quinta-feira, 19 de maio de 2011

"O estrangeiro" - Albert Camus

Resenha Livro #25 – “O estrangeiro” – Albert Camus




Mersault trabalha num emprego sem importância. Quando sua mãe morre, chega a hesitar se deve ou não pedir desculpas ao seu chefe: precisará faltar alguns dias para velar o corpo, preocupando-o a reação do patrão às suas faltas. A falecida faz com que Mersault, adulto, provavelmente branco e francês, viaje a Marengo (80 Km de Argel), onde providenciará o cortejo do corpo e o enterro.

De volta à Argel, Mersault envolve-se com uma datilógrafa do trabalho. Encontra Marie tomando banho de mar. Tanto seu relacionamento amoroso, quanto os conflitos posteriores envolvendo o protagonista só assumem importância na medida em que servem para revelar a forma particular como Mersault parece ver o mundo. O trabalho é encarado como uma banalidade, a morte da mãe parece assumir a mesma importância que o café com leite tomado antes do enterro e detalhes da arquitetura do caixão, o relacionamento amoroso é narrado como um encontro casual e desprovido de sentimentos não racionais, a prisão, como uma necessidade irresistível da vida.

A banalidade do cotidiano e o desencontro

Chama atenção a forma como os eventos e as sensações pessoais de Mersault vão sendo relatadas de forma indiferente. O personagem, que narra sua história em 1ª pessoa, parece despir-se por inteiro, revela os eventos por que passa com o máximo de sinceridade, o que, de alguma forma, implica naquela indiferença: o autor não se sente obrigado a justificar seus atos, pouco lhe parece importar a reação do leitor àquilo que narra.

A sensação de indiferença parte da sinceridade de Mersault e, igualmente, justifica-se diante da própria vida.

A mãe lhe surge como um parente distante, o que decorre da distância e do tempo que passaram afastados. A ausência de lágrimas derramadas pelo filho chama atenção dos demais presentes no enterro, mas explica-se pela compreensão de que a mãe levara uma vida melhor longe do filho. O leitor a todo momento compreende Mersault e igualmente compreende o porque os demais não compreendem Mersault – o personagem parece não manter relação de pertencimento ao mundo.

Contingências determinando o fluxo da vida

Tanto eventos cotidianos quanto os conflitos, correspondentes à morte da mãe, às relações amorosas com Marie, aos enigmáticos árabes com quem Mersault acaba por se envolver, à prisão e à condenação à morte, surgem como se fossem parte de uma inevitável contingência de fatos a que Mersault vivencia antes como um espectador. Decorre, imaginamos, daí o nome da obra de Albert Camus. Mersault é um estrangeiro, não apenas por ser um francês residente na Argélia, mas por, parece-nos, ser alguém que vivencia suas experiências de forma alheia, como um observador distante.


Humanidade x Barbárie

Particularmente, Mersault vê-se afetado pelos sinais climáticos. O frio, o calor e as circunstâncias do meio lhe afetam provavelmente mais do que o normal. Ainda, Mersault parece ser bastante perspicaz ao compreender e identificar os sentimentos daqueles com quem interage. Não há, portanto, insensibilidade ou falta de sentimentos humanos em Mersault. O fato dele sentir-se estrangeiro, parece-nos, decorre da barbárie social, da incompreensão geral determinada por um fluxo inevitável de eventos do qual Mersault parece ser expectador. O fim trágico de Mersault é uma decorrência lógica de uma sequencia de eventos que, em seu todo, parece ser absurda. A justiça oficial e a religião surgem particularmente como parte da irracionalidade, fazendo com que a sensação final é a de que, num mundo alienado e desumano, a honestidade radical de Mersault faz com que ele se afaste da realidade e seja vítima dos eventos.

O estrangeiro é um texto enigmático. Trata-se do primeiro romance de Albert Camus (1942) e, ainda hoje, dialoga bastante com um mundo que reifica o homem, fetichiza a mercadoria e parece ser incapaz de dotar a história de sentidos.

domingo, 15 de maio de 2011

"Condição Pós-Moderna" - David Harvey

Resenha Livro #24- “Condição Pós-Moderna “ – David Harvey – Ed. Loyola





Autor

Harvey é um geógrafo britânico e professor de universidades norte-americanas. Suas pesquisas são focadas particularmente sobre o estudo das cidades – as análises sobre as implicações econômicas sobre a arquitetura das cidades e as noções de espaço-tempo discutidas em “Condição Pós-Moderna” sinalizam o diálogo particular de Harvey com a geografia. “Condição Pós-Moderna” corresponde ao seu terceiro livro, tendo sido lançado no Brasil em 1993.

Visão Panorâmica da Condição Pós Moderna

“O Novo valor atribuído ao transitório, ao fugidio e ao efêmero, a própria celebração do dinamismo, revela um anseio por um presente estável, imaculado e não corrompido” – Jürgen Habermas – Citado por David Harvey


O livro de Harvey tem seu formato pensado e organizado de maneira a oferecer uma crítica dialética do que é apresentado como “condição pós-moderna”. O significado dialético da análise de Harvey refere-se ao esforço de confrontar as tendências da arte, da arquitetura, da filosofia e da política pós-modernas com as exigências econômicas decorrentes dos ciclos de expansão e crise do capitalismo. É nesse sentido que toda a análise de Harvey acerca da “Condição Pós-Moderna) diz respeito a certa condição histórico-geográfica.

O próprio autor dá uma boa síntese das suas preocupações e objetivos da obra.

“Por meio do primeiro (materialismo histórico), podemos compreender a pós-modernidade como uma condição histórico-geográfica. Com essa base crítica, torna-se possível lançar um contra-ataque da narrativa contra a imagem, da ética contra a estética e de um projeto de Vir-a-Ser em vez de Ser, buscando a unidade no interior da diferença, embora um contexto em que o poder da imagem e da estética, os problemas da compreensão do tempo-espaço e a importância da geopolítica e da alteridade sejam claramente entendidos”. (Pg. 325)

Destacamos a ponderação final do autor: reconhecer a necessidade de ampliar o campo de compreensão da alteridade e o que ele chama de novas relações de “tempo-espaço” também deve ser objeto das análises críticas. Se a intenção geral de Harvey nos pareceu lançar uma crítica sobre a condição pós-moderna, se apropriando da dialética e da ideia do materialismo histórico, sua opção metodológica não implica na mera negação “em bloco” dos questionamentos dos desafios teórico-metodológicos colocados pela “condição pós-moderna”. Muito pelo contrário: há, sim, o esforço de se promover uma “renovação do materialismo histórico-geográfico (que) pode na verdade promover a adesão a uma nova versão de projeto do Iluminismo”.

Outro aspecto interessante da obra, e que igualmente sinaliza a apropriação da dialética como fonte de crítica social, é a própria forma como o ensaio é dividido. As IV partes do texto complementam e confrontam ideias entre si, de maneira que a parte 4 (Condição Pós-Moderna) corresponde a uma síntese das discussões acerca do significado geral das mudanças culturais, geográficas (ideia de espaço-tempo) e políticas da fase da acumulação flexível.


Breve síntese do ensaio

Na Parte I – “A Passagem da Modernidade à Pós-Modernidade na cultura contemporânea”, são apresentados em linhas gerais os elementos que configuram a estética pós-moderna, destacando-se especialmente a arquitetura, de maneira a introduzir o debate, ilustrando a forma como a condição pós-moderna se situa no espaço urbano, na arte, na publicidade, nos meios de comunicação. Há a exposiçãoda forma como o discurso da pós-modernidade incide no cotidiano, sugerindo a atualidade do debate. Neste momento, ainda não identificamos as posições políticas do autor com relação ao problema.

Na Parte II – Em “A transformação político-econômica do capitalismo do final do séc. XX”, as atenções do autor voltam-se agora para as relações econômicas, e particularmente o momento de transição das formas de organização do trabalho. A transição do modelo fordista ao modelo da “acumulação flexível” passa a subsidiar o entendimento materialista histórico-geográfico da condição pós moderna. A definição de acumulação flexível parece ser do próprio autor (não conhecemos a origem da expressão) e é amplamente descrita, a partir de gráficos e tabelas, como momento da reestruturação produtiva do capitalismo a partir dos anos de 1970.

“A acumulação flexível, como vou chamá-la, é marcada por um confronto direto com a rigidez do fordismo. Ela se apóia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional”.

Evidentemente, as mudanças econômicas exigem transformações nos discursos que dão sustentação à natureza ideológica do trabalho. Harvey identifica autores que falam em “fim do trabalho”, particularmente Gorz, com distorções que têm a ver com a condição pós-moderna.

Na parte III, na nossa opinião o momento mais complexo e difícil do texto, Harvey discute as experiências do espaço-tempo ao longo da história: do começo da modernidade, referindo-se às mudanças das noções de espaço e tempo decorrentes das transformações tecnológicas, políticas e sociais do início da modernidade, o sentido de tempo e espaço dentro do projeto Iluminista e, talvez o capítulo mais interessante do livro, a discussão do tempo e espaço no cinema pós-moderno a partir de análises dos filmes “Blade Runner” de Ridley Scott e “Asas do Desejo” do cineasta alemão Wim Wenders.

O que há de comum nas duas películas é a forma como são retratados o espaço-tempo na pós-modernidade. A tese de Harvey é a de que, ao contrário do momento Iluminista em que a noção do “Vir-a-Ser” tem importância central na percepção social do tempo e do espaço – remetendo, na nossa interpretação, a uma história dotada de sentidos, a condição Pós-Moderna, ao fastar o “Vir-a-ser” e instaurar a hegemonia do “ser”, implica numa crise de representatividade do tempo e do espaço, dinamizada pela lógica da acumulação flexível. No Caso de Blade Runner, a crise diz respeito às experiências dos “Replicantes”, espécies de robôs fabricados à imagem e semelhança dos homens, que têm sentimentos, mas não têm história de vida: são simulacros de pessoas que, ao final do filme, pouco se diferenciam dos homens enquanto sujeitos sociais e históricos. As diferentes noções de tempo e espaço vivenciadas por personagens que convivem e interagem, também aparece em Asas do Desejo, estabelecendo relações entre homens a anjos, mortais e imortais, pouco se podendo diferenciar passado, presente e futuro. Tais exemplos sinalizam aquilo que se chama de Crise da representatividade do Tempo e Espaço. Mais uma vez, o desafio aqui é identificar tais crises não enquanto inevitabilidades que corroboram para uma visão irracionalista da vida – aquilo que Carlos Nelson Coutinho diria ser a “Miséria da Razão”.

O desafio é transpor os discursos ideológicos identificando as crises de representação enquanto partes de um determinado desenvolvimento histórico pautado por exigências econômicas e pelos conflitos de classe. Este é o termo a que se chega a parte IV. Há aqui uma proposta de síntese, sinalizando, dentre outros, os desafios colocados pela Condição Pós-Moderna àqueles que lutam por uma sociedade que, nas palavras de Harvey, equiparem as potencialidades econômicas às necessidades humanas, o que quer dizer socialismo.

O Materialismo Histórico frente à Crise da representação do espaço-tempo

O sentido e as implicações gerais da Condição Pós Moderna podem não ter sido bem captadas pela esquerda, de maneira a não contrapor as críticas acerca da “insuficiência” ou “reducionismo” do materialismo histórico e dialético frente às esferas culturais e políticas da era da acumulação flexível. Particularmente, a reflexão acerca da crise das representações de tempo-espaço deve ser objeto de atenção, até para se considerar em que medida formas de organização e intervenção política anti-capitalistas podem estar desgastadas frente às circunstâncias tecnológicas e sociais que viabilizam trocas de experiência e de ideias em curto espaço de tempo. Ações diretas, lutas espontâneas, intervenções lúdicas e poéticas podem somar-se às tradicionais formas de resistência e mobilização, contrapondo a crise de representação de tempo-espaço a uma percepção humanista e dotada de sentidos acerca do tempo e do espaço. Capacitar estudantes e trabalhadores a serem protagonistas históricos significa também combater os discursos de fragmentação ou eliminação da história, decorrentes daquela crise de representação.

Harvey elenca quatro itens que, no nosso entendimento, bem corresponderia a 4 novas exigências de estudos por parte da esquerda diante da era da acumulação flexível. Vale a pena citar os 4 desafios, a título de conclusão.

1-“ O tratamento da diferença e da “alteridade” não como uma coisa a ser acrescentada a categorias marxistas mais fundamentais (como classe e forças produtivas), mas como algo que deveria estar onipresente desde o início em toda tentativa de apreensão da dialética da mudança social. A importância da recuperação de aspectos da organização social como raça, gênero, religião, no âmbito do quadro geral da investigação materialista histórica (com a sua ênfase no poder do dinheiro e na circulação do capital) e da política de classe (com sua ênfase na unidade da luta emancipatória) não pode ser superestimada”.

2- Um reconhecimento de que a produção de imagens e discursos é uma faceta importante de atividade que tem que ser analisada como parte integrante da reprodução e transformação de toda ordem simbólica. As práticas estéticas e culturais devem ser levadas em conta, merecendo as condições de sua produção cuidadosa atenção.

3- Um reconhecimento de que as dimensões do espaço e do tempo são relevantes, e de que há geografias reais de ação social, territórios e espaços de poder reais e metafóricos que se tornam vitais como forças organizadoras na geopolítica do capitalismo, ao mesmo tempo em que são sede de inúmeras diferenças e alteridades que têm de ser compreendidas tanto por si mesmas quanto no âmbito da lógica global do desenvolvimento capitalista. O materialismo histórico finalmente começa a levar a sério sua geografia.

4- O materialismo histórico-geográfico é um modo de pesquisa aberto e dialético, em vez de um corpo fixo e fechado de compreensões. A metateoria não é uma afirmação de verdade total, e sim uma tentativa de chegar a um acordo com as verdades históricas e geográficas que caracterizam o capitalismo, tanto em geral como em sua fase presente”.

domingo, 24 de abril de 2011

"O Estruturalismo e a Miséria da Razão" - Carlos Nelson Coutinho

Resenha #23 0 “O Estruturalismo e A Miséria da Razão” – Carlos Nelson Coutinho – Ed. Expressão Popular




Autor

Carlos Nelson Coutinho é filósofo marxista, militou no PT e hoje mantém proximidade com o PSOL. Introduziu no Brasil, junto com Leandro Konder e outros, as idéias do filósofo húngaro György Lukács. Alguns anos após a publicação do “Estruturalismo”, passaria a estudar o filósofo italiano Antônio Gramsci. E é a partir da influência gramsciana que Coutinho lançará seu provável mais famoso ensaio, “A Democracia Como Valor Universal”.


Objetivos do Estudo

A publicação de “Estruturalismo e A Miséria da Razão”, cerca de 30 anos após o seu lançamento (1971), revela a atualidade das discussões propostas pelo autor. O objetivo da obra, então, era o de fazer crítica militante acerca da tendência filosófica predominante nas universidades brasileiras após 1968. O exílio dos intelectuais brasileiros de esquerda e o cerco ideológico promovidos pela repressão criou condições para a importação daquela nova moda filosófica francesa. No Brasil, o Estruturalismo viria a preencher o vazio intelectual decorrente da repressão e da fragilidade política da esquerda, pouco capaz de dar respostas teóricas às críticas do estruturalistas à razão dialética, ao humanismo e à história dotada de sentidos.

Já o objetivo da obra de Carlos Nelson Coutinho, hoje, vai além de ilustrar os embates filosóficos de sua época e/ou tratar de alguns tópicos da filosofia de Marx, e particularmente de Lukács e sua ontologia do ser social.

O texto é ainda capaz de armar o campo crítico e marxista de argumentos e respostas às tendências filosóficas irracionalistas: hoje, o estruturalismo deixa de ser a moda filosófica, havendo versões atualizadas da “miséria da razão” sob os nomes de pós-estruturalismo e pós-modernismo. Igualmente, estruturalismo e pós-estruturalismo têm lances de continuidade e sinalizam respostas do mundo da filosofia às exigências da economia e manifestações dos ciclos de crise e expansão do capitalismo. O Estruturalismo, filosofia européia que mantém correspondência com um momento de expansão do capital, estabelece suas bases filosóficas a partir de modelos esquemáticos, da técnica, da razão instrumental, tabelas, números e eficácia. O pós-estruturalismo, correspondendo aos eventos da reestruturação produtiva e crise econômica estrutural, sinaliza insegurança, contingência, irracionalismo, o resgate da filosofia pessimista de Nietzche e Heidegger, dentre outros. O que há de comum entre estruturalismo e pós-estruturalismo é a negação dos 3 eixos fundamentais da filosofia do marxismo: o humanismo, o historicismo e a dialética.

Batalha das Ideias

Ao negar o humanismo, o Estruturalismo é incapaz de revelar a “mutilação da práxis pela manipulação, a necessária irracionalidade de uma vida voltada para o consumo supérfluo e humanamente insensato”. Ao negar o historicismo, o estruturalismo naturaliza as relações históricas de exploração, chegando a teses extremas, como em Levi-Strauss, de se defender a existência de estruturas e normas sociais que antecedem o homem, e portanto, a própria história. Ao negar a dialética, o Estruturalismo instaura a hegemonia da razão meramente instrumental – chamada por Carlos Nelson Coutinho de Intelecto. Negar a dialética, seja por estruturas normativas imutáveis (estruturalismo) seja pela pura e simples negação da racionalidade a priori (pós-estruturalismo) significa contrapor-se aos esforços de promover um entendimento totalizante da realidade, capaz de tornar o mundo congniscível e passível de ser transformado: pensar para além do intelecto significa utilizar a razão decorrente das descobertas filosóficas de Hegel e Karl Marx, negadas pelas mais distintas formas pelas filosofias manipulatórias.

Reinvindicar a atualidade da filosofia crítica e emancipatória significa confrontá-la com as demais filosofias associadas, de forma mais ou menos consciente, à lógica de reprodução do capital. A batalha das ideias segue viva, 30 anos após o lançamento do “Estruturalismo e A Miséria da Razão”.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

"Felicidade Conjugal" - Lev Tolstoi

Resenha #22 “Felicidade Conjugal” – Lev Tolstoi – Editora 34 – Tradução Boris Schnaidermann



Sobre a obra

Felicidade Conjugal foi lançada em 1859, tratando-se de obra da fase jovem do escritor russo Lev Tolstoi ( 1828-1919). Quando o romance foi escrito, o autor tinha pouco mais de 30 anos. Não se identifica em Felicidade Conjugal algumas idéias relacionadas à moral e política que marcariam sua obra mais reconhecida.

Ainda não se aborda em Felicidade Conjugal questões sociais, não há descrição das profundas desigualdades econômicas dentre as classes sociais da Rússia do séc. XIX. Não há relatos das condições de vida de camponeses e mujiques contrapostas à descrição e à crítica do luxo exacerbado das classes dominantes da Rússia – tanto a aristocracia quanto à burguesia incipiente das cidades – tema que será particularmente analisado no útlimo romance do autor, “Resurreição”.

No que se refere à moral, não há o viés doutrinário do cristianismo, que igualmente é parte do conjunto de idéias que se abrigam sobre o termo "tolstoísmo". Felicidade Conjugal é um romance sucinto, é um relato pessoal das experiências amorosas de Mária Aleksândrovna. O objeto central do texto são os sentimentos da personagem, ou talvez mais exatamente, o desenvolvimento dos sentimentos de afeto e amor da Maria ao longo do seu amadurecimento pessoal e do amadurecimento de sua relação com seu marido Sierguiéi Mikháilitch.

Em um aspecto pudemos, porém, identificar um traço de continuidade entre Felicidade Conjugal e a obra subseqüente de Lev Tolstoi. Trata-se da habilidade com que o autor traduz os sentimentos das personagens, sensações sutis decorrentes dos relacionamentos humanos ou mesmo da percepção humana acerca da natureza. A descrição de nuvens movimentando-se no céu, formando chuvas e posteriormente dissipando-se combina-se no enredo com a trajetória das personagens de forma bastante interessante.

Tolstói foi muito capaz de captar e e comunicar coisas sutis das pessoas e dos ambientes. Exige-se boa capacidade de interpretação do homem e do mundo para conseguir descrever sensações profundas e complexas de forma tão simples. De maneira geral, os textos de Tolstoi são sempre bastante acessíveis. Frases curtas, orações diretas e vocabulário comum oferecem análises e reflexões aprofundadas acerca dos diversos temas decorrentes do amor. No caso de “Felicidade Conjuugal”, do amor burguês.

Sobre a História

Mária Aleksândrovna casa-se ainda muito jovem com Sierguiéi Mikháilitch. Seu amor pelo marido é relatado desde sua infância, quando o afeto então assumia a forma de admiração e respeito análogo ao amor por seu pai. Conforme a jovem amadurece, igualmente seu amor por Mikháilitch vai tomando formas distintas. Apaixonam-se, casam-se e retiram-se para o campo, para uma vida inicialmente feliz. A diferença de idade passa a ser fonte de angústia e inquietações por parte de ambos e o desenvolvimento da felicidade conjugal em diferentes aspectos vai sendo relatada por Maria.

Cumpre ressaltar que o casal possui terras e muitos recursos financeiros. Na gleba do casal moram camponeses trabalhadores, não se sabendo em que condições. Pouca ou nenhuma atenção é dada pelo texto (e por Maria) a qualquer questão que não a relação amorosa do casal. A descrição reiterada dos sentimentos individuais, mesmo se tratando de sentimentos sutis e originais, pode parecer um pouco entediante para certo tipo de leitores.

Possibilidades

Ainda assim, é possível extrair algumas lições de Felicidade Conjugal. O interessante aqui é tentar extrair da história algumas idéias sobre como se fundam as relações de gênero numa sociedade em que co-existem relações capitalistas e pré-capitalistas de produção, desenvolvimento de cidades e ilustração burguesa convivendo com o domínio aristocrático no campo, forte presença religiosa da Igreja Ortodoxa, suntuosidade e opulência em bailes e eventos envolvendo o conjunto da classa dominante russa. Neste tipo de sociedade, não cabia à mulher nenhuma preocupação que não fosse tocar piano, conversar com outras mulheres durante o dia e viver de forma subserviente ao homem, reconhecer-lhe total autoridade sobre si. Mária não só o faz, como parece que o deseja a todo momento. A dominação masculina é parte daquilo que sente e interpreta como "felicidade conjugal" na medida em que seu amor é fruto também de suas expectativas sobre o que é ser mulher naquela sociedade.

O desafio inconcluso de “Felicidade Conjugal” é buscar a compreensão da forma como o amor e a felicidade podem subsistir às relações de opressão e dominação. Mária é feliz e sua felicidade está totalmente comprometida com um mundo radicalmente machista. Hoje isso deve significar, entre outras coisas, repensar o que é o amor e como ele pode projetar novas relações de gênero distintas daquelas das sociedades pré-capitalistas e capitalistas descritas em ‘Felicidade Conjugal’.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

"A Chinesa" - Jean Luc-Godard

Resenha Filme #3 – “A Chinesa” – Jean Luc-Godard



6 Pontos sobre "A Chinesa" de Jean Luc-Godard

1- O filme retrata jovens universitários franceses organizados numa célula política de orientação maoísta. O grupo passa os dias dentro de um apartamento, de onde praticamente não saem, falando de temas teóricos ligados à arte, filosofia da linguagem e política internacional, sempre se orientando pelas críticas ao imperialismo norte-americano e ao revisionismo soviético. (O fato dos jovens estarem isolados do mundo é determinante, por suposto, na conformação de suas análises políticas da realidade). A obra passa-se em Paris de 1967 e ilustra a geração de universitários franceses que participariam das revoltas do maio de 68.

2- Veronique tem 19 anos, estuda filosofia, aparenta possuir vasta formação teórica, ainda que imatura e impaciente politicamente. Kirilov é um artista, pouco intevem nas discussões do grupo e defende o terrorismo político. Henri é químico e tensiona o coletivo acerca da necessidade de objetividade nas análises: “o marxismo é uma ciência.” É acusado de revisionista e, ao defender a coexistência pacífica entre URSS e EUA, é expulso da célula. Guillaume é ator, fala sobre política de forma intensa, lê trechos do livro vermelho em voz alta e aparenta ser arrogante. Yvonne é de origem camponesa, diferencia-se do restante do grupo por sua origem social, pelo fato de não compreender as discussões na forma como elas são feitas pelos universitários. Na cidade, trabalhou como faxineira e eventualmente prostitui-se.

3- O filme tem uma linguagem bastante específica, os diálogos são intercalados com mensagens políticas, imagens de Lênin, Mao-Tsé Tung, Malcon X e Stálin ou cartazes de propaganda política, fotografias ilustradas da revolução cultural chinesa, da resistência na Argélia e jovens dissidentes na URSS. O apartamento é decorado com mensagens políticas pintadas nas paredes e diversos livros vermelhos. Os livros vermelhos são utilizada como barricada em luta simbólica contra o imperialismo ou jogados num tanque de guerra de brinquedo. A forte presença do livro vermelho remete à centralidade da revolução cultural dentro do imaginário dos jovens franceses do final dos anos 1960. Os impactos decorrentes da morte de Stálin, o imperialismo soviético, a coexistência pacífica e a emergência das guerrilhas no chamado terceiro mundo são retratados nas discussões políticas, nas imagens e nos desdobramentos finais do filme (que não serão contatos nesta resenha).

4- Uma discussão específica entre Veronique e um antigo professor da universidade nos pareceu o ponto alto do filme. O fato do diálogo dar-se fora do apartamento favorece a crítica sobre as políticas dos jovens universitários: dentro de um trem em movimento, aquele é um dos poucos momentos que Veronique convive com pessoas de fora da célula. A conversa gira em torno dos problemas das universidades francesas, do autoritarismo e sensação de sufocamento cultural e das formas de luta de resistência. Veronique revela neste momento o fato de que os dois anos de estudos teóricos de marxismo não expressam conhecimento e sensibilidades acerca do real, dos desafios concretos e objetivos dos estudantes na luta pelo socialismo. A proposta da ação terrorista, de lançar bombas na universidade defendida por Veronique é duramente criticada. As ações terroristas não vinculadas com um movimento de massas e com um alguma possibilidade de adesão no sentido de promover uma luta generalizada não são objeto de preocupação na estudante. A luta revolucionária surge à personagem como algo pessoal. Lênin quando discute o esquerdismo, relaciona-o à política pequeno-burguesa. Não se pode fazer a revolução pela maioria mas necessariamente com a maioria.

5- O isolamento da célula revolucionária em relação ao mundo é igualmente fonte de provocação àqueles que hoje lutam pelo socialismo num contexto em que a possibilidade de um futuro pós-capitalista aparenta ter sido jogada no lixo da história. O fato é que todo o estudo teórico não suprime a exigência da experiência prática como forma de apreensão do real, dos objetivos e dos meios de luta através da “análise concreta da realidade concreta” (Lênin). O apartamento da célula maoísta existe como um mundo à parte, sem conexão orgânica com a realidade dos trabalhadores. Emblemático o fato da camponesa Yvone estar isolada politicamente do grupo. Em uma de suas poucas intervenções é vaiada pelos estudantes, ao responder que a origem da verdade é o “céu”. No que se refere à nossa realidade, a provocação vai num sentido mesmo além da crítica à política de seita. A provocação trata daquilo que costuma-se chamar das condições objetivas e subjetivas da revolução. Se o conhecimento teórico do grupo dá suporte às interpretações teóricas acerca das condições objetivas, esta depende da vivência concreta dentro da realidade do trabalho – fora do apartamento ou de reuniões internas de partidos e dentro de fábricas, escolas, nos bairro populares. Sobre as condições subjetivas, estas se expressam na organização política, nos fluxos de consciência da classe que vive do trabalho e na sua interação com as análises das condições objetivas.

6- A ideia de que um apartamento fechado ao mundo de onde um grupo jovens dará partida a uma revolução mundial é comparada a uma fábula, relatada no filme, que oferece uma boa síntese de a Chinesa. No Egito, acreditava-se que a língua falada por aquele povo era a mesma que a língua de deus. Para demonstrá-lo, conta-se que um pequeno grupo de bebês foi deixado numa casa em total isolamento do mundo: havia a expectativa de que os pequenos aprendessem a língua naturalmente. Passados alguns anos, constatou-se que as crianças comunicavam-se grunhindo como carneiros – notaram que havia carneiros ao lado da casa onde as crianças foram abandonadas. A crítica política de Godard refere-se à ideia de que o apartamento equivale a casa das crianças egípcias. Infelizmente, a crítica tem sua atualidade.

quarta-feira, 30 de março de 2011

"Carlos, a Face Oculta de Marighela" - Edson da Silva Júnior

Resenha #21 – Carlos, A Face Oculta de Marighella – Edson Teixeira da Silva Júnior – Ed. Expressão Popular





O sentido da Face Oculta

A biografia de Carlos Marighela é também uma dissertação de mestrado de História Social. Seu objeto é a análise da trajetória pessoal e militante de Carlos Marighela, destacando as formas como sua personalidade (particularmente a sua sensibilidade no trato com as pessoas e sua impetuosidade) vão ter implicações nos desdobramentos políticos relacionados ao movimento comunista brasileiro do séc. XX., especificamente o PCB e a ALN.

A ideia da “face oculta”, aqui, refere-se a uma preocupação que perpassa toda a biografia: o esforço por parte do autor da biografia(esforço até certo ponto militante) de ir desconstruindo toda imagem criada pela ditadura militar sobre a personagem.

Carlos Marighela, o “inimigo número um da ditadura militar”, foi retratado pelo regime e órgãos de imprensa da época (como não poderia deixar de ser) como um terrorista, um militante “radical e profissional”, sem qualquer compaixão pelo ser humano e altamente perigoso. Não é preciso aqui destacar os papeis dos aparelhos de propaganda ideológica durante o regime militar brasileiro nem é muito difícil compreender o que está por trás da forma como o regime buscou caracterizar Marighela. O personagem sofrera em 1964 um atentado por policiais em plena sessão de cinema: oficiais invadem uma sala, atiram em Carlos Marighela, este sobrevive, resiste e é levado preso. Sua prisão e o relato da tentativa de assassinato pela repressão deram origem ao relato “Por que resisti a prisão”, um documento político voltado à mobilizar a luta contra o regime. Assim sendo, todo esforço em criar a face do assassino cruel e desumano sinaliza alguma preocupação das autoridades acerca das possibilidades de Marigela credenciar-se como uma liderança ou mesmo um herói.

Já a face oculta, trabalhada pela dissertação de Edson Teixeira, aborda os traços de afetuosidade, coragem pessoal e valores políticos que caracterizam Marighela. O oposto do que fora pintado pelos militares, portanto. Para tanto, há o esforço em descrever aspectos de sua vida familiar, relatos de parentes acerca da infância e adolescência do militante revolucionário e algumas históricas que vão sinalizando aspectos da personalidade individual.

Vida Privada

Marighela gostava de samba e futebol. Era mulato, baiano e lutava capoeira. Tinha 1,90 de altura e porte físico de atleta. Em reuniões do partido comunista, particularmente em momentos de tensão, fazia intervenções em versos. Tinha um gênio impetuoso, intepestivo, assumia riscos excessivos: em plena ditadura militar, procurado pela polícia, ao presenciar cena de violência policial junto a operários, reúne os trabalhadores após a dispersão da repressão e em praça pública faz discurso político contra o regime.

Outros dois traços marcantes da personalidade individual de Marighela: humildade radical no trato com os demais militantes, mesmo sendo o respeitado dirigente do PCB e ALN; bravura, tendo como exemplos a sua resistência à prisão e relatos que contam que, mesmo nos momentos de tortura, Marighela resistia aos socos aos algozes.

Um pequeno esclarecimento sobre a questão da coragem de Carlos Marighela. Não nos interessa, aqui, análises acerca da valentia individual de um militante de forma a fazer juízos de valor acerca de seu caráter ou de sua moral. Vale lembrar que tal viés de interpretação é no mínimo empobrecedor ao não levar em consideração, por exemplo, as contingências que determinam distintos momentos da consciência política individual – um militante aguerrido hoje pode perfeitamente ser amanhã um gestor qualificado do capitalismo. Não há espaço para juízos morais definitivos das personalidades individuais sem grandes riscos de maniqueísmos. O que nos interessa neste ponto da valentia de Marighela, e esta também parece ser a intenção do autor, é mostrar como aquela bravura sinaliza certa dose de confiança pessoal sobre as políticas defendidas pelos comunistas, confiança na vitória da resistência contra a ditadura e pela construção do socialismo. Algo que diz respeito a forma como os comunistas brasileiros viam o mundo e interpretavam a realidade política do país.

O Novo Homem

A biografia de Carlos Marigela pode servir como um ponto de partida para aqueles que pretendem conhecer um pouco sobre a história não só da personagem mas dos instrumentos de luta (PCB e ALN) correspondentes à trajetória de Marighela.

Outra possibilidade da obra é a de servir como certa fonte de inspiração e reflexão àqueles que militam e/ou têm expectativas acerca da transformação radical do mundo. A inspiração aqui se refere aos exemplos da vida pessoal de Carlos Marighela. (Evidentemente, a inspiração não deve implicar em certa idolatria que corrobora para personalismo político cuja conseqüência quase sempre é autoritarismo político).

Carlos Marighela aparenta possuir forte capacidade de empatia (colocar-se no lugar do outro) e isso inspira na medida em que nos faz crer ser a empatia certa condição para os revolucionários em sua luta contra o capitalismo. Não é possível solidarizar-se sinceramente com a luta dos trabalhadores sem levar em consideração as expectativas e exigências da classe que vive do trabalho.

Ademais, a experiência de militar e lutar por um novo tipo de sociedade – cujas conseqüências são também a construção de novos valores pessoais – exigem alguns compromissos individuais. Sob o capitalismo, naturalizamos valores e práticas associadas de maneira mais ou menos direta à exploração e alienação do trabalho: opressões de gênero, homofobia, individualismo, competitividade, indiferença em relação ao sofrimento alheio, etc. Os compromissos individuais devem partir de uma certa vigilância pessoal que cada militante deve ter acerca daquelas naturalizações.

A vigilância pessoal decorre da percepção crítica do mundo, do questionar as naturalizações. Porém, apenas a vigilância de consciência e exercícios de autocrítica podem não ser suficientes. Carlos Marighela, quando resolve uma prova de matemática em versos de poesia, ou quando divide tarefas de trabalho doméstico com sua companheira para além das divisões tradicionais de gênero ou, ainda, quando dedica sua vida e morre pela luta pelo socialismo não apenas pensa mas busca concretamente vivenciar e praticar os novos valores que indicam um mundo para além do capital.

Balanços inconclusos

Um último tópico que acreditamos que poderia ter sido mais trabalhado no estudo – a título, portanto, de crítica construtiva. Trata-se do debate sobre os motivos do fracasso da luta armada e mais especificamente do assassinato de Carlos Marighela. A luta armada ocorre durante um ciclo de expansão da economia – correspondente ao "milagre econômico" – que dificulta as tentativas de criar formas de adesão popular à luta armada. Num contexto em que o Brasil está próximo do pleno emprego e com o incremento das relações de consumo (decorrentes da inclusão das massas ao trabalho e à ascensão de classe média nos centros urbanos) a situação econômica contribui para o isolamento da luta contra o regime – evidentemente, o isolamento decorre igualmente da forte repressão do estado e de todo seu aparato repressivo e ideológico e de deficiências teóricas dos movimentos de resistência que tencionam promover as mudanças através de experiências estrangeiras sem as mediações que traduzam os desafios dos socialistas para a realidade brasileira. As relações entre os ciclos de expansão e crise do capital e as distintas formas de luta política seria um bom ponto de partida para novas reflexões sobre o sentido da luta armada no Brasil.

sexta-feira, 25 de março de 2011

"Um Governo de esquerda Para Todos" - Paul Singer

Resenha Livro #20 – “Um Governo de Esquerda Para Todos” – Paul Singer Editora Brasiliense




O Triste Fim do Programa Democrático Popular

“Um Governo de Esquerda Para Todos” foi uma boa opção de título para o livro de Paul Singer. Trata-se de um relato da experiência do economista como Secretário do Planejamento do governo municipal de Luíza Erundina. Entre 1989 e 1992, a maior cidade do país foi governada pelo Partido dos Trabalhadores, naquele momento, a maior expressão da organização dos trabalhadores decorrente do ascenso das lutas sociais dos anos 1980.

“Um governo de esquerda para todos” é uma frase gritantemente contraditória. A esquerda nos governos, quando não acompanhada por amplas mobilizações de massa que viabilizem uma ruptura a partir de baixo, é sempre fonte de desconfianças. As diversas experiências históricas, inauguradas pela social democracia alemã, só reforçam a tese de que, na melhor das hipóteses, a esquerda, quando governa por meio do estado burguês, terá necessariamente de fazer graves concessões. (Nosso desafio é analisar os casos individualmente para se pensar e em que medida a organização e as lutas independentes dos trabalhadores e do povo avançam ou recuam durante aqueles governos).

“Um governo de esquerda para todos”, além disso, apresenta uma contradição maior, que vai perpassar todo o ensaio de Paul Singer. Quando assume o controle do governo municipal, pela via democrática formal, a prefeitura do PT assume as regras do jogo da democracia burguesa, o que significa admitir a responsabilidade de promover um governo “para todos”, pobres e ricos, patrões e operários, capital e trabalho.

A exigência da conciliação vai criando todo tipo de embaraços, particularmente dentro das relações entre o PT e o governo. A militância do PT exigindo as mudanças radicais correspondentes ao seu programa de radicalização da democracia burguesa e/ou socialismo, a depender mesmo das diversas forças políticas internas do partido em embate. E a gestão municipal justificando-se com a exposição de planilhas, dados numéricos e exigências legais que, sob qualquer hipótese, podem ser violadas sob a pena do “colapso”.

As raízes da contradição do Governo Popular

Os conflitos entre as exigências da militância e da governabilidade decorrem de maneira geral da contradição de um governo de esquerda com compromissos concomitantes com o capital e trabalho.

Decorrem igualmente de estratégia política que entende haver possibilidade de se acumular forças para o trabalho através do exercício da gestão dos poderes públicos combinado com a “democratização” no acesso à política (Neste último caso, vale colocar que os foros públicos, o orçamento participativo e as assembléias nos bairros, propostas pelo governo de Erundina foram sendo derrotadas um a um por exigências econômicas e jurídicas, falta de recursos, pressão dos empresários, manobras da oposição no legislativo, vetos das iniciativas pelo judiciário, etc.).

É possível identificar, finalmente, certo fetiche acerca dos aparelhos ideológicos, a prefeitura, por parte de ambas as partes, o partido e a gestão de Luiza Erundina. A atuação dentro da gestão é tumultuada por diversas mediações determinadas historicamente como forma de frustrar políticas que subvertam a lógica dominante das cidades sob o capitalismo: forte exclusão social, diferenças brutais nos acessos e na qualidade dos serviços prestados pelas classes, arrocho salarial dos trabalhadores do município enquanto empresários não têm sua margem de lucro afetadas pelas políticas do governo “de esquerda”, etc.

As normas e as exigências institucionais comprem um papel literal de conservação.

A ausência de mudanças e a contradição do “governo de todos” geram frustração em ambas as partes: “os companheiros do PT estavam frustrados porque, depois de vários meses da ‘tomada do poder’ municipal, aparentemente nada tinha mudado – no caso do transporte coletivo, a tarifa continuava sendo aumentada e a superlotação dos ônibus tinha ainda piorado mais. Os membros do governo por sua vez estavam frustrados não só porque suas próprias expectativas não se haviam realizado mas também porque o conhecimento precioso que estavam adquirindo sobre o lado de dentro da máquina governamental não despertava o interesse dos companheiros do partido(...)”.

Neste último ponto, Singer desaponta-se com o fato dos demais militantes não considerarem as possibilidades de aprendizagem nem as dificuldades da gestão. Ao longo de todo ensaio, há a defesa pessoal do governo Erundina, preserva-se sempre a figura da prefeita, mesmo onde o autor reconhece haver erros da gestão, de maneira que, no texto, Paul Singer parece debater com sinceridade e honestidade política. Igualmente, não temos acordo com sua política, com sua proposta de “democratização da democracia burguesa” por meio de atuações “participativas” dentro de uma estratégia de governo para “todos”. Esta é a política que tem como vocação administrar os conflitos de classe nos momentos de ascenso e maior complexidade das lutas, diz respeito à ação de gestores qualificados técnica e politicamente para atuar nos ciclos de crise do capitalismo.

O programa democrático popular, sob o qual o governo de Erundina orientava-se, ainda hoje tem peso majoritário dentro do campo de esquerda (democrática e socialista) do país. A leitura do relato de Paul Singer é uma boa provocação sobre o sentido do programa democrático popular num momento em que o governo do PT em seus 12 anos na gestão do país sequer resultou numa redução significativa da desigualdade social, elemento mínimo para se reivindicar um governo como de esquerda.

Citação Interessante

“Durante toda a minha vida de militante de esquerda fiquei intrigado pelo fato de governos eleitos sobre plataformas de mudanças profundas quase sempre acabarem realizando muito menos do que deles se espera. Refiro-me obviamente a governos democráticos, eleitos livremente e governando dentro da legalidade constitucional. Nunca me convenci do argumento frequentemente utilizado por críticos de que os governantes, uma vez instalados “no poder”, simplesmente esquecem as promessas feitas, se é que alguma vez tiveram intenção de cumpri-las. Há até um dito cínico a respeito. Governar seria como tocar violino: toma-se o instrumento com a esquerda mas ele deve ser tocado com a direita”