quarta-feira, 1 de maio de 2024

“O Conde d’Abranhos” – Eça de Queiroz

 “O Conde d’Abranhos” – Eça de Queiroz





Resenha Livro - “O Conde d’Abranhos” – Eça de Queiroz – Ed Iba Mendes

 

José Maria de Eça de Queirós nasceu em 25 de novembro de 1845 na Póvoa de Varzim em Portugal. Seu pai fora magistrado, formado em Direito em Coimbra e amigo pessoal de Camilo Castelo Branco, expoente do romancismo português.

Aos dezesseis anos Eça de Queirós também ingressou no curso de Direito em Coimbra, quando publicou seus primeiros trabalhos literários. Posteriormente, o escritor exerceria a advocacia e o jornalismo, até o ano de 1870, quando ingressou na administração pública na condição de gestor da vereança de Leiria. O fato é de destaque desde que Leiria é o local onde se passa a maior parte dos eventos de um dos seus livros mais conhecidos, “Crime do Padre Amaro”. (1875)

Em 1873, Eça de Queirós ingressa na carreira diplomática, exercendo cargos oficiais em Havana, Newcastle e Bristol. É a partir deste período que escreve os seus principais romances: “O Primo Basílio” (1878), “Os Maias” (1888), além do mencionado “Crime” de 1875.

Não seria exagero dizer que foi um dos maiores escritores portugueses de todos os tempos, sendo certamente o ponto mais alto do romance em língua portuguesa do século XIX.

Foi precursor do realismo literário em língua portuguesa, movimento que propunha a superação da tradição romântica, a ela se opondo especialmente no que toca à idealização da realidade: a proposta no realismo é descrevê-la de forma objetiva, com a intenção crítica, o que em Eça de Queiroz se dá através da caricatura, ou seja, do humor.

O marco inicial do realismo em Portugal se deu em torno da Questão Coimbrã.

Trata-se de uma batalha intelectual em torno da literatura que opôs de um lado a tradição romântica, com o seu conservadorismo, formalismo e academicismo e de outro lado jovens estudantes de Coimbra que salientavam a falsidade na forma romântica de percepção da realidade e propunham não só a mera descrição objetiva do mundo mas uma crítica que ensejasse transformações sociais.

Fala-se em batalha intelectual por se tratar efetivamente de um conflito cuja dimensão ia além do problema literário: tratava-se de uma lide envolvendo o tradicionalismo/conservadorismo em oposição à modernização/liberalismo.

Ainda sob o impacto da Revolução Francesa e das revoluções burguesas subsequentes, os jovens escritores, particularmente Eça de Queiroz, tinham intenção de ridicularizar e demolir velhas tradições: desde o casamento e a fidelidade conjugal em Primo Basílio, passando ao falso moralismo do clero e a beatice carola de mulheres desocupadas em O Crime do Padre Amaro. 

A arte realista é a expressão literária do liberalismo burguês num momento histórico ainda impactado pela Revolução de 1879 e as revoluções burguesas europas subsequentes. Trata-se de uma época muito anterior ao completo estado de composição do liberalismo hoje visto.

 De uma certa maneira, a própria evolução histórica de Portugal, país pioneiro na Europa na sua constituição de Estado Nacional desde a Revolução de Avis (1383), mas país retardatário no que diz respeito ao desenvolvimento do capitalismo industrial, especialmente se comparado a países como Inglaterra, França e Alemanha: este desenvolvimento histórico suis generis faria muito provavelmente com que a disseminação de ideias liberais e republicanas em Portugal ensejasse maiores conflitos diante da sobrevivência e resquício do misticismo religioso. Lá o peso da tradição fez com que a monarquia acabasse em 1910, mais de vinte anos depois do Brasil e mais de um século depois da França.

Dentre as principais características do realismo literário podemos citar a objetividade em oposição ao subjetivismo que informam as narrativas românticas; a crítica social com um intuito reformador, podendo se dizer que a proposta realista coincide com a visão social de mundo burguesa no contexto do capitalismo em sua fase industrial. Ênfase na descrição da vida cotidiana, de modo que os cenários passam também a remeter ao ambiente urbano, local onde se encontram os tipos sociais, desnudando especialmente os interesses pessoais que informam a conduta de padres, beatas, bacharéis, jornalistas, comerciantes etc. Esta forma descritiva foge bastante da tendência da idealização romântica, dando uma feição mais humana e verdadeira aos personagens em suas relações. Por vezes, esse realismo está contaminado da visão de mundo liberal e o seu consectário mais evidente: o individualismo, sugerindo a percepção de que os personagens não se mobilizam para nada que não seja o seu interesse imediato.

Neste marco, o Conde D’abranhos (1925 – póstumo) é talvez o livro em que Eça de Queiroz levou mais ao extremo a sua capacidade de traçar caricaturas para realizar a crítica e o deboche, neste livro em particular, centrando sua munição na classe política portuguesa.

O protagonista é um nome fictício de um político absolutamente inescrupuloso, que segue numa escala ascendente de poder sempre através da esperteza e da sorte, e nunca através do merecimento.

Quando estudante de Direito em Coimbra, já no primeiro ano, se notabiliza por dedurar um colega rebelde, que gracejava com o professor, acarretando de um lado a expulsão do estudante infrator e de outro o seu bom relacionamento com o professor ofendido. A bajulação fez como que fosse aprovado com notas de louvor, a despeito da sua mediocridade intelectual.

Filho de um simples alfaiate, desde cedo tem pavor à pobreza e se beneficia de uma tia rica, com quem passa a viver e é quem banca os seus estudos.  Posteriormente, quando esta tia velha se decide a se casar com um belo jovem, vê-se horrorizado pela concorrência em torno do espólio da parente rica.

Inicia sua trajetória no jornalismo, escrevendo matérias em benefício de um político que sustenta a imprensa. Casa-se com uma filha de desembargador, herdeira de 12 mil contos. E através destes contatos vai galgando cargos de poder até se tornar ministro de estado.

O ponto culminante da carreira política se dá após a sua nomeação como Ministro da Marinha. Curiosamente, o Conde nunca vira o mar, e mal sabia distinguir onde se localizavam no mapa as colônias portuguesas.

Obviamente, a sua nomeação se deu após lance de sorte (a morte de um concorrente) e a traição ao partido da ocasião, para passar ao lado do campo político oposicionista que se projetava no poder. Na política portuguesa, a disputa não se centra em torno do horizonte ideológico ou da visão social de mundo, mas nos meios pelos quais se garante a manutenção no poder. Afinal, nas palavras do Conde, seria um horror e uma humilhação sair-se derrotado com os governistas e ser obrigado ao retorno doméstico para cuidar da mulher e do filho. Mais desejável foi bandear-se no momento oportuno para a oposição.

O efeito humorístico fica acentuado na forma como a história é contada: ela é narrada por um secretário particular do Conde, favorecido em vida e bajulador do Conde mesmo após a sua morte. Decide escrever a biografia e sempre busca justificar e tergiversar as trapaças do falecido. Precisa forçar tanto a barra para limpar a imagem do Conde que só acentua nas suas considerações o tom engraçado com que descreve  desvio de caráter do político.

A caricatura se estende aos demais personagens.

Numa passagem do Conde D’abranhos, o escritor descreve aquilo que seria um discurso no parlamento português e assim traça a fisionomia de um parlamentar:

“Este personagem, com efeito, pela face redondinha e jovial, de óculos de ouro, por todo o seu serzinho barrigudo, pela untuosidade vaga das suas palavras, pela plácida polidez, assemelhava-se ao amável filantropo, cheio de provérbios e de virtude, de que o livro querido onde aprendemos a soletrar. O seu discurso foi a repetição das mesmas injúrias, mas em uma voz suave e chorosa”. 

Veja-se que a noção da caricatura se relaciona diretamente à proposta de crítica demolidora da sociedade portuguesa: nela se traça com um certo exagero algumas qualidades e caracteres físicos mais salientes da personagem, com um claro efeito humorístico e um juízo crítico subjacente.  

No prefácio do romance, escrito em 1925 por José Maria D’eça de Queiroz, filho do escritor, há menção ao forte animus jocandi do livro.

Consta que que a obra em questão, ao seu tempo, foi escrita com uma intenção excessivamente burlesca, exagerando na caricatura ao traçar o perfil dos políticos portugueses. Tanto o foi, que o livro foi rejeitado pelo editor, obrigando o escritor a deixa-lo arquivado na gaveta até ser encontrado pelo seu filho, que o publicaria em 1925.

Curiosamente, já ao tempo do filho José Maria, a ficção se aproximou da realidade:

“Hoje, porém, os tempos mudaram, e a leitura do Conde d’Abranhos sugere-nos esta observação paradoxal: com o passar dos anos – o livro ganhou atualidade! Os tempos e os homens parecem querer encarregar-se de transformar em realidade flagrante o que não passava de exagero burlesco”.

Considerações que poderíamos estender ao Brasil de hoje: a comparação cabe como uma luva.

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