e Bristol. É a partir deste período que escreve os seus principais romances: “O Primo Basílio” (1878), “Os Maias” (1888), além do mencionado “Crime” de 1875.

Não seria exagero dizer que foi um dos maiores escritores portugueses de todos os tempos, sendo certamente o ponto mais alto do romance em língua portuguesa do século XIX.

Foi precursor do realismo literário em língua portuguesa, movimento que propunha a superação da tradição romântica, a ela se opondo especialmente no que toca à idealização da realidade: a proposta no realismo é descrevê-la de forma objetiva, com a intenção crítica, o que em Eça de Queiroz se dá através da caricatura, ou seja, do humor.

O marco inicial do realismo em Portugal se deu em torno da Questão Coimbrã.

Trata-se de uma batalha intelectual em torno da literatura que opôs de um lado a tradição romântica, com o seu conservadorismo, formalismo e academicismo e de outro lado jovens estudantes de Coimbra que salientavam a falsidade na forma romântica de percepção da realidade e propunham não só a mera descrição objetiva do mundo mas uma crítica que ensejasse transformações sociais.

Fala-se em batalha intelectual por se tratar efetivamente de um conflito cuja dimensão ia além do problema literário: tratava-se de uma lide envolvendo o tradicionalismo/conservadorismo em oposição à modernização/liberalismo.

Ainda sob o impacto da Revolução Francesa e das revoluções burguesas subsequentes, os jovens escritores, particularmente Eça de Queiroz, tinham intenção de ridicularizar e demolir velhas tradições: desde o casamento e a fidelidade conjugal em Primo Basílio, passando ao falso moralismo do clero e a beatice carola de mulheres desocupadas em O Crime do Padre Amaro. 

A arte realista é a expressão literária do liberalismo burguês num momento histórico ainda impactado pela Revolução de 1879 e as revoluções burguesas europas subsequentes. Trata-se de uma época muito anterior ao completo estado de composição do liberalismo hoje visto.

 De uma certa maneira, a própria evolução histórica de Portugal, país pioneiro na Europa na sua constituição de Estado Nacional desde a Revolução de Avis (1383), mas país retardatário no que diz respeito ao desenvolvimento do capitalismo industrial, especialmente se comparado a países como Inglaterra, França e Alemanha: este desenvolvimento histórico suis generis faria muito provavelmente com que a disseminação de ideias liberais e republicanas em Portugal ensejasse maiores conflitos diante da sobrevivência e resquício do misticismo religioso. Lá o peso da tradição fez com que a monarquia acabasse em 1910, mais de vinte anos depois do Brasil e mais de um século depois da França.

Dentre as principais características do realismo literário podemos citar a objetividade em oposição ao subjetivismo que informam as narrativas românticas; a crítica social com um intuito reformador, podendo se dizer que a proposta realista coincide com a visão social de mundo burguesa no contexto do capitalismo em sua fase industrial. Ênfase na descrição da vida cotidiana, de modo que os cenários passam também a remeter ao ambiente urbano, local onde se encontram os tipos sociais, desnudando especialmente os interesses pessoais que informam a conduta de padres, beatas, bacharéis, jornalistas, comerciantes etc. Esta forma descritiva foge bastante da tendência da idealização romântica, dando uma feição mais humana e verdadeira aos personagens em suas relações. Por vezes, esse realismo está contaminado da visão de mundo liberal e o seu consectário mais evidente: o individualismo, sugerindo a percepção de que os personagens não se mobilizam para nada que não seja o seu interesse imediato.

Neste marco, o Conde D’abranhos (1925 – póstumo) é talvez o livro em que Eça de Queiroz levou mais ao extremo a sua capacidade de traçar caricaturas para realizar a crítica e o deboche, neste livro em particular, centrando sua munição na classe política portuguesa.

O protagonista é um nome fictício de um político absolutamente inescrupuloso, que segue numa escala ascendente de poder sempre através da esperteza e da sorte, e nunca através do merecimento.

Quando estudante de Direito em Coimbra, já no primeiro ano, se notabiliza por dedurar um colega rebelde, que gracejava com o professor, acarretando de um lado a expulsão do estudante infrator e de outro o seu bom relacionamento com o professor ofendido. A bajulação fez como que fosse aprovado com notas de louvor, a despeito da sua mediocridade intelectual.

Filho de um simples alfaiate, desde cedo tem pavor à pobreza e se beneficia de uma tia rica, com quem passa a viver e é quem banca os seus estudos.  Posteriormente, quando esta tia velha se decide a se casar com um belo jovem, vê-se horrorizado pela concorrência em torno do espólio da parente rica.

Inicia sua trajetória no jornalismo, escrevendo matérias em benefício de um político que sustenta a imprensa. Casa-se com uma filha de desembargador, herdeira de 12 mil contos. E através destes contatos vai galgando cargos de poder até se tornar ministro de estado.

O ponto culminante da carreira política se dá após a sua nomeação como Ministro da Marinha. Curiosamente, o Conde nunca vira o mar, e mal sabia distinguir onde se localizavam no mapa as colônias portuguesas.

Obviamente, a sua nomeação se deu após lance de sorte (a morte de um concorrente) e a traição ao partido da ocasião, para passar ao lado do campo político oposicionista que se projetava no poder. Na política portuguesa, a disputa não se centra em torno do horizonte ideológico ou da visão social de mundo, mas nos meios pelos quais se garante a manutenção no poder. Afinal, nas palavras do Conde, seria um horror e uma humilhação sair-se derrotado com os governistas e ser obrigado ao retorno doméstico para cuidar da mulher e do filho. Mais desejável foi bandear-se no momento oportuno para a oposição.

O efeito humorístico fica acentuado na forma como a história é contada: ela é narrada por um secretário particular do Conde, favorecido em vida e bajulador do Conde mesmo após a sua morte. Decide escrever a biografia e sempre busca justificar e tergiversar as trapaças do falecido. Precisa forçar tanto a barra para limpar a imagem do Conde que só acentua nas suas considerações o tom engraçado com que descreve  desvio de caráter do político.

A caricatura se estende aos demais personagens.

Numa passagem do Conde D’abranhos, o escritor descreve aquilo que seria um discurso no parlamento português e assim traça a fisionomia de um parlamentar:

“Este personagem, com efeito, pela face redondinha e jovial, de óculos de ouro, por todo o seu serzinho barrigudo, pela untuosidade vaga das suas palavras, pela plácida polidez, assemelhava-se ao amável filantropo, cheio de provérbios e de virtude, de que o livro querido onde aprendemos a soletrar. O seu discurso foi a repetição das mesmas injúrias, mas em uma voz suave e chorosa”. 

Veja-se que a noção da caricatura se relaciona diretamente à proposta de crítica demolidora da sociedade portuguesa: nela se traça com um certo exagero algumas qualidades e caracteres físicos mais salientes da personagem, com um claro efeito humorístico e um juízo crítico subjacente.  

No prefácio do romance, escrito em 1925 por José Maria D’eça de Queiroz, filho do escritor, há menção ao forte animus jocandi do livro.

Consta que que a obra em questão, ao seu tempo, foi escrita com uma intenção excessivamente burlesca, exagerando na caricatura ao traçar o perfil dos políticos portugueses. Tanto o foi, que o livro foi rejeitado pelo editor, obrigando o escritor a deixa-lo arquivado na gaveta até ser encontrado pelo seu filho, que o publicaria em 1925.

Curiosamente, já ao tempo do filho José Maria, a ficção se aproximou da realidade:

“Hoje, porém, os tempos mudaram, e a leitura do Conde d’Abranhos sugere-nos esta observação paradoxal: com o passar dos anos – o livro ganhou atualidade! Os tempos e os homens parecem querer encarregar-se de transformar em realidade flagrante o que não passava de exagero burlesco”.

Considerações que poderíamos estender ao Brasil de hoje: a comparação cabe como uma luva.

terça-feira, 16 de abril de 2024

“Alguma Poesia” – Carlos Drummond de Andrade

 Resenha Livro – “Alguma Poesia” – Carlos Drummond de Andrade – Ed. Record




 O primeiro livro de poesias publicado por Carlos Drummond de Andrade foi lançado quando o escritor tinha vinte oito anos de idade, o que nos autoriza dizer que o poeta iniciou sua trajetória de forma relativamente tardia.

 Trata-se da coletânea “Alguma Poesia” (1930) que reuniu poemas escritos pelo escritor entre 1925/30, parte deles anteriormente publicados no Jornal Estado de Minas.  

 Essa obra contém poemas que ainda hoje são tão conhecidos que se pode dizer já fazerem parte do imaginário popular brasileiro.

 Quem nunca ouviu falar dos versos do poema “No meio do Caminho”?

 

No meio do caminho tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

tinha uma pedra

no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento

na vida de minhas retinas tão fatigadas.

Nunca me esquecerei que no meio do caminho

tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

no meio do caminho tinha uma pedra.

 

O mesmo pode se dizer do poema “Quadrilha”, bastante conhecido mesmo por pessoas não habituadas à leitura da poesia nacional:

 

João amava Teresa que amava Raimundo

que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili

que não amava ninguém.

João foi pra os Estados Unidos, Teresa para o convento,

Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,

Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes

que não tinha entrado na história.

  

Curiosamente, essa primeira obra do poeta de Itabira, hoje consagrada pelo público e pela crítica literária, foi ao seu tempo bancada do próprio bolso do escritor, denotando não ter sido o livro um grande sucesso ao seu tempo.

 Foram inicialmente tiradas apenas 500 cópias pela Imprensa Oficial de Minas Gerais, onde Drummond trabalhava.

 Antes do lançamento de “Alguma Poesia”, o poeta contou com a colaboração de Mário de Andrade, que não só havia se disposto a ajudá-lo na publicação desse primeiro livro, como havia sido a pessoa que incentivou Drummond a se lançar no mundo literário.

 A amizade entre Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade iniciou-se no ano de 1924 quando chegou à Belo Horizonte um grupo de intelectuais paulistas que havia liderado o movimento modernista brasileiro, consubstanciado na Semana de Arte Moderna de 1922.

 Dessa comitiva, fizeram parte Oswald de Andrade, Paulo Prado, Tarsila do Amaral, além do citado Mário de Andrade. Pretendiam fazer um périplo pelo Brasil para com isso dar vazão às propostas por eles enunciadas na Semana: o rompimento com a tradição parnasiana e toda literatura que replicava o estilo europeu, em detrimento de uma arte nacional, ainda que incorporando (através da antropofagia) as influências exógenas. Não se tratava de importar a arte estrangeira, mas assimilá-la criticamente, para criar algo novo, especificamente brasileiro, para exportação.

 A viagem às Minas Gerais tinha como escopo assistir à Semana Santa nas cidades históricas mineiras e procurar vestígios do passado que colaborassem com projeto modernista de constituição de uma identidade nacional.

 O que o movimento modernista postulava era a busca daquilo que singularizava o Brasil.

 No nosso país, a independência política antecedeu a conformação da nacionalidade.

 Ao contrário da experiência dos países Europeus, aqui, não foi a nação que criou o Estado, mas o Estado que antecedeu a Nação. Desde a proclamação da independência em 1822 até a Revolução de 1930, o que hoje se denomina Brasil era antes uma somatória dos estados federativos, sem um claro sentido de unidade. E essa busca pela identidade brasileira, uma bandeira central do modernismo dos anos 30, irremediavelmente os levava à busca de nossas especificidades através da História.

 (Não é por acaso que os três principais historiadores dos anos 1930, diretamente relacionados ao movimento modernista, escreveram suas principais obras tratando do Brasil em tempos coloniais. É o caso de Caio Prado Júnior com o seu “Formação Histórica do Brasil” (1942) É o caso de Sérgio Buarque de Holanda com o seu “Raízes do Brasil” (1936) E é o caso de Gilberto Freire com o seu “Casa Grande em Senzala” (1933)

 No estado de Minas Gerais, ou mais exatamente na recém criada capital Belo Horizonte, já existia um grupo de intelectuais que haviam aderido ao movimento modernista iniciado em São Paulo.

 Dele faziam parte Carlos Drummond de Andrade e Cyro dos Anjos, para citarmos os dois mais famosos.  Foi através do contato desse grupo mineiro com a comitiva paulista no ano de 1924 que surgiu a amizade entre Drummond e Mário de Andrade. E através dessa amizade e do incentivo do autor de Macunaíma, que se iniciou a trajetória dequele que foi um dos maiores poetas brasileiros de todos os tempos.

 Nesses poemas de “Alguma Poesia” vê-se uma forte influência do movimento da Semana de 1922. Há aqui a recusa de todo tipo de idealização, a aversão a todo o tipo de retórica, o humor e a ironia que despontam como formas de crítica social, o jogo de palavras que sugere experimentações linguísticas, tais quais aquelas que aparecem em Macunaíma.

Há também a mesma oposição modernista à mera importação da arte estrangeira sem mediações com a realidade Brasileira, o que é bastante explícito no poema “Europa, França e Bahia”:

 

Meus olhos brasileiros sonhando exotismos.
Paris. A torre Eiffel alastrada de antenas como um caranguejo.
Os cães bolorentos de livros judeus
e a água suja do Sena escorrendo sabedoria.

(...)

Chega!
Meus olhos brasileiros se fecham saudosos,
minha boca procura a 'Canção do Exílio'?
Como era mesmo a 'Canção do Exílio'?
Eu tão esquecido de minha terra...
Ai terra que tem palmeiras
onde canta o sabiá!

 

Outro aspecto da obra diz respeito à própria concepção do artista sobre o que é a poesia e como ela deve ser feita.

 De maneira geral, os poemas fazem alusão à afirmação do presente em detrimento do passado, visto como algo que “cheira mofo” e contém “teias de aranha”. Para se fazer poesia é necessário afirmar a realidade vista na sua imediaticidade, o que também significa ver e estar em contato direto com essa realidade, sentindo-a, criando a arte pela percepção imediata do poeta. Cite-se o poema “Lagoa”:

 

Eu não vi o mar.

Não sei se o mar é bonito,

não sei se êle é bravo.

O mar não me importa.

 

Eu vi a lagoa.

A lagoa, sim.

A lagoa é grande

e calma também.

 

Na chuva de cores

da tarde que explode

a lagoa brilha

a lagoa se pinta

de todas as cores.

Eu não vi o mar.

Eu vi a lagoa. . .

 

O fazer poesia, em Drummond é uma experiência derivada dos sentimentos do poeta deflagrados pelo que ele vê, escuta, percebe ao seu redor. Sitomaticamente, um dos livros do escritor se chama “Sentimento do Mundo”. A poesia de fato nasce dos sentimentos, ela está por isso viva dentro do poeta, nem sempre se torna visível, mas ainda assim inunda a sua alma.  

 

Poema

Gastei uma hora pensando em um verso

que a pena não quer escrever.

No entanto ele está cá dentro

inquieto, vivo.

Ele está cá dentro

e não quer sair.

Mas a poesia deste momento

inunda minha vida inteira.