sábado, 30 de julho de 2016

"As Aventuras de Karl Marx Contra o Barão de Münchhausen" - Michael Löwy

Resenha Livro – 229 -  “As Aventuras de Karl Marx Contra o Barão de Münchhausen – marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento” – Michael Löwy – Ed. Cortez



“Os membros e partidários de classe colocada objetivamente em uma situação revolucionária, cujos interesses coletivos e individuais coincidem com o desenvolvimento da sociedade, escapam à ação dos freios psíquicos que intervêm na percepção cognitiva da realidade social: ao contrário, seus interesses concorrem para acuidade da percepção dos processos de desenvolvimento, dos sintomas de decomposição da ordem antiga e dos sinais precursores da nova ordem da qual eles aguardam a chegada... Não afirmamos absolutamente com isso que este rumo leva à verdade absoluta: pretendemos unicamente dizer que as referidas posições são um melhor ponto de partida e uma melhor perspectiva na busca da verdade objetiva, por certo relativa, mas muito mais integral, muito mais completa, com relação ao nível dado de desenvolvimento do saber humano”.  Adam Shaff

O Golpe de Estado perpetrado no Brasil no primeiro semestre não só instituiu um governo apoiado em frações mais direitistas da burguesia nacional (com endosso do imperialismo) mas sinaliza uma mudança de direção frente a uma tendência mundial: a crise capitalista exige governos de enfrentamento ainda mais duros junto aos trabalhadores. Antigos governos de colaboração de classe dos quais não só o modelo petista mas mesmo outras direções muito mais progressistas na América Latina hoje colocam-se em risco.

O Golpe contra Zelaya em Honduras e de Fernando Lugo  No Paraguai em 2002, igualmente perpetrados pela direita e também no sentido de supressão de alternativas políticas reformistas ou democrático-populares que ganharam popularidade após a avassaladora retirada de diretos de cidadania no contexto neoliberal no início dos anos 1990, tem seu ponto de chegada no Brasil, fazendo com que os Marxistas já possam observar como a crise estrutural capitalista se conforma numa crise institucional e sistêmica não só na periferia mas em semi-periferias de peso do capitalismo mundial (Brasil).

Importa-nos aqui chamar atenção para o fato de que o golpe de estado se desenvolve não como um acontecimento político, um simples fato político atípico, mas como parte de um desenvolvimento histórico, de um processo em curso. Pode-se falar em um golpismo ou em um programa golpista em marcha que teria diversas frentes: no mundo do trabalho, já se fala por exemplo no aumento das idades das aposentadorias, além de reformas na CLT, mudanças aqui no sentido de reduzir os custos do empregador em face dos direitos do trabalhador. Mas para os fins desta resenha interessa-nos mencionar aquilo que poderíamos colocar como a expressão mais evidente no debate público do golpismo no âmbito da educação. Pois o programa golpista na educação tem nome e sobrenome: trata-se do “Projeto Escola Sem Partido”, uma iniciativa de setores reacionários e pouco preparados no debate teórico, que partilham de uma premissa mirabolante de que os estudantes brasileiros estariam sendo doutrinados por uma cartilha marxista conforme inclusive diretrizes dos próprios materiais oficiais de educação. Mas tal projeto vai além ao incidir sobre a atuação do próprio professor, que poderia ser interditado ao propor discussões em sala de aula a depender de seu conteúdo “ideológico”. E usamos propositalmente as áspas na palavra ideologia pois aqui adentramos ao interessantíssimo livro de Michel Löwy.

O ensaio foi publicado na década de 1980 mas é de uma atualidade assombrosa, especialmente quando se deparamos com propugnadores de uma ideia reacionária de se falar numa “escola sem partido”, o que, quando verificamos mais de perto nos discursos de um deputado Marcel Von Hatten PP/RS – uma espécie de Olavo de Carvalho mirim da Câmara dos Deputados Gaúcha e militante em nível nacional do projeto – significa uma escola sem “Ideologia”. A ideologia no senso comum pode ser entendida como ideias político-partidárias, eventualmente tendenciosas, sejam elas de direita ou de esquerda.

Agora o tipo de reflexão que Michael Löwy propõe em sua sagaz crítica ao positivismo – que, ainda que não formalmente, persiste como orientação metodológica com bastante força no mundo acadêmico, é: existe algum tipo de conhecimento no âmbito das ciências humanas (história, geografia, sociologia e filosofia) axiologicamente neutro, e portanto, livre de “ideologia” ? Mais uma vez insistimos nas aspas da palavra ideologia como uma espécie de alerta ao leitor: como o próprio Michel Löwy nos remete, talvez não há mesmo dentro da ciências sociais, palavra mais polissêmica (com mais de uma significação) que ideologia.

O Princípio do Barão de Münchhausen

O Barão de Münchhausen ilustra com ironia uma certa confusão nos termos da discussão em torno do que dentro das ciências sociais se discute como sociologia do conhecimento. Sua história é a seguinte: o barão prussiano seguia com o seu cavalo por uma densa floresta quando se deparou com um pântano. Confiante de si, Münchhausen seguiu em frente e o pântano começou a tragá-lo para dentro, a sugá-lo para o interior da lama. E então o Barão antes de ser tragado pelo pântano com seu cavalo começou a puxar os seus cabelos e com isso supostamente teria se salvado. Tal história serve como uma ilustração de toda uma tradição teórica na sociologia que de uma forma ou de outra entendeu ser possível buscar atingir a verdade através do método científico, inclusive para as ciências do espírito, o que não raro implicava numa equiparação entre as ciências da natureza e das ciências sociais. Uma verdade objetiva livre de julgamentos de valor pelo cientista, que se despe de forma voluntaria de seus preconceitos, de seus valores pessoais e de sua visão social de mundo até atingir verdades tão objetivas quais aquelas do tipo: o céu gira em torno do sol. Seria possível fazer uma análise objetiva sobre os acontecimentos em França em 1789 tal qual os da física experimental? O Positivismo é a corrente teórica metodológica que mais bem ilustra tal assertiva da hipótese do Barão de Münchausen e está presente de forma ideológica (sem aspas, na concepção marxista do termo[1]) do projeto Escola Sem Partido . E daqui para frente toda uma série de questionamentos poderiam partir, o que seria analisado por Löwy a partir da contribuição do historicismo e em particular da Sociologia do Conhecimento de Mahnheim e do Marxismo.  

As questões que perpassam todo o ensaio e que serão analisado pelo crivo de diversos autores do postivismo, historicismo e marxismo são estas: “Quais são as condições para tornar possível a objetividade nas ciências sociais? O Modelo científico-natural da objetividade é operacional para as ciências históricas? É concebível uma ciência da sociedade livre de julgamentos de valor e pressupostos político-sociais? Não é, a ciência social, necessariamente “engajada”, isto é, ligada ao ponto de vista de uma classe ou grupo social?”.

E sinalizando nestas últimas questões podemos apontar para como o marxismo tratou historicamente do conjunto desta questão. Na verdade houve muitas respostas distintas e mesmo contraditórias quanto ao problema da ciência/ideologia mesmo dentro do marxismo. Ainda no século XIX a força das ideias positivistas e cientificistas tiveram tamanha influência que se pode constatar sua influência mesmo no seio do marxismo, em Bernstein, que em última análise, sintomaticamente renegou a teoria da revolução em Marx e propugnou o revisionismo quanto à sua intervenção política, o que ele diria que teria de uma certa forma retirado o caráter estritamente científico de seus estudos. Kautsky igualmente propugnou com o seu marxismo ortodoxo ideias que tiveram alguma interface com o positivismo e também sintomaticamente retirou de sua teoria o caráter revolucionário.

Michael Löwy faz um longo inventário de diversas vertentes do marxismo, mas o que importa ressaltar aqui são algumas ideias de próprio Marx. Ainda que este não tenha desenvolvimento uma teoria específica do conhecimento, é quando se refere por exemplo à transição entre à economia clássica da burguesia à economia vulgar e sua coincidência com a passagem histórica da burguesia desde uma classe numa etapa histórica em que desempenha um papel revolucionário para a partir de entre 1830 consolidar-se como uma classe efetivamente no poder e, nesse sentido, interessada em  desempenhar um papel ideológico (e vulgar do conhecimento) é que passamos a conferir as primeiras noções entre sujeito, classe e conhecimento, um tema que seria abordado de maneira sistemática no livro “História e Consciência de Classes” de Lukács. É no que o Löwy chama de marxismo historicista (Lukácks, Gramsci e Goldman) que parece haver as melhor fontes das respostas para suas cogitações, das quais extraímos uma conclusão apenas a título de ilustração:

“Quanto a nós, pensamos que o ponto de vista potencialmente mais crítico e mais subversivo é o da última classe revolucionária, o proletariado. Mas não há dúvida de que o ponto de vista do proletariado não é de forma alguma uma garantia suficiente do conhecimento da verdade social: é somente o que oferece a maior possibilidade objetiva de acesso à verdade. E isso porque a verdade é para o proletariado uma arma indispensável para sua auto emancipação. As classes dominantes, a burguesia (e também a burocracia, em outro contexto) têm necessidade de mentiras e ilusões para manter seu poder. Ele, o proletariado, tem necessidade de verdade...”.

Não temos com esta resenha a pretensão de substituir uma leitura densa (e recompensante) como a deste livro. Aqui, apenas demos algumas pinceladas e reivindicamos a incrível atualidade do tema referente à epistemologia, à sociologia do conhecimento e às melhores condições do marxismo enfrentar o desafio de descobrir a realidade com mais objetividade que as demais tradições teórico metodológicas vigentes. Como uma boa analogia descrita no livro, trata-se talvez de um pintor, sendo que aquele que postula as aspirações do proletariado coloca-se num plano mais alto, nestes tempos históricos.                





[1] Diz Michael Löwy: “Para Marx, a ideologia é uma forma de falsa consciência correspondendo a interesses de classe: mais precisamente, ela designa o conjunto das ideias especulativas e ilusórias (socialmente determinadas) que os homens formam sobre a realidade, através da moral, da religião, da metafísica, dos sistemas filosóficos, das doutrinas políticas e econômicas etc. 

terça-feira, 5 de julho de 2016

“O Seminarista” – Bernardo Guimarães

“O Seminarista” – Bernardo Guimarães



Resenha Livro 228 - “O Seminarista” – Bernardo Guimarães – Ed. Ática – Série Bom Livro
                
O escritor Bernardo Joaquim da Silva Guimarães nasceu em 1825 na cidade de Ouro Preto – MG. Em 1847 matricula-se na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco em São Paulo. Na Academia de Direito torna-se amigo do poeta romântico Álvares de Azevedo e com ele participa de uma “Sociedade Epicureia” que pretendia instalar em terras paulistanas uma associação boêmia ao estilo byorinista tal qual o poeta autor de “Lira dos Vinte Anos” bem retrata em “Noite na Taverna”.

Posteriormente, Bernardo Guimarães irá dedicar-se à magistratura na cidade de Catalão em Goiás e ao trabalho literário.

Seu romance mais conhecido pelo público é provavelmente “A Escrava Isaura”. Escrito em 1875, em pleno contexto de campanha abolicionista pelo Brasil, tal história foi na época um sucesso de público e mais recentemente objeto de telenovela. Ponderamos que a protagonista, a escrava Isaura, era uma bela e educada moça branca, um fato insólito e raríssimo e que certamente remete ao estilo romântico da obra: seu público leitor é em grande parte composto por mulheres das camadas da alta sociedade que, por outro lado, poderiam se compadecer com a sorte da protagonista e problematizar nestes termos a escravidão vigente.

“O Seminarista” (1872) igualmente se situa no âmbito do romantismo. Tal corrente literária se diferencia em três grandes fases, sendo necessário perquirir em qual delas se situa a história de amor envolvendo o seminarista Eugênio e a bela Margarida. Não se situa tal obra dentre os romances e peças literárias da 1ª fase do romantismo, marcada pelo indianismo, pelo nacionalismo, que não se dá por uma autonomia formal e criativa (uma conquista do modernismo de 1922), mas pela temática quanto às belezas naturais e as riquezas geográficas do Brasil; e especificamente, o papel do índio, que se situa dentro de uma concepção de Bom Selvagem, o que se observa por exemplo em “Iracema” de José de Alencar.

O que podemos apontar com alguma segurança é que “O Seminarista” possui elementos tanto da 2ª fase quanto da 3ª fase do romantismo. Desde a segunda fase do romantismo, há de se observar um certo bucolismo presente na descrição paisagística da fazenda do Sr. Antunes, pai do seminarista Eugênio: quando o filho retorna da clausura do seminário em direção à casa dos genitores, há uma profusão de sentimentos conflituosos, culpa e desejo, sempre sendo bastante perceptível a maior liberdade e beleza propiciada pela vida no campo. O final trágico relacionado a uma história de amor impossível também remete ao byronismo: a morte de uma personagem e a loucura de seu par. A existência dos versos de Eugênio para Margarida, a descrição rica de paisagens e a própria forma estilística também são elementos que denotam o estilo romântico em sua fase aqui analisada:

“Eugênio estorcia-se em febril agitação, e quase delirava. A paixão, que julgava já não ser mais que uma triste recordação, uma dolorosa desilusão do passado, não se tinha extinguido debaixo das vestes sagradas do sacerdote. Era essa paixão como o arbusto, que a geada despojou das folhas, e mirrou-lhe os galhos, e parece estar morto para sempre, entanto, que o tronco e a raiz, cheios de seiva e vitalidade estão prontos a germinar como novo viço e galhardia ao primeiro bafejo da primavera.

Ou antes era como a fogueira, cujas chamas uma chuva glacial havia apagado, ficando intactos todos os materiais, que já secos e quase calcinados, esperam apenas o contato de uma centelha para de novo se inflamarem com fúria irresistível”.

Ademais, é possível constatar elementos da 3ª Geração do Romantismo em “O Seminarista”. Tal fase diz respeito a um momento de transição entre o romantismo e o realismo literário – maior ênfase para histórias com contextos urbanos com algumas considerações sociais que seriam desdobrados no realismo em crítica de costumes. Castro Alves é provavelmente o principal expoente da chamada geração Condoreira e os temas candentes deste momento da literatura nacional é o abolicionismo, o realismo literário e a negação do amor platônico.

As temáticas que perpassam “O Seminarista” são o problema da educação enclausurada nos seminários, a crítica ao celibato, o problema da ausência da vocação religiosa de meninos que tencionam ordenar-se em função da pressão de terceiros. O autor não é indiferente às questões do seu tempo e aqui a obra remete de certa maneira à crítica:

“A educação claustral é triste em si e em suas consequências: o regime monacal, que se observa nos seminários, é mais próprio para formar ursos do que homens sociais. Dir-se-ia que o devotismo austero, a que vivem sujeitos os educandos, abafa e comprime com suas asas lôbregas e geladas naquelas almas tenras todas as manifestações espontâneas do espírito, todos os vôos da imaginação, todas as expansões afetuosas do coração.

O rapaz que sai de um seminário depois de ter estado ali alguns anos, faz na sociedade a figura de um idiota. Desazado, tolhido e desconfiado, por mais inteligente e instruído que seja, não sabe dizer duas palavras com acerto e discrição, e muito menos com graça e afabilidade. E se acaso o moço é tímido e acanhado por natureza, acontece muitas vezes ficar perdido para sempre”.

O enredo de “O Seminarismo” é relativamente simples. Eugênio é filho do Capitão Antunes, um rico proprietário de terras da vila de Tamanduá em Minas Gerais. Desde tenra idade, o menino mostra e por vida adulta mostrará ser pessoa sensível, incapaz de confrontar e contrariar ora seus pais ora seus professores no seminário, sempre resignado e plasmando em suas cogitações a culpa e a fé em razão de sua fraqueza e covardia. Todavia, Eugênio teve uma infância bastante feliz em companhia de Margarida, filha de Umbelina, uma pobre senhora que vivia como agregada  nas terras do capitão Antunes. Eugênio passava a maior parte do dia na casa da pobre Umbelina, o que, a partir de uma certa idade, começou a criar apreensões aos seus pais. Foi assim, aos 12 anos, enviado ao Seminário, fato que desde logo causou-lhe profundo sofrimento.

Um fato importante ocorrido ainda na infância de Eugênio e Margarida e que perpassa a obra: a certa feita em que as duas crianças ainda muito novas brincavam, uma enorme cobra avança e se enrola pelo corpo de Margarida. A pequena menina não entende o enorme risco da situação, apenas ri do fato. Quando Sra. Umbelina e Sra. Antunes abasbacadas contemplam a cena, não sabem como reagir: qualquer movimento poderia culminar numa picada fatal da cobra. Todavia, o réptil simplesmente abandona o corpo da criança sem fazer qualquer mal. Tal episódio seria interpretado pela mãe de Eugênio e pelos padres do seminário como um sinal de que a pequena Margarida, tal qual a cobra no Éden, significa um desvio diabólico de Eugênio de seu divino caminho em direção à ordenação. Mesmo o Padre Jerônimo fez menção em palestra aos seminaristas:

“Para dar maior realce ao painel, traçou com a mão de mestre uma viva pintura de sedução de Eva tentada pela serpente no paraíso.

- A concupiscência – dizia ele – é a serpente, que destila dos lábios enganosos o veneno que nos dá a morte à alma e nos faz perder para sempre as delícias da celeste Jerusalém. Feliz aquele que, como a virgem mártir cujas virtudes hoje a igreja comemora, pode esmagar aos pés a cabeça da serpente maldita, e exclamar triunfante, enquanto ela se estorce moribunda no chão – ‘Afasta-te Satanás”

Como escritor romântico e ainda redator folhetinesco, podemos deduzir que o amor entre Eugênio e Margarida prevalecerá sobre o ascetismo religioso, culminando num final trágico. A leitura do romance importa-nos como fonte de informações sobre costumes da época, desde os hábitos escolares dos seminaristas, a rigorosa supervisão de condutas a que estavam submetidos os jovens pelos padres, o rígido pátrio poder sobre os filhos. E em especial os  possíveis desdobramentos envolvendo uma alma dividida entre as exigências do celibato, bem como toda a apropriação das normas da fé, e o amor e desejo pela mulher.    
     



quarta-feira, 29 de junho de 2016

“Os Grandes Líderes – Napoleão” – Leslie McGuire

“Os Grandes Líderes – Napoleão” – Leslie McGuire



Resenha Livro 227 - “Os Grandes Líderes – Napoleão” – Leslie McGuire – Ed. Nova Cultural

Biografia é palavra cujo prefixo “Bio” significa vida e “grafia” remete à ideia de escrever, redigir. Trata-se portanto de livros voltados a descrever a história de vida de indivíduos.

Podemos classificar a Biografia como uma espécie do gênero História. E dentre as Biografias, verificamos distintas sub- espécies: há as Biografias autorizadas, em geral realizadas em parceria com o biografado e não raro com omissões acerca de detalhes embaraçosos ou comprometedores; há as biografias não autorizadas, que eventualmente são publicadas quando seu protagonista ainda está vivo, ensejando uma interessante discussão acerca da ponderação entre o direito à intimidade e proteção à imagem e, por outro lado, à liberdade de expressão; há as Biografias históricas stricto senso, com maior densidade teórica e senso crítico, que não só percorre a vida do biografado mas o situa em seu tempo, contextualiza o indivíduo na história; e há Biografias do tipo enciclopédicas, que são mais informativas, remetendo o leitor às datas e fatos relevantes sem um aprofundamento teórico e uma interpretação da história quanto aos seus sentidos.

A coleção “Os Grandes Líderes” da Nova Cultural pode ser classificada nesta última sub-espécie. Em que pese portanto a ausência de uma análise mais profunda acerca do fenômeno da era Napoleônica, a leitura da obra ainda se faz relevante: a rica diversidade de fontes e dados é um ponto de partida essencial para situar um posterior estudo sobre o sentido daquele fenômeno histórico.

Importa ressaltar que a era Napoleônica teve influência decisiva nos rumos da história do Brasil. Durante a chamada Guerra Peninsular, com a deposição do Rei de Espanha em 1808 por imposição de Napoleão e sua substituição por seu Irmão José, diante do bloqueio continental imposto pelo Imperador contra a Inglaterra e com as tropas francesas às porta das fronteiras Portuguesas, não restou outra alternativa à coroa de Portugal que não sua fuga ao Brasil – pela primeira vez no mundo uma colônia seria a sede de uma Coroa Europeia e o Brasil seria elevado à condição de Reino Unido de Portugal e Algaveres. Há no Brasil o fim do exclusivismo comercial o que na prática significa o fim do regime colonial, a abertura dos portos às nações amigas, a criação da imprensa Régia, a Fundação do Banco do Brasil, dentre outras mudanças significativas.

Napoleão nasceu na ilha de Córsega, situada no Mar Mediterrâneo, equidistante da Itália e França. A ilha tem um dialeto próprio e naquela época, apesar de sua proximidade com a Itália, pertencia à França. Sua família é de origem pequeno burguesa – seu pai Carlo é advogado. Aos 10 anos, Napoleão ingressa na Escola Militar de Brienne no norte da França. A sua origem social modesta, o seu sotaque estrangeiro e sua aparência física inusitada fizeram com que o futuro imperador encontrasse dificuldades de relacionamento social em Brienne e posteriormente na Escola Militar Real de Paris, para onde é transferido em outubro de 1784.

“(....) Bonaparte tinha o rosto emoldurado por longos cabelos pretos que pareciam nunca ter sido penteados. O uniforme era-lhe grande demais, assentando  desajeitadamente em sua figura de 1,58 m; suas botas, sem nenhum brilho, tinham os saltos gastos e ficavam tão grandes em suas pernas magras que pareciam pertencer a outra pessoa, e seu francês soava com um sotaque estranho”.

1789 é o ano da tomada de Bastilha, o ano um da Revolução Francesa. Suas causas decorrem da opressão brutal sobre a qual os camponeses estavam submetidos pela aristocracia e pelo clero, além da burguesia que, em ascensão, não admitia ser excluída do poder. É dentro do contexto das jornadas revolucionárias que Napoleão, formado como oficial de artilharia, irá, por etapas e numa escalada vertiginosa, ascender ao poder.

A primeira etapa corresponde ao cerco de Toulan, quando nosso protagonista tinha 24 anos. Tal cidade, localizada no sul da França, estava tomada pelos contra-revolucionários monarquistas, apoiados por tropas Inglesas.

“O capitão Bonaparte começou a estudar o posicionamento de sua artilharia, e se deu conta de que todo o cerco estava muito mal organizado. Os canhões seriam inúteis a menos que se fizessem algumas mudanças importantes. Ele se propôs a efetuar tais mudanças e, como ninguém mais parecia entender tanto quanto ele de artilharia, sua proposta foi aceita”.

O cerco aos Ingleses foi exitoso e Bonaparte teve seu primeiro reconhecimento como dirigente militar eficiente. Sua reputação seria elevada em 5 de Outubro de 1785 com uma exitosa repressão a uma insurreição realista (monarquista) que salvou a Convenção Nacional. Desde então foi nomeado subcomandante.  

A Revolução Francesa granjeava inimigos externos em função das possíveis repercussões do movimento contra as demais coroas europeias. Bonaparte foi assim recrutado para a Missão Italiana cujo pano de fundo era o combate à Áustria. As cidades italianas estavam sob domínio do Império Austríaco e receberam as tropas de Napoleão como libertadores do jugo imperial:

“Os cidadãos de Milão receberam Napoleão jubilosos e de braços abertos. Ele, então, esvaziou os cofres da cidade e, em seguida, marchou em direção ao Sul. Conquistou o grande Ducado da Toscana, os ducados de Módena e Parma, e os Estados papais de Bolonha e Ferrara. Essa intensa atividade ocupou-o durante um mês inteiro e lhe permitiu ficar de posse de grandes quantidades de dinheiro, alimentos, cavalos, munições e armamentos. Napoleão também tomou posse de grandes tesouros culturais destes Estados, enviando para a França muitas pinturas de valor incalculável e inúmeras outras obras de arte”.

Não é a nossa intenção aqui reproduzir toda a trajetória da vida de Napoleão, mas pincelar algumas passagens e tecer algumas reflexões.

Desde a Missão Italiana, há uma solução de continuidade em ascensão com a Missão no Egito, com o fito de combater a Inglaterra e com importante importância cultural no sentido de descobertas arqueológicas por uma missão especial junto às tropas francesas; o golpe do 18 de Brumário que põe termo ao Diretório e instala o consulado, fazendo de Napoleão o 1º Consul aos 30 anos de idade; o ano de 1804 em que o Parlamento faz de Napoleão Imperador, um título hereditário. E momentos de descenso como a invasão da Rússia e a batalha de Borodino que custaram aos franceses centenas de milhares de Morte; posteriormente o exílio, primeiro em Elba, durante 10 meses, e depois em Santa Helena, onde falece no ano de 1821.

O que importa perquirir aqui é qual o sentido mais geral da era Napoleônica? Numa boa síntese, aponta Marx:

“Napoleão criou dentro da França as condições que tornaram possível a livre concorrência para o desenvolvimento, a redistribuição da terra a ser explorada e a possibilidade de pôr em uso a força produtiva da nação, recentemente liberada; fora dos limites da França, acabou com as instituições feudais.”


segunda-feira, 27 de junho de 2016

“Era no Tempo do Rei – Um Romance da chegada da Corte” – Ruy Castro

“Era no Tempo do Rei – Um Romance da chegada da Corte” – Ruy Castro



Resenha Livro 226 - “Era no Tempo do Rei – Um Romance da chegada da Corte” – Ruy Castro

O escritor e jornalista mineiro Ruy Castro deve ter a maior parte de sua reputação nas letras decorrente de seu trabalho como biógrafo. Escreveu sobre a vida de Nelson Rodrigues (“O Anjo Pornográfico” – 2002) e dois trabalhos que lhe renderam o prêmio Jabuti de Livro do Ano: biografias sobre Carmem Miranda (“Carmem – Uma Biografia” – 2005) e Garrincha (“Estrela solitária – Um brasileiro chamado Garrincha” - 1995). Tal experiência, somada aos trabalhos particulares que remetem à cidade do Rio de Janeiro em “Chega de Saudade” (1990) sobre a Bossa Nova e “Carnaval no Fogo” (2003) sobre supracitada cidade, remetem diretamente ao livro “Era no Tempo do Rei”.
              
Trata-se de um gênero literário criativo e particular, uma mistura de ficção e história, um romance que se passa no Rio de Janeiro, em 1810, dois anos após a vinda da família real portuguesa ao Brasil, com o fato político que, nos termos do historiador Caio Prado Jr., põe termo ao nosso período colonial: a elevação do país à condição de reino unido à Portugal e Algarves; a abertura dos portos às nações amigas e o fim do regime colonial baseado no exclusivismo comercial; e iniciativas modernizadoras desde a criação da biblioteca nacional, da imprensa régia e da fundação do Banco do Brasil.

Todos estes elementos históricos surgem como pano de fundo de uma história cuja forma é contada em forma de romance. E sintomaticamente os dois personagens principais são retirados, um da história, e outro do romance “Memórias de Sargento de Milícias” (1852-53) de Manuel Antônio de Almeida. D. Pedro, príncipe regente, então com doze anos e Leonardo, filho do português e meirinho aqui no Brasil Leonardo Pataca, os dois retratados como dois peraltas. O que os igualam é a capacidade de dar nó e pingo d’água em adultos e crianças com diabruras que o colocam como pivetes muito acima da média: o que o separam é a origem social, o que, como se observa frequentemente, não é lá algo impeditivo para duas crianças brincarem, divertirem-se: após se conhecerem, têm toda a cidade do Rio de Janeiro como cenário de suas aventuras.

Os limites tênues entre ficção e história vão se extrapolando adiante com personagens reais como Carlota Joaquina, rainha e tratada como vilã, desleal para com o generoso bonachão D. João VI., seu marido, disposta a conjurar junto a súditos ingleses com quem mantém relações extraconjugais, com o olho na restauração do trono em Espanha pós napoleão e nas Províncias Cisplatinas – sua predileção pelo filho D. Miguel em detrimento de D. Pedro teve efetiva repercussão nos fatos históricos reais e mais uma vez nos deparamos com esta interface entre história e literatura.

“Não que Pedro tivesse alguma coisa contra os ingleses. Ao contrário, pelo que ouvia dos mais velhos, os franceses é que eram os vilões do novo século, os republicanos insidiosos, os vampiros da realeza. Com a falta de cerimônia com que, até bem pouco, guilhotinavam as cabeças coroadas, ninguém de sangue azul estava salvo na Europa. O festival de cabeças cortadas terminara, mas, agora, a França caíra nas mãos de um homem chamado Napoleão, que se autoproclamara imperador e estava ameaçando abocanhar todas as casas reais – a própria Família Real inglesa, para se garantir, botara as barbas de molho. É verdade que, além da vaidade de pretender dominar o mundo, Napoleão tinha razões pessoais para tentar se espalhar pela Europa e pelo norte da África”.

 E para além dos fatos políticos e personagens oficiais que remetem ao que historiadores chamam de história oficial, o romance é rico em descrições vivas de costumes, festas típicas, os beija-mãos junto ao Imperador, a riqueza paisagística dos bairros, sendo perceptível a preocupação do biógrafo em retratar o Rio do século XIX efetivamente conforme a cidade se estabelecia, reproduzindo o nome antigo dos bairros, ruas e morros. O carnaval nos é relatado de forma a nos conduzir a uma festa efetivamente popular, com ocupação de rua e práticas interessantes como a borradeira de água de pimenta nos transeuntes ou ainda pior: a prática do entrudo em que algum espertalhão sorrateiramente jogava de cima de algum prédio farinha, ovo, ou a combinação de ambos nos passantes. Com alguma frequência ocorria alguma briga entre folião e alguém pego de surpresa e dentro da narrativa a segurança na cidade era levada a cabo pelo temido Major Vidigal, memorável personagem do “Memórias”.

Outro fato político bastante comentado pelos historiadores diz respeito às grandes mudanças produzidas na cidade do Rio de Janeiro com a vinda da Família Real. Aquelas mudanças urbanísticas e paisagísticas são frutos de um fato único em toda a história mundial: pela primeira vez uma colônia passaria a ser a sede de uma corte europeia.

“Muitos desses hábitos, como o dos enterros noturnos e em cova rasa, não demorariam a ficar esquecidos no passado carioca. A vinda da Família Real começava a mudar a face do Rio. O intendente Paulo Fernandes Viana, encarregado geral da cidade, estava disposto a acabar com o ranço colonial e, em dois tempos, fazer do Rio uma capital digna de um reino, apta a receber as embaixadas estrangeiras, os fidalgos de outras cortes e a elite dinheirosa da metrópole – mesmo porque, agora, o Rio é que era a metrópole.

Viana parecia picado pelo bicho-carpinteiro. Começou por obrigar os proprietários a derrubar as gelosias de suas janelas – as platibandas de treliça que isolavam as casas do que se passava na rua e contribuíam para o ar abafado e doentio das habitações. No que as janelas se escancararam, o sol entrou pela primeira vez em suas salas e revelou, inclusive, as belas mulheres que elas escondiam”.

Pode ser bastante rica esta combinação de ficção e história reproduzida em “Era no Tempo do Rei”. No âmbito do ensino da história, em tempos em que o incentivo à leitura torna-se um ato militante, este tipo de trabalho pode ser fonte de estudos para aprendizado de história, em especial para jovens – e a ser estudado enquanto método para desenvolvimento a ser trilhado em outras obras acerca da história do brasil, rica também em vasta literatura, de forma a fazer com que a aprendizado da história também possa ser cativante e divertido. Esta é só uma possibilidade elencada aqui a título de exemplo. Que apareçam mais obras com esta perspectiva nas letras brasileiras.      

terça-feira, 14 de junho de 2016

“Memorial de Maria Moura” – Rachel de Queiroz

“Memorial de Maria Moura” – Rachel de Queiroz




Resenha Livro  225 - “Memorial de Maria Moura” – Rachel de Queiroz – Coleção Folha Grandes Escritores Brasileiros
               
                
A escritora cearense Rachel de Queiroz (1910 – 2003) pode ser descrita como um dos principais expoentes da Segunda Fase do Modernismo Literário brasileiro. Seu romance de estreia, “O Quinze” de 1930 (ver resenha em: http://esperandopaulo.blogspot.com.br/2011/03/o-quinze-rachel-de-queiroz.html) , tem a mesma relevância pioneira de autores e obras que marcaram época como “Vidas Secas” de Graciliano Ramos, “Fogo Morto” de José Lins do Rego e “A Bagaceira” de José Américo de Almeida.

O que o unifica todos estes autores ao ponto de se poder falar numa escola literária é a tendência às referências paisagísticas e aos contextos dos romances que tiveram como foco o regionalismo, à crítica social, às menções aos problemas da seca, das imigrações, das relações patriarcais e de domínio entre coronéis, seus pátrio poder, agregados e escravos. De certa maneira a 2ª fase do Modernismo é um aprofundamento mesmo do modernismo de vanguarda de 1922 que já tinha em suas cogitações a preocupação por uma arte essencialmente nacional, em sua forma e conteúdo.

A decorrência lógica deste norte seria uma imersão pelos vastos recantos do interior do Brasil, com destaque especial para o sertão nordestino. Um aspecto interessante que também perpassa a obra de todos aqueles autores é um novo estatuto humano dado aos personagens tão simples e humildes que protagonizam as histórias regionalistas. Pela primeira vez, pode-se falar que as narrativas fazem verdadeira imersão sobre a consciência seja de um Luís da Silva de “Angústia” ou seja mesmo da criança “Doidinho” do romance de mesmo nome de José Lins do Rego: o que se pontua aqui é que a pobreza e os personagens a ela submetidos não são vistos como algo pitoresco como num “Memória de Sargento de Milícias” de Manuel Antônio de Almeida ou de uma forma superficial, sem uma abordagem profunda de suas cogitações, esperanças e desenganos, como num “O Cortiço” de Aluísio de Azevedo. Basta recordarmos mais uma vez o personagem Luís da Silva de “Angústia”, um personagem afundado na miséria como um burocrata de terceira categoria que é assolado por sentimentos de desejo sexual amoroso frustrados, culpa, ódio e remorso, remetendo ao memorável estudante Rodion Raskólnikov de “Crime Castigo” do escritor russo F. Dostoiévski.   

“Memorial de Maria Moura” foi escrito em 1992, num momento de plena maturidade artística de Rachel de Queiroz. Vai além de um mero romance regionalista e nas suas 600 e poucas páginas traça uma verdadeira epopeia na qual relata diversas histórias que se entrelaçam tendo como fundo paisagístico o sertão nordestino e um momento histórico que podemos especular durante o século XIX antes da abolição da Escravatura.

A personagem Maria Moura teve como inspiração, segundo o prefácio, Elisabeth I, rainha da Inglaterra entre 1533-1603, e sua trajetória dentro de um contexto radicalmente violento, baseado no domínio regional de coronéis sem qualquer jurisdição estatal, demonstra a bravura de uma sinhazinha que, devido às circunstâncias da vida, transforma-se numa líder de um bando fortemente armado de cangaceiros que viria a instalar uma casa forte em terras distantes em meio ao sertão, tornando-se temida e respeitada por léguas a fio.

Maria Moura era órfã de pai e morando no Limoeiro com sua mãe, a vê se relacionando com o oportunista Liberato. A certa altura, descobre sua genitora enforcada no quarto numa cena simulando suicídio. Depois descobre que tudo fora obra do padrasto com o fim de adquirir a herança da Fazenda. A descoberta da mãe enforcada revela uma cena dramática de forte impacto:

“Eu que descobri. Minha mãe morta, enforcada no armador da parede. Em redor do pescoço, um cordão de punho de rede, os pés a um palmo do chão, o rosto contra a parede. Tombado no tijolo, o tamborete em que ela subiu para acabar com a vida.

Vendo aquilo, eu soltei um grito que me rasgou a garganta e o peito. E me agarrei com Mãe: ela já estava fria, o corpo duro. Gritando sempre, abraçada com ela, me parecia que eu estava afundando num poço sem fim, na escuridão, apavorada”.

A pequena Sinhá desde cedo já começa a revelar a sua força e seduz um criado da fazenda com algumas mentiras para que o mesmo mate Liberato. A execução é bem sucedida. Como depois o criado seduzido passa a cobrar casamento de Maria Moura, recorre a João Rufo, amigo da casa e numa tramoia por meio de um plano muito bem executado, mais uma execução é cometida.
Posteriormente, Tonho e Irineu (primos mal intencionados de Moura) comparecem à casa de Limoeiro – entendem que com a morte da Mãe, fazem jus à propriedade do Limoeiro. Ameaçam-na expulsar de casa. E agora num plano ainda mais extraordinário, enquanto espera a vinda dos homens, Maria Moura espalha fogo por toda a residência (para não deixar um vintém aos oportunistas) e a partir daí parte em fuga com um punhado de homens com algumas poucas armas em direção à Serra dos Padres, onde seu avô contava haver terras de seu dote.

Começaria a partir daqui a epopeia supracitada em que o leitor é levado a conhecer vilarejos e ranchos semi-abitados e abandonados, como se dava a viagem de tropeiros numa época em que não havia estradas e os meios de comunicação para o transporte de bens mínimos como a carne e o sal, da forma mais insalubre, casos verossímeis de pessoas que viviam tão isoladas do mundo no sertão, colhendo água do açude ou fios de água e caçando preá para sobreviver, tal qual índios: um roteiro que interessa não só a apreciação literária, mas o conhecimento da história e geografia do Brasil.

Voltando à Maria Moura, seu bando executa roubos à beira da estrada e com o rendimento das ações adquire cavalos e munições. A protagonista para se fazer respeitada usa roupa de homem e corta seus cabelos curtos, não admite intimidade com seus cabras, adota um forte regramento de hierarquia e efetivamente adquire o respeito deles, e dos demais que se somam ao seu grupo. Trata-se aqui de um verdadeiro empoderamento feminino que envolve acima de tudo a capacidade de liderar, sem hesitar e vacilar por parte de “Dona Moura” (que, assim gostava de ser chamada). Um dos traços de personalidade da protagonista certamente era a valentia. Como discutimos em “Um Certo Capitão Rodrigo” de Érico Veríssimo, não se trata de uma valentia desprendida e inconsequente como do capitão: Dona Moura nas suas cogitações pessoais, revela medos pessoais, mas a valentia aqui significa não a ausência de medo, mas agir a despeito do medo.

“Minha primeira ação tinha que ser a resistência. Eu juntava meus cabras – os três rapazes, João Rufo (que em tempos antes já tinha dado suas provas). Os dois velhos podiam servir para municiar as armas, na hora da precisão. Eu queria assustar o Tonho. Nunca se viu mulher resistindo à força contra soldado. Mulher, para homem como ele, só serve para dar faniquito. Pois comigo eles vão ver. E se eu sinto que perco a parada, vou-me embora com meus homens, mas me retiro atirando. E deixo um estrago feio atrás de mim. Vou procurar as terras da Serra dos Padres – e lá pode ser para mim outro começo de vida. Mas garantida com os meus cabras. Para ninguém mais querer botar o pé no meu pescoço; ou me enforcar num armador de rede. Quem pensou nisso já morreu”.

Sabe-se que Rachel de Queiróz tinha restrições ao movimento feminista de seu tempo. A seu turno, “Memorial de Maria Moura”, além dos interesses históricos e sociológicos referentes à narrativa literária regionalista, mostra-nos um outro viés de empoderamento feminino positivo, diferente do movimento feminista, este negativo, que rebaixa a mulher à vítima, trata-a como hipossuficiente. São muitos os motivos, portanto, para conhecer esta obra.  




quinta-feira, 26 de maio de 2016

“Um Certo Capitão Rodrigo” – Érico Veríssimo

“Um Certo Capitão Rodrigo” – Érico Veríssimo



Resenha Livro 224 – “Um Certo Capitão Rodrigo” – Coleção Folha Grandes Escritores Brasileiros 5

Já foi dito que a literatura é um retrato da sociedade. A assertiva é particularmente correta para este romance neorrealista do escritor gaúcho Érico Veríssimo. O livro compõe o compêndio “O Continente” (1949), faz parte da primeira parte “O Tempo e o Vento”, uma série sobre a história do Rio Grande do Sul.

O autor se serve de sua origem regional para criar uma narrativa que leva o leitor a conhecer a paisagem histórica, personagens, cultura, música, sotaques, enfim todo o passado do Brasil meridional. A figura do gaúcho, nesta narrativa ilustrada particularmente na figura de seu protagonista, o valente Rodrigo Carambá, vai muito além de uma mera caricatura ou da construção de um tipo ideal que vai ressaltando elementos pitorescos ou folclóricos – o escritor vai muito além e busca construir um tipo verdadeiramente humano, conduzindo o leitor a realmente estar em contato com o Brasil meridional do séc. XIX.

Como se sabe o sul do Brasil historicamente foi objeto de importantes conflitos e guerras em função dos limites territoriais. Por muito tempo durante a fase colonial os limites formais eram os do Tratado de Tordesilhas, que logo ficou obsoleto até a assinatura do Tratado de Madrid (1750) que assinalou o princípio do uti possidetis ita possideatis (quem possui de fato, deve possuir de direito), significando que os limites deveriam respeitar uma situação de ocupação do território consolidada. Ainda assim conflitos junto aos castelhanos persistiram – trata-se de região da Bacia do Rio da Prata, localização estratégica para os Espanhóis terem livre acesso às lucrativas minas no Peru.

“Um Certo Capitão Rodrigo” tem seu início no ano de 1828, quando Rodrigo Cambará, um veterano de guerra, desde menino habituado a viver sem residência fixa, se assomando a tropas, insurreições e fazendo de sua vida uma eterna aventura, atinge o povoado de Santa Fé. Trata-se de uma pequena província de 30 poucas casas cuja autoridade pertence à família Amaral, que tem o controle político e de direito da cidade.

“Toda gente tinha achado estranha a maneira como o Cap. Rodrigo Cambará entrara na vida de Santa Fé. Um dia chegou a cavalo, vindo ninguém sabe de onde, com o chapéu de barbicacho puxado para a nuca, a bela cabeça de macho altivamente erguida e aquele seu olhar de gavião que irritava e ao mesmo tempo fascinava as pessoas. Devia andar lá pelo meio da casa dos trinta, montava um alazão, trazia bombachas claras, botas com chinelas de preta e o busto musculoso apertado num dólmã militar azul, com gola vermelha e botões de metal. Tinha um violão a tira colo; sua espada, apresilhada aos arreios, rebrilhava ao sol daquela tarde de outubro de 1828 e o lenço encarnado que trazia ao pescoço esvoaçava no ar como uma bandeira”.


São muitos os traços de personalidade de Rodrigo Cambará: altivo, destemido, gozador, amante da liberdade, da bebida, do jogo e das mulheres. Mas talvez o maior signo de distinção do protagonista seja sua desmedida coragem. Para ficar com apenas um exemplo para ilustrar. Rodrigo Cambará logo nos primeiros dias em Santa Fé apaixona-se por Bibiana que também é disputada por Bento Amaral, herdeiro do todo poderoso mandante da província. Durante um fandango de casamento, após um desentendimento diante da dúvida sobre quem dançaria com a moça, os homens se desentendem e diante da iminente briga, fica arranjado a execução de um duelo entre Cambará e Amaral; um duelo com facas – a cena do duelo tem um tom cinematográfico e é uma das passagens altas do romance. 

Rodrigo consegue dominar o adversário e escrever um “P” em sua testa – “faltou só a perna”, diria depois aos amigos. Bento Amaral em sua covardia levara uma arma e atirara à queima roupa em Rodrigo Cambará que é levado quase morto para casa de seu amigo Juvenal Terra. Aqui constata-se o ponto alto de sua coragem em nossa opinião: Rodrigo está num estado terminal em função da bala e outro amigo, o Padre Lara, deseja confessar Cambará para que este não vá ao inferno. Mesmo mal conseguindo se comunicar, Cambará responde piscando os olhos. Quando o padre solicita que se arrependa dos seus pecados, Rodrigo pisca sinalizando um não. E quando o cura insiste, faz uma figa num verdadeiro escárnio, pontuando não temer as consequências espirituais da morte.

Se a literatura é o retrato da sociedade, a questão política se faz presente mesmo naquele povoado longínquo de Santa Fé. É interessante observar dentre outros a noção que se tinha acerca do governo, aqui nas palavras do personagem Pedro Terra:

“Ao pensar na Corte, Pedro pensou em governo. Para ele governo era uma palavra que significava algo de temível e ao mesmo tempo odioso. Era o governo que cobrava impostos, que recrutava os homens para a guerra, que requisitava gado, mantimentos e às vezes até dinheiro, e que nunca mais se lembrava de pagar tais requisições...Era o governo que fazia as leis – leis que sempre vinham em prejuízo do trabalhador, do agricultor, do pequeno proprietário. Antigamente, quem dizia governo dizia Portugal, e a gente tinha uma certa má vontade para com tudo que fosse português, começando por antipatizar com o jeito de falar dos “galegos”. Mas que se passava agora que o país havia proclamado a independência e possuía o seu imperador? Não tinha mudado nada, nem podia mudar. No fim das contas d. Pedro I era também português. Vivia cercado de políticos e oficiais “galegos”. 

Ali mesmo na Província já se dizia que nas tropas quem mandava eram os oficiais portugueses; murmurava-se que eles estavam conspirando para fazer o Brasil voltar de novo ao domínio de Portugal”.

Certamente, o leitor interessado em história do Brasil será recompensado pela leitura de “Um Certo Capitão Rodrigo”. Há alguns personagens que de certa forma marcam o leitor pela qualidade de sua composição. Podemos citar Macunaíma de Mario de Andrade, Dom Casmurro de Machado de Assis ou Luís da Silva (Angústia) de Graciliano Ramos. Não vemos porque não colocar Rodrigo Cambará neste mesmo patamar.  

quinta-feira, 19 de maio de 2016

“Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que Não Foi” – José Murilo de Carvalho

“Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que Não Foi” – José Murilo de Carvalho



Resenha Livro - 223- “Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que Não Foi” – José Murilo de Carvalho – Ed. Companhia das Letras

“Bestializado” é uma palavra que tem diferentes conotações. O sentido empregado pelo livro remete à ideia de “perplexo”, “atônito” ou “espantado”. Aristides Lobo, propagandista da República, assim se referiu à reação popular quanto aos acontecimentos que culminaram na proclamação da República em 1889. Certamente o povo esteve ausente daquele evento político: a derrocada do Império e a ascensão republicana esteve muito longe de ser o resultado de uma insurreição popular, da pressão de um movimento de massas, mas foi antes aquilo que alguns sociólogos chamam de um caminho pela “via prussiana”, um arranjo político projetado pela elite. Foi um fato político em que teve papel central a abolição da escravatura (1888) e com ela a falta de apoio do partido brasileiro (grandes proprietários fundiários) bem como a crise do regime junto às forças armadas.

Atônito, o povo mal entendia o que acontecia com a mudança de regime e conta-se que alguns confundiram-no com uma mera parada militar. Entra aqui em questão o problema da cidadania, ou seja, a relação/vínculos entre o povo e as instituições políticas desde que a República envolve dentre outras coisas a ideia da soberania popular – uma ideia que era sinceramente defendida por alguma parcela do movimento republicano brasileiro.

O problema da cidadania é tema já recorrente nos trabalhos de José Murilo de Carvalho. Escreveu um livro mais amplo sobre o tema, “A cidadania no Brasil”. Aqui ele faz um recorte temático e escolhe o Rio de Janeiro do período de transição entre o Império e a República para identificar o problema da integração política do povo (ou a falta dela), bem como suas raízes, o que envolve um olhar sobre a sociedade, a política e a cultura daquele contexto. O Rio de Janeiro tem particularidades que eventualmente expressam dificuldades estruturais do Brasil no que se refere à cidadania em geral: desde 1808 com a vinda de D. João XI a cidade é elevada a sede administrativa do reino e na cidade é montada um aparato administrativo com milhares de gestores advindos da corte portuguesa; a cidade ainda tem um peso considerável de estrangeiros, principalmente portugueses que ocupam postos de trabalho na área de comércio e são proprietários de imóveis locatários, causa de rivalidades que, no contexto de embates entre monarquistas e republicanos, resultariam em conflitos, não raro, com mortos. No censo de 1902 estima-se em 26% de população estrangeira no Rio de Janeiro. A ampla maioria de cidadãos era de ex-escravos que vão compor um perfil étnico com lastros importantes na cultura e na religião. Se num primeiro olhar superficial tem-se a impressão de que há um povo despolitizado, eventualmente mesquinho e egoísta, observa-se que da política vai-se para outras formas de organização social, movimentos comunitários, associações de mútuo auxílio, ora de caráter religioso, ora de caráter esportivo. José Murilo de Carvalho remete-nos aqui à Max Webber que dentro de uma tradicional divisão de formas associativas, demonstra o modelo anglo saxão, individualista que resulta em associações e um modelo ibérico (que é o brasileiro) de tipo mais comunitário e coletivista.

“A cidade mantinha suas repúblicas, seus nódulos de participação social, nos bairros, nas associações, nas irmandades, nos grupos étnicos, nas igrejas, nas festas religiosas e profanas e mesmo nos cortiços e maltas de capoeiras. Estruturas comunitárias não se encaixavam no modelo contratual do liberalismo dominante da política. Ironicamente, foi da evolução destas repúblicas, algumas inicialmente discriminadas, se não perseguidas, que se foi construindo a identidade coletiva da cidade. Foi nelas que se aproximaram povo e classe média, foi nelas que se desenhou o rosto real da cidade, longe das preocupações com a imagem que se devia apresentar à Europa. Foi o futebol, o samba e o carnaval que deram ao Rio de Janeiro uma comunidade de sentimentos, por cima e além das grandes diferenças sociais que sobreviveram e ainda sobrevivem.”

Como se sabe, do ponto de vista Institucional a República Velha era marcada pela exclusão eleitoral e pela violência e corrupção durante os pleitos. Estavam excluídos da participação formal da política as mulheres, os menores de 21 anos, os analfabetos, os estrangeiros e os praças. Considerando os abusos e a violências no escrutínio, o comparecimento nas urnas era algo em torno de 5% da população ou menos. Obviamente a participação eleitoral é apenas uma parte do agir politicamente, do ser cidadão – o que se constata é que além das restrições legais, o não comparecimento ao voto dava-se pela constatação por todos da fraude e pelo próprio risco com eventuais incidentes de violência:

“Desde o Império, as eleições na capital eram marcadas pela presença dos capoeiras, contratados pelos candidatos para garantir os resultados. A República combateu os capoeiras, mas o uso de capangas para influenciar o processo eleitoral só fez crescer. Fiel cronista da cidade, Lima Barreto observa em Os Bruzundangas que às vésperas de eleição ela parecia pronta para uma batalha. Conhecidos assassinos desfilavam em carros pelas ruas ao lado dos candidatos”.

Por outro lado, não se pode dizer que a ausência de participação política formal resultara em completa apatia. O que se destaca neste período são também as revoltas populares. Revoltas por motivos econômicos como a Revolta do Vintém em 1879 em decorrência da cobrança de tributo sobre as passagens dos bondes. Condutores foram escorraçados, bondes e trilhos foram destruídos, um verdadeiro motim popular foi deflagrado, sendo necessária ajuda do exército. José Murilo de Carvalho dedica um capítulo inteiro à revolta mais conhecida do período, a Revolta da Vacina. O prefeito nomeado Pereira Passos iniciou uma série de reformas na cidade, com a abertura de avenidas, fechamento de cortiços e a imposição de uma série de normas de higiene com o condão de transformar a cidade, fazer uma reforma modernizadora tal qual Paris – apenas para a abertura da Avenida Central foram recrutados 1800 operários e derrubados 640 prédios. A obrigatoriedade da vacina contra a varíola tendo à frente o Diretor de Serviço de Saúde Oswaldo Cruz era na verdade o desenvolvimento de um projeto de lei que efetivasse o ingresso de agentes públicos nas residências de forma impositiva e aplicasse a vacina – a obrigatoriedade em si já constava de norma jurídica desde os tempos do Império, mas não era cumprida. Enquanto o projeto era discutido, muito descontentamento com os possíveis desdobramentos do projeto foram sendo expressos pela imprensa, em reuniões ou discussões coletivas. Dentre a elite pensante, os positivistas, dentro de sua filosofia política, colocavam em dúvida a eficácia da vacina. E, pior, dentre as classes baixas, foi surgindo rumores de tipo moralista segundo o qual o pai de família enquanto estivesse fora no labor deixaria os agente públicos aplicarem a vacina pelas pernas de suas filhas e esposas de forma lasciva, exibindo suas partes íntimas.

A intransigência do governo e a retórica de setores médios (Lauro Sodré) que insuflavam o movimento que ganhou o apoio de estudantes, operários, capoeiras, o lupem e até setores do exército culminou numa revolta radicalizada com barricadas, destruição de bondes e troca de tiros com a polícia, incluindo mortos.

“Antes do assalto final a Porto Artur, repórteres do “Jornal do Commercio” e “O Paiz” conseguiram visitar a fortaleza, que constava de barricadas ao longo de toda a rua da Harmonia, desde a praça da Harmonia até a esquina com a rua Gamboa. Bondes virados, carroças, calçamento arrancado, árvores derrubados, lampiões destruídos, chão cobertos de latas, garrafas, colchões, um berço de vime. Na barricada principal, do lado direito, na ponta de um bambu, uma bandeira vermelha. Do lado esquerdo, no pano branco, a inscrição, “Porto Artur”. Duas casas de armas da rua Senador Pompeu tinham sido assaltadas e saqueadas. O repórter do “Jornal do Commercio” impressionou-se com “aquela multidão sinistra, de homens descalços, em mangas de camisa, de armas ao ombro uns, de garrucha e navalha à mostra outros”.


Diante da constatação de que houve luta e de que para além da política oficial o povo esteve em busca de formas de colaboração e organização, é de se questionar se os limites da cidadania não se remetem antes às instituições e às ideias que lhe dão sustentação do que ao povo propriamente dito. O liberalismo e o positivismo de nossas elites, que se remeteram às ideias estrangeiras, demonstrou não ter o condão de dar engrenagem às instituições com efetiva soberania popular, mesmo porque este não era o projeto da maior parte da elite dominante. Se o povo assistiu bestializado aos eventos de 1889, chegará o dia em que as elites assistirão bestializadas à tomada de poder pelo povo, à nossa revolução democrático-popular.