quinta-feira, 18 de junho de 2015

“Crítica do Programa de Gotha” – Karl Marx

“Crítica do Programa de Gotha” – Karl Marx
Resenha Livro 176 – “Crítica do Programa de Gotha” – Karl Marx - Ed. Boitempo




Entre os dias 22 e 27 de Maio de 1875 ocorreu na cidade de Gotha na Prússia o congresso de unificação dos dois grandes partidos operários alemães: a Associação Geral dos Trabalhadores Alemães, fundado em 1864 e tendo por líder máximo Ferdinad Lassalle (morto em 1864) e o Partido Social Democrata dos Trabalhadores, fundado em 1869 e dirigido por Liebknecht, Bracke e Bebel, contando, ademais, com  colaboração de Marx e Engels.

Ocorre que a forma como se deu a unificação dos dois partidos implicou na sub-rogação do programa da social democracia alemã marxista, que uma vez baseada desde o ponto de vista teórico entre outros pelos estatutos da Associação Internacional dos Trabalhadores e pelo próprio Manifesto Comunista, se submeteu no congresso ao programa político Lassaliano. 

“A crítica ao Programa de Gotha” são as glosa marginais escritas ao longo do programa por Marx, um crítica decidida e virulenta contra uma forma de socialismo não consequente que seria incorporado dentro do estatuto do novo partido operário da Alemanha. Isso significava que Marx e Engels se colocariam contra a formação do novo partido? Não! Nas palavras do Velho Mouro, “Cada passo do movimento real é mais importante do que meia dúzia de programas”. Nesse sentido, a unidade representava um avanço, em que pese todos os erros enunciado pela organização partidária que nascia. Outrossim, Marx e Engels não criticaram publicamente o programa diante de uma opção política tática, como revela uma carta de Engels a Bebel datada de 12 de Outubro de 1875:

“Em vez disso, os asnos das folhas burguesas tomaram esse programa com toda a seriedade, leram nele o que lá não se encontrava e entenderam-no ao modo comunista. Os trabalhadores parecem fazer o mesmo. Foi apenas esta circunstância que permitiu a Marx e a mim não nos pronunciarmos publicamente sobre tal programa. Enquanto nossos oponentes e também os trabalhadores atribuírem a esse programa os nossos pontos de vista, poderemos silenciar sobre isso”. 

As críticas de Marx ao programa de Gotha são essencialmente conceituais e incidem sobre o espírito lassaliano do programa aprovado desde que certa fraseologia que se extrai do texto decorre das ideias do antigo dirigente do partido alemão. É o caso da “Lei de Bronze dos Salários”, que consta no programa, como se os salários na sociedades capitalistas seguissem uma espécie de lei natural e imutável. Outra ideia particularmente combatida por Marx dentro corresponde à passagem segundo a qual “a libertação do trabalho tem de ser obra da classe trabalhadora, diante da qual todas as outras classes são uma só massa reacionária”. Tal concepção, segundo Marx, subestima a necessidade de uma política de coalizão com os camponeses na luta contra a reação feudal o que se verificaria ipsis litteris na Revolução Russa de 1917 ou mesmo em Revoluções que tiveram como ponto de partida o campesinato como em Cuba ou Nicarágua. Outrossim, a burguesia junto às classes médias, em face da aristocracia feudal, naquele período histórico e em alguns lugares ainda tinha a cumprir um papel revolucionário. De outro lado, o que se sabe é que Lassalle, que foi um dirigente de nassas, foi acusado de negociar junto a Bismarck, e eventualmente tal sectarismo teria como condão preservar os setores políticos mais reacionários da Prússia. 

A questão das cooperativas também são alvo das críticas de Marx no que tange a sua subvenção pelo Estado. 

“A organização socialista do trabalho total, em vez de surgir do processo revolucionário de transformação da sociedade, surge da ‘subvenção estatal’, subvenção que o Estado concede às cooperativas de produção “criadas” por ele, e não pelos trabalhadores. É algo digno da presunção de Lassalle imaginar que, por meio de subvenção estatal, seja possível construir uma nova sociedade da mesma forma que se constrói uma nova ferrovia!”. 

E as confusões acerca da questão do estado são reiteradas e esclarecidas por Marx quando o programa aborda a questão dos impostos progressivos.

Dentre as consignas ou o que poderíamos chamar de programa mínimo do partido alemão, muitas delas já são hoje uma realidade na democracia burguesa do século XXI. São elas o Sufrágio Universal, proibição do trabalho infantil (formal nos dias de hoje) e regulação do trabalho prisional. Outras não se verificam como a Jurisdição pelo povo e assistência jurídica gratuita, preparação militar geral e milícia popular no lugar do exército permanente e autoadministração completa para todos os fundos de assistência e previdência dos trabalhadores. 

A edição da Boitempo da “Crítica do Programa de Gotha” é uma importante fonte de estudos acerca das ideias de Marx sobre o programa partidário dos socialistas. A edição conta não só com as glosas, mas com cartas referentes ao documento, um prefácio de M. Löwy e um “Resumo Crítico de Estatismo e Anarquia” de Bakunin em que Marx rebate as críticas do ativista libertário russo às suas concepções sobre estado ou mesmo às falsas concepções a ele atribuídas sobre estado e revoluções. 

A atualidade desta obra reside nas críticas acerca da concepção do estado seja quanto ao entendimento reformista de Lassalle, seja dentro das críticas de Bakunin  – de maneira contundente e eficaz, Marx demonstra os limites e mesmo o oportunismo das posições políticas reformistas e anarquistas quanto ao papel do estado dentro do processo de transição. Sai-se convencido que apenas a leitura marxista oferece uma percepção científica do fenômeno de transição societário desde a sociedade em que estamos rumo à sociedade que almejamos, sem classes e sem exploração.  

sexta-feira, 12 de junho de 2015

“Primo Basílio” - Eça de Queirós

“Primo Basílio” - Eça de Queirós



Resenha Livro -175 “Primo Basílio” - Eça de Queirós – Editora Ática

O Primo Basílio foi publicado em 1878, correspondendo à obra da fase realista de Eça de Queirós (1845-1900).

O escritor português é na verdade um dos fundadores de tal escola literária em Portugal, assumindo mesmo uma posição de engajamento dentro da literatura. Engajamento em dois sentidos. Primeiro para criticar a sociedade e as instituições portuguesas, especificamente seu clero católico e o instituto do celibato dos Padres (“O crime do Padre Amaro” de 1875) e a família e o casamento (“O Primo Basílio” e “Os Maias” de 1880). E o segundo sentido de seu engajamento dá-se desde o seu pertencimento à uma geração de escritores que deram início à escola realista em Portugal,  destacando-se Antero de Quental (que depois se tornaria presidente de Portugal) e Teófilo Braga (introdutor de ideais socialistas junto a Eça), ambos, como Queirós, egressos da tradicional Faculdade de Direito de Coimbra.

O movimento realista literário em Portugal nasce em confronto com a tradição literária romântica então liderada por A. de Castilho – a proposta é combater a ideia da arte pela arte, bem como o subjetivismo e o idealismo românticos e criticar os costumes retrógrados de uma sociedade atrasada como a portuguesa. Enquanto o desenvolvimento industrial e capitalista culminava na ascensão da classe burguesa e das novas suas ideias, lastreadas especialmente no pensamento filosófico e literário francês, a velha Portugal ainda estava regida sob a monarquia e uma cultura patrimonialista e formalista, um ambiente acanhado o que, na arte, se reproduzia numa forma ultra-sentimental e de conteúdo medíocre. Houve debates entre os realistas e românticos e uma série de conferências dos renovadores com o intuito de mudar os rumos  do ambiente cultural português.

Numa carta ao amigo Teófilo Braga, Eça sinaliza sua intenção que repercute o projeto realista:

“Minha ambição seria pintar a sociedade portuguesa e mostrar-lhe como num espelho, que triste país eles formam – eles e elas. É o meu fim nas ‘Cenas da Vida Portuguesa’. É necessário acutilar o mundo oficial, o mundo sentimental, o mundo literário, o mundo agrícola, o mundo supersticioso – e com todo respeito pelas instituições que são de origem eterna, destruir as falsas interpretações e falsas realizações; que lhe dá uma sociedade podre”.

Destacamos a passagem em que Eça faz menção às instituições, reverenciando-as. Trata-se exatamente de instituições que o escritor irá demolir no “Primo Basílio” como o casamento, diante da traição de Luiza, bem como da traição de Jorge na província e a reiterada falta de respeito mútuo entre os casais ou a família que também é, ao término da história, destruída estupidamente em função de um mero capricho, de uma satisfação sexual momentânea do primo Basílio. Uma contradição? Não. Na mesma carta, prossegue Eça de Queirós comentando seu livro:

“Perfeitamente: mas eu não ataco a família – ataco a família lisboeta – a família lisboeta produto do namoro, reunião desagradável de egoísmos que se contradizem, e mais tarde ou mais cedo centro de bambochada”.

Há aqui a crítica social que se vira contra o formalismo oficial que se expressa na figura do Conselheiro Acácio, um personagem patético que remete ao José Dias de Dom Casmurro do Machado de Assis, com um linguajar cheio de superlativos, uma gravidade na postura que omite o fato de que, às escondidas dos olhos da sociedade, tem uma mulher à sua cama, que por sinal divide com outro homem; a beatice carola de Dona Felicidade, que combina seu cristianismo com as crendices recorrendo à feitiçaria para tentar encantar o homem por que seu coração ambiciona....o Conselheiro Acácio; Luíza, “senhora sentimerntal”, burguesa, mulher do engenheiro Jorge e que, arrasada pelo excesso de leitura de livros de estilo romântico se deixará seduzir pelo  primo Basílio, conduzindo a história para os fins trágicos.

A intenção de Eça ao escrever a sua tríada realista, qual seja, “O Crime do Padre Amaro”, “Primo Basílio” e “Os Maias” não era obviamente anarquizar ou destruir as instituições de seu país, mas reformá-las, modernizá-las conforme as novas tendências de um mundo em rápido progresso econômico e industrial de meados do século XIX. Um mundo novo com o surgimento de cidades, operários e burgueses: o que estava em vista dos jovens modernizadores da literatura portuguesa era levar à provinciana, beata e atrasada Portugal o correspondente no plano das ideias da revolução industrial e da expansão econômica daquele período – é parte das cogitações de Eça de Queiroz as ideias de autores como Taine, Darwin (evolucionismo) e A. Conte (positivismo). Deve ser enquadrado como um escritor modernizador e introdutor do realismo nas letras portuguesas reproduzindo uma visão social de mundo da burguesia em sua fase de ascensão histórica numa sociedade relativamente atrasada naquele momento, ao menos em face de países como Inglaterra e França.

Posteriormente, a partir de livros como “A Cidade e as Serras” (1901) e “A ilustre Casa de Ramires” (1902) o escritor passa para uma segunda fase literária, sendo talvez mais condescendente com os homens. Mas este é assunto para uma outra resenha.

terça-feira, 2 de junho de 2015

“A Mão e A Luva” – Machado de Assis

“A Mão e A Luva” – Machado de Assis 




Resenha Livro 174 – “ A Mão e  a Luva” – Machado de Assis - Ed. Globo 


Estamos diante de uma novela cujos capítulos foram sendo publicados no ano de 1874. Trata-se portanto de obra correspondente à fase romântica de Machado de Assis, ao menos formalmente. Na “Advertência de 1874”, diz o autor que o formato em que foi publicada – sujeito às urgências da publicação diária – causou algumas dificuldades nas intenções do autor desenvolver o perfil dos personagens, particularmente a bela e desejada Guiomar, que certamente desempenha um papel central na história.

Caracterizamos o texto como novela, primeiro por ser assim que a ela se refere Machado de Assis na sua “Advertência”. Segundo diante de sua extensão: as novelas como se sabe costumam ser uma narrativa não tão longa quanto um romance mas nem tão curta quanto um conto.

Ainda que as características realistas não estejam plenamente presentes em “A Mão e a Luva”, pode-se classificar a obra como um momento já de transição. Alguns expedientes tipicamente machadianos como o diálogo entre o narrador (em terceira pessoa) e o leitor e mesmo algumas passagens de humor já nos remetem aos seus romances de maturidade, ainda que não se vislumbre a ironia e o humor sarcástico de um Memórias Póstumas de Brás Cubas – para tal expediente seria necessária uma ruptura com o estilo romântico que envolveria questionamentos ainda não detectados em “A Mão e a Luva”.

A história tem como ponto de partida o amor frustrado de Estêvão por Guiomar, ele então um acadêmico de Direito de São Paulo e ela uma professora e estudante de letras de 17 anos. A rejeição amorosa fez com que o acadêmico – ao estilo byronista que remete tão bem aos poetas boêmios da Academia de São Paulo como Álvares de Azevedo – pense no suicídio e sofra sua primeira grande desilusão amorosa ao lado do colega de curso Luís Alves. Este amor perduraria dois anos depois, quando ambos colegas, bacharéis em Direito, retornariam ao Rio de Janeiro e mais uma vez se deparariam com a bela musa do passado.

Estêvão passara os dois anos sem se lembrar de Guiomar mas bastou ver-lhe para reacender o coração pela fonte do amor partido. Mais uma vez rejeitado, revela-se como o amor em Estêvão é eivado de um sentimentalismo que remete via de regra ao gênero feminino, causando quando muito irritação à jovem Guiomar. Talvez tal fato se explique pela origem de vida de ambos: ele um ex-acadêmico com um coração “pusilânime”, vacilante e fraco. Ela já desde cedo tendo de enfrentar graves dificuldades da vida, perdendo o pai e a mãe quando criança, tendo sido criada pela madrinha. Ambiciosa, dona de si e sem tendência ao sentimentalismo, a bela e desejada Guiomar frequentemente se irrita com os homens que declaravam seu amor por ela. Quando pela segunda vez tem a oportunidade de rejeitar Estêvão, suas palavras são brutais:

“- Dou-lhe um conselho, disse Guiomar depois de alguns segundos de pausa, seja homem, vença-se a si próprio; seu grande desafeto é ter ficado com a alma de criança.
- Talvez, respondeu o homem suspirando. 
- E adeus. Falamos a sós mais do que convinha; não sei se outra consentiria nisto. Mas eu não só reconheço os seus sentimentos de respeito, como desejo que estas poucas palavras trocadas agora ponham termo a aspirações impossíveis”.

O quadro social que serve de pano de fundo da narrativa corresponde ao ambiente burguês liberal fluminense de meados do séc. XIX. Os momentos recreativos davam-se nos teatros e óperas, além de jantares em casas de pessoas distintas como a baronesa, a mãe adotiva de Guiomar. As relações afetivas ou mais especificamente os namoros envolviam intricadas tramas com trocas de olhares, apertos de mãos mais ou menos significativos, além de bilhetes: ainda assim, estamos diante de um romance romântico cujo desenlace será a concretização do amor não como uma convenção social ou a realização de interesses pessoais/pecuniários mas como maior realização de vida. Mesmo com todas estas dificuldades, as barreiras são vencidas no final, quando o amor destina-se a atender aos anseios do outro coração – ligar a mão à luva.

Na resenha referente ao romance Ressurreição já havíamos chamado atenção para a pouca ênfase dada para os trabalhos de Machado de Assis correspondentes à sua fase romântica. A “Mão e a Luva” tem um sabor especial diante de uma narrativa surpreendente, uma história fora de padrões, imprevisível, impactante e que nos sensibiliza pelos desenlaces trágicos e redentores que são concomitantes ao término do livro.  

sábado, 30 de maio de 2015

“Ressurreição” – Machado de Assis

“Ressurreição” – Machado de Assis 



Resenha Livro 173 – “Ressurreição” – Machado de Assis – Editora Globo

Estamos diante do primeiro romance publicado por Machado de Assis, lançado em 1872, contando com as características formais da fase romântica do autor, anterior, portanto, ao período realista inaugurado com Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881). Isso implica num tom folhetinesco da narrativa; na concepção do amor não enquanto convenção social relacionada a interesses mesquinhos ou mesmo pecuniários (realismo) mas como objeto da felicidade das personagens (romantismo); num certo moralismo em contraponto à crítica social realista; e na valorização do sentimento em detrimento da razão, o que em “Ressurreição” está bastante explícito na trajetória da personagem principal, o médico Dr. Félix. 

Certamente, nas obras de maturidade de Machado de Assis pode-se dizer que desde lá extraímos os clássicos de sua produção literária: “Memórias Póstumas de Brás Cubas”(1881), “Dom Casmurro”(1899) ou “Quincas Borbas”(1891) são romances especiais por aprofundarem a análise psicológica das personagem num nível em que os escritos do séc. XIX surgem ao leitor do séc. XX com plena força, além de sacadas filosóficas (recheadas eventualmente com humor) a partir das quais se extrai a feição clássicas das obras de Machado de Assis – trata-se de textos que sensibilizam e tocam-nos ainda hoje, possuem em certo sentido atualidade e abrangem temas universais, requisitos para se poder classificá-los como “Clássicos Universais”. 

Todavia, entendemos que as obras românticas de Machado de Assis têm sido negligenciadas nos currículos escolares e nas bancas dos vestibulares e devem ser conhecidas, superando-se certa ideia de que seria obras “menores” em relação à produção literária realista. Aliás, alguns dos traços característicos do estilo de Machado “maduro” como o diálogo direto com o leitor ou as análises psicológicas já estão presentes em seu primeiro romance. É o caso do protagonista Dr. Felix, um médico que inicialmente tem uma percepção cética com relação ao amor, sempre observando que suas relações afetivas têm duração de 6 meses, quando então naturalmente se dissolve e se rompe. 

“- Eu te digo, respondeu Félix; os meus amores são todos semestrais; duram mais que as rosas, duram duas estações. Para o meu coração um ano é uma eternidade. Não há ternura que vá além de seis meses; ao cabo desse tempo, o amor prepara  as malas  e deixa  o coração  como um viajante deixa o hotel, entra depois o aborrecimento – mau hóspede”.   

Em certo sentido, o personagem Félix antecipa a perspectiva do realismo, sendo um grande cético e mesmo mangando de seus colegas sentimentais. Diz Dr. Felix ao seu colega Meneses, desiludido no amor: 

“Só muito tarde te convencerás de que viver não é obedecer às paixões, mas aborrecê-las ou sufocá-las. Os Maricas, como tu, choram; os homens, esses ou não sentem ou abafam o que sentem”.  

A grande diferença é que estamos na fase romântica de Machado de Assis o que irá engendrar um triste fim ao protagonista – que efetivamente irá conhecer o amor mas não se entregar inteiramente ao sentimento amoroso por uma espécie de covardia de espírito cumulado ao ciúmes doentio. 

Ainda assim, o leitor tem diante de si elementos da análise psicológica do protagonista de molde a identificar as origens de seu ceticismo quanto à realização amorosa: 

“- Não me caíram as ilusões como folhas secas que um débil sopro desprega e leva, foram-me  arrancadas no pleno vigor da vegetação. Não me deixaram essas doces recordações que são para as almas enfermas como que uma aura de vitalidade. Meu espírito ficou árido e seco. Invadiu-me então uma cruel misantropia, a princípio irritada e violenta, depois melancólica e resignada. Calejou-se-me a alma a pouco e pouco, e o meu coração literalmente morreu”. 

Talvez o que poderíamos apontar como o elemento mais ausente neste e em outros romances da fase romântica de Machado de Assis é sua mordaz crítica social que se combina com a ironia e o humor, elementos ausentes no contexto do romance romântico. 

Em contrapartida há elementos descritivos de relações sociais, jantares, convenções sociais, participação do trabalho escravo no âmbito doméstico e demais descrições da cultura e sociedade fluminense burguesa no âmbito do segundo reinado que são fontes históricas preciosas para se ter mais conhecimentos da história social e cultural do Brasil do séc. XIX.     

terça-feira, 26 de maio de 2015

“Dom Casmurro” – Machado de Assis

“Dom Casmurro” – Machado de Assis 



Resenha Livro 172 – “Dom Casmurro” – Machado de Assis - Ed. Record Rio de Janeiro São Paulo


Esta obra de Machado de Assis foi publicada no ano de 1899: estamos diante de romance em que o autor já expressa sua plena maturidade literária, observada a partir de transição que remonta às “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881), quando o “Bruxo do Cosme de Velho” inaugura no Brasil o Realismo literário. 

As obras mais remotas de Machado de Assis (romances e contos foram a especialidade do autor, que ainda produziu Poesia, Peças de Teatro e Traduções) podem ser enquadradas no estilo romântico, ou mais especificamente no romantismo em sua terceira fase.  Aqui o foco centra-se nos cenários urbanos e em temas sociais, sem contudo tecer críticas sociais e de costumes, com otimismo no que tange às relações amorosas, bem como na apologia das relações sociais de tipo burguês resultando num narrativa do tipo eventualmente folhetinesco e um pouco superficial.  

A partir de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e nas obras subsequentes, observa-se  uma reorientação no estilo e principalmente na abordagem: o idealismo no amor dá espaço ao objetivismo nas análises conjugais revelando a forma como as relações entre os sexos envolvem convenções sociais ocultas, ou no caso específico de “Dom Casmurro”, o ciúmes doentio de Bentinho e a dissimulação de Capitu; o elogio às formas sociais colocadas pelo romantismo é superado por uma crítica mordaz e sarcástica dos costume implicando na crítica social. A objetividade dos escritores realistas é levada a cabo quase como uma obsessão: no caso de Dom Casmurro, o livro é escrito na forma de um caderno de memórias pelo advogado Santiago Bento em sua velhice, como tentativa (não bem sucedida) de reatar as pontas da infância e da velhice. 

Terminando velho e só numa grande casa no Engenho Novo no Rio de Janeiro e Casmurro (aquele que é fechado, teimoso, caturra) este foi um apelido dado por vizinhos e apropriado pelo autor para título de sua história. Como dizíamos, o esforço pela objetividade perpassa o objeto do livro de Casmurro e resvala em certas passagens mesmo num efeito cômico. Assim Bentinho relata sua ida ao seminário para se fazer padre, se separando da família e de Capitu:

“Meses depois fui para o Seminário de S. José. Se eu pudesse contar as lágrimas que chorei na véspera e na manhã, somaria mais que todas vertidas desde Adão e Eva. Há nisto alguma exageração; mas é bom ser enfático, uma ou outra vez, para compensar este escrúpulo de exatidão que me aflige. Entretanto, se eu me ativer só à lembrança da sensação, não fico longe da verdade; aos quinze anos, tudo é infinito”.

Por outro lado, os mesmos escrúpulos da exatidão engendra a inevitabilidade da mentira. Dom Casmurro já oferece todas as condições, ao redigir suas memorias, para eventualmente poder não só acertar contas com seu passado mas mesmo revelar alguns de seus vícios; vícios como sua sensação de ojeriza quando da morte de Manduca, um colega menos abastado acometido de Lepra e interesse pessoal do narrador-autor em ir ao enterro unicamente para faltar ao seminário e ver Capitu; ou como no instante em que uma febre da mãe levou Bentinho a pensar que a morte da genitora levaria-o a estar livre do seminário culminando num sentimento de culpa logo em seguida. De qualquer forma, os escrúpulos da exatidão ainda podem abarcar uma intenção mentirosa. 

“- Eu só gosto de mamãe   (Bentinho)
Não houve cálculo nesta palavra, mas estimei dizê-la por fazer crer que ela era a minha única afeição; desviava as suspeitas de cima de Capitu. Quantas intenções viciosas há assim que embarcam, a meio caminho, numa frase inocente e pura! Chega a fazer suspeitar que a mentira é, muita vez, tão involuntária como a transpiração”. 

É provável que não haja exagero na afirmação do professor da UFRJ Carlos Sepúlveda ao dizer que Dom Casmurro ombreia textos de Shakespeare, Dante e Camões. Este livro tem uma força humana excepcional, envolvendo as cogitações da vida de um advogado que vive no Rio de Janeiro do Segundo Reinado, sendo tomado pelo ciúmes e por uma espécie de amor não comedido que não seria suprido posteriormente. Machado de Assis é um autor que desde o ponto de vista da história das ideias da arte expressa a culminância da visão social de mundo burguesa, o que se pode demonstrar mesma na analogia entre o amor e uma obrigação pecuniária, o que de resto, retoma a superação do realismo pelo amor romântico:

“Sucedeu que a minha ausência foi logo temperada pela assiduidade de Capitu. Esta começou a fazer-lhe necessária. Pouco a pouco veio-lhe a persuasão de que a pequena me faria feliz. Então (é o final do ponto anuncia-lo), a esperança de que nosso amor, tornando-me incompatível com o seminário, me levasse a não ficar lá nem por Deus, nem pelo diabo, esta esperança íntima e secreta entrou a invadir o coração de minha mãe. Nesse caso eu romperia o contrato sem que ela tivesse culpa. Ela ficava comigo sem ato propriamente seu. Era como se, confiado a alguém a importância de uma dívida para leva-la ao credor, o portador guardasse o dinheiro e não levasse nada. Na vida comum, o ato de terceiro não desobriga o contratante; mas a vantagem de contratar com o céu é que intenção vale dinheiro”. 

Amor, expectativa religiosa e obrigação pecuniário confundem-se tal qual a visão social de mundo da burguesia urbana a qual Machado de Assis e os escritores realistas retratam. Trata-se aqui tanto de um romance muito acima da média (que nos toca pelo seu conteúdo humano) quanto de preciosa fonte histórica. 

sexta-feira, 15 de maio de 2015

“Memórias Póstumas de Brás Cubas” – Machado de Assis

“Memórias Póstumas de Brás Cubas” – Machado de Assis



Resenha Livro  171- “Memórias Póstumas de Brás Cubas” – Machado de Assis – Ed. Elevação 

Se Machado de Assis é comumente lembrado como maior escritor de romances de origem brasileira, seria com o seu “Memórias Póstumas de Brás Cuba” (1881) que o autor abriria uma nova etapa em sua produção, sendo as memórias o ponto de partida e inaugural da fase realista da literatura nacional. 

Há de se somar à grandeza do livro algumas preliminares referentes à própria trajetória de vida do autor. Joaquim Maria Machado de Assis nasceu no Rio de Janeiro no Morro do Livramento (região suburbana) no ano de 1839. Era filho de José Machado de Assis (um operário) e Leopoldina Machado de Assis (uma lavandeira), esta última tendo falecido quando o escritor ainda era criança. Desde pequeno demonstrou interesse pelo estudo de  línguas e de forma autodidata aprendeu francês, alemão e inglês, o que se revela nas citações literárias. 

Sua iniciação nas letras deu-se desde baixo como tipógrafo do periódico “Marmota Fluminense”. Obteve proteção de seu dono, Francisco de Paula Brito e ainda aos 16 anos começou a publicar alguns poemas no jornal. Seu primeiro livro de poesias, denominado Crisálidas, seria publicado em 1864. Não há aqui ainda a expressão incomum de um autor que posteriormente seria consagrado na literatura nacional. A poesia e o teatro não são os gêneros literários de especialidade de Machado de Assis. O autor viria a se destacar nos contos e nos romances, em geral publicados da imprensa fluminense. 

O primeiro romance data de 1872 e denomina-se Ressurreição. Corresponde ao que os críticos classificam como obra da 1ª fase ou de juventude de Machado, romances vinculados ao romantismo de terceira geração (condoreirismo). Trata-se de uma fase intermediária entre o romantismo e o realismo propriamente dito, com autores preocupados em descrever a realidade social, além de abordar temas de crítica social como o abolicionismo (daí serem também chamados de geração condoreira, uma ave que vê desde cima, tem uma percepção mais ampla). A diferença é que com o realismo a ruptura com o idealismo romântico é mais profundo engendrando especificamente em Machado de Assis numa perspectiva radicalmente irônica e mordaz, bastante distinta do gosto dos antigos romances românticos lidos preferencialmente pelo público feminino tal qual as novelas dos dias de hoje. Daí o impacto revolucionário de Memórias Póstumas de Brás Cubas. 
Um Defunto Autor

Para alcançar esta finalidade de descrever a sociedade tal qual ela é, desmascarar as convenções sociais, os jogos de interesse, o egoísmo humano como elemento premente das interações sociais, o autor só poderia mesmo fazê-lo na condição de defunto. Brás Cubas narra a história desde “o outro mundo” o que o possibilita lançar um olhar sobre sua vida na terra sem qualquer tipo de preocupação quanto aos julgamentos, os olhares “judiciosos” da crítica – e não se pense que ele não estende sua pena da sinceridade radical dos outros a si próprio, mas, muito pelo contrário, começa a demonstrar os sentimentos que na aparência são grandes mas, na intimidade, medíocres a partir de suas experiências pessoas, quando são melhor observados. 

“Talvez espante o leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha mediocridade; advirta que a franqueza é a principal virtude de um defunto. Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar  os ragões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz à consciência; e o melhor da obrigação é quando, à força de embarcar os outros, embaça-se um homem a si mesmo, porque em tal caso poupa-se o vexame, que é uma sensação penosa, e a hipocrisia, que é um vício hediondo. Mas na morte, que diferença! Que desabafo! Que liberdade! (...) Senhores vivos, não há nada tão incomensurável como o desdém dos finados”.

Tal passagem ganha relevo na narrativa por revelar a estratégia narrativa que na prática culminou no ponto de partida do realismo brasileiro: a posição insólita do narrador permitiu-lhe um ponto de vista inédito sobre a sociedade urbana burguesa carioca de fins do século XIX. A tendência passa do subjetivismo romântico à objetividade, chegando posteriormente com o naturalismo a tangenciar a literatura com as tendências cientificistas que se expressavam no determinismo.   Ainda quanto ao realismo, o amor passa a ser fonte de convenção social e formalidades ou aparências, enquanto no romantismo engendrava a felicidade perpétua. Finalmente, as análises psicológicas das personagens ganham maior importância em detrimento de uma certa superficialidade que marcava mesmo os primeiros romances de Machado de Assis. 

Dentre as rupturas com o passado romântico, certamente a questão do amor e da felicidade conjugal nos parece ser a mais importante. Brás Cubas teve um passado frívolo, se envolveu com mulheres, não casou, não constituiu família e nem por isso sofreu em demasia. Ao fim da vida encontrou um pequeno saldo quanto a tudo isso: não teve filhos a pôr num mundo de misérias, o que é dito num tom em parte em galhofa em parte com alguma seriedade, considerando a mediocridade de sua própria vida. A maior prova porém de que, na morte, Brás Cubas não acreditou no amor foi seu relato de rompimento com Virgília, um relacionamento extraconjugal que mais parece ao leitor remeter a um relacionamento amoroso do personagem em vida. Ao fim e ao cabo, poucas horas após rompimento da relação, Brás Cubas parece indiferente pela partida da amada à província distante junto ao marido em caráter definitivo: 

“Não a vi partir; mas à hora marcada senti alguma coisa que não era dor e não era prazer, uma coisa mista, alívio e saudade, tudo misturado em iguais doses. Não se irrite o leitor com essa confissão. Eu bem sei que, para titilar-lhe os nervos da fantasia, devia padecer um grande desespero, derrubar algumas lágrimas, e não almoçar. Seria romanesco; mas não seria biográfico. A realidade pura é que eu almocei, como nos demais dias, acudindo ao coração com as lembrança da minha aventura, e ao estômago com os acepipes de M. Prudhon” .

Muitas outras passagens são dignas de nota nestas memórias. Os delírios da morte de Brás Cubas (que ineditamente não tem uma morte “triste”  ou “melancólica” dentro de sua percepção pessoal, ao contrário do que senso comum imagina da morte); passagens de reflexão sobre a condição do negro e a escravidão, quando Cubas reencontra o negro Prudêncio apunhalando um escravo seu (engendrando reflexões sobre o tema e desmentindo desde já certa opinião de que a questão do negro escravo foi indiferente ao escritor Machado de Assis); a ideia do Emplasto e a ironia desta ideia fixa tê-lo levado à morte, bem como tantas outras passagens do livro. 

De uma forma geral, pode-se dizer que Machado de Assis e seu realismo sinalizam um período posterior das ideias da burguesia no Brasil, passando de seu momento heroico ao seu momento de consolidação, eventualmente se expressando pela arte à frente de seu tempo, o que aliás é comum no caso das manifestações artísticas. O traço do realismo é a burguesia enquanto classe dominante a se olhar no espelho, com seus vícios e virtudes, passado seu momento heroico e revolucionário, decorrente do romantismo – temos ciência que a burguesia brasileira propriamente não passou por momento revolucionário, mas importou modelos de tal monta da Europa. 

Machado de Assis parece-nos parte desta tradição. Ainda que tenha nascido no subúrbio, conseguiu ascender socialmente apesar de ser mulato (diante de uma sociedade rigorosamente racista) diante do reconhecimento da sua obra. Foi fundador e dono da cadeira nº 1 da Academia Brasileira de Letras e é reconhecido não por poucos como o maior escritor brasileiro de todos os tempos.  

sábado, 9 de maio de 2015

“Marx, Engels e Lênin: a história em processo” – Florestan Fernandes

“Marx, Engels e Lênin: a história em processo” – Florestan Fernandes 




Resenha Livro 170 - “Marx, Engels e Lênin: a história em processo” – Florestan Fernandes – Ed. Expressão Popular 

O professor Florestan Fernandes foi o nosso maior cientista social de todos os tempos, fato que impressiona levando em consideração sua trajetória de vida. Veio de família pobre, filho de empregada doméstica e superou todas as dificuldades para se graduar e posteriormente lecionar na Universidade de São Paulo. Marxista militante, foi um lutador em defesa da educação e da universidade públicas, além de deputado pelo PT da constituinte que promulgou a Carta Constitucional de 1988. 

Uma das características do texto de Florestan é a alta densidade teórica, o que exige do leitor bastante atenção e uma leitura cuidadosa. O que é curioso é que mesmo trabalhos menos pretensiosos não deixam de postular um rigor científico característico do autor. Tivemos a oportunidade de resenhar um trabalho de Florestan sobre a Revolução Cubana (Ver: http://esperandopaulo.blogspot.com.br/2014/12/da-guerrilha-ao-socialismo-revolucao.html). Tratava-se de “mera” compilação de anotações para um curso dado sobre aquele acontecimento histórico na FFLCH-USP, o que resultou numa das melhores análises sociológicas e históricas em língua portuguesa sobre a luta na Sierra Mastra, incluindo um estudo inédito entre nós sobre a história colonial cubana. 

Processo semelhante pode ser dito sobre este livro de comentários acerca de textos de Marx, Engels e Lênin organizado pela Expressão Popular. Trata-se na verdade da reunião de prefácios escritos para uma coleção voltada ao público universitário que publicava trechos de obras de grandes pensadores das ciências sociais e históricas. Florestan não só escreveu os prefácios, mas participou da seleção dos textos e dos autores. 

Sobre esta coleção, comenta José Paulo Netto:

“Florestan escolheu, pautado apenas por critérios científicos rigorosos, os autores a serem publicados e os organizadores dos volumes e acompanhou cuidadosamente o processo de elaboração de cada um deles, oferecendo sugestões de várias ordens, sem jamais ferir a autonomia do organizador, que dispunha de inteira liberdade na seleção dos textos e na apresentação que redigia. A coleção, com a marca da seriedade intelectual que caracterizou o conjunto da vida e da obra de Florestan, contribuiu decisivamente para a constituição daquela cultura teórico social a que fiz referência e é, sem sombra de dúvida, uma marco na história das ciências sociais do Brasil”. 
Quanto aos textos de Marx e Engels, os textos selecionados abrangem praticamente a vida toda dos fundadores do socialismo científico. O ponto de partida são os Manuscritos de 1844 e a Ideologia Alemã, onde se dá o acerto de contas e ruptura  com a tradição filosófica idealista da Alemanha e a inauguração do método materialista dialético. 

Existe uma polêmica que divide os marxistas até hoje acerca da relação entre as obras de “juventude” (os manuscritos, a ideologia alemã, o manifesto de 1848) e as obras de “maturidade” (centralmente “O Capital”) em Marx. Para determinada corrente, existe uma clivagem entre estes dois momentos, sendo o Marx da juventude, um Marx humanista ainda não dotado de um ponto de vista científico. Esta é a perspectiva de Althusser, não muito em voga no Brasil, mas com bastante importância na França. Já há outra corrente, da qual Florestan Fernandes definitivamente se filia, que demonstra haver uma relação de continuidade entre as obras de juventude e maturidade, perspectiva que aqui no Brasil ganhou peso com um grande número de adeptos do pensamento do pensador húngaro György Lukács.

Esta consideração é importante, pois se filiando à segunda tradição, boa parte dos textos selecionados por Florestan Fernandes se encontram nos anos de 1844, 1848, 1850, onde o sociólogo já enxerga plenitude e cientificidade, ainda que posteriormente apuradas em Marx e Engels. Particularmente, a inovação dá-se com o materialismo dialético e sua consequente aplicação na interpretação da história: 

“A necessidade teórica levou-os (Marx e Engels) à história. Para ultrapassar as posições da filosofia da história hegeliana e dos seus críticos neo-hegelianos, eles recorreram a uma ciência da história, que era uma síntese das ciências sociais, coroada e presidida pelo ponto de vista histórico. A necessidade prática também os levou à história. Imersos na luta de classes, em um movimento operário internacional em pleno crescimento e na vanguarda das primeiras tentativas revolucionárias, foi para história que se voltaram. Se fossem socialistas ou comunistas utópicos, se se contentassem com a reforma social, poderiam ter paciência e aguardar. Revolucionários de uma nova estirpe, tiveram de buscar respostas nos fatos, investigando as guerras camponesas, as classes operárias na Inglaterra, a revolução e a contrarrevolução na França, na Alemanha e em outros países da Europa, o império de Luís Bonaparte, o significado da Comuna, etc.”

Reitera-se: os fundadores do marxismo não só ofereceram chaves explicativas para a história até então desconhecidas, mas demonstraram na prática que o apenas a passividade, ou nos dias de hoje o “academicismo” é incompatível com a práxis marxista. No mesmo sentido, Florestan aponta:

“Na verdade, a opção e a afirmação da história como ciência correm por dentro da luta de classes e do sentido último da história moderna. Ciência oficial e ideologia dominante são irmãs siameses. O historiador marxista, pelo menos, não pode ignorar esta lição, que procede a vida e do exemplo dos fundadores do materialismo histórico. Existe um padrão de congruência. Ninguém pode aderir a uma concepção materialista e dialética da história e ignorar as implicações morais e práticas do materialismo, da dialética e da história, recolhendo-se ao conforto da ciência oficial e ao silêncio ou ambiguidades”

Em uma palavra, exige-se coerência que poderia ser estendida do historiador a todo intelectual que fez sua opção de classe. Florestan seguiu rigorosamente esta coerência e prova disso foi sua dolorosa morte. Pouca gente talvez conheça esta história. Florestan Fernandes, como intelectual, comunista e parlamentar, sempre a defender os interesses públicos, dentre eles a saúde pública. No final da vida, doente, fez questão de ser tratado num hospital público, mesmo recebendo convites para se tratar nos melhores hospitais no exterior. Em entrevista num documentário sobre a vida de Florestan Fernandes, seu filho falou que, se tivesse aceito tratar seu problema de saúde no exterior,  teria salvo sua vida.