sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

O Futuro da Filosofia da Praxis - Leandro Konder

Resenha livro #15 O Futuro da Filosofia da Práxis: o pensamento de Marx no século XX – Leandro Konder. Ed. Paz e Terra.




As palavras, de tanto repetidas, podem eventualmente ter seu significado prejudicado, sublimado pelo conjunto de usos e entendimentos de acordo com conveniências políticas mais ou menos conscientes. Deve-se sempre atentar para o fato de que falar sobre ‘liberdade’, ‘justiça’, ‘democracia’, ‘socialismo’, ‘holocausto’, ‘direitos humanos’ ou ‘meio ambiente’ vai implicar sempre em certa adequação dos termos a determinados discursos e práticas políticas, eventualmente antagônicas entre si. A palavra ‘democracia’, aqui, assume um papel bastante emblemático. Democracia é reivindicada por quase todos, da direita neoliberal aos socialistas, passando mesmo pelos regimes de ditadura militar ou civil que igualmente justificam a repressão como forma de ‘salvar a democracia’. O significado de palavras como ‘democracia’ passa a ser definido de acordo com as convicções políticas de cada emissor em cada situação histórica específica, determinada por fins ora de legitimação ora de transformação da ordem.

Se o sentido das palavras dialoga com uma sociedade em conflito, a disputa pelos significados dos conceitos relacionados à tradição marxista (socialismo, trabalho, alienação, ideologia e, por suposto, o próprio termo ‘marxismo’) passa a ser algo determinante. Determinante para saber situar melhor nossas práticas de acordo com elaboração teórica mais detalhada das realidades complexas do trabalho e da luta por seu emancipação no século XXI. E determinante, particularmente, para fazer sobreviver e avançar o legado teórico-metodológico do marxismo frente à ideologia pós-moderna e/ou demais ‘filosofias’ que se propõem a negar em bloco qualquer atualidade das teses de Marx – corroborando, na esmagadora maioria das vezes, para a perpetuação do status quo.

Estas duas últimas preocupações, o aprofundamento teórico e a atualização do marxismo a partir da análise concreta das contradições do capitalismo do século XXI, são fontes de preocupação recorrente dos textos de Leandro Konder. Em ‘Derrota da Dialética’, o autor faz um estudo de fôlego sobre a recepção das ideias marxistas no Brasil, destacando as graves dificuldades no acesso, difusão e compreensão da filosofia da práxis como fontes da “derrota da dialética”, da conformação do marxismo sob uma forma esquemática, linear e pouco atenta às potencialidades da dinâmica da história. A dialética é substituída pelo evolucionismo e a teoria passa a ser mera forma de legitimação das práticas política determinadas pela orientação das direções políticas dos instrumentos de luta. Em “Marxismo e Alienação”, Konder dedica dois capítulos ao problema da alienação dentro das organizações de esquerda, no mundo e no Brasil. Já em o ‘Futuro da Filosofia da Práxis’, o objeto do autor é simples, e ao mesmo tempo ousado: partindo do fato de Marx ter disso um pensador do séc. XIX, que influenciou diversos movimentos e autores ao longo do séc. XX, pergunta-se Leandro Konder em que aspecto a filosofia de Marx mantém sua atualidade no séc. XXI. O sentido da palavra “marxismo” tem um tratamento especial no ensaio. Mais uma vez, se as palavras são fontes de disputas políticas, o resgate das principais teses de Marx, relacionando-as com seus usos (e abusos) ao longo dos anos, cumpre o papel de desmistificar certo entendimento dogmático das ideias do filósofo alemão.

Revisitar as ideias de Marx

‘Marx foi um pensador do século XIX’ é o nome do primeiro capítulo do ensaio. Aqui, a constatação, aparentemente óbvia, implica levar em consideração os próprios limites do autor, dado o universo cultural e o repertório de ideias acessíveis a um pensador naquele momento e naquelas circunstâncias históricas. Trata-se, acreditamos, do velho problema do ‘anacronismo’ discutido pelos historiadores. Anacronismo, em primeiro lugar, correspondendo à análise de personagens do passado que não leva em consideração o fato de que aqueles mesmos personagens não terem tido acesso aos acontecimentos subsequentes à sua produção em vida, contrariando eventualmente seus prognósticos. Anacronismo, em segundo lugar, em certa recepção das ideias de Marx como uma doutrina a partir da qual a realidade deve se adequar de maneira esquemática.

Nesse sentido, um fato bastante emblemático tratado por Leandro Konder refere-se às ambigüidades entre as ideias revolucionárias de Karl Marx sobre o problema da consciência política e alienação e a sua conduta própria em vida. Marx lança as bases de um entendimento revolucionário do homem e sua formação de consciência, avançando sobre certa tradição, marcadamente ideológica, que busca encontrar traços mais ou menos universais do ser humano num plano distante das relações de trabalho e sociabilidade. Para Marx, a consciência é produto da experiência humana concreta que se dá, de forma privilegiada, a partir das relações de trabalho, que se modificam e possuem certa dinâmica correspondente aos estágios do desenvolvimento histórico. Ocorre que o indivíduo Marx também é produto de seu tempo. Mesmo lançando as bases de uma teoria crítica radical da realidade, ainda tem seu universo cultural relacionado ao conjunto de ideias disponíveis a um intelectual do séc. XIX e reproduz as práticas sociais de um homem da Inglaterra vitoriana. É conhecido, por exemplo, o etnocentrismo com que o velho Marx tratou as lutas de emancipação na América Latina. Em carta escrita ao genro cubano Paul Lafargue, relatada por Konder, Marx soa claramente racista. E, na verdade, as próprias ideias de Marx, particularmente suas análises sobre a alienação, o estranhamento do homem em relação à vida individualista e solitária no capitalismo, cria condições para se entender as contradições de sua prática em vida.

“O fato de ter sido um desmistificador genial dos fenômenos típicos de uma esfera decisiva da atividade alienada (a esfera da produção e da apropriação) não assegurava a Marx uma consciência isenta de “alienação” na esfera da vida familiar e da moral privada”. (Pg. 32)

Radicalizar o marxismo

Revisitar as ideias de Marx significa, portanto, aplicar até as últimas conseqüências o método crítico de Marx sobre o próprio marxismo. A crítica radical da realidade combinada a um profundo desejo e sincera disposição em engajar-se nas lutas pela superação do capitalismo foram igualmente fundamentais nos séculos XIX e XX. Hoje, a luta pelo socialismo é mais do que nunca necessária. O ‘Futuro da Filosofia da Práxis’, ao fazer o elo do pensamento de Marx ao longo dos séculos, certamente mereceria uma nova edição, quem sabe, pela Expressão Popular.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Ensino Jurídico e Mudança Social - Antônio Alberto Machado

Resenha#14 “Ensino Jurídico e Mudança Social” – Antônio Alberto Machado. Ed. Expressão Popular





Sobre a Obra

Antônio Alberto Machado é professor de direito da UNESP de Franca e coordena naquela universidade o NEDA – Núcleo de Estudos de Direito Alternativo. O Direito Alternativo nasceu como uma proposta de contraponto à cultura jurídica dominante, associada ao pensamento liberal, ao formalismo e à tradição positivista. Faz oposição portanto a certa perspectiva que entende o direito como ciência cuja centralidade está na norma jurídica positivada formalmente pelo Estado: esta oposição parte especialmente da análise crítica das instituições jurídicas, reconhecendo-as portanto como parte de uma superestrutura política que opera dentro de um quadro de dominação e conformação do poder.

O sentido histórico do direito

O direito entendido como “técnica”, como “conjunto de normas positivadas pelo Estado”, ou como “ciência pura” (que é ainda o entendimento dominante nas escolas de direito e na cultura jurídica como um todo) vincula-se a estágio específico de desenvolvimento histórico da burguesia, de classe revolucionária à classe dominante. Isto significa que todo o aspecto ideológico que perpassa as grandes ideias de justiça, igualdade e liberdade mantém correspondência às lutas e revoluções burguesas dos séculos XVIII e XIX, à consolidação e generalização do capitalismo e do domínio burguês. Uma vez consolidado o poder político da nova classe dominante, processa-se a adequação dos discursos às exigências políticas. Não deixa de ser sintomático que a chamada “exegese jurídica”, entendido como expressão do rigor máximo da aplicação das normas jurídicas de acordo com seu enunciado textual e literal, tenha como referência o direito civil napoleônico. Após as lutas revolucionárias que derrubaram o antigo regime francês, a nova conformação de classes exigiu naquele momento histórico um novo arranjo jurídico que daria sustentação e legitimidade política ao Estado moderno e constitucional, não se admitindo, por suposto, uma prática jurídica que aceitasse, por exemplo, interpretações minimamente flexíveis dos textos legais. Como ponto de partida para o seu estudo, Machado identifica neste modelo positivista-liberal – forjado, portanto, num momento de revoluções e mudanças da conformação do poder político – um esgotamento, ou “uma crise”.


A Crise do direito liberal e o alternativismo

A “crise” do modelo positivista e liberal é o seu ponto de partida. Ainda que no estudo o autor não trabalhe especificamente o tema do Direito Alternativo, sua pesquisa pode ser também interpretada como parte daquele movimento de juristas, estudantes e demais profissionais da área. Os alternativistas, ao se depararem com o direito ideologizado, entendido pelo senso comum como “neutro”, operando basicamente como meio de controle social e manutenção da ordem, vão apontar para um movimento oposto que coloca a prática jurídica como fonte de transformação social. Antônio Alberto Machado denomina a nova proposta de atuação como “praxis”, expressão que sugere a conjugação da teoria e prática numa dialética que envolve um norte político frente aos conflitos de classes.

Os limites e potencialidades do direito enquanto meio de transformação social vão sendo entendidos de uma forma bastante variada: tal qual aqueles movimentos de frente única no âmbito da política da esquerda (reformista ou revolucionária), o direito Alternativo vai admitir maior ou menor aceitação da tese da atuação institucional, ora como forma de transformação ora como forma de consentimento e pacificação dos conflitos, da praxis jurídica para a justiça social mais ou menos associada à luta revolucionária pelo socialismo, aos distintos entendimentos sobre o papel e significado político do Estado burguês. As variadas perspectivas sinalizam, por ora, que o debate reforma e revolução ainda está na ordem do dia. As distintas filiações políticas, neste caso, vão ter conseqüências práticas na forma como se pensa os fins do direito e, particularmente, os seus limites históricos.

Reivindicamos a importância das críticas ao modelo positivista lançadas pelo movimento alternativista como parte de uma estratégia geral de despertar da consciência política dos estudantes ou mesmo profissionais da área do direito. Como o próprio texto de Machado nos mostra, a maioria dos operadores, doutrinada e deformada por ensino e cultura jurídica meramente cartorial, burocrática, ideologizada, etc, tem uma percepção bastante despolitizada da realidade, o que implica, analisando casos jurídicos individualmente, em decisões judiciais ou outras manifestações de operadores claramente reacionárias. Eventualmente, o posicionamento do judiciário sobre determinadas questões é radicalmente conservador, mesmo ao senso comum e ao conjunto de idéias dominantes – aqui nos vem à mente penas privativas de liberdade para crimes de bagatela, uso de violência policial em manifestações públicas, ações de reintegração de posse com claríssima sinalização da prevalência do poder econômico. Não raro, os exemplos acima vão sendo justificados/legitimados pela “literalidade da lei”. Dura lex, sed lex.

Duas Problematizações

Para os fins da nossa humilde e rápida resenha, faremos duas problematizações. A primeira diz respeito ao sentido da “crise do modelo positivista-liberal”. A segunda diz respeito aos limites do próprio papel do direito enquanto forma de transformação social.

A proposta de mudanças curriculares surge na pesquisa de Alberto Machado como sendo parte de uma “exigência” da própria realidade do cenário político e jurídico do país. A exigência é fruto de uma crise do modelo liberal-positivista. A constituição de 1988, a promoção de uma nova série de direitos coletivos e difusos, os graves problemas sociais decorrentes do neoliberalismo e as pressões por mudanças na situação de desigualdade do país criaram nova conjuntura que exige do profissional do Direito certa maturidade política para compreender que sua intervenção enquanto jurista, promotor, advogado, etc., deve contemplar as novas exigências do Estado Democrático de Direito.

Em certa passagem da pesquisa, o autor sugere que os direitos sociais enunciados pelo texto constitucional brasileiro implicariam num regime socialista. Temos aqui um problema que não parece ter sido fechado pelo estudo. A admissão de que a efetivação dos direitos sociais elencados ideologicamente pelo extenso rol de direitos sociais e econômicos “socialistas” da constituição de 1988 exclui o que há de mais essencial na estruturação destes direitos: a existência de relações capitalistas de produção, alienação e exploração do trabalho, propriedade privada (ainda que tenha "função social"), o imperialismo, ou seja, a dominação econômica a partir da relações centro e periferia, além da própria conformação desigual e combinada do capitalismo mundial, entre outros.

A “eficácia” do Estado ou do direito quando medida pela “eficácia das normas jurídicas dentro do capitalismo” pressupõe aceitação tácita de que a transformação social seja possível dentro do marco institucional: uma consequência desta perspectiva é a não compreensão de que a alternativa frente à crise do modelo positivista-liberal é, esta sim, uma nova forma mais “eficaz” de controle social e pacificação dos conflitos de classe. De maneira análoga aos tempos da revolução francesa e da exegese napoleônica, os novos operadores do direito “alternativo” credenciam-se como gestores qualificados para atuar em realidades complexas de trabalho e dominação. O sentido da “crise”, portanto, deixe de pertencer ao trabalho. O sentido da “crise” e sua superação apenas servem ao capital quando a práxis jurídica não implica a luta ativa, coletiva e consciente contra o capitalismo.

Cabe aqui perguntar qual é o espaço para uma luta jurídica anticapitalista. E este é o ponto que colocamos como segunda e última problematização.

Como Alberto Machado coloca em seu texto, o Estado opera num sentido literalmente conservador, sua lógica de pacificação de conflitos tem como escopo evitar tensões que prejudiquem a ordem social e econômica sobre o qual se mantém. Está longe das nossas possibilidades nem mesmo iniciar uma discussão sobre limites e potencialidades do direito enquanto transformação social. Nossa provocação, neste ponto, refere-se a uma parte específica do problema. Se o estudo de Machado sugere em diversas partes a necessidade de o direito ser uma ferramenta de transformação social como forma de superar o modelo liberal-positivista, poderíamos igualmente inverter a ordem dos fatores. A possibilidade de mudança social pelo direito pode também admitir a exigência da mudança social para a transformação do Direito e a superação radical do modelo liberal e positivista.

A bem da verdade faremos justiça de dizer que o autor leva em consideração os dois aspectos – mudança social e mudança do paradigma jurídico. “Logo, as perspectivas de mudança social e transformação democrática da sociedade, por meio do direito, estão, de alguma forma, vinculadas à revisão do modelo de ensino jurídico liberal/positivista vigente até hoje no país. Se não é rigorosamente certo dizer que a mudança social e da mentalidade jurídica depende, de modo determinista, da revisão dos paradigmas do ensino jurídico; será, no entanto, correto supor que ambas as coisas, ensino jurídico e mudança social, estão ligadas entre si numa relação, se não de causa e efeito, pelo menos de fator e conseqüência” (Pág.232). Entretanto, sentimos falta de mais reflexão sobre esta dialética que envolve o direito e a revolução social e, especialmente, o problema da transformação do direito pela transformação social, eixo, talvez, negligenciado a favor da transformação social pela transformação do direito. Menos reforma e mais revolução.

O que existe, finalmente, é uma lacuna teórica que deve ser preenchida pelos revolucionários sobre o problema do direito para a revolução anticapitalista. O estudo do Antônio Alberto Machado vale como provocação para mais produção alternativas e contra-hegemônicas.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Trabalho Duro, Discurso Flexível - Márcia Hespanhol Bernardo

Resenha Livro# 13 “Trabalho duro, Discurso Flexível: Uma análise das contradições do toyotismo a partir da vivência de trabalhadores” – Márcia Hespanhol Bernardo



Sobre a obra e sua importância

A editora expressão popular, como se sabe, cumpre papel fundamental de divulgação de textos clássicos do marxismo na língua portuguesa com preços acessíveis. A contribuição ganha relevância no sentido tanto de armar politicamente ativistas e movimentos sociais com formação teórica que subsidie a militância em sindicatos, partidos de esquerda, etc., quanto para viabilizar movimento contra-hegemônico que trave batalha contra os sensos comuns derivados da ideologia burguesa.
Esta dupla preocupação perpassa todo estudo de Márcia Hespanhol Bernardo. Trata-se de uma pesquisa acadêmica crítica, com o objetivo de esmiuçar os mecanismos ideológicos que operam sobre o mundo do trabalho a partir de pesquisa sobre o cotidiano de trabalhadores metalúrgicos de duas grandes montadoras de São Paulo.

No que se refere ao municiamento do pensamento contra-hegemônico, o estudo contribui ao se propor discutir uma contradição aparente entre os novos discursos otimistas da organização flexiva do trabalho (que fala em “participação”, “colaboração”, “trabalhos em equipe”, etc.) e a permanência ou incremento de relatos que expressam intensificação da exploração do trabalho, doenças emocionais, sofrimento e dor. Contradição aparente, uma vez que, ao longo do estudo, vamos percebendo como aquele “discurso otimista” corresponde à ideologia que busca realçar suposta relação de pertencimento do operário à empresa, quando na verdade as novas relações de trabalho intensificam sua exploração a partir de práticas de organização e gestão cada vez mais complexas.
No que se refere à contribuição militante, o estudo em primeiro lugar detalha a forma como as empresas buscam dar sustentação ao novo modelo de trabalho - formas mais ou menos sutis de ameaças àqueles que queiram se organizar para lutar. E, ainda mais importante, a pesquisa dedica um capítulo inteiro à “resistência dos trabalhadores ao poder das empresas”.

Novas formas de resistência

Além das greves e dos trabalhos de agitação e propaganda feitos pelos sindicatos em articulação com trabalhadores da base da categoria considerados (pelos patrões) “rebeldes”, aparecem no estudo novas sinalizações de formas de resistência, individuais e coletivas. Nos relatos de trabalhadores recolhidos pelo estudo, há ações individuais e coletivas, tanto ativas (contra as normas), quanto passivas (sem infringir normas). Além das greves e paralisações, há ações individuais que remetem ao ludismo, com trabalhadores que riscam ou amassam automóveis para arrancar prejuízos à empresa – a intervenção é motivada por reação mais emotiva, um dos relatos fala de operário que trabalha em setor de montagem onde faz calor extremo, a sensação térmica é tão insuportável que, numa ação de “revolta” ou “vingança”, o montador danifica o veículo sem ser percebido e sem saber explicar sua intenção. Há ainda práticas mais sofisticadas de sabotagem, individuais e coletivas, que sinalizam, entre outros, a não adequação do discurso otimista dos gestores à realidade prática dos trabalhadores.

Tornando-se mais complexas ou sutis as relações de exploração, torna-se necessário discutir como atualizar as formas de resistência. De qualquer forma a própria sobrevivência das lutas no toyotismo tem significados importantes. Em primeiro lugar servem para demonstrar aos apologistas do capital como no atual mundo do trabalho não se aboliu a contradição capital e trabalho: muito pelo contrario, houve sim intensificação da exploração do trabalho a partir do aumento do ritmo de produção, da incorporação do trabalho intelectual como forma de aumentar a extração
de mais-valia a partir de formação de “equipes inteligentes de trabalho”, do estímulo à competição, do aumento do exército industrial de reserva como forma de pressionar os trabalhadores diante do medo do desemprego, etc. E o aumento da exploração do trabalho amplifica o conflito de classe, daí havendo necessidade de discursos hegemônicos cada vez mais sofisticados de adequação, convencimento e resignação.

Em segundo lugar, a maior complexidade do toyotismo exige a incorporação por parte dos sindicatos e organizações operárias anticapitalistas de novos métodos de luta que levem em consideração a necessidade de atualizar a forma de se expor o aspecto essencialmente ideológico do discurso flexível. Aumenta a necessidade da luta autônoma, coletiva e ativa dos trabalhadores, para que se torne cada vez mais clara a destreza com que o capitalismo incorporou demandas históricas dos trabalhadores para potencializar a extração de mais valia. Mais do que nunca, a nova realidade do trabalho exige maior preparo dos socialistas e anticapitalistas para a batalha das idéias.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Ressurreição - Liev Tolstói

Resenha #12 Ressurreição Liev Tolstói – Ed. CossacNaify





A emergência do mundo burguês na Rússia do séc. XIX, suas contradições e embates frente à derrocada do mundo aristocrático.

Autor e suas circunstâncias

Liev Tolstói (1828-1910) é provavelmente o escritor Russo mais lido de todos os tempos. As obras mais famosas do escritor são “Guerra e Paz” (1860) que descreve a invasão napoleônica da Rússia e “Ana Kariênina” (1870), extensa história de amor com diversas adaptações para o teatro e cinema. Os livros de Tolstói eram publicados livremente por toda a Europa: por opção ideológica o autor renunciou a todos os seus direitos autorais, de maneira que muitos problemas de tradução e edição grosseiras implicaram em diferentes recepções dos textos. Enquanto as cenas de sexualidade de Ana Kariênina foram ressaltadas nas edições francesas, nas publicações norte-americanas muitas cenas de amor foram suprimidas.

Ainda assim, seu reconhecimento público deu-se em vida, algo raro, o que lhe garantiu provavelmente a liberdade: prendê-lo acarretaria em desgaste político da autocracia russa diante de todo o mundo e particularmente da Europa “ilustrada”.

Vale destacar, aqui, contexto político da Rússia naquele momento histórico – algo que está bastante presente no texto do autor. O império era dirigido por elites políticas em transformação acelerada: a contradição central que impulsiona a mudança refere-se à exigência de sustentar regime político monárquico, centralizador, opressivo e com ranços medievais convivendo com a influência do pensamento liberal da Europa, da pressão por reformas políticas diante das revoluções liberais do séc. XIX e de organizações revolucionárias ou consideradas “subversivas”. Dentre estas últimas se destacam os jovens revolucionários do “Narodniks”– presentes em Ressurreição – que defendem o fim da propriedade privada no campo e radical distribuição de renda; pequenas seitas religiosas cristãs como os “dukhobors” – em russo, “lutadores do espírito” – que desafiam as práticas da Igreja Ortodoxa Russa e a lógica de poder do czarismo.

O próprio Tolstói foi responsável pelo fomento de grupo de discípulos. Estes discípulos tinham em comum a negação do Estado, do dinheiro e da Igreja oficial ortodoxa, praticavam o vegetarianismo e defendiam o pacifismo e a vida comunitária. O “tolstoísmo” é lembrado por certos autores como uma vertente anarquista. Anarco-tolstoísmo é conceito obviamente polêmico, muitos identificam aqui contradição entre os dois termos.

Aspectos Particulares de Ressurreição

Ao falarmos da trilogia dos grandes romances de Tolstói, é provável que Ressurreição (1899) seja a obra menos conhecida. Se nos dois primeiros livros o problema social, a denúncia política e o problema dos privilégios da nobreza são os panos de fundo para o enredo, em Ressurreição estes conflitos ganham maior destaque do que a história das personagens. “(Tolstói) focaliza o sistema judicial e prisional, um cenário e um contingente humano muito diferente do que encontramos nos romances anteriores. Desse ângulo, lança sobre a sociedade inteira uma luz capaz de pôr a nu o sentido da violência, oficial ou não, e sua relação com os privilégios”[1].

Esta nova perspectiva deve ser relacionada ao contexto em que a obra foi escrita.

Em 1894, Nicolau II assume o trono e exige de seus súditos por toda a Rússia juramento de lealdade. A Seita dos “dukhobors”, com quem o autor mantém contato, nega-se a prestar o juramento e alistarem-se ao serviço militar – “alguns jovens dukhobors foram presos e banidos para Sibéria. Em protesto, no Caucásio, milhares de dukhobors queimam todas as armas que ainda possuíam – facas, espadas, pistolas, rifles, usados na sua defesa contra montanheses nômades. As fogueiras arderam numa única noite, em Junho de 1895, num franco desafio ao Estado”[2], que não tardou a sufocar o que julgou ser uma rebelião. Para ajudar a financiar o transporte dos dukhobors ao exílio no Canadá, Tolstói, renunciando sua prática, negociou os direitos autorais da obra para levantar fundos para o transporte de navio. Ainda hoje, a comunidade remanescente no Canadá mantém a memória de Tolstoi em suas comemorações e eventos.

O enredo de Ressurreição

A história do príncipe Nekhliúdov e sua luta para salvar Katiucha e redimir-se moralmente é contada de forma a privilegiar a descrição e análise crítica da sociedade Russa. A opção do escritor em ter como protagonistas de sua história um aristocrata dono de terras, desiludido com sua classe, e uma mulher do povo, vítima de toda sorte de opressão econômica e de gênero, cria condições para se mostrar as raízes da crise moral e política da aristocracia, a corrupção generalizada do Estado, o compromisso das instituições, particularmente do poder judiciário, com os interesses dos ricos e a falência das prisões.

Nekhliúdov foi um idealista durante a juventude. Teve contato com a literatura de reformadores sociais europeus e identificava a propriedade privada das terras como fonte original das desigualdades. Apaixona-se quando estudante pela jovem e bela Katiucha, afilhada adotada por suas tias, durante uma visita por casa de campo da família. Num lapso de egoísmo e brutalidade, força relação sexual com a camponesa e depois a abandona para seguir alistamento no exército. Quando chega à maturidade, esquece seu amor pueril de juventude e passa a viver conforme as expectativas de sua classe: indiferente à brutal desigualdade social, extraindo o máximo de prazer na vida de ócio, amores vulgares, eventos dentro do meio nobre. A formosa Katiucha engravida, fica incapaz para o trabalho, é abandonada por todos: seu filho com Nekhliúdov morre logo após o parto e a jovem vai decaindo por todos os escalões sociais. Os homens assediam-na com violência nas casas onde ela consegue trabalho como empregada doméstica. Após reagir a mais um ataque masculino, é expulsa de seu último trabalho, não restando outra opção que a prostituição.

Convocado para o trabalho de jurado em uma corte penal, Nekhliúdov reencontra Katiucha no banco dos réus, acusada de matar um cliente da casa de prostituição. O enredo tem aqui o seu ponto de partida: a condenação da prostituta aos trabalhos forçados na Sibéria é reconhecida pelo príncipe como grave injustiça. Injusta pena diante do relapso dos réus e dos juizes que deliberam sobre a vida dos pobres sem qualquer atenção, indiferentes. E injusta pena especialmente pelo fato do assédio de Nekhliúdov durante a juventude ter significado o início do triste fim de Katiucha.

A consciência política de Nekhliúdov

Conforme o príncipe Nekhliúdov mobiliza-se para reverter a sentença de sua antiga namorada, vai se afastando cada vez mais de sua posição social e altera gradualmente sua percepção política. A personagem ocupa um lugar social privilegiado para visualizar o Estado e a classe dirigente Russa: sua condição de nobre faz com que tenha acesso fácil aos magistrados, promotores, chefes de repartições policiais, oficiais ligados às funções administrativas do Estado. Na medida em que entrevista diversos personagens ligados à burocracia oficial vai, gradativamente, percebendo a dimensão meramente ideológica ou meramente formalista dos discursos que sustentam a legitimidade do poder político. Esta dimensão ideológica é bastante explícita em algumas falas de Nekhliúdov: em certa passagem do livro, numa discussão política bastante áspera com um cunhado – membro orgânico da classe aristocrática - conclui que a finalidade dos tribunais é manter a estabilidade econômica dos ricos e que, se os fins da justiça penal fossem de fato promover justiça, deveriam fechar todas as prisões.

Vale frisar: as críticas sociais partem do ponto de vista de um nobre que se solidariza com a opressão econômica da maioria popular e particularmente com os de pior sorte que acabam na prisão. Identificamos um duplo significado do conteúdo de classes nas reflexões de Nekhliúdov. Por vezes as críticas apresentam um sentido essencialmente burguês, particularmente no que se refere à crise moral e ideológica da nobreza frente a um mundo que pressiona por modernização. O príncipe passa a ver os seus iguais com um misto de cansaço e desdém, destacando a inadequação da cultura de parcelas da classe dominante àquela realidade histórica. No sentido de parecer mais ilustrada do que é, a aristocracia conversa em francês e deixa-se influenciar pelo que parece, aos olhos do príncipe, modismos superficiais, como a religião espírita. A classe em seu conjunto vê na luta de Nekhliúdov em reverter a injustiça cometida contra Katiucha como uma anedota a ser contada durante conversa de salão: seus pares mostram-se ocasionalmente e apenas nas aparências indignados com a prisão de inocentes, a fome e miséria de camponeses e mujiques contrastando com a luxúria e o ócio de poucos aristocratas. O “mal-estar” de Nekhuliúdov diante de sua condição social reflete a derrocada moral da nobreza, a emergência de valores burgueses (maior igualdade formal, racionalismo, luta por mudanças institucionais). Em passagens destinadas à retratar jantares ou encontros sociais reunindo a elite econômica, o livro de Tolstói lembra literatura burguesa de outros escritores do final do séc. XIX como Eça de Queiroz, Balzac e, aqui no Brasil, Machado de Assis.

Entretanto, a gravidade do fosse social e a vivência do príncipe (e do próprio Tolstói) junto aos elementos mais marginalizados daquele sociedade torna a percepção política do protagonista associável ao socialismo. Esta seria uma segunda dimensão das críticas sociais de Ressurreição.

Socialismo Utópico

Há uma passagem bastante interessante do livro que remete às preocupações do socialismo utópico do séc. XIX. O príncipe decide abrir mão de suas terras para os camponeses – constata que as famílias passam fome e trabalham até a exaustão para atender ao regime de trabalho imposto por um administrador que gere seu domínio como carrasco. Opta por mudar aquela realidade radicalmente. Numa assembléia organizada para discutir a forma como as terras seriam passadas às mãos dos trabalhadores, uma série de questionamentos vêm à cabeça de Nekhliúdov: como garantir que a co-propriedade entre as diversas famílias não implique em diferente usufruto do espaço (desde que algumas parcelas da terra são mais rentáveis do que outras) ou na compra e venda dos lotes de forma a criar nova situação de concentração fundiária; como fazer com que todos trabalhem e recebam de forma proporcional ao seu esforço, sem a exploração do homem pelo homem; e, o que é bastante explorado no enredo, como vencer a desconfiança e o medo dos camponeses, habituados desde sempre à forma servil de produção.

O aspecto utópico deste socialismo é caracterizado por Marx quando coloca que as mudanças históricas das relações de produção se dão a partir da ação revolucionária de uma classe em luta. O reformismo associado à política de Nekhliúdov encontra seus limites na medida em que desconsidera a ação independente protagonizada pelos oprimidos como condição para a viabilização de uma forma alternativa de produção. O príncipe até vê com certa simpatia alguns dos revolucionários do Narodniks – “populistas” russos. Reconhece em alguns deles sinceridade e legitimidade em sua luta contra a exclusão econômica e a opressão política. Assim como alguns revolucionários de seu tempo, também identifica nas instituições políticas e judiciárias e na propriedade privada da terra fonte da desiqualdade e exploração entre os homens. Porém, o prícipe situa toda iniquidade que tem contato a certo plano metafísico e individual. O homem, genericamente considerado, deixara de perceber ser obrigado a tratar seus semelhantes com amor. O prícipe entende que a falta de amor decorre da burocratização ou, nas palavras dele, do distanciamento dos homens entre si, do seu tratamento como “coisas”.


Sínteses

Vamos transcrever um trecho longo, porém bastante expressivo: ele retrata uma espécie de “síntese política” da consciência de Nekhluilov ao final de sua jornada. Serve também como fechamento desta resenha.

Do ponto de vista formal, destacamos aqui beleza com que Tolstoi consegue traduzir o fluxo de pensamento do personagem de forma a retratar de forma sutil como o prícipe reage aos seus pensamentos. Do ponto de vista político, a síntese do príncipe, com suas contradições, sinaliza ainda hoje alguma inquietação anticapitalista. Daí a pertinência de Ressurreição e Tolstói, cem anos depois.


“Se fosse formulado o problema psicológico: como fazer para que pessoas da nossa época, pessoas cristãs, humanas, simples e boas pratiquem maldades mais terríveis sem sentirem-se culpadas, só haveria uma solução possível – seria preciso que se fizesse exatamente como se faz agora, seria preciso que tais pessoas fossem governadores, diretores, oficiais, policiais, ou seja, que em primeiro lugar estivessem convencidas de que existe um trabalho chamado serviço do Estado, no qual é possível tratar as pessoas como coisas, sem relações fraternas e humanas com elas, e em segundo lugar que essas mesmas pessoas do serviço do Estado estivessem unidas de tal forma que a responsabilidade pelo resultado de suas ações para as outras pessoas não recaísse em ninguém isoladamente. Fora de tais condições, não existe possibilidade em nossa época de cumprir tarefas tão horríveis como as que eu vi hoje [Nekhliúdov refere-se ao tratamento dado por agentes penitenciários aos condenados transportados em condições deploráveis aos trabalhos forçados na Sibéria]. A questão toda reside no fato de as pessoas pensarem que existem situações em que se pode tratar um ser humano sem amor, mas tais situações não existem. Pode-se tratar as coisas sem amor: pode-se cortar uma árvore, fazer tijolos, forjar o ferro sem amor; mas é impossível tratar as pessoas sem amor assim como é impossível lidar com as abelhas sem cuidado. Tal é a peculiaridade das abelhas. Se começarmos a tratá-las sem cuidado, causaremos dano a elas e a nós mesmos. O mesmo se passa com as pessoas. (...) Sim, sim, é assim” pensou Nekhliúdov. “Isso está bem, está bem”! repetiu consigo mesmo, experimentando um prazer duplo – o frescor depois do calor torturante e a consciência de ter alcançado um alto grau de clareza numa questão que já o preocupava desde muito tempo”.







[1] Prefácio Rubens Figueiredo.
[2] Ibdem.

sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

O Anarquismo: da doutrina à ação - Daniel Guérin

Resenha Livro #11: “O Anarquismo: da doutrina à ação” – Daniel Guérin - Ed. Germinal




Algumas informações iniciais

Mesmo na internet há poucas informações sobre vida e trajetória política de Daniel Guérin (1904-1988). Foi ativista político e autor de livros sobre política e história; publicou obras sobre o homossexualismo e a liberação sexual, Rosa Luxemburg e o “espontaneísmo revolucionário” e lutas na América do Norte. Tem contribuição no debate historiográfico da Revolução Francesa, escrevendo na revista Annales sobre o tema.


Foram, ainda, seus diversos livros sobre anarquismo que o fizeram famoso pelo mundo. Segundo prefácio de Roberto das Neves, os textos sobre anarquismo do escritor francês eram amplamente conhecidos pela juventude européia durante as lutas do maio de 1968; Daniel Cohn-Bendit, referência daquele movimento, dizia-se discípulo e amigo pessoal de Guérin. “Posso afirmar que raramente encontrei um jovem que houvesse lido Marcuse, mas a cada passo via nas mãos dos jovens L’Anarchisme de Daniel Guérin, calorosamente discutido nos centros escolares e sindicais”.

Politicamente, transitou entre o anarco-sindicalismo e o socialismo independente. No âmbito do socialismo libertário, Guérin militou em uma organização pouco conhecida, o PSOP (Parti Socialiste Ouvrier et Paysan): este pequeno agrupamento reunia dissidentes do Partido Comunista Francês, trotskistas, luxemburguistas e socialistas libertários, correspondendo à mesma seção internacional do POUM [Partido Obrero de Unificación Marxista]espanhol. Para Pietro Ferrua (diretor-fundador do Centro Internacional de Pesquisas Sobre Anarquismo), o pensamento de Guérin está no meio termo entre o anarquismo e o marxismo. O anarquismo mantém sua atualidade a partir de sua crítica radical à burocracia e ao autoritarismo. Já o marxismo ou o socialismo genérico são reivindicados na medida em que a luta pela “autogestão” significa, aqui, o aprofundamento, a radicalização das lutas revolucionárias. Guérin, ainda segundo Ferrua, mantém-se convicto da conciliação entre anarquismo e marxismo, o que lhe valerá certa posição de isolamento ou mesmo ambigüidade política. (Tece duras críticas ao leninismo, mas dele tira alguma legitimidade, ao associar certas passagens de O Estado e a Revolução às concepções libertárias. Reconhece Trotsky como um “revolucionário honesto”, mas denuncia a repressão sobre a rebelião dos marinheiros de Kronstadt – comandado pelo dirigente bolchevique – como parte do esmagamento da revolução autêntica).

Não sabemos quais obras de Guérin foram publicadas no Brasil. Chegou a nossas mãos, ao acaso (encontrada em um sebo [alfarrabista] em São Paulo), uma edição bastante gasta do Anarquismo, lançada pela editora Germinal de 1968 [*]. A Germinal foi fundada em 1947 no Rio de Janeiro pelo anarquista português Roberto das Neves. Aparentemente, era uma editora independente e provavelmente com enormes dificuldades na promoção e difusão dos livros – identificamos problemas de tradução bastante evidentes, erros de ortografia e ausência de notas de rodapé. De maneira que novas edições de Guérin para o público brasileiro (contando com uma nova tradução e maior trabalho de pesquisa sobre o autor) são necessárias. Reconhecemos, por suposto, a importância e o pioneirismo do trabalho da Germinal – não nos consta existência de outra edição do livro em português.

As idéias força do anarquismo

O propósito de Guérin no ensaio é lançar uma visão panorâmica sobre os principais aspectos teóricos e práticos do anarquismo. Há a intenção de retirar do isolamento intelectual autores e teses ligadas ao “socialismo libertário” (entendido como sinônimo do anarquismo) e estabelecer certo “ajuste de contas”, identificando aspectos em que aquelas teses provaram-se aparentemente corretas – particularmente, a crítica radical da política frente à degeneração do socialismo em capitalismo de Estado no leste da Europa. A reabilitação do anarquismo, oportuna num momento da história onde se reorganizava a esquerda frente às claras evidências de repressão política na URSS, também significa a desconstrução de certos equívocos disseminados dentro e fora do campo da esquerda sobre o que significa anarquismo.

Logo no começo, o autor desconstrói certo senso comum que identifica anarquismo à “bagunça” ou “desordem”. Muito pelo contrário: em Proudhon, Bakunin e demais ideólogos daquele movimento, há propostas as mais diversas de organização política centrada em torno de alguns princípios comuns – que os unem genericamente ao campo do socialismo libertário. É em torno dos aspectos teóricos de organização que as duas primeiras partes do livro se referem: o problema da autogestão, as bases de troca e as formas econômicas dentro do modelo autogestionário, o significado da concorrência e sua afirmação ou negação no anarquismo, o sentido do federalismo no âmbito do anarquismo (uma discussão bastante original e interessante, que vai pensar formas de articulação geral da política e de forma não coercitivas, que relacione os poderes locais aos âmbitos regionais e “internacionais”, ou, melhor dizendo, “mundiais”). Discutindo as particularidades do movimento anarquista no que se refere aos seus princípios de funcionamento e nas suas experiências práticas em Espanha, Iugoslávia ou Argélia, vai sendo desconstruído aquele senso que define como utópicas as formas de organização independentes do Estado.

Especificidades do anarquismo

Guérin identifica anarquismo como uma vertente particular do socialismo: todo anarquismo é socialista, mas nem todo socialismo é anarquista. Ao longo do texto, opõe anarquismo ao “socialismo autoritário”, referente, basicamente, aos momentos em que a burocratização ou a intervenção mais ou menos motivada do Estado socialista implode práticas políticas de autogestão mais ou menos espontâneas. A especificação do “socialismo libertário” refere-se a uma série de características comuns àquela tradição.

“O Anarquista é, em princípio e antes de mais, um revoltado”: a revolta visceral a tudo que remete de alguma forma aos poderes oficiais ou mesmo ao que é regular, lembra Guérin, faz com que o anarquista sinta simpatia pelo o que é irregular. “É muito injustamente, acreditava Bakunin, que Marx e Engels falavam com profundo desprezo do Lumpenproletariat (“proletariado esfarrapado” [ralé]), pois é nele e só nele, e não na camada burguesa da massa operária, que residem o espírito e a força da futura revolução social”. Há, finalmente, maior atenção ao indivíduo, ainda que neste campo haja muitas diferenças internas dentre os autores – o ultra-individualismo de Max Stinner (que remete a uma postura anti-social, anti-socialista) opõe-se a outras tradições coletivistas, que, de forma geral, identificam tendência de harmonia social quando há ausência de aparatos de controle e domínio político. Guérin identifica como fontes de energia do anarquismo tanto o indivíduo quanto as massas.


O problema do Estado e do Governo

As diferentes percepções sobre o Estado são provavelmente o ponto em que mais imediatamente se identificam diferença entre anarquistas e outras tradições socialistas. O “definhamento” ou “extinção” do Estado processado no âmbito da ditadura dos produtores é prontamente denunciado pelos anarquistas como sinal de degeneração, controle e burocratização da insurreição popular. O “horror ao Estado” é emblemático e surge nos textos de forma contundente e radical: vamos transcrever algumas passagens longas, mas muito interessantes, sobre esta percepção. Identificamos dois pontos importantes nestas descrições: a idéia do Estado, sob qualquer forma, como fonte de opressão; o fato de esta opressão do Estado servir, posteriormente, como explicação para os desvios do “socialismo autoritário”.

“(Os burgueses) consideram o povo uma espécie de aglomerados de selvagens, comendo o nariz uns aos outros se o governo não funcionasse mais.”


“O governo do homem pelo homem é a servidão. Quem puser a mão sobre mim, para me governar, é um usurpador e um tirano. Declaro-o meu inimigo. Ser governado é ser guardado à vista, inspecionado, espionado, dirigido, legislado, regulamentado, parqueado, endoutrinado, predicado, controlado, calculado, apreciado, censurado, comandado por seres que não têm nem o título, nem a ciência, nem a virtude […]. Ser governado é ser, a cada operação, a cada transação, a cada movimento, notado, registrado, recenseado, tarifado, selado, medido, cotado, avaliado, patenteado, licenciado, autorizado, rotulado, admoestado, impedido, reformado, corrigido. É, sob pretexto de utilidade pública e em nome do interesse geral, ser submetido à contribuição, utilizado, resgatado, explorado, monopolizado, extorquido, mistificado, roubado […]. Oh!, personalidade humana! Como foi possível deixares-te afundar, durante sessenta séculos, nesta abjeção?”

“[O Estado] é uma abstração devoradora da vida popular, um imenso cemitério aonde, sobre e sob o pretexto desta abstração, vêm generosamente, com beatitude, sacrificar-se, envilecer-se todas as aspirações reais, todas as forças vivas de um país”.

“Longe de ser criador de energia, o governo desperdiça, paralisa e destrói, por seus métodos de ação, forças enormes”.


Limites do horror ao Estado e Governo

Em que pese a intenção propagandista das frases, reconhecemos que elas sinalizam os problema da transição política socialista, e em parte antecipam, como procura ressaltar Guérin, a burocratização e conformação de revoluções populares e/ou socialistas aos marcos do capitalismo de Estado. O problema, no nosso entendimento, é que a premissa para aquelas críticas à política refere-se não raras vezes a certo entendimento de que toda direção política acaba tendo uma natureza contra-revolucionária por ser uma direção: a posição de direção – seja em qual circunstância – cria condições para a sua própria degeneração. Tony Cliff afirmava que não é o poder político aquilo que irá “corromper” ou “degenerar” as lutas, mas o seu contrário: a falta de poder político, a impotência das massas e de mecanismos de controle político pela base e radicalmente democráticos é que criam condições para a degeneração.


O caráter ideológico da democracia burguesa, esta sim, no nosso entendimento, estaria contemplada pela tese do “horror ao Estado” – a forma burguesa de Estado é logo abolida pelos socialistas, combinando-se com a generalização de formas de poder popular fincadas na generalização da socialização produtiva. Na crítica à democracia burguesa, Guérin aponta idéia similar: “A teoria da soberania do povo encerra a sua própria negação. Se o povo fosse soberano, não haveria mais governo nem governadores. O soberano seria reduzido a zero. O Estado não teria mais razão de existir, identificar-se-ia com a sociedade, desapareceria na organização industrial”. Ficamos tentados a localizar a tese do “horror ao Estado” no “horror ao Estado burguês”, destacando o caráter anticapitalista e revolucionário (sem ilusões no reformismo estatal) das lutas, hoje.


Encerrando

Não é nossa intenção aqui chegar a alguma conclusão sobre o grau de pertinência das teses anarquistas ou do que entendemos ser a transição do capitalismo ao socialismo e comunismo. Nossa intenção aqui é chamar atenção para um livro pouco conhecido e provocar eventuais interessados em pesquisar, ler, discutir e socializar idéias concorrentes ao tema. Finalizamos este – já longo – artigo com uma passagem, à guiza de conclusão.


“Graças a estas experiências, as idéias libertárias lograram ressurgir recentemente do cone de sombra a que os seus detratores as havia relegado. O homem contemporâneo, que serviu de cobaia ao comunismo estatal em grande parte do globo, começa, meio aturdido ainda, a inclinar-se, com viva curiosidade e freqüentemente em seu benefício, para as novas formas de sociedade regida por autogestão, propostas, no século passado, pelos pioneiros da anarquia. É certo que ele não as aceita em bloco; todavia, extrai delas ensinamentos e nelas se inspira para tentar conduzir a bom termo a tarefa que se impõe nesta segunda metade do século: romper, no plano econômico, como no político, os grilhões que, de modo indefinido, se designam por “estalinismo”, sem contudo renunciar aos princípios fundamentais do socialismo – antes, ao contrário, descobrindo ou reencontrando as fórmulas de um socialismo autêntico, isto é, com liberdade”.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

O Dilema de Hamlet - Mauro Iasi

Resenha Livro # 10 - “O dilema de Hamlet: O ser e não ser da consciência” - Mauro Iasi - Ed. Viramundo





“Ser ou não ser, eis a questão: será mais nobre/ Em nosso espírito sofrer pedras e setas/ Com que a Fortuna, enfurecida nos alveja/ Ou insurgir-nos contra um mar de provações;/ E em luta pôr-lhes fim?”

A passagem corresponde a monólogo da peça Hamlet de Willlian Shakespeare: o protagonista, hesitante, pergunta a si mesmo se deve ou não agir (ou reagir) ao “mar de provações”, deve cumprir a promessa feita ao fantasma do pai que acusa Cláudio de tê-lo assassinado, vingar-se do vivo em nome do morto, ou deve suicidar-se, sucumbir definitivamente às “pedras e setas”. No que interessa aos objetivos de Iasi, a passagem de Shakespeare diz respeito aos mesmos dilemas da consciência de um militante político. O problema da consciência de classe, de seus limites e potencialidades frente aos aparatos de consolidação de hegemonias e, simultaneamente, às crises e lutas que viabilizam a conformação de contra-hegemonias e mudanças radicais das percepções sobre o mundo, todas estas discussões que de alguma forma partem do dilema inicial de Hamlet são objeto de atenção do estudo.

Desde que o problema da consciência política e sua manifestação no plano individual, societário e nas classes sociais implica nas mais diversas possibilidades de discussão, “O Dilema de Hamlet” acabou saindo como um panorama geral e crítico da forma como a sociologia moderna trabalhou o problema da consciência . Esta visão panorâmica tem como fio condutor o eixo anticapitalista presente na orientação metodológica (marxista) e no próprio entendimento do autor quanto a algumas tarefas do campo político oposto à sociedade do capital. Em diversas passagens, Mauro Iasi sinaliza que mudanças radicais não são “inevitáveis” (tal qual prescreveria certa orientação distorcida e linear do marxismo), mas são cada vez mais necessárias.

A necessidade e a possibilidade da mudança decorrem da constatação (que perpassa todo o “dilema”) de que a História é também uma manifestação humana, de que o seu resultado final não é o resultado de forças inabaláveis, mas do resultado de conflitos que envolvem tanto elementos objetivos (forças produtivas e o grau de contradição entre o seu desenvolvimento e os meios de produção) quanto elementos subjetivos (que envolvem, entre outros, a organização política e o problema das transformações da consciência de classe).

Emancipação Humana

Particularmente, este último aspecto subjetivo também é colocado por Mauro Iasi como algo que torna necessária a luta pela superação do capitalismo. Emancipação humana significa a superação das mediações da religião, da política e da mercadoria associadas ao mundo do capital (ou mesmo antes dele). “Pela mediação religiosa os seres humanos atribuem a algo fora deles a capacidade de construir o seu destino, de fazer sua própria história; pela mediação política do Estado, os seres humanos atribuem à forma social fora deles sua identidade enquanto seres sociais; e, finalmente, na mediação da mercadoria, os seres humanos vêem na abstração do valor, na igualdade dos produtos do trabalho, uma relação mediada pelas coisas”.

Mesmo o problema da mediação religiosa, admite o autor, encontrará maiores dificuldades de superação numa outra organização política e econômica dotada de sentido humano: o próprio problema da finitude da vida recoloca a busca de sentido para além da existência concreta.

Seja como for, num mundo em que, cada vez mais, tratam-se as pessoas como coisas e as coisas como pessoas – fenômeno que é fruto da alienação social do trabalho e da natureza geral do capital enquanto relação social – o “dilema de Hamlet” chama atenção especialmente para a necessidade não só “objetiva” da construção de um novo modo de produção.

Da consciência em si à consciência para si – Desafios

Ao se pensar sobre o “agir ou não agir” de Hamlet, destacamos o problema das transformações da consciência, de seu fluxo ao longo da história e de suas manifestações em períodos revolucionários. O problema da consciência de classe tornou-se objeto de controvérsias, mesmo em relação à "atualidade" da luta revolucionária dos trabalhadores. Esta é cada vez mais oposta ora a um amoldamento da noção de classes a grupos mais fluidos e heterogêneos (“povo”, “cidadãos”, “eleitores”, etc.) circunscrevendo os conflitos de classe a um quadro jurídico-institucional, ora a pulverização das lutas em torno de bandeiras cada vez mais específicas e que são prontamente amoldadas pelo Estado a partir da criação de “comissões especiais”, “secretarias específicas”. Ou, mais emblemático, a ocorrência do “empreendedorismo social” através de ONGs dentro da lógica neoliberal que imprime novas tarefas ao Estado.

O desafio de resgatar um sentido unitário das lutas, de articulá-las em torno de um movimento geral anticapitalista passa por uma “lacuna” ainda não satisfatoriamente analisada pelos marxistas. Trata-se de se responder o como promover e generalizar a transição dentre as consciências “em si” para a consciência “para si”, das lutas específicas em torno de objetivos imediatos para uma transformação geral em que uma classe social nega a realidade e vocacione-se a dirigir transformação em nome e para todas as demais classes.

Este problema, mais uma vez, torna-se ainda mais complicado ao se constatar que as próprias lutas “moldam” as classes, de maneira que trabalhadores não são "naturalmente" revolucionários, são antes parte de uma dinâmica complexa de relações de conflito e consentimento: as classes amoldam-se à ordem, eventualmente atuam no sentido de defender o próprio sistema que originalmente as oprimem. (O fato das classes “amoldarem-se” às lutas é parte de uma crítica feita pelos “marxistas analíticos”, particularmente Pzerworski. Mauro Iasi resgata esta crítica sem contudo cair em uma conclusão “reformista” que poderíamos incorrer a partir de uma interpretação mais "flexível" do conceito de classes).

Do ponto de vista histórico, as fases revolucionárias da burguesia e do proletariado diferenciam-se de modo já previsto por Marx. Entre a transição do feudalismo ao capitalismo, a burguesia desenvolve-se exteriormente às relações sociais dominantes (servos e senhores), colocando-a numa posição privilegiada para, num dado momento, ser capaz de negar toda a ordem e produzir um movimento que lute por alternativa societária que atenda aos seus interesses. Por se desenvolver exteriormente às relações de produção então dominantes, a burguesia possui maior autonomia relacional que o proletariado. Conclui Mauro Iasi: “O proletariado, ao contrário, está incluído na relação principal do modo de produção capitalista (capital-trabalho), sendo parte constitutiva do capital enquanto capital variável. Não é de se estranhar, portanto, que a consciência proletária veja na aparência das coisas a crise do capital como sua própria crise, e, por vezes, o desaparecimento da sociedade capitalista como se fosse o desaparecimento da própria sociedade”.

Se as dificuldades aqui aumentam, cresce também a necessidade de se resgatar toda intervenção política socialista ancorada na agitação e propaganda, na educação teórica e mesmo na promoção de manifestações artísticas, místicas e demais técnicas que incidam sobre a consciência individual. Este trabalho político voltado ao agir histórico tem como objetivo dispertar a atenção de novas pessoas para a militância e resgatar um sentido de unidade ou um sentimento de solidariedade de classe. Longe de ser pessimista, Mauro Iasi reafirma a atualidade do pensamento de Marx sobre classes sociais e o seu protagonismo na história.

Comentários Finais

Segundo o prefácio, o ensaio corresponde à dissertação de mestrado do educador Mauro Iasi na faculdade de sociologia da USP. O texto tem um tom mais acadêmico, existe atenção em trabalhar os autores da sociologia “clássica” (Durkheim, Webber e Marx) de maneira que o leitor já deva ter algum conhecimento prévio destes pensadores. Certamente, o “Dilema” não é uma leitura fácil: tivemos dificuldade de apreender alguns assuntos, particularmente os relacionados à psicologia e à linguagem no âmbito da sociologia. Talvez, o texto “Ensaio sobre consciência e emancipação” da Ed. Expressão Popular possa ser um bom ponto de partida para, depois, aprofundar o tema da consciência militante no “Dilema”.

Outra ponderação pontual: em certa passagem, o autor revela que seu estudo partiu de entrevistas feitas com militantes, pedindo que contassem sobre a forma como começaram a atuar politicamente. As memórias estavam associadas às “memórias de vida” referentes a grupos determinados (grupos de jovens, igreja, teatro, etc.). Certamente, o estudo poderia ser mais ilustrado com estes depoimentos, poderia haver maior espaço para os relatos de maneira a relacioná-los com o problema (em si já bastante teórico) da consciência.

Ainda sim, o ensaio de Mauro Iasi é um ferramenta bastante original e instigante para todo militante marxista situado na luta, desde que todas as lutas relacionam-se em alguma medida à manifestação da “consciência militante”. Vamos transcrever uma passagem do penúltimo capítulo do estudo: o trecho é longo mas sintetiza bem implicações do “ser ou não ser” de Hamlet e a linha política anticapitalista de Mauro Iasi.

“Se tomássemos as análises de Juarez Brandão Lopes e Leôncio Martins Rodrigues, poderíamos concluir pela impossibilidade da emergência de uma consciência de classe; se tomássemos o otimismo de Sader sobre a emergência de novos personagens ou nos baseássemos no Ascenso do movimento da década de 1980 [no Brasil], poderíamos imaginar que a revolução novamente se tornaria possível. Hoje estaríamos mais propensos a procurar entender a defensiva e o novo amoldamento às estruturas de consentimento. Perdidos em cada momento do processo, deixaríamos de ver um nítido movimento em qe cada ponto do processo de acumulação é o resultado de uma tensão entre luta e consentimento, em que os indivíduos, contra qualquer previsibilidade de engenhosos e eficientes meios de coerção e hegemonia, se antagonizam contra a ordem em algum ponto do processo, se mobilizam e agem, militam por seus sonhos. A cooptação e o amoldamento à ordem são a prova de que a cooperação é necessária. O consentimento, assim como a hegemonia, não representa o fim da luta, mas é o resultado direto dela.
(...)
No interior desse processo [de acumulação capitalista] que em si mesmo não guarda sentido, senão o da tentativa de perpetuar a acumulação, os trabalhadores, por meio de suas histórias de vida e de sua ação como seres sociais, podem se antagonizar com a ordem estabelecida e sua representação ao nível das ideias; podem, nem automática, nem inevitavelmente, constituir uma alternativa societária além da ordem capitalista. Isso, ainda que não seja automático, nem inevitável, é necessário. O único sentido que guarda a história é aquele que os seres humanos atribuem a ela”.

sábado, 25 de dezembro de 2010

A Revolução Permanente - Leon Trotsky

Resenha Livro #9 - "A Revolução Permanente" - Leon Trotsky. Ed. Expressão Popular




Autor e suas circunstâncias históricas

Leon Trotsky nasceu em 1879 e morreu assassinado no México em 1940. Foi ativista e teórico político, participou do levante operário em São Petersburgo em 1905 e das revoluções de Fevereiro e Outubro de 1917. Chefiou o exército vermelho após a tomada do poder político pelos bolcheviques e esteve à frente da tropa que reprimiu motim anarquista em Kronstadt em 1921. Após a morte de Lênin em 1924, vê-se cada vez mais isolado politicamente: há a polarização (desigual, por suposto) entre a orientação stalinista centrada na tese do socialismo nacional e a teoria da revolução permanente, formulada por Trotsky e sobre a qual se agrupa a Oposição de Esquerda, minoritária.

Em 1925 é proibido de falar publicamente e em 1929 é forçado a sair da URSS. A edição “A Revolução Permanente” foi escrita em 1928, momento, portanto, em que já iniciara campanha oficial de aniquilação do trotskysmo e oposição política entre grupo ligado à burocracia oficial (velhos bolcheviques, ou “epígonas”) e Trotsky. Esta oposição não diz respeito a divergências pontuais de táticas políticas específicas ou menos ainda diferenças e disputas pessoas centradas exclusivamente nas figuras de Trotsky e Stalin. A antinomia diz respeito a um corte definitivo dentro da política do movimento comunista mundial que vai opondo percepções distintas sobre os papéis das classes sociais no decorrer das revoluções e a sua conformação, particularmente nos países de capitalismo atrasado. Esta diferença – colocada por Leon Trotsky pelas teses da revolução permanente e a tese do socialismo nacional – repercutia, naqueles anos, a lutas políticas imediatas, particularmente à rebelião chinesa (1925-1927) e à capitulação do movimento operário comunista daquele país ao Kuomitang.

Identificamos recorrentes disputas no âmbito da esquerda que vai opor campos distintos, derivados mais ou menos daquela polarização. Ela (a polarização) repercute mesmo debates da própria esquerda brasileira: o problema do etapismo dentre as formulações do PCB, o papel das lutas democráticas e os seus limites, a composição de classes em torno da “revolução burguesa” brasileira e, mais recentemente, a polêmica em torno do programa democrático popular sinalizam de alguma maneira estratégias mais ou menos associadas àquela polarização. As divergências servem, aqui, apenas como ilustração da atualidade da “Revolução Permanente” e de um balanço ainda inconcluso da esquerda frente ao problema da revolução democrática e socialista, assim como das suas respectivas composições de classe. Qual é o papel do campesinato e como ele se relaciona com o poder operário na luta revolucionária? Em que medida sobrevivem experiências socialistas isoladas, sem contar com a generalização mundial do modo de produção pós-capitalista? Como se relacionam as tarefas democráticas inconclusas e a estratégia socialista? Qual classe ou composição de classes dirigirão estas lutas mínimas e máximas? Pode-se falar em socialismo em um só país? As diferentes respostas para estas perguntas correspondem às distintas filiações políticas, repercutindo a polêmica até os nossos dias.

A história das ideias trotskystas

Ainda sobre Trotsky, vale apontar sua grande incidência (e variabilidade de significação) nas organizações de esquerda no Brasil e no Mundo. Quando escreveu “A Revolução Permanente”, a Oposição de Esquerda ainda atuava no âmbito da III Internacional e denunciava sua política conciliadora, que negava a centralidade de movimentos operários em suas lutas, fazendo-os operar a serviço da dominação burguesa, inviabilizando a tática revolucionária internacionalista e viabilizando a orientação etapista de Stálin – esta situação é narrada no texto a partir de derrotas distintas do movimento comunista na Europa (Alemanha e Polônia) e Oriente (China e Índia). Cerca de 10 anos depois, a Oposição de Esquerda sai da III Internacional (1938) e no mesmo ano é fundada a IV Internacional. Há aqui um marco importante: é sobre esta organização internacional que se apóiam novos partidos ou forças políticas em todo mundo, cada qual partindo de alguns pontos de partida comuns: o caráter internacionalista das lutas, a centralidade da classe operária na revolução e as críticas à burocracia estalinista. O ponto de partida não leva aos mesmos pontos de chegada: a tese que caracteriza a URSS como Estado Operário degenerado ou burocratizado é oposta à tese de Capitalismo de Estado, há diferentes formulações em torno do problema das guerras mundiais, do significado das lutas anti-imperialistas e dos movimentos de libertação nacional na América Latina e Africa. Surge, dentro do trotskysmo, tradições particulares a partir de autores e ativistas políticos do séc. XX: Michel Pablo, Ernest Mandel e Nahuel Moreno.

No Brasil, seguem algumas das organizações políticas identificadas com o trotskysmo: PSTU que se filia à organização internacional LIT - IV Internacional; diversas correntes do PSOL, dentre as quais o ENLACE, o antigo bloco Socialismo Revolucionário (atual LSR) ligado ao grupo CIO filiado também à IV Internacional, o grupo REVOLUTAS que é seção brasileira da IST, o MES, a CST (UIT-QI); LER-QI que integra o grupo internacional Fração Trotskysta igualmente filiado à IV - Internacional. Há ainda organizações com intervenção mais restrita a algumas universidades e sindicatos, como o MNN (Movimento Negação da Negação) e a LBI (Liga Bolchevique Internacionalista). Sobre a história das ideias trotskystas, opinamos pela leitura do artigo “O Trotskysmo depois de Trotsky” de Tony Cliff.

A Teoria da revolução permanente e a sua oposição

A Teoria da Revolução Permanente decorre de debates e artigos publicados por Trotsky já em 1905, ano em que uma insurreição popular e espontânea varreu a Rússia. Lênin considera 1905 como o ano do ensaio geral da revolução proletária. Em 1917, as diferentes fases da revolução – fevereiro, com a derrocada definitiva da monarquia e outubro, com a tomada do poder pelos bolcheviques – viriam, segundo Trotsky, a confirmar na prática as orientações gerais da teoria da revolução permanente. Esta tem como eixo central a relação de interdependência entre as etapas democráticas e socialistas da luta revolucionária e a necessidade premente de serem as lutas revolucionárias conduzidas pela e para a classe trabalhadora. Neste aspecto, há maior relevo para o problema da revolução em países de capitalismo atrasado. O sentido da revolução na Rússia não poderia ser uma transformação uniforme e mecânica do país, da monarquia e do feudalismo à democracia liberal e capitalismo e finalmente ao socialismo. O sentido da revolução permanente é o que Trostsky chama “transcrescimento” das bandeiras democráticas às bandeiras socialistas dentro de um mesmo movimento dirigido pelo proletariado.

Aqui há uma crítica frontal ao que se entende como etapismo, o engessamento das lutas a certo enquadramento da história que determina rigidamente a natureza política de cada momento histórico e não raro serve como fonte de deslegitimação de lutas autônomas. Segundo Trotsky, a supressão tanto dos ranços feudais quanto dos problemas democráticos pendentes encontram-se entrelaçados à revolução socialista, “por meio de uma série de conflitos sociais crescentes, da insurreição de novas camadas populares, de ataques incessantes do proletariado aos privilégios políticos das classes dominantes”. Não se trata, como acusa a ortodoxia, de pular “etapas” do desenvolvimento histórico, mas reconhecer por um lado a variabilidade dos fenômenos históricos e sua repercussão dialética que não se confundem com um “evolucionismo vulgar” do etapismo; significa, por outro lado, a necessidade da revolução democrática não cair dentro de uma política geral burguesa, em que trabalhadores e camponeses travam as lutas no sentido de confirmar o poder político de distintas frações da burguesia, “sujar as mãos em seu lugar” – a revolução permanente deve transitar, assim, desde fases pré-modernas até colocar na ordem do dia a construção do socialismo.

Duas implicações decorrem do caráter permanente da revolução. Em primeiro lugar, a própria natureza permanente da revolução implica na indeterminação de sua duração e na amplitude das relações sociais em mudança. “A sociedade não faz senão mudar de pele, sem cessar. Casa fase de reconstrução decorre diretamente da precedente. Os acontecimentos que se desenrolam guardam, necessariamente, um caráter político, dado que assumem a forma de choques entre os diferentes grupos de sociedade em transformação(...). As profundas transformações na economia , na técnica, na ciência, na família, nos hábitos e nos costumes, completando-se, formam combinações e relações recíprocas de tal modo complexas que a sociedade não pode chegar a um estado de equilíbro. Nisso se revela o caráter permanente da própria revolução socialista”.

A segunda (e não menos importante) implicação: a generalização necessária da revolução em nível mundial, como garantia de sua suplantação definitiva do capitalismo. Em Trotsky, a revolução socialista começa no âmbito nacional mas não pode nele permanecer: no caso de existir uma ditadura proletária isolada, uma série de contradições internas e externas fará com que, num prazo não previsível, o estado proletário sucumba. Estas contradições resumidamente decorrem do elo mundial em que o capitalismo já se configura: seu desenvolvimento desigual e combinado certamente determinará características específicas nas lutas travadas na Índia ou Inglaterra, na China ou na Alemanha: ainda assim, a vitória do socialismo depende “do desenvolvimento mundial das forças produtivas e do ímpeto mundial da luta de classes”.

Implicações gerais: o legado de Lênin e o problema da China

A classe de trabalhadores deve ter como palavra de ordem a defesa da ditadura democrática do proletariado apoiada pelos camponeses. Lênin, em polêmica com Trotsky, falava em “ditadura democrática do proletariado e dos camponeses” admitindo maior ou menor preponderância do campesinato dentro da direção das lutas. Tratava-se, segundo Trotsky, de uma “fórmula algébrica”, de uma tese flexível que deveria ir sendo melhor trabalhada conforme a evolução dos eventos históricos. E de fato o foi: a partir da experiência histórica, verificou-se que os camponeses na Rússia não podiam organizar-se como classe revolucionária, como grupo social com bandeiras articuladas em torno da transformação de toda a sociedade. E com o tempo, assegura Trotsky, Lênin passou a defender posição semelhante à sua ao constatar a situação política concreta.

Os camponeses organizavam-se no partido dos Socialistas Revolucionários e possuíam uma política vacilante, muitas vezes contra-revolucionária e em defesa da burguesia: os comunistas devem incidir neste setor no sentido de arrastá-lo politicamente. Não se deve, ainda, perder de vista a centralidade operária da luta revolucionária. Os camponeses não podem ser uma classe revolucionária, por eles próprios. Dado momento revolucionário, eles vão ser arrastados ou para o lado do proletariado ou para o lado burguês.

Independentemente da atualidade desta tese –especialmente num quadro de proletarização e extensão das relações capitalistas de trabalho no campo com o agronegócio - chamamos atenção para o que há por trás da polêmica. O livro, situado dentro de um contexto de disputa política com o stalinismo, remete à tentativa de encontrar maior respaldo das teses de Lênin à Teoria da Revolução Permanente. Diante de um contexto de manipulações dos textos e disseminação de informações distorcidas de forma a isolar o trotskismo politicamente, boa parte do trabalho de Trotsky diz respeito a um resgate das ideias de Lênin e à denúncia de desvios teóricos promovidas pelo stalinismo. Além de situações políticas concretas, o que estava em jogo naquela disputa era e ainda o é o real legado e significado do leninismo e do marxismo. Como já colocamos, o aspecto prático de destaque no texto é o problema da política da III Internacional no Oriente: discutir e resgatar o sentido da revolução permanente dizia respeito a identificar que a ausência de uma direção operária na revolução cria condições para a burguesia utilizar-se das classes subalternas para fazer a sua revolução. Este é o sentido da “tragédia chinesa”.

Balanços Provisórios

No que concerne às lutas anticapitalistas da atualidade, a leitura de Revolução Permanente serve para situar marco inicial de discussões acerca da natureza das revoluções e da forma como as direções políticas daquelas lutas disputavam entre si a hegemonia ideológica dos movimentos. Como se sabe, estas disputas levaram a fins trágicos: Trotsky foi assassinado em 1940, assim como diversos teóricos e ativistas que apresentavam qualquer divergência à linha política oficial. Se por um lado nos afastamos da percepção de que o problema da revolução russa se referia a um problema exclusivo de direções políticas, reconhecemos, ao menos, acordo com o necessário (e hoje ainda mais óbvio) internacionalismo na luta contra o capitalismo e na cada vez mais estreita ligação entre lutas democráticas pontuais e um sentido geral de transformação radical da sociedade. Estas duas implicações da teoria da revolução permanente (internacionalismo e radicalidade revolucionária) ainda nos servem de lição e norte para a batalha contra o capital.

Uma citação final

"A ditadura do proletariado, que sobe ao poder como força dirigente da revolução democrática, será colocada, inevitável e muito rapidamente, diante de tarefas que a levarão a fazer incursões profundas no direito burguês da propriedade. No curso do seu desenvolvimento, a revolução democrática se transforma diretamente em revolução socialista, tornando-se, pois, uma revolução permanente. Em lugar de pôr termo à revolução, a conquista do poder pelo proletariado apenas a inaugura. A construção socialista só é concebível quando baseada na luta de classes nacional e internacional. Dada a dominação decisiva das relações capitalistas na arena mundial, essa luta não pode deixar de acarretar erupções violentas: no interior sob forma de guerra civil, no exterior sob forma de guerra revolucionária. É nisso que consiste o caráter permanente da própria revolução socialista".