quarta-feira, 29 de junho de 2016

“Os Grandes Líderes – Napoleão” – Leslie McGuire

“Os Grandes Líderes – Napoleão” – Leslie McGuire



Resenha Livro 227 - “Os Grandes Líderes – Napoleão” – Leslie McGuire – Ed. Nova Cultural

Biografia é palavra cujo prefixo “Bio” significa vida e “grafia” remete à ideia de escrever, redigir. Trata-se portanto de livros voltados a descrever a história de vida de indivíduos.

Podemos classificar a Biografia como uma espécie do gênero História. E dentre as Biografias, verificamos distintas sub- espécies: há as Biografias autorizadas, em geral realizadas em parceria com o biografado e não raro com omissões acerca de detalhes embaraçosos ou comprometedores; há as biografias não autorizadas, que eventualmente são publicadas quando seu protagonista ainda está vivo, ensejando uma interessante discussão acerca da ponderação entre o direito à intimidade e proteção à imagem e, por outro lado, à liberdade de expressão; há as Biografias históricas stricto senso, com maior densidade teórica e senso crítico, que não só percorre a vida do biografado mas o situa em seu tempo, contextualiza o indivíduo na história; e há Biografias do tipo enciclopédicas, que são mais informativas, remetendo o leitor às datas e fatos relevantes sem um aprofundamento teórico e uma interpretação da história quanto aos seus sentidos.

A coleção “Os Grandes Líderes” da Nova Cultural pode ser classificada nesta última sub-espécie. Em que pese portanto a ausência de uma análise mais profunda acerca do fenômeno da era Napoleônica, a leitura da obra ainda se faz relevante: a rica diversidade de fontes e dados é um ponto de partida essencial para situar um posterior estudo sobre o sentido daquele fenômeno histórico.

Importa ressaltar que a era Napoleônica teve influência decisiva nos rumos da história do Brasil. Durante a chamada Guerra Peninsular, com a deposição do Rei de Espanha em 1808 por imposição de Napoleão e sua substituição por seu Irmão José, diante do bloqueio continental imposto pelo Imperador contra a Inglaterra e com as tropas francesas às porta das fronteiras Portuguesas, não restou outra alternativa à coroa de Portugal que não sua fuga ao Brasil – pela primeira vez no mundo uma colônia seria a sede de uma Coroa Europeia e o Brasil seria elevado à condição de Reino Unido de Portugal e Algaveres. Há no Brasil o fim do exclusivismo comercial o que na prática significa o fim do regime colonial, a abertura dos portos às nações amigas, a criação da imprensa Régia, a Fundação do Banco do Brasil, dentre outras mudanças significativas.

Napoleão nasceu na ilha de Córsega, situada no Mar Mediterrâneo, equidistante da Itália e França. A ilha tem um dialeto próprio e naquela época, apesar de sua proximidade com a Itália, pertencia à França. Sua família é de origem pequeno burguesa – seu pai Carlo é advogado. Aos 10 anos, Napoleão ingressa na Escola Militar de Brienne no norte da França. A sua origem social modesta, o seu sotaque estrangeiro e sua aparência física inusitada fizeram com que o futuro imperador encontrasse dificuldades de relacionamento social em Brienne e posteriormente na Escola Militar Real de Paris, para onde é transferido em outubro de 1784.

“(....) Bonaparte tinha o rosto emoldurado por longos cabelos pretos que pareciam nunca ter sido penteados. O uniforme era-lhe grande demais, assentando  desajeitadamente em sua figura de 1,58 m; suas botas, sem nenhum brilho, tinham os saltos gastos e ficavam tão grandes em suas pernas magras que pareciam pertencer a outra pessoa, e seu francês soava com um sotaque estranho”.

1789 é o ano da tomada de Bastilha, o ano um da Revolução Francesa. Suas causas decorrem da opressão brutal sobre a qual os camponeses estavam submetidos pela aristocracia e pelo clero, além da burguesia que, em ascensão, não admitia ser excluída do poder. É dentro do contexto das jornadas revolucionárias que Napoleão, formado como oficial de artilharia, irá, por etapas e numa escalada vertiginosa, ascender ao poder.

A primeira etapa corresponde ao cerco de Toulan, quando nosso protagonista tinha 24 anos. Tal cidade, localizada no sul da França, estava tomada pelos contra-revolucionários monarquistas, apoiados por tropas Inglesas.

“O capitão Bonaparte começou a estudar o posicionamento de sua artilharia, e se deu conta de que todo o cerco estava muito mal organizado. Os canhões seriam inúteis a menos que se fizessem algumas mudanças importantes. Ele se propôs a efetuar tais mudanças e, como ninguém mais parecia entender tanto quanto ele de artilharia, sua proposta foi aceita”.

O cerco aos Ingleses foi exitoso e Bonaparte teve seu primeiro reconhecimento como dirigente militar eficiente. Sua reputação seria elevada em 5 de Outubro de 1785 com uma exitosa repressão a uma insurreição realista (monarquista) que salvou a Convenção Nacional. Desde então foi nomeado subcomandante.  

A Revolução Francesa granjeava inimigos externos em função das possíveis repercussões do movimento contra as demais coroas europeias. Bonaparte foi assim recrutado para a Missão Italiana cujo pano de fundo era o combate à Áustria. As cidades italianas estavam sob domínio do Império Austríaco e receberam as tropas de Napoleão como libertadores do jugo imperial:

“Os cidadãos de Milão receberam Napoleão jubilosos e de braços abertos. Ele, então, esvaziou os cofres da cidade e, em seguida, marchou em direção ao Sul. Conquistou o grande Ducado da Toscana, os ducados de Módena e Parma, e os Estados papais de Bolonha e Ferrara. Essa intensa atividade ocupou-o durante um mês inteiro e lhe permitiu ficar de posse de grandes quantidades de dinheiro, alimentos, cavalos, munições e armamentos. Napoleão também tomou posse de grandes tesouros culturais destes Estados, enviando para a França muitas pinturas de valor incalculável e inúmeras outras obras de arte”.

Não é a nossa intenção aqui reproduzir toda a trajetória da vida de Napoleão, mas pincelar algumas passagens e tecer algumas reflexões.

Desde a Missão Italiana, há uma solução de continuidade em ascensão com a Missão no Egito, com o fito de combater a Inglaterra e com importante importância cultural no sentido de descobertas arqueológicas por uma missão especial junto às tropas francesas; o golpe do 18 de Brumário que põe termo ao Diretório e instala o consulado, fazendo de Napoleão o 1º Consul aos 30 anos de idade; o ano de 1804 em que o Parlamento faz de Napoleão Imperador, um título hereditário. E momentos de descenso como a invasão da Rússia e a batalha de Borodino que custaram aos franceses centenas de milhares de Morte; posteriormente o exílio, primeiro em Elba, durante 10 meses, e depois em Santa Helena, onde falece no ano de 1821.

O que importa perquirir aqui é qual o sentido mais geral da era Napoleônica? Numa boa síntese, aponta Marx:

“Napoleão criou dentro da França as condições que tornaram possível a livre concorrência para o desenvolvimento, a redistribuição da terra a ser explorada e a possibilidade de pôr em uso a força produtiva da nação, recentemente liberada; fora dos limites da França, acabou com as instituições feudais.”


segunda-feira, 27 de junho de 2016

“Era no Tempo do Rei – Um Romance da chegada da Corte” – Ruy Castro

“Era no Tempo do Rei – Um Romance da chegada da Corte” – Ruy Castro



Resenha Livro 226 - “Era no Tempo do Rei – Um Romance da chegada da Corte” – Ruy Castro

O escritor e jornalista mineiro Ruy Castro deve ter a maior parte de sua reputação nas letras decorrente de seu trabalho como biógrafo. Escreveu sobre a vida de Nelson Rodrigues (“O Anjo Pornográfico” – 2002) e dois trabalhos que lhe renderam o prêmio Jabuti de Livro do Ano: biografias sobre Carmem Miranda (“Carmem – Uma Biografia” – 2005) e Garrincha (“Estrela solitária – Um brasileiro chamado Garrincha” - 1995). Tal experiência, somada aos trabalhos particulares que remetem à cidade do Rio de Janeiro em “Chega de Saudade” (1990) sobre a Bossa Nova e “Carnaval no Fogo” (2003) sobre supracitada cidade, remetem diretamente ao livro “Era no Tempo do Rei”.
              
Trata-se de um gênero literário criativo e particular, uma mistura de ficção e história, um romance que se passa no Rio de Janeiro, em 1810, dois anos após a vinda da família real portuguesa ao Brasil, com o fato político que, nos termos do historiador Caio Prado Jr., põe termo ao nosso período colonial: a elevação do país à condição de reino unido à Portugal e Algarves; a abertura dos portos às nações amigas e o fim do regime colonial baseado no exclusivismo comercial; e iniciativas modernizadoras desde a criação da biblioteca nacional, da imprensa régia e da fundação do Banco do Brasil.

Todos estes elementos históricos surgem como pano de fundo de uma história cuja forma é contada em forma de romance. E sintomaticamente os dois personagens principais são retirados, um da história, e outro do romance “Memórias de Sargento de Milícias” (1852-53) de Manuel Antônio de Almeida. D. Pedro, príncipe regente, então com doze anos e Leonardo, filho do português e meirinho aqui no Brasil Leonardo Pataca, os dois retratados como dois peraltas. O que os igualam é a capacidade de dar nó e pingo d’água em adultos e crianças com diabruras que o colocam como pivetes muito acima da média: o que o separam é a origem social, o que, como se observa frequentemente, não é lá algo impeditivo para duas crianças brincarem, divertirem-se: após se conhecerem, têm toda a cidade do Rio de Janeiro como cenário de suas aventuras.

Os limites tênues entre ficção e história vão se extrapolando adiante com personagens reais como Carlota Joaquina, rainha e tratada como vilã, desleal para com o generoso bonachão D. João VI., seu marido, disposta a conjurar junto a súditos ingleses com quem mantém relações extraconjugais, com o olho na restauração do trono em Espanha pós napoleão e nas Províncias Cisplatinas – sua predileção pelo filho D. Miguel em detrimento de D. Pedro teve efetiva repercussão nos fatos históricos reais e mais uma vez nos deparamos com esta interface entre história e literatura.

“Não que Pedro tivesse alguma coisa contra os ingleses. Ao contrário, pelo que ouvia dos mais velhos, os franceses é que eram os vilões do novo século, os republicanos insidiosos, os vampiros da realeza. Com a falta de cerimônia com que, até bem pouco, guilhotinavam as cabeças coroadas, ninguém de sangue azul estava salvo na Europa. O festival de cabeças cortadas terminara, mas, agora, a França caíra nas mãos de um homem chamado Napoleão, que se autoproclamara imperador e estava ameaçando abocanhar todas as casas reais – a própria Família Real inglesa, para se garantir, botara as barbas de molho. É verdade que, além da vaidade de pretender dominar o mundo, Napoleão tinha razões pessoais para tentar se espalhar pela Europa e pelo norte da África”.

 E para além dos fatos políticos e personagens oficiais que remetem ao que historiadores chamam de história oficial, o romance é rico em descrições vivas de costumes, festas típicas, os beija-mãos junto ao Imperador, a riqueza paisagística dos bairros, sendo perceptível a preocupação do biógrafo em retratar o Rio do século XIX efetivamente conforme a cidade se estabelecia, reproduzindo o nome antigo dos bairros, ruas e morros. O carnaval nos é relatado de forma a nos conduzir a uma festa efetivamente popular, com ocupação de rua e práticas interessantes como a borradeira de água de pimenta nos transeuntes ou ainda pior: a prática do entrudo em que algum espertalhão sorrateiramente jogava de cima de algum prédio farinha, ovo, ou a combinação de ambos nos passantes. Com alguma frequência ocorria alguma briga entre folião e alguém pego de surpresa e dentro da narrativa a segurança na cidade era levada a cabo pelo temido Major Vidigal, memorável personagem do “Memórias”.

Outro fato político bastante comentado pelos historiadores diz respeito às grandes mudanças produzidas na cidade do Rio de Janeiro com a vinda da Família Real. Aquelas mudanças urbanísticas e paisagísticas são frutos de um fato único em toda a história mundial: pela primeira vez uma colônia passaria a ser a sede de uma corte europeia.

“Muitos desses hábitos, como o dos enterros noturnos e em cova rasa, não demorariam a ficar esquecidos no passado carioca. A vinda da Família Real começava a mudar a face do Rio. O intendente Paulo Fernandes Viana, encarregado geral da cidade, estava disposto a acabar com o ranço colonial e, em dois tempos, fazer do Rio uma capital digna de um reino, apta a receber as embaixadas estrangeiras, os fidalgos de outras cortes e a elite dinheirosa da metrópole – mesmo porque, agora, o Rio é que era a metrópole.

Viana parecia picado pelo bicho-carpinteiro. Começou por obrigar os proprietários a derrubar as gelosias de suas janelas – as platibandas de treliça que isolavam as casas do que se passava na rua e contribuíam para o ar abafado e doentio das habitações. No que as janelas se escancararam, o sol entrou pela primeira vez em suas salas e revelou, inclusive, as belas mulheres que elas escondiam”.

Pode ser bastante rica esta combinação de ficção e história reproduzida em “Era no Tempo do Rei”. No âmbito do ensino da história, em tempos em que o incentivo à leitura torna-se um ato militante, este tipo de trabalho pode ser fonte de estudos para aprendizado de história, em especial para jovens – e a ser estudado enquanto método para desenvolvimento a ser trilhado em outras obras acerca da história do brasil, rica também em vasta literatura, de forma a fazer com que a aprendizado da história também possa ser cativante e divertido. Esta é só uma possibilidade elencada aqui a título de exemplo. Que apareçam mais obras com esta perspectiva nas letras brasileiras.      

terça-feira, 14 de junho de 2016

“Memorial de Maria Moura” – Rachel de Queiroz

“Memorial de Maria Moura” – Rachel de Queiroz




Resenha Livro  225 - “Memorial de Maria Moura” – Rachel de Queiroz – Coleção Folha Grandes Escritores Brasileiros
               
                
A escritora cearense Rachel de Queiroz (1910 – 2003) pode ser descrita como um dos principais expoentes da Segunda Fase do Modernismo Literário brasileiro. Seu romance de estreia, “O Quinze” de 1930 (ver resenha em: http://esperandopaulo.blogspot.com.br/2011/03/o-quinze-rachel-de-queiroz.html) , tem a mesma relevância pioneira de autores e obras que marcaram época como “Vidas Secas” de Graciliano Ramos, “Fogo Morto” de José Lins do Rego e “A Bagaceira” de José Américo de Almeida.

O que o unifica todos estes autores ao ponto de se poder falar numa escola literária é a tendência às referências paisagísticas e aos contextos dos romances que tiveram como foco o regionalismo, à crítica social, às menções aos problemas da seca, das imigrações, das relações patriarcais e de domínio entre coronéis, seus pátrio poder, agregados e escravos. De certa maneira a 2ª fase do Modernismo é um aprofundamento mesmo do modernismo de vanguarda de 1922 que já tinha em suas cogitações a preocupação por uma arte essencialmente nacional, em sua forma e conteúdo.

A decorrência lógica deste norte seria uma imersão pelos vastos recantos do interior do Brasil, com destaque especial para o sertão nordestino. Um aspecto interessante que também perpassa a obra de todos aqueles autores é um novo estatuto humano dado aos personagens tão simples e humildes que protagonizam as histórias regionalistas. Pela primeira vez, pode-se falar que as narrativas fazem verdadeira imersão sobre a consciência seja de um Luís da Silva de “Angústia” ou seja mesmo da criança “Doidinho” do romance de mesmo nome de José Lins do Rego: o que se pontua aqui é que a pobreza e os personagens a ela submetidos não são vistos como algo pitoresco como num “Memória de Sargento de Milícias” de Manuel Antônio de Almeida ou de uma forma superficial, sem uma abordagem profunda de suas cogitações, esperanças e desenganos, como num “O Cortiço” de Aluísio de Azevedo. Basta recordarmos mais uma vez o personagem Luís da Silva de “Angústia”, um personagem afundado na miséria como um burocrata de terceira categoria que é assolado por sentimentos de desejo sexual amoroso frustrados, culpa, ódio e remorso, remetendo ao memorável estudante Rodion Raskólnikov de “Crime Castigo” do escritor russo F. Dostoiévski.   

“Memorial de Maria Moura” foi escrito em 1992, num momento de plena maturidade artística de Rachel de Queiroz. Vai além de um mero romance regionalista e nas suas 600 e poucas páginas traça uma verdadeira epopeia na qual relata diversas histórias que se entrelaçam tendo como fundo paisagístico o sertão nordestino e um momento histórico que podemos especular durante o século XIX antes da abolição da Escravatura.

A personagem Maria Moura teve como inspiração, segundo o prefácio, Elisabeth I, rainha da Inglaterra entre 1533-1603, e sua trajetória dentro de um contexto radicalmente violento, baseado no domínio regional de coronéis sem qualquer jurisdição estatal, demonstra a bravura de uma sinhazinha que, devido às circunstâncias da vida, transforma-se numa líder de um bando fortemente armado de cangaceiros que viria a instalar uma casa forte em terras distantes em meio ao sertão, tornando-se temida e respeitada por léguas a fio.

Maria Moura era órfã de pai e morando no Limoeiro com sua mãe, a vê se relacionando com o oportunista Liberato. A certa altura, descobre sua genitora enforcada no quarto numa cena simulando suicídio. Depois descobre que tudo fora obra do padrasto com o fim de adquirir a herança da Fazenda. A descoberta da mãe enforcada revela uma cena dramática de forte impacto:

“Eu que descobri. Minha mãe morta, enforcada no armador da parede. Em redor do pescoço, um cordão de punho de rede, os pés a um palmo do chão, o rosto contra a parede. Tombado no tijolo, o tamborete em que ela subiu para acabar com a vida.

Vendo aquilo, eu soltei um grito que me rasgou a garganta e o peito. E me agarrei com Mãe: ela já estava fria, o corpo duro. Gritando sempre, abraçada com ela, me parecia que eu estava afundando num poço sem fim, na escuridão, apavorada”.

A pequena Sinhá desde cedo já começa a revelar a sua força e seduz um criado da fazenda com algumas mentiras para que o mesmo mate Liberato. A execução é bem sucedida. Como depois o criado seduzido passa a cobrar casamento de Maria Moura, recorre a João Rufo, amigo da casa e numa tramoia por meio de um plano muito bem executado, mais uma execução é cometida.
Posteriormente, Tonho e Irineu (primos mal intencionados de Moura) comparecem à casa de Limoeiro – entendem que com a morte da Mãe, fazem jus à propriedade do Limoeiro. Ameaçam-na expulsar de casa. E agora num plano ainda mais extraordinário, enquanto espera a vinda dos homens, Maria Moura espalha fogo por toda a residência (para não deixar um vintém aos oportunistas) e a partir daí parte em fuga com um punhado de homens com algumas poucas armas em direção à Serra dos Padres, onde seu avô contava haver terras de seu dote.

Começaria a partir daqui a epopeia supracitada em que o leitor é levado a conhecer vilarejos e ranchos semi-abitados e abandonados, como se dava a viagem de tropeiros numa época em que não havia estradas e os meios de comunicação para o transporte de bens mínimos como a carne e o sal, da forma mais insalubre, casos verossímeis de pessoas que viviam tão isoladas do mundo no sertão, colhendo água do açude ou fios de água e caçando preá para sobreviver, tal qual índios: um roteiro que interessa não só a apreciação literária, mas o conhecimento da história e geografia do Brasil.

Voltando à Maria Moura, seu bando executa roubos à beira da estrada e com o rendimento das ações adquire cavalos e munições. A protagonista para se fazer respeitada usa roupa de homem e corta seus cabelos curtos, não admite intimidade com seus cabras, adota um forte regramento de hierarquia e efetivamente adquire o respeito deles, e dos demais que se somam ao seu grupo. Trata-se aqui de um verdadeiro empoderamento feminino que envolve acima de tudo a capacidade de liderar, sem hesitar e vacilar por parte de “Dona Moura” (que, assim gostava de ser chamada). Um dos traços de personalidade da protagonista certamente era a valentia. Como discutimos em “Um Certo Capitão Rodrigo” de Érico Veríssimo, não se trata de uma valentia desprendida e inconsequente como do capitão: Dona Moura nas suas cogitações pessoais, revela medos pessoais, mas a valentia aqui significa não a ausência de medo, mas agir a despeito do medo.

“Minha primeira ação tinha que ser a resistência. Eu juntava meus cabras – os três rapazes, João Rufo (que em tempos antes já tinha dado suas provas). Os dois velhos podiam servir para municiar as armas, na hora da precisão. Eu queria assustar o Tonho. Nunca se viu mulher resistindo à força contra soldado. Mulher, para homem como ele, só serve para dar faniquito. Pois comigo eles vão ver. E se eu sinto que perco a parada, vou-me embora com meus homens, mas me retiro atirando. E deixo um estrago feio atrás de mim. Vou procurar as terras da Serra dos Padres – e lá pode ser para mim outro começo de vida. Mas garantida com os meus cabras. Para ninguém mais querer botar o pé no meu pescoço; ou me enforcar num armador de rede. Quem pensou nisso já morreu”.

Sabe-se que Rachel de Queiróz tinha restrições ao movimento feminista de seu tempo. A seu turno, “Memorial de Maria Moura”, além dos interesses históricos e sociológicos referentes à narrativa literária regionalista, mostra-nos um outro viés de empoderamento feminino positivo, diferente do movimento feminista, este negativo, que rebaixa a mulher à vítima, trata-a como hipossuficiente. São muitos os motivos, portanto, para conhecer esta obra.  




quinta-feira, 26 de maio de 2016

“Um Certo Capitão Rodrigo” – Érico Veríssimo

“Um Certo Capitão Rodrigo” – Érico Veríssimo



Resenha Livro 224 – “Um Certo Capitão Rodrigo” – Coleção Folha Grandes Escritores Brasileiros 5

Já foi dito que a literatura é um retrato da sociedade. A assertiva é particularmente correta para este romance neorrealista do escritor gaúcho Érico Veríssimo. O livro compõe o compêndio “O Continente” (1949), faz parte da primeira parte “O Tempo e o Vento”, uma série sobre a história do Rio Grande do Sul.

O autor se serve de sua origem regional para criar uma narrativa que leva o leitor a conhecer a paisagem histórica, personagens, cultura, música, sotaques, enfim todo o passado do Brasil meridional. A figura do gaúcho, nesta narrativa ilustrada particularmente na figura de seu protagonista, o valente Rodrigo Carambá, vai muito além de uma mera caricatura ou da construção de um tipo ideal que vai ressaltando elementos pitorescos ou folclóricos – o escritor vai muito além e busca construir um tipo verdadeiramente humano, conduzindo o leitor a realmente estar em contato com o Brasil meridional do séc. XIX.

Como se sabe o sul do Brasil historicamente foi objeto de importantes conflitos e guerras em função dos limites territoriais. Por muito tempo durante a fase colonial os limites formais eram os do Tratado de Tordesilhas, que logo ficou obsoleto até a assinatura do Tratado de Madrid (1750) que assinalou o princípio do uti possidetis ita possideatis (quem possui de fato, deve possuir de direito), significando que os limites deveriam respeitar uma situação de ocupação do território consolidada. Ainda assim conflitos junto aos castelhanos persistiram – trata-se de região da Bacia do Rio da Prata, localização estratégica para os Espanhóis terem livre acesso às lucrativas minas no Peru.

“Um Certo Capitão Rodrigo” tem seu início no ano de 1828, quando Rodrigo Cambará, um veterano de guerra, desde menino habituado a viver sem residência fixa, se assomando a tropas, insurreições e fazendo de sua vida uma eterna aventura, atinge o povoado de Santa Fé. Trata-se de uma pequena província de 30 poucas casas cuja autoridade pertence à família Amaral, que tem o controle político e de direito da cidade.

“Toda gente tinha achado estranha a maneira como o Cap. Rodrigo Cambará entrara na vida de Santa Fé. Um dia chegou a cavalo, vindo ninguém sabe de onde, com o chapéu de barbicacho puxado para a nuca, a bela cabeça de macho altivamente erguida e aquele seu olhar de gavião que irritava e ao mesmo tempo fascinava as pessoas. Devia andar lá pelo meio da casa dos trinta, montava um alazão, trazia bombachas claras, botas com chinelas de preta e o busto musculoso apertado num dólmã militar azul, com gola vermelha e botões de metal. Tinha um violão a tira colo; sua espada, apresilhada aos arreios, rebrilhava ao sol daquela tarde de outubro de 1828 e o lenço encarnado que trazia ao pescoço esvoaçava no ar como uma bandeira”.


São muitos os traços de personalidade de Rodrigo Cambará: altivo, destemido, gozador, amante da liberdade, da bebida, do jogo e das mulheres. Mas talvez o maior signo de distinção do protagonista seja sua desmedida coragem. Para ficar com apenas um exemplo para ilustrar. Rodrigo Cambará logo nos primeiros dias em Santa Fé apaixona-se por Bibiana que também é disputada por Bento Amaral, herdeiro do todo poderoso mandante da província. Durante um fandango de casamento, após um desentendimento diante da dúvida sobre quem dançaria com a moça, os homens se desentendem e diante da iminente briga, fica arranjado a execução de um duelo entre Cambará e Amaral; um duelo com facas – a cena do duelo tem um tom cinematográfico e é uma das passagens altas do romance. 

Rodrigo consegue dominar o adversário e escrever um “P” em sua testa – “faltou só a perna”, diria depois aos amigos. Bento Amaral em sua covardia levara uma arma e atirara à queima roupa em Rodrigo Cambará que é levado quase morto para casa de seu amigo Juvenal Terra. Aqui constata-se o ponto alto de sua coragem em nossa opinião: Rodrigo está num estado terminal em função da bala e outro amigo, o Padre Lara, deseja confessar Cambará para que este não vá ao inferno. Mesmo mal conseguindo se comunicar, Cambará responde piscando os olhos. Quando o padre solicita que se arrependa dos seus pecados, Rodrigo pisca sinalizando um não. E quando o cura insiste, faz uma figa num verdadeiro escárnio, pontuando não temer as consequências espirituais da morte.

Se a literatura é o retrato da sociedade, a questão política se faz presente mesmo naquele povoado longínquo de Santa Fé. É interessante observar dentre outros a noção que se tinha acerca do governo, aqui nas palavras do personagem Pedro Terra:

“Ao pensar na Corte, Pedro pensou em governo. Para ele governo era uma palavra que significava algo de temível e ao mesmo tempo odioso. Era o governo que cobrava impostos, que recrutava os homens para a guerra, que requisitava gado, mantimentos e às vezes até dinheiro, e que nunca mais se lembrava de pagar tais requisições...Era o governo que fazia as leis – leis que sempre vinham em prejuízo do trabalhador, do agricultor, do pequeno proprietário. Antigamente, quem dizia governo dizia Portugal, e a gente tinha uma certa má vontade para com tudo que fosse português, começando por antipatizar com o jeito de falar dos “galegos”. Mas que se passava agora que o país havia proclamado a independência e possuía o seu imperador? Não tinha mudado nada, nem podia mudar. No fim das contas d. Pedro I era também português. Vivia cercado de políticos e oficiais “galegos”. 

Ali mesmo na Província já se dizia que nas tropas quem mandava eram os oficiais portugueses; murmurava-se que eles estavam conspirando para fazer o Brasil voltar de novo ao domínio de Portugal”.

Certamente, o leitor interessado em história do Brasil será recompensado pela leitura de “Um Certo Capitão Rodrigo”. Há alguns personagens que de certa forma marcam o leitor pela qualidade de sua composição. Podemos citar Macunaíma de Mario de Andrade, Dom Casmurro de Machado de Assis ou Luís da Silva (Angústia) de Graciliano Ramos. Não vemos porque não colocar Rodrigo Cambará neste mesmo patamar.  

quinta-feira, 19 de maio de 2016

“Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que Não Foi” – José Murilo de Carvalho

“Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que Não Foi” – José Murilo de Carvalho



Resenha Livro - 223- “Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que Não Foi” – José Murilo de Carvalho – Ed. Companhia das Letras

“Bestializado” é uma palavra que tem diferentes conotações. O sentido empregado pelo livro remete à ideia de “perplexo”, “atônito” ou “espantado”. Aristides Lobo, propagandista da República, assim se referiu à reação popular quanto aos acontecimentos que culminaram na proclamação da República em 1889. Certamente o povo esteve ausente daquele evento político: a derrocada do Império e a ascensão republicana esteve muito longe de ser o resultado de uma insurreição popular, da pressão de um movimento de massas, mas foi antes aquilo que alguns sociólogos chamam de um caminho pela “via prussiana”, um arranjo político projetado pela elite. Foi um fato político em que teve papel central a abolição da escravatura (1888) e com ela a falta de apoio do partido brasileiro (grandes proprietários fundiários) bem como a crise do regime junto às forças armadas.

Atônito, o povo mal entendia o que acontecia com a mudança de regime e conta-se que alguns confundiram-no com uma mera parada militar. Entra aqui em questão o problema da cidadania, ou seja, a relação/vínculos entre o povo e as instituições políticas desde que a República envolve dentre outras coisas a ideia da soberania popular – uma ideia que era sinceramente defendida por alguma parcela do movimento republicano brasileiro.

O problema da cidadania é tema já recorrente nos trabalhos de José Murilo de Carvalho. Escreveu um livro mais amplo sobre o tema, “A cidadania no Brasil”. Aqui ele faz um recorte temático e escolhe o Rio de Janeiro do período de transição entre o Império e a República para identificar o problema da integração política do povo (ou a falta dela), bem como suas raízes, o que envolve um olhar sobre a sociedade, a política e a cultura daquele contexto. O Rio de Janeiro tem particularidades que eventualmente expressam dificuldades estruturais do Brasil no que se refere à cidadania em geral: desde 1808 com a vinda de D. João XI a cidade é elevada a sede administrativa do reino e na cidade é montada um aparato administrativo com milhares de gestores advindos da corte portuguesa; a cidade ainda tem um peso considerável de estrangeiros, principalmente portugueses que ocupam postos de trabalho na área de comércio e são proprietários de imóveis locatários, causa de rivalidades que, no contexto de embates entre monarquistas e republicanos, resultariam em conflitos, não raro, com mortos. No censo de 1902 estima-se em 26% de população estrangeira no Rio de Janeiro. A ampla maioria de cidadãos era de ex-escravos que vão compor um perfil étnico com lastros importantes na cultura e na religião. Se num primeiro olhar superficial tem-se a impressão de que há um povo despolitizado, eventualmente mesquinho e egoísta, observa-se que da política vai-se para outras formas de organização social, movimentos comunitários, associações de mútuo auxílio, ora de caráter religioso, ora de caráter esportivo. José Murilo de Carvalho remete-nos aqui à Max Webber que dentro de uma tradicional divisão de formas associativas, demonstra o modelo anglo saxão, individualista que resulta em associações e um modelo ibérico (que é o brasileiro) de tipo mais comunitário e coletivista.

“A cidade mantinha suas repúblicas, seus nódulos de participação social, nos bairros, nas associações, nas irmandades, nos grupos étnicos, nas igrejas, nas festas religiosas e profanas e mesmo nos cortiços e maltas de capoeiras. Estruturas comunitárias não se encaixavam no modelo contratual do liberalismo dominante da política. Ironicamente, foi da evolução destas repúblicas, algumas inicialmente discriminadas, se não perseguidas, que se foi construindo a identidade coletiva da cidade. Foi nelas que se aproximaram povo e classe média, foi nelas que se desenhou o rosto real da cidade, longe das preocupações com a imagem que se devia apresentar à Europa. Foi o futebol, o samba e o carnaval que deram ao Rio de Janeiro uma comunidade de sentimentos, por cima e além das grandes diferenças sociais que sobreviveram e ainda sobrevivem.”

Como se sabe, do ponto de vista Institucional a República Velha era marcada pela exclusão eleitoral e pela violência e corrupção durante os pleitos. Estavam excluídos da participação formal da política as mulheres, os menores de 21 anos, os analfabetos, os estrangeiros e os praças. Considerando os abusos e a violências no escrutínio, o comparecimento nas urnas era algo em torno de 5% da população ou menos. Obviamente a participação eleitoral é apenas uma parte do agir politicamente, do ser cidadão – o que se constata é que além das restrições legais, o não comparecimento ao voto dava-se pela constatação por todos da fraude e pelo próprio risco com eventuais incidentes de violência:

“Desde o Império, as eleições na capital eram marcadas pela presença dos capoeiras, contratados pelos candidatos para garantir os resultados. A República combateu os capoeiras, mas o uso de capangas para influenciar o processo eleitoral só fez crescer. Fiel cronista da cidade, Lima Barreto observa em Os Bruzundangas que às vésperas de eleição ela parecia pronta para uma batalha. Conhecidos assassinos desfilavam em carros pelas ruas ao lado dos candidatos”.

Por outro lado, não se pode dizer que a ausência de participação política formal resultara em completa apatia. O que se destaca neste período são também as revoltas populares. Revoltas por motivos econômicos como a Revolta do Vintém em 1879 em decorrência da cobrança de tributo sobre as passagens dos bondes. Condutores foram escorraçados, bondes e trilhos foram destruídos, um verdadeiro motim popular foi deflagrado, sendo necessária ajuda do exército. José Murilo de Carvalho dedica um capítulo inteiro à revolta mais conhecida do período, a Revolta da Vacina. O prefeito nomeado Pereira Passos iniciou uma série de reformas na cidade, com a abertura de avenidas, fechamento de cortiços e a imposição de uma série de normas de higiene com o condão de transformar a cidade, fazer uma reforma modernizadora tal qual Paris – apenas para a abertura da Avenida Central foram recrutados 1800 operários e derrubados 640 prédios. A obrigatoriedade da vacina contra a varíola tendo à frente o Diretor de Serviço de Saúde Oswaldo Cruz era na verdade o desenvolvimento de um projeto de lei que efetivasse o ingresso de agentes públicos nas residências de forma impositiva e aplicasse a vacina – a obrigatoriedade em si já constava de norma jurídica desde os tempos do Império, mas não era cumprida. Enquanto o projeto era discutido, muito descontentamento com os possíveis desdobramentos do projeto foram sendo expressos pela imprensa, em reuniões ou discussões coletivas. Dentre a elite pensante, os positivistas, dentro de sua filosofia política, colocavam em dúvida a eficácia da vacina. E, pior, dentre as classes baixas, foi surgindo rumores de tipo moralista segundo o qual o pai de família enquanto estivesse fora no labor deixaria os agente públicos aplicarem a vacina pelas pernas de suas filhas e esposas de forma lasciva, exibindo suas partes íntimas.

A intransigência do governo e a retórica de setores médios (Lauro Sodré) que insuflavam o movimento que ganhou o apoio de estudantes, operários, capoeiras, o lupem e até setores do exército culminou numa revolta radicalizada com barricadas, destruição de bondes e troca de tiros com a polícia, incluindo mortos.

“Antes do assalto final a Porto Artur, repórteres do “Jornal do Commercio” e “O Paiz” conseguiram visitar a fortaleza, que constava de barricadas ao longo de toda a rua da Harmonia, desde a praça da Harmonia até a esquina com a rua Gamboa. Bondes virados, carroças, calçamento arrancado, árvores derrubados, lampiões destruídos, chão cobertos de latas, garrafas, colchões, um berço de vime. Na barricada principal, do lado direito, na ponta de um bambu, uma bandeira vermelha. Do lado esquerdo, no pano branco, a inscrição, “Porto Artur”. Duas casas de armas da rua Senador Pompeu tinham sido assaltadas e saqueadas. O repórter do “Jornal do Commercio” impressionou-se com “aquela multidão sinistra, de homens descalços, em mangas de camisa, de armas ao ombro uns, de garrucha e navalha à mostra outros”.


Diante da constatação de que houve luta e de que para além da política oficial o povo esteve em busca de formas de colaboração e organização, é de se questionar se os limites da cidadania não se remetem antes às instituições e às ideias que lhe dão sustentação do que ao povo propriamente dito. O liberalismo e o positivismo de nossas elites, que se remeteram às ideias estrangeiras, demonstrou não ter o condão de dar engrenagem às instituições com efetiva soberania popular, mesmo porque este não era o projeto da maior parte da elite dominante. Se o povo assistiu bestializado aos eventos de 1889, chegará o dia em que as elites assistirão bestializadas à tomada de poder pelo povo, à nossa revolução democrático-popular.  

segunda-feira, 16 de maio de 2016

“Evolução Política do Brasil e Outros Estudos” – Caio Prado Júnior

“Evolução Política do Brasil e Outros Estudos” – Caio Prado Júnior 



Resenha Livro - 222- “Evolução Política do Brasil e Outros Estudos” – Caio Prado Júnior -  Ed. Companha das Letras 

Costuma-se dizer que o pai da história ou o fundador desta disciplina foi o grego Heródoto que no século V a.C redigiu uma história das invasões persas na Grécia divididas em 9 volumes. Mesmo antes e depois de Heródoto, muitos foram os cronistas que testemunharam e deixaram sob a forma de documentos históricos valiosas fontes primárias acerca da conjuntura que observaram ou anotaram as reminiscências orais de uma memória que se pôde resguardar em documentos. 

Entretanto, a ideia de Heródoto como o pai da história é só parcialmente verdadeira. A História enquanto uma disciplina autônoma, com suas próprias formas metodológicas, pensada enquanto um campo científico particular, um ofício propriamente dito, é um fenômeno muito mais recente, expressão de fins do século XIX, quando nasce também a sociologia e outras disciplinas do gênero das Ciências Humanas. Pode-se dizer que seu fundador é o alemão Leopold Von Ranke que está inserido dentro do pensamento positivista, tão marcante naquele período e que influenciará decisivamente a metodologia da história dentro de seus primeiros momentos de desenvolvimento. “Die geschichte wie es eigentlich gewesen hat” ou “a história como ela de fato aconteceu”, pontuaria Von Ranke, e aqui a orientação positivista teria como norma retratar o passado se servindo sempre dos documentos oficiais, prioritariamente de fontes oficiosas, bem como dos grandes eventos, dentro de uma expectativa de neutralidade diante do passado. Estamos diante de uma história portanto baseada no inventário de datas e grandes fatos políticos supostamente  baseado numa neutralidade por parte do historiador. Quando Caio Prado Júnior escreveu e publicou sua primeira edição de “Evolução Política do Brasil” este modelo de história positivista ainda era dominante, ao ponto do historiador brasileiro, que inaugurava uma nova historiografia com seu livro, iniciar seu trabalho dizendo não se tratar de um livro de “História do Brasil” mas um ensaio.

Uma segunda questão preliminar importante. Como se sabe, o Brasil foi um país em que o Estado nacional que exsurge com a Independência decorre de conflitos entre o partido brasileiro (grandes proprietários de terras, a elite tradicional), setores democráticos médios e estrangeiros na sua maioria portugueses favoráveis a restauração. Não havia todavia uma unidade nacional, mas um divisão de interesses muito perceptível: as províncias do norte por exemplo foram muito pouco receptivas à independência, havendo resistência com armas, diante de sua maior proximidade com a corte – diferenças do mesmo tipo pode-se falar de Pernambuco e Bahia. A divisão do país em províncias, que remete ao período colonial é uma realidade que perpassa a independência e todo o séc. XIX. Em outras palavras, enquanto na Europa, o sentimento de união e os laços de solidariedade que conformam a nação são anteriores à conformação dos estados nacionais (ver especialmente a Alemanha com sua unificação em 1871), no Brasil ocorre o inverso, com a conformação do estado nacional estando ausente o sentimento de Nação. Será nos anos 1930 com os modernistas que recairá de certa forma esta tarefa de buscar uma identidade nacional. Se no plano das artes, desde a semana de 1922, a questão nacional esteve presente, nas ciências sociais, Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freire mais ou menos no mesmo período também terão cogitações semelhantes: a busca pela identidade nacional envolve o olhar para o nosso passado colonial e cada um destes autores irá, a sua maneira, avançar nas análises do nosso passado. 

"Evolução Política do Brasil” é um estudo sobre a revolução da independência política do Brasil. O Ensaio divide nosso processo histórico em dois momentos decisivos – da descoberta e particularmente a partir de 1530 quando os portugueses efetivamente passam a se ocupar da atividade colonial diante dos riscos de se perder esta vasta porção de terras até então inexploradas para outras nações, daquele período inicial do extrativismo vegetal e da concessão das capitanias hereditárias até 1808, com a vinda de D. João VI e sua corte em fuga de Napoleão, fato político decisivo que colocaria em marcha a Independência com o fim do regime do pacto colonial (exclusividade de comércio com Portugal e abertura dos portos às nações amigas), elevação do Brasil a Reino Unido de Portugal, transferência administrativa de toda coroa portuguesa para o Brasil e as transformações daí decorrentes com a fundação do Banco do Brasil e Casa da Moeda, cancelamento de lei que proibia estabelecimento de indústrias no Brasil, entre outros. 

Como dizíamos, a interpretação original deste livro reside no fato de sair de uma exposição sumária de fatos, datas e grandes eventos e buscar fazer uma interpretação crítica da evolução política do Brasil. Nesse sentido, o historiador se volta para análises da economia, sociedade e instituições políticas do Brasil colonial e suas transformações decorrentes dos choques de partidos diante das agitações políticas particularmente importantes com a independência e no período regencial. 

Uma leitura marxista da independência é possível de ser destacada: 

“Já vimos como a emancipação política do Brasil resultou do desenvolvimento econômico do país, incompatível com o regime de colônia que o peava e que por conseguinte, sob sua pressão, tinha de ceder. Em outras palavras, é a superestrutura política do Brasil Colônia que, já não correspondendo ao estado das forças produtivas e à infraestrutura econômica do país, se rompe, para dar lugar a outras formas mais adequadas às novas condições econômicas e capazes de conter a sua evolução. A repercussão desse fato no terreno político – a revolução da Independência – não é mais que o termo final do processo de diferenciação de interesses nacionais, ligados ao desenvolvimento econômico do país, e por isso mesmo distintos dos da metrópole e contrários a eles.”

Em 1953, as edições posteriores do livro passaram a contar com “Outros Estudos” com ensaios, palestras e prefácios de temas de geografia e história. Há estudos sobre o fator geográfico no desenvolvimento de São Paulo onde se observa como é justamente o aspecto espacial acima de tudo, diante da posição de rios e do relevo das serras, a origem remota da ocupação do território paulista; estudos sobre as fronteiras meridionais do Brasil, com algumas reflexões sobre os limites de fronteira do nosso território ao sul diante da histórica busca da prata no Peru; estudos sobre a imigração em que desde os anos 1940 Caio Prado Júnior já reivindica tanto a necessidade de uma Reforma Agrária quanto da conformação de cooperativas – ambos pendentes pelo poder público até hoje; e artigos mais históricos, como a publicação do periódico “Tamoio” em defesa do ministro José Bonifácio e a vida do aguerrido Cipriano Barata, um baiano formado em medicina em Coimbra que participou ativamente de inúmeras insurreições populares em Pernambuco e Bahia e passou anos a fio na prisão. 

Evolução Política do Brasil é um livro debutante de interpretação materialista da história do Brasil. Deve ser reivindicado e saudado como um ponto de partida da historiografia materialista do brasil, para além da história dos grandes eventos de Leopold Von Ranke.        

quinta-feira, 5 de maio de 2016

“O Tratado de Versalhes” – Jean-Jacqes Becker

“O Tratado de Versalhes” – Jean-Jacqes Becker



Resenha Livro - 221-  “O Tratado de Versalhes” – Jean-Jacqes Becker – Editora Unesp

O Tratado de Versalhes foi o resultado de uma Conferência de Paz que pôs fim à I Guerra Mundial. O Tratado foi assinado em 28 de Junho de 1919 após uma série de reuniões diplomáticas não devendo ser confundido com o acordo de armistício. O pedido de armistício foi feito pela Alemanha diante do flagrante enfraquecimento tanto interno (a fome principalmente), o descontentamento da opinião pública quanto à Guerra, bem como a  constatação pelos generais da impossibilidade de vencer. 

Com o fim da I Guerra um elemento complicador ainda para a questão da paz seria a fuga de Guilherme II que abdica do poder e foge para os países baixos, assumindo o regime alemão o presidente da república  Ebert. Quanto ao pedido de armistício, formulado em 11 de Novembro de 1918, foi ele derivado da famosa política dos 14 pontos de paz proposta pelo presidente Woodrow Wilson dos EUA, proposta ambiciosa ao ter como escopo resolver o problema da paz internacional de forma definitiva. Desta proposta há de se destacar o ponto 14, o embrião da Liga das Nações e posteriormente da ONU, uma sociedade multilateral de nações, uma associação internacional baseada na ideia de direito dos povos à autodeterminação. Àquela altura havia uma certa divisão de opinião quanto à oportunidade do pedido do armistício pela Alemanha. Alguém como LLord Gorge, chefe de governo Inglês, via com reservas o total aniquilamento da Alemanha, especialmente depois de 1917, sob o risco de jogar o país à revolução, criar condições da radicalização política bolchevique. Já a França de Clemenceau parecia ir numa linha mais dura diante da Alemanha (considerada consensualmente pelos vencedores da Guerra como responsável pelo conflito) e muitos consideravam prematuro um armistício antes da entrada de tropas dentro do território Alemão. 

O que é muito comum de se colocar é que o Tratado de Versalhes é um dos responsáveis, ao menos indireto, pela II Guerra Mundial. Ao opor condições tão desonrosas aos vencidos, especificamente à Alemanha, teria gerado uma sensação de humilhação nacional que facilitou a ascensão de manipuladores e demagogos como Hitler, que usou o tratado habilmente como denúncia da necessidade de uma reação alemã. Mas uma pergunta que deveria ser feita aqui pelos historiadores é: dada as condições históricas, esta situação era inevitável? E se olharmos mais retidamente ao Tratado de Versalhes veremos que ele na verdade foi o resultado possível de uma situação bastante tumultuada na Europa que remete a questões que vão muito além do tratado internacional. 

Em 1917 Lênin publica seu famoso trabalho “Imperialismo, fase superior do capitalismo”. Aqui há o entendimento de que o imperialismo é a fase do capitalismo monopolista, dos grandes oligopólios em consórcio com o Estado que em busca de novos mercados partem para a dominação direta e indireta neocolonial. Se o liberalismo clássico remetia ao livre comércio das nações em pé de igualdade (formal) e ao não protecionismo, a fase imperialista subverte estes princípios clássicos, com uma brutal disputa das nações por rotas comerciais e pelo domínio imperialista que envolve o controle de insumos da revolução industrial e riquezas – ouro e diamante (África do Sul), Carvão, Aço, Ferro e posteriormente Petróleo – produtos tropicais como Café (Brasil), Chá (Índia), Banana (América Central) – além é claro do domínio de mercados de consumo e trabalho. Como colocava Lênin aquela conjuntura engendrava um contexto de “crises, guerras e revoluções” – o assassinato do arquiduque 

Francisco Ferdinando, herdeiro do Império Austro Húngaro por um ativista sérvio, ato que evoluiu no sentido do desencadeamento da Guerra foi um mero episódio secundário, algo como um fósforo jogado num material que já estava por si inflamável e que de qualquer forma se faria explodir em algum momento. São sinais disso o conflito entre Japão e Rússia por questões territoriais e disputas nesse sentido no Marrocos, anteriores à primeira guerra. Questões envolvendo nacionalidade e estado nação e domínio extraterritorial/colonial são o pano de fundo para a conformação das alianças. A Alemanha, unificada em 1871, preocupa a Inglaterra, até então soberana nos mares com sua esquadra marítima, com um assombroso crescimento germânico de forças navais – a aliança natural alemã seria com o Império Austro-Húngaro causando um fator de desiquilíbrio às forças incontestes da França e Inglaterra que se unificam. 

O fato é que a vitória da Tríplice Entente (França, Inglaterra e Itália) seguiu-se à noção de que a grande responsável pela Guerra teria o dever de reparar e indenizar os vencedores diante do raciocínio de que a Alemanha fora a responsável (única responsável) pela guerra – uma ficção jurídica e fática  já que de uma certa maneira acabaria sendo a única sobrevivente com o desmembramento do Império Austro Húngaro e o Fim do Império Otomano, ambos no fim da guerra por motivos semelhantes. Em fato inédito nas Relações Internacionais, a Alemanha sequer foi convidada a participar das negociações de Paz – Clemenceu, Wilson e George tinham muitas divergências entre si e não queria expô-la aos alemães de maneira que concluíram o Tratado de Versalhes e enviaram-no à Alemanha sob condição de pequenas modificações para ratificação. 

Mas pode-se falar a título de conclusão que houve um fracasso relativo do Tratado de Versalhes. Ele sequer foi ratificado pelo senado norte americano. Da previsão milionária de indenização prevista a ser paga pela Alemanha em alguns anos, apenas uma fração foi adimplida. Certamente houve um prejuízo territorial aos alemães, especialmente com a devolução de Alsácia Lorena aos Franceses. De outro lado há aspectos positivos do Tratado, especialmente no que se refere à introdução da ideia de estabilização entre as Nações, ainda que aqui, como sabemos, se trate de um conceito jurídico, formal, que pode ser derrubado diante dos interesses mais prementes das crises capitalistas. 

“A Conferência de Paz realizou, de início, um enorme trabalho ao reconstruir literalmente a Europa e ao aplicar – com resultados variados – os novos princípios do direito dos povos à autodeterminação; ela lançou as bases do futuro ao tentar criar um organismo cujo objetivo era estabilizar as relações entre os Estados e as Nações.

O que a Conferência de Paz não podia fazer era apagar os sentimentos originados desse pavoroso conflito, apagar a convicção dos vencedores na responsabilidade dos seus adversários no drama que acabara de acontecer e na necessidade moral em estabelecer sanções e reparações decorrentes dessas responsabilidades. Não podia também apagar a convicção do povo alemão de derrotado, assim como de que as sanções a ele infligidas – condenação moral, território dividido ao meio, reparações em montante excessivo – eram profundamente injustas e inaceitáveis”.

Jean-Jacques Becker é professor emérito de História Contemporânea da Univeridade de Paris X Nanterre e autor de várias obras sobre a Grande Guerra. 


Imagem: LLoyd George (Inglaterra), Orlando (Itália), Clemenceau (França) e Wilson (EUA)