sábado, 1 de junho de 2024

A Poesia de Patativa do Assaré: o trovador nordestino

 A Poesia de Patativa do Assaré: o trovador nordestino.





Resenha Livro – “Cante lá que eu canto cá: filosofia de um trovador nordestino” – Patativa do Assaré – Ed. Vozes.

“Arguém diz que o mundo presta,

Grita mermo em arto som,

Mas é tolo e nada sabe

Quem diz que este mundo é bom.

Como é que ele tem bondade

Se a nossa felicidade

Voa como pensamento

E da praça inté no campo

O gozo é cumo relampo

Que abre e fecha num momento

Dêrne do primero dia,

Que Adão mais Eva pecou,

A rosa criou espinho,

Tudo se desmantelou.

E Deus vendo que a desgraça

De Adão, o chefe da raça,

Precisava sê comum,

Depressa sentenciou,

E uma pacela de dô,

Reservou para cada um.

(A Menina e a Cajazera)

Patativa é uma pequena ave cujo canto é fino e melodioso, imitando em alguns casos os sons do bem-te-vi. O seu nome científico é Sporophila plúmbea, que dignifica (Ave) cor de chumbo que gosta de sementes.

Foi a ave que batizou o poeta sertanejo Antônio Gonçalves da Silva (1909/2002) nascido na cidade de Assaré, situada no sertão do estado do Ceará.

A relação do poeta com o passarinho decorre da forma e do conteúdo dos seus versos.

 Na forma, pelo fato de Patativa do Assaré exprimir a sua poesia através da oralidade: desde criança, cantava em verso as histórias de sua terá natal.  Sua obra em livros na verdade são coletâneas de poemas que cantava e sabia de memória, recitando-os de cabeça até os noventa anos de idade.

No conteúdo pelo fato de sua poesia ser uma afirmação dos sentimentos da terra: a percepção direta da natureza e da sociedade rural do sertão são os fatos geradores da arte. Nela nada há de cerebrino: há uma espécie de filosofia telúrica cujas ideias estão intimamente relacionadas à experiência e a vivência com a terra. Neste último ponto, foi uma espécie de versão brasileira de Alberto Caeiro, heterônimo do poeta português Fernando Pessoa: são poetas ligados à natureza, captada através da simplicidade das palavras e de uma profunda emotividade.

A poesia exurge de forma tão natural quanto o canto da ave.

Veja neste sentido “Aos Poetas Clássicos”

“Poetas niversitário,

Poetas de Cademia,

De rico vocabularo

Cheio de mitologia;

Se a gente canta o que pensa,

Eu quero pedir licença,

Pois mesmo sem português

Neste livrinho apresento

O prazê e o sofrimento

De um poeta camponês.

(...)

Na minha pobre linguage

A minha lira servage

Canto o que minha arma sente

E o meu coração incerra,

As coisa de minha terra

E a vida de minha gente.

(“Aos poetas clássicos”).  

 De outro lado, a percepção do imediato não se limita à contemplação da natureza mas à crítica social: a denúncia do latifúndio, a exposição da miséria do retirante, o problema da manipulação política dos coronéis. Porém, o sofrimento do homem do sertão não estimula o poeta ao rompimento com os seus laços da terra. Com todos os problemas, ainda afirma que sua felicidade repousa no canto da terra onde nasceu.

Sobre a infância do poeta, válido citar a “autobiografia” tratada pelo poeta no prefácio do livro “Cante Cá que eu Canto Lá”:

“Eu, Antônio Gonçalves da Silva, filho de Pedro Gonçalves da Silva, e de Maria Pereira da Silva, nasci aqui, no Sítio denominado Serra de Santana, a três léguas da cidade do Assaré. Meu pai, agricultor muito pobre, era possuidor de uma pequena parte da terra, a qual depois de sua morte foi dividida entre cinco filhos que ficaram, quatro homens e uma mulher. Eu sou o segundo filho. Quando completei oito anos fiquei órfão de pai e tive que trabalhar muito, ao lado de meu irmão mais velho, para sustentar os mais novos pois ficamos em completa pobreza”

Apenas frequentou a escola aos doze anos e nela ficou por quatro meses, sem interromper o trabalho na roça. Apenas aprendeu a ler, e depois nunca frequentou um banco escolar. Ainda,  perdeu a visão de um olho na infância por conta de sarampo.

Aos 16 anos, comprou o violão e começou a fazer repentes e a cantar de improviso. Fazia apresentações em festas populares. E a poesia continuou a fazer parte de sua vida junto com o trabalho no campo: morreu aos 93 anos na mesma cidade de Assaré, a despeito de ter sido reconhecido como o grande poeta popular brasileiro já em vida. Basta dizer que foi agraciado ainda em vida como Doutor Honoris Causa em mais de uma universidade, além de ter sido criada uma universidade naquele estado que leva o seu nome e funciona até os dias e hoje.

O leitor que tem contato com a poesia de Patativa do Assaré é levado à conclusão de que nem sempre a afirmação da tradição está em contradição com a crítica social que sugere grandes transformações do mundo.

Sua ideologia cabocla, em oposição à modernidade, aspira a justiça social. A forma visionária e lúdica com que descreve o mundo sertanejo nos faz lembrar de um mundo rural em vias de extinção com  a troca do engenho de pau pelo engenho de ferro e depois pela Usina capitalista. Os filhos dos camponeses que se aventuram na cidade, tornam-se vítimas da exploração do patrão da indústria e estão sujeitos à desgraça do crime e da prostituição. O crescimento da cidade vai fazendo evaporar aquele mundo rural secular.

Curiosamente, essas ideias o tornariam hoje um “dissidente” em oposição à fragmentação e desmantelamento dos laços comunitários típicos da modernidade e da sociabilidade liberal e capitalista.

 

domingo, 5 de maio de 2024

“Morte e Vida Severina” – João Cabral de Melo Neto

 “Morte e Vida Severina” – João Cabral de Melo Neto



Resenha Livro – “Morte e vida severina e outros poemas para vozes” – João Cabral de Melo Neto – Ed. Nova Fronteira

“E se somos Severinos

Iguais em tudo na vida,

Morremos de morte igual,

Mesma morte severina:

Que é a morte de que se morre

De velhice antes dos trinta,

De emboscada antes dos vinte,

De fome um pouco por dia

(de fraqueza e de doença

É que a morte severina

ataca em qualquer idade

e até gente não nascida.)”.

O primeiro livro de poesias publicado pelo escritor pernambucano João Cabral de Melo Neto data de 1942, quando o artista acabara de se transferir do Nordeste ao Rio de Janeiro. Na cidade que era então o centro político e cultural do país,  entrou em contato com um círculo intelectual do qual participavam Manuel Bandeira, Vinícius de Morais e Carlos Drummond de Andrade, este último considerado por Cabral de Melo como o maior poeta brasileiro de todos os tempos. Consta ter sido convencido acerca de sua vocação de poeta após ter lido “Alguma Poesia” (1930), que reúne os mais conhecidos versos do poeta de Itabira.

Contudo, certamente o trabalho mais conhecido de Cabral de Melo Neto foi “Morte e Vida Severina” (1954/1955) escrito treze anos depois do início da sua trajetória literária.

O poema foi elaborado com a finalidade de encenação, mas por razões financeiras, sua exibição no teatro se deu apenas no ano de 1966, numa apresentação no TUCA onde se situa a PUC/SP: era um importante centro político-cultural,  que agrupava o movimento estudantil para realização de atividades como exibições de filmes, debates, assembleias, encenações teatrais e apresentações musicais. O teatro se notabilizaria com os eventos de 22.09.1977 quando uma assembleia de cerca de dois mil estudantes, convocada para a reconstrução da UNE, foi dissolvida por uma ação policial violenta, envolvendo três mil soldados, ensejando pela repressão uma nova onda de protestos estudantis que seria um dos eixos do movimento de redemocratização do Brasil.

Certamente, “Morte  e Vida Severina” tinha um claro conteúdo político, de denúncia da miséria social nordestina através do personagem Severino, representativo do retirante que abandona o Sertão, passa pelo agreste e chega ao Recife, fugindo da morte em direção ao mar tal qual as águas do Rio Capiberibe, que segue o mesmo itinerário no poema “O Rio”.

Contudo, não é propriamente a denúncia social ou a crítica política do latifúndio e da miséria da população camponesa o que dá o tom da poesia cabralina.

O que nela há de comum é o elemento telúrico, a descrição da terra natal através da memória da infância. A história da terra tratada nos poemas envolve inclusive a memória do grande líder da Confederação do Equador, Frei Caneca, novamente denotando a forte relação do poeta com as suas raízes pernambucanas, como exposto no poema “Auto do Frade” (1984).

E, além desse elemento telúrico, outro aspecto representativo da poesia de Melo Neto é a morte: no caso do seu mais conhecido poema, “a morte em vida”, e “a vida em morte”: o retirante que morre aos poucos, já envelhecido aos trinta anos de idade (“morte em vida”); e a cova para onde o retirante inexoravelmente marcha, e que corresponde à uma parte da terra que em vida queria ver dividida (“vida em morte”):

“- Essa cova em que estás,

com palmos medida,

é a conta menor que tiraste em vida.

- É de bom tamanho, nem largo nem fundo,

é a parte que te cabe neste latifúndio.

- Não é cova grande,

é cova medida,

é a terra que querias

ver dividida.”

Esses dois elementos essenciais da poesia cabralina, a morte e a descrição da sua terra natal, remontam ambas à origem do escritor.

Nascido no Recife em 09 de janeiro de 1920, passou a infância no engenho do Poço do Aleixo, em São Lourenço da Mata, interior de Pernambuco, às margens do Rio Capiberibe, que é reiteradamente mencionado nos versos. Estudou num colégio religioso, que lhe incutiu o pavor da morte.  

Válido pontuar que a maior parte dos poemas foram escritor quando o escritor residia fora do país, exercendo a função de diplomata em Espanha, Paraguai e Senegal. Foi através das suas memórias de menino que elaborou poesias carregadas de imagens, plenamente adaptáveis ao teatro e ao cinema.

A mesma arte telúrica rememorativa da infância de José Lins do Rego na sua descrição da decadência dos velhos engenhos de açúcar, e sua substituição, através da reestruturação produtiva do capitalismo tardio, em Usinas que desertificam as vilas, expulsam seus moradores da cidade e tornam todo o seu arredor, até o alcançar da vista, em plantações de cana.

Cite-se o mencionado poema “O Rio” de Cabral de Melo Neto:

“A usina possui sempre

uma moenda de nome inglês;

o engenho, só a terra

conhecida como massapê”.   

No que toca à morte, trata-se do fio condutor de pelo menos três dos seus poemas mais conhecidos: “Morte e Vida Severina”; “Auto do Frade”; e “O Rio”.  

Em Morte e Vida Severina, o retirante se depara com diferentes espécies de morte.

No seu caminho do sertão ao mar, se depara com homens carregando um defunto numa rede. Tratava-se da “morte matada”: o defunto foi assassinado à bala por conta de disputas de terra.

Depois, ao chegar em Recife e próximo ao cemitério, ao escutar o diálogo de dois coveiros, se depara com a “morte morrida”: são as mortes em alta escala dos retirantes, que morrem dia a dia, aos poucos, chegando à velhice antes dos trinta. Trata-se de uma morte não dissociada das desigualdades sociais: o coveiro prefere trabalhar no cemitério dos ricos onde o volume de trabalho é menor e há a possibilidade de se ganhar gorjetas.

A vida segue através de um fio condutor que a leva até a morte.

Este trajeto de repete no poema “O Rio” em que o Capiberibe parte do sertão para desaguar e se diluir no infinito do mar. Através dessa viagem, o poeta vai traçando as vilas, o povo e os sertanejos que se servem dos trajetos dos rios para conduzi-los até o Recife em fuga da seca. Neste itinerário, também se depara com a morte e miséria dos retirantes.

O mesmo fio desde a vida até a morte se revela por fim no poema épico “Auto do Frade” (1984). Nele se descreve o cortejo popular que acompanha o líder da revolta separatista conhecida como “Confederação do Equador”, desde a prisão até a praça pública onde será executado.

Ainda que todos os caminhos levem à morte, seja a do rio em direção ao mar, seja do retirante em direção à cidade, seja o mártir em direção à forca, ainda há um balanço positivo.

Ao final de “Morte Vida Severina”, quando Severino testemunha o nascimento de uma criança filha da miséria, o leitor é levado à conclusão de que essa vida miserável do retirante, essa “vida severina”, ainda assim é digna de ser vivida:

“E não há melhor resposta

que o espetáculo da vida:

vê-la desfiar seu fio,

que também se chama vida,

ver a fábrica que ela mesma

teimosamente, se fabrica,

vê-la bbrotar como há pouco

em nova vida explodida;

mesmo quando é assim pequena

a explosão, como a ocorrida;

mesmo quando é uma explosão

como a de há pouco, franzina;

mesmo quando é a explosão

de uma vida severina.

mesmo quando é uma explosão

como a de há pouco, franzina;  

 

Bibliografia: COIMBRA, Glayce Rocha Santos. A Morte Severina em Cândido Portinari e em João Cabral de Melo Neto. 2012. 155 f. Dissertação (Mestrado em Processos e Sistemas Visuais, Educação e Visualidade) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2012.

quarta-feira, 1 de maio de 2024

“O Conde d’Abranhos” – Eça de Queiroz

 “O Conde d’Abranhos” – Eça de Queiroz





Resenha Livro - “O Conde d’Abranhos” – Eça de Queiroz – Ed Iba Mendes

 

José Maria de Eça de Queirós nasceu em 25 de novembro de 1845 na Póvoa de Varzim em Portugal. Seu pai fora magistrado, formado em Direito em Coimbra e amigo pessoal de Camilo Castelo Branco, expoente do romancismo português.

Aos dezesseis anos Eça de Queirós também ingressou no curso de Direito em Coimbra, quando publicou seus primeiros trabalhos literários. Posteriormente, o escritor exerceria a advocacia e o jornalismo, até o ano de 1870, quando ingressou na administração pública na condição de gestor da vereança de Leiria. O fato é de destaque desde que Leiria é o local onde se passa a maior parte dos eventos de um dos seus livros mais conhecidos, “Crime do Padre Amaro”. (1875)

Em 1873, Eça de Queirós ingressa na carreira diplomática, exercendo cargos oficiais em Havana, Newcastle e Bristol. É a partir deste período que escreve os seus principais romances: “O Primo Basílio” (1878), “Os Maias” (1888), além do mencionado “Crime” de 1875.

Não seria exagero dizer que foi um dos maiores escritores portugueses de todos os tempos, sendo certamente o ponto mais alto do romance em língua portuguesa do século XIX.

Foi precursor do realismo literário em língua portuguesa, movimento que propunha a superação da tradição romântica, a ela se opondo especialmente no que toca à idealização da realidade: a proposta no realismo é descrevê-la de forma objetiva, com a intenção crítica, o que em Eça de Queiroz se dá através da caricatura, ou seja, do humor.

O marco inicial do realismo em Portugal se deu em torno da Questão Coimbrã.

Trata-se de uma batalha intelectual em torno da literatura que opôs de um lado a tradição romântica, com o seu conservadorismo, formalismo e academicismo e de outro lado jovens estudantes de Coimbra que salientavam a falsidade na forma romântica de percepção da realidade e propunham não só a mera descrição objetiva do mundo mas uma crítica que ensejasse transformações sociais.

Fala-se em batalha intelectual por se tratar efetivamente de um conflito cuja dimensão ia além do problema literário: tratava-se de uma lide envolvendo o tradicionalismo/conservadorismo em oposição à modernização/liberalismo.

Ainda sob o impacto da Revolução Francesa e das revoluções burguesas subsequentes, os jovens escritores, particularmente Eça de Queiroz, tinham intenção de ridicularizar e demolir velhas tradições: desde o casamento e a fidelidade conjugal em Primo Basílio, passando ao falso moralismo do clero e a beatice carola de mulheres desocupadas em O Crime do Padre Amaro. 

A arte realista é a expressão literária do liberalismo burguês num momento histórico ainda impactado pela Revolução de 1879 e as revoluções burguesas europas subsequentes. Trata-se de uma época muito anterior ao completo estado de composição do liberalismo hoje visto.

 De uma certa maneira, a própria evolução histórica de Portugal, país pioneiro na Europa na sua constituição de Estado Nacional desde a Revolução de Avis (1383), mas país retardatário no que diz respeito ao desenvolvimento do capitalismo industrial, especialmente se comparado a países como Inglaterra, França e Alemanha: este desenvolvimento histórico suis generis faria muito provavelmente com que a disseminação de ideias liberais e republicanas em Portugal ensejasse maiores conflitos diante da sobrevivência e resquício do misticismo religioso. Lá o peso da tradição fez com que a monarquia acabasse em 1910, mais de vinte anos depois do Brasil e mais de um século depois da França.

Dentre as principais características do realismo literário podemos citar a objetividade em oposição ao subjetivismo que informam as narrativas românticas; a crítica social com um intuito reformador, podendo se dizer que a proposta realista coincide com a visão social de mundo burguesa no contexto do capitalismo em sua fase industrial. Ênfase na descrição da vida cotidiana, de modo que os cenários passam também a remeter ao ambiente urbano, local onde se encontram os tipos sociais, desnudando especialmente os interesses pessoais que informam a conduta de padres, beatas, bacharéis, jornalistas, comerciantes etc. Esta forma descritiva foge bastante da tendência da idealização romântica, dando uma feição mais humana e verdadeira aos personagens em suas relações. Por vezes, esse realismo está contaminado da visão de mundo liberal e o seu consectário mais evidente: o individualismo, sugerindo a percepção de que os personagens não se mobilizam para nada que não seja o seu interesse imediato.

Neste marco, o Conde D’abranhos (1925 – póstumo) é talvez o livro em que Eça de Queiroz levou mais ao extremo a sua capacidade de traçar caricaturas para realizar a crítica e o deboche, neste livro em particular, centrando sua munição na classe política portuguesa.

O protagonista é um nome fictício de um político absolutamente inescrupuloso, que segue numa escala ascendente de poder sempre através da esperteza e da sorte, e nunca através do merecimento.

Quando estudante de Direito em Coimbra, já no primeiro ano, se notabiliza por dedurar um colega rebelde, que gracejava com o professor, acarretando de um lado a expulsão do estudante infrator e de outro o seu bom relacionamento com o professor ofendido. A bajulação fez como que fosse aprovado com notas de louvor, a despeito da sua mediocridade intelectual.

Filho de um simples alfaiate, desde cedo tem pavor à pobreza e se beneficia de uma tia rica, com quem passa a viver e é quem banca os seus estudos.  Posteriormente, quando esta tia velha se decide a se casar com um belo jovem, vê-se horrorizado pela concorrência em torno do espólio da parente rica.

Inicia sua trajetória no jornalismo, escrevendo matérias em benefício de um político que sustenta a imprensa. Casa-se com uma filha de desembargador, herdeira de 12 mil contos. E através destes contatos vai galgando cargos de poder até se tornar ministro de estado.

O ponto culminante da carreira política se dá após a sua nomeação como Ministro da Marinha. Curiosamente, o Conde nunca vira o mar, e mal sabia distinguir onde se localizavam no mapa as colônias portuguesas.

Obviamente, a sua nomeação se deu após lance de sorte (a morte de um concorrente) e a traição ao partido da ocasião, para passar ao lado do campo político oposicionista que se projetava no poder. Na política portuguesa, a disputa não se centra em torno do horizonte ideológico ou da visão social de mundo, mas nos meios pelos quais se garante a manutenção no poder. Afinal, nas palavras do Conde, seria um horror e uma humilhação sair-se derrotado com os governistas e ser obrigado ao retorno doméstico para cuidar da mulher e do filho. Mais desejável foi bandear-se no momento oportuno para a oposição.

O efeito humorístico fica acentuado na forma como a história é contada: ela é narrada por um secretário particular do Conde, favorecido em vida e bajulador do Conde mesmo após a sua morte. Decide escrever a biografia e sempre busca justificar e tergiversar as trapaças do falecido. Precisa forçar tanto a barra para limpar a imagem do Conde que só acentua nas suas considerações o tom engraçado com que descreve  desvio de caráter do político.

A caricatura se estende aos demais personagens.

Numa passagem do Conde D’abranhos, o escritor descreve aquilo que seria um discurso no parlamento português e assim traça a fisionomia de um parlamentar:

“Este personagem, com efeito, pela face redondinha e jovial, de óculos de ouro, por todo o seu serzinho barrigudo, pela untuosidade vaga das suas palavras, pela plácida polidez, assemelhava-se ao amável filantropo, cheio de provérbios e de virtude, de que o livro querido onde aprendemos a soletrar. O seu discurso foi a repetição das mesmas injúrias, mas em uma voz suave e chorosa”. 

Veja-se que a noção da caricatura se relaciona diretamente à proposta de crítica demolidora da sociedade portuguesa: nela se traça com um certo exagero algumas qualidades e caracteres físicos mais salientes da personagem, com um claro efeito humorístico e um juízo crítico subjacente.  

No prefácio do romance, escrito em 1925 por José Maria D’eça de Queiroz, filho do escritor, há menção ao forte animus jocandi do livro.

Consta que que a obra em questão, ao seu tempo, foi escrita com uma intenção excessivamente burlesca, exagerando na caricatura ao traçar o perfil dos políticos portugueses. Tanto o foi, que o livro foi rejeitado pelo editor, obrigando o escritor a deixa-lo arquivado na gaveta até ser encontrado pelo seu filho, que o publicaria em 1925.

Curiosamente, já ao tempo do filho José Maria, a ficção se aproximou da realidade:

“Hoje, porém, os tempos mudaram, e a leitura do Conde d’Abranhos sugere-nos esta observação paradoxal: com o passar dos anos – o livro ganhou atualidade! Os tempos e os homens parecem querer encarregar-se de transformar em realidade flagrante o que não passava de exagero burlesco”.

Considerações que poderíamos estender ao Brasil de hoje: a comparação cabe como uma luva.

terça-feira, 16 de abril de 2024

“Alguma Poesia” – Carlos Drummond de Andrade

 Resenha Livro – “Alguma Poesia” – Carlos Drummond de Andrade – Ed. Record




 O primeiro livro de poesias publicado por Carlos Drummond de Andrade foi lançado quando o escritor tinha vinte oito anos de idade, o que nos autoriza dizer que o poeta iniciou sua trajetória de forma relativamente tardia.

 Trata-se da coletânea “Alguma Poesia” (1930) que reuniu poemas escritos pelo escritor entre 1925/30, parte deles anteriormente publicados no Jornal Estado de Minas.  

 Essa obra contém poemas que ainda hoje são tão conhecidos que se pode dizer já fazerem parte do imaginário popular brasileiro.

 Quem nunca ouviu falar dos versos do poema “No meio do Caminho”?

 

No meio do caminho tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

tinha uma pedra

no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento

na vida de minhas retinas tão fatigadas.

Nunca me esquecerei que no meio do caminho

tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

no meio do caminho tinha uma pedra.

 

O mesmo pode se dizer do poema “Quadrilha”, bastante conhecido mesmo por pessoas não habituadas à leitura da poesia nacional:

 

João amava Teresa que amava Raimundo

que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili

que não amava ninguém.

João foi pra os Estados Unidos, Teresa para o convento,

Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,

Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes

que não tinha entrado na história.

  

Curiosamente, essa primeira obra do poeta de Itabira, hoje consagrada pelo público e pela crítica literária, foi ao seu tempo bancada do próprio bolso do escritor, denotando não ter sido o livro um grande sucesso ao seu tempo.

 Foram inicialmente tiradas apenas 500 cópias pela Imprensa Oficial de Minas Gerais, onde Drummond trabalhava.

 Antes do lançamento de “Alguma Poesia”, o poeta contou com a colaboração de Mário de Andrade, que não só havia se disposto a ajudá-lo na publicação desse primeiro livro, como havia sido a pessoa que incentivou Drummond a se lançar no mundo literário.

 A amizade entre Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade iniciou-se no ano de 1924 quando chegou à Belo Horizonte um grupo de intelectuais paulistas que havia liderado o movimento modernista brasileiro, consubstanciado na Semana de Arte Moderna de 1922.

 Dessa comitiva, fizeram parte Oswald de Andrade, Paulo Prado, Tarsila do Amaral, além do citado Mário de Andrade. Pretendiam fazer um périplo pelo Brasil para com isso dar vazão às propostas por eles enunciadas na Semana: o rompimento com a tradição parnasiana e toda literatura que replicava o estilo europeu, em detrimento de uma arte nacional, ainda que incorporando (através da antropofagia) as influências exógenas. Não se tratava de importar a arte estrangeira, mas assimilá-la criticamente, para criar algo novo, especificamente brasileiro, para exportação.

 A viagem às Minas Gerais tinha como escopo assistir à Semana Santa nas cidades históricas mineiras e procurar vestígios do passado que colaborassem com projeto modernista de constituição de uma identidade nacional.

 O que o movimento modernista postulava era a busca daquilo que singularizava o Brasil.

 No nosso país, a independência política antecedeu a conformação da nacionalidade.

 Ao contrário da experiência dos países Europeus, aqui, não foi a nação que criou o Estado, mas o Estado que antecedeu a Nação. Desde a proclamação da independência em 1822 até a Revolução de 1930, o que hoje se denomina Brasil era antes uma somatória dos estados federativos, sem um claro sentido de unidade. E essa busca pela identidade brasileira, uma bandeira central do modernismo dos anos 30, irremediavelmente os levava à busca de nossas especificidades através da História.

 (Não é por acaso que os três principais historiadores dos anos 1930, diretamente relacionados ao movimento modernista, escreveram suas principais obras tratando do Brasil em tempos coloniais. É o caso de Caio Prado Júnior com o seu “Formação Histórica do Brasil” (1942) É o caso de Sérgio Buarque de Holanda com o seu “Raízes do Brasil” (1936) E é o caso de Gilberto Freire com o seu “Casa Grande em Senzala” (1933)

 No estado de Minas Gerais, ou mais exatamente na recém criada capital Belo Horizonte, já existia um grupo de intelectuais que haviam aderido ao movimento modernista iniciado em São Paulo.

 Dele faziam parte Carlos Drummond de Andrade e Cyro dos Anjos, para citarmos os dois mais famosos.  Foi através do contato desse grupo mineiro com a comitiva paulista no ano de 1924 que surgiu a amizade entre Drummond e Mário de Andrade. E através dessa amizade e do incentivo do autor de Macunaíma, que se iniciou a trajetória dequele que foi um dos maiores poetas brasileiros de todos os tempos.

 Nesses poemas de “Alguma Poesia” vê-se uma forte influência do movimento da Semana de 1922. Há aqui a recusa de todo tipo de idealização, a aversão a todo o tipo de retórica, o humor e a ironia que despontam como formas de crítica social, o jogo de palavras que sugere experimentações linguísticas, tais quais aquelas que aparecem em Macunaíma.

Há também a mesma oposição modernista à mera importação da arte estrangeira sem mediações com a realidade Brasileira, o que é bastante explícito no poema “Europa, França e Bahia”:

 

Meus olhos brasileiros sonhando exotismos.
Paris. A torre Eiffel alastrada de antenas como um caranguejo.
Os cães bolorentos de livros judeus
e a água suja do Sena escorrendo sabedoria.

(...)

Chega!
Meus olhos brasileiros se fecham saudosos,
minha boca procura a 'Canção do Exílio'?
Como era mesmo a 'Canção do Exílio'?
Eu tão esquecido de minha terra...
Ai terra que tem palmeiras
onde canta o sabiá!

 

Outro aspecto da obra diz respeito à própria concepção do artista sobre o que é a poesia e como ela deve ser feita.

 De maneira geral, os poemas fazem alusão à afirmação do presente em detrimento do passado, visto como algo que “cheira mofo” e contém “teias de aranha”. Para se fazer poesia é necessário afirmar a realidade vista na sua imediaticidade, o que também significa ver e estar em contato direto com essa realidade, sentindo-a, criando a arte pela percepção imediata do poeta. Cite-se o poema “Lagoa”:

 

Eu não vi o mar.

Não sei se o mar é bonito,

não sei se êle é bravo.

O mar não me importa.

 

Eu vi a lagoa.

A lagoa, sim.

A lagoa é grande

e calma também.

 

Na chuva de cores

da tarde que explode

a lagoa brilha

a lagoa se pinta

de todas as cores.

Eu não vi o mar.

Eu vi a lagoa. . .

 

O fazer poesia, em Drummond é uma experiência derivada dos sentimentos do poeta deflagrados pelo que ele vê, escuta, percebe ao seu redor. Sitomaticamente, um dos livros do escritor se chama “Sentimento do Mundo”. A poesia de fato nasce dos sentimentos, ela está por isso viva dentro do poeta, nem sempre se torna visível, mas ainda assim inunda a sua alma.  

 

Poema

Gastei uma hora pensando em um verso

que a pena não quer escrever.

No entanto ele está cá dentro

inquieto, vivo.

Ele está cá dentro

e não quer sair.

Mas a poesia deste momento

inunda minha vida inteira.

segunda-feira, 8 de abril de 2024

“Malazarte” – Graça Aranha

 “Malazarte” – Graça Aranha



Resenha Livro - “Malazarte” – Graça Aranha – Ed. Iba Mendes

O trabalho literário mais conhecido do escritor maranhense Graça Aranha certamente é o livro “Canaã”, publicado no ano de 1908.

A história foi elaborada durante o período em que o escritor atuou como juiz municipal de Porto do Cachoeira no estado do Espirito Santo. Naquela Comarca teve contato com os colonos alemães que lá constituíram povoados.

As colônias decorriam de um movimento iniciado ainda no século XIX de estímulo da vinda de imigrantes europeus ao Brasil, não só como meio de substituir o trabalho escravo, cuja abolição deu-se em 1888, mas por conta de considerações raciais relacionadas ao debate intelectual da época.

Os dois principais personagens, os alemães Milkau e Lentz, expressam dois pontos de vista  distintos relacionados às discussões do período em torno de raça, cultura e o futuro do Brasil.

Milkau, desiludido com a Europa, busca no Brasil o recomeço de sua existência na virgindade de um mundo que estava para ser construído. Via na miscigenação brasileira algo positivo, já que pensava a evolução humana relacionada à confluência de raças. Rejeitava o patriotismo alemão e entendia que as guerras e a luta entre os homens, no futuro, seriam superadas pela solidariedade e o amor.

Há quem diga que este personagem fora inspirado em Tolstói e de fato suas intervenções remetem a algo próximo de um socialismo utópico.

Lentz parece ser o exato oposto de seu amigo Milkau. Via a imigração alemã como uma oportunidade de subjugar os negros e mestiços do país. Línguas, culturas e civilizações duelam até a prevalência da raça mais forte, no caso a alemã. Enquanto seu companheiro via beleza na harmonia entre o homem e a exuberância da natureza brasileira, Lentz enxerga a beleza na luta e na vitória do mais forte, na dominação do homem sobre a natureza. Pode-se relacionar as suas ideias com a moral nietzschiana: a apologia do mais forte, o desprezo pelos fracos e pela caridade cristã.  

A temática filosófica, ou mais especificamente a crítica do racionalismo enunciada pelo pensamento de Nietzsche, seria objeto de um tratamento mais acurado na peça de teatro “Malazarte”, encenada pela primeira vez no ano de 1911.

Enquanto “Canaã” foi elaborada no período em que o escritor atuava como juiz numa comarca do Brasil profundo, a peça Malazarte foi criada já num momento posterior, quando o escritor troca a magistratura pela carreira diplomática e passa do interior à vida cosmopolita da Europa.

Serviu em várias missões diplomáticas entre 1900/20 passando por Inglaterra, Itália, Suíça, Noruega, Dinamarca, França e Holanda.

 

 

“Malazarte” foi representada pela primeira vez na França, no Théatre de L’ouvere, fundado por artistas ligados ao movimento simbolista.  

Pode-se dizer que a peça se situa dentro desse movimento literário simbolista.

Tratava-se de escola voltada à crítica da razão e do positivismo. De certa maneira, antecipava o modernismo cujo epicentro deu-se no Brasil na Semana de 1922, movimento do qual Graça Aranha participou ativamente. Esses escritores se opunham àquilo que diziam ser o academicismo, derivado das tradições literárias imediatamente anteriores: romantismo, realismo e naturalismo.  

O que havia naquele período era um esgarçamento e esvaziamento da crença na inefabilidade da razão e do progresso. As diversas inovações tecnológicas da Belle Époque, com os seus  telégrafos, bondes elétricos, fonógrafos, telefone, e cinema,   também criaram as condições para que o pensamento filosófico fosse além do impulso cartesiano e cientificista de fins do século XIX.

O evolucionismo, o determinismo social e o positivismo pavimentaram o caminho do colonialismo europeu em África e Ásia. A missão civilizatória enunciada na ideia do “Fardo do Homem Branco” criou o neocolonismo, o imperialismo, a partilha territorial, o racismo com verniz cientificista e o massacre das populações – estima-se que no Congo, sob ocupação francesa, houve o extermínio de 60% da população. Em China, a Guerra do Ópio (1839-1842 e 1856-1860) levada adiante pelo imperialismo Britânico disseminou em larga escala o uso de entorpecente que adoeceu a sociedade chinesa. A razão e o progresso levaram o mundo à barbárie e ao conflito armado, materializado na Primeira Guerra Mundial (1914/1918).

O protagonista Malazarte é representativo da crítica radical de Nietzsche à tradição filosófica platônica e ao pensamento cristão. Sua figura enuncia os aforismos que tornaram conhecidas as teses relacionadas àquela crítica pioneira à tradição filosófica racionalista. Quando Nietzsche pioneiramente denuncia os limites da razão, estava já se antecipando aqueles eventos dramáticos de guerra e destruição que marcaram o século XX.   

Nessa peça, a existência da ação é praticamente inexistente.  

O cerne dos diálogos não está relacionado a eventos, não se relacionam a um enredo com começo, meio e fim, mas a elucubrações e aforismos filosóficos enunciados por personagens representativos das diferentes perspectivas filosóficas em jogo.

A peça se inicia num dia de Natal, momento do renascimento de Cristo.

Pouco se fala sobre o lugar onde os eventos se passam e o período histórico dos fatos.

Há uma predominância pela figura do mar em detrimento da terra. O protagonista Malazarte está em oposição a tudo o que pode ser considerado telúrico. Para ele “nada é eterno na vida imortal”. Afirma estar sempre em eterna mutação. Prefere o mar à terra justamente por buscar sempre estar em eterna transformação, como as águas do oceano, ora tranquilas ora em forte agitação. Prefere a instabilidade do céu e das nuvens à solidez e imutabilidade da terra.

A personagem “Mãe” chora pela morte recente do seu marido e apela ao seu filho Eduardo que a ampare, após credores do falecido exigirem o pagamento de dívidas pecuniárias, sob pena de penhora da casa. De forma significativa, a Mãe apenas se interessa pelo filho após a morte do seu companheiro. Eduardo por sua vez rejeita as preocupações terrenas da mãe. Aposta sua existência no amor e na afirmação da vida. O seu amor erótico pela mulher amada é o momento de rompimento com os elos maternos.

O personagem Raimundo, filho de Militina, acompanha Malazarte numa pescaria e morre afogado. Sua mãe revolta-se contra a morte, ou mais exatamente contra a natureza das coisas, e por isso torna-se louca.

A loucura, nos exatos termos nietzschianos, dá-se quando o homem se revolta contra a natureza. É a fuga da realidade, da imeaticidade da vida, em torno do ideal, o início da loucura do homem. Ela se expressa quando Militina começa a deitar comida nas águas do mar, buscando alimentar a alma do filho morto:

“Onde está agora? Reponde... O pobrezinho deve estar com fome... (começa a deitar ao mar a comida que trouxe na cesta). Tu não me voltas, mas tu comes... E se estás morto, tua alma não terá fome... Toma mais! Como tens fome, meu filho! Faz frio aí em baixo dágua? Hein? Dize à tua mãezinha....”.

Esses são alguns dos fatos ou ações da peça, que, como dissemos, quase nada tem de importante.

O que deve ser considerado são basicamente os diálogos. Neles vemos uma sequência de aforismos, enunciado por personagens que despontam como pertencentes a dois grupos: os “fortes” (Malazarte, Dionísia), e os “fracos” (Mãe, Militina).

A oposição filosófica se dá nos exatos termos da crítica da filosofia grega traçada por Nietzsche.

Os personagens “fracos” são aqueles que negam a imediaticidade da vida, a afirmação da vontade e da força em oposição ao medo, fraqueza e à loucura, assim descrita como a revolta do homem em face da natureza.  Os personagens “fortes” são aqueles que vão além da alegoria da caverna de Platão. Não estão em busca de um ideal ou de uma teoria que explique as sombras vistas de dentro da caverna. São os seres livres, abertos incondicionalmente às inconstâncias da vida e expressam as forças, o brilho e a vivacidade da natureza. Mais importante do que teorizar sobre a sombra na caverna é vê-la em sua plenitude, sem para isso buscar evadir-se do real.  Não se trata de sair da caverna, mas lá permanecer, de acordo com essa teoria.

Eduardo está a meio passo entre o niilismo criticado por Nietzche (representado pela Mãe e pela sua criada Militina) e o anticristo enaltecido pelo filósofo alemão (representado pelo protagonista Malazarte). Está com um pé no grupo dos “fracos” e outro pé no grupo dos “fortes”.

Este meio termo talvez tenha sido o posicionamento final de Graça Aranha acerca do problema filosófico já traçado em Canaã.

Tanto no romance, quanto na peça de teatro, não fica claro ao leitor qual a filiação exata do escritor acerca das ideias propostas por Nietzsche.

Como boas obras artísticas, este posicionamento fica aberto às indagações do leitor.  

terça-feira, 2 de abril de 2024

“A Mãe” – José de Alencar

 Resenha Livro - “A Mãe” – José de Alencar – José de Alencar – Ed. Iba Mendes Editor Digital




“Mãe,

Em todos os meus livros há uma página que me foi inspirada por ti. É aquela em que fala esse amor sublime que se reparte sem dividir-se e remoça quando todas as afeições caducam.

Desta vez não foi uma página, mas o livro todo.

Escrevi-o com o pensamento em ti, cheio de tua imagem, bebendo em tua alma perfumes que nos vêm do céu pelos lábios maternos. Se, pois, encontrares aí uma dessas palavras que dizendo nada exprimem tanto, deves sorrir-te; porque foste tu, sem o querer e sem o saber quem me ensinou a compreender essa linguagem. “ (Alencar, José. “A Mãe”. 1859)

A trajetória literária do escritor José de Alencar inicia-se no ano de 1853, pouco após ter se formado em Direito pela Faculdade do Largo de São Francisco. Foi convidado por um colega de turma para a redação do Jornal Correio Mercantil, onde publicava crônicas leves, escritas “ao correr da pena”, que era aliás o nome da sua coluna.

Foi contudo a polêmica que iniciou em face do poema épico “A Confederação dos Tamoios” o marco inicial de sua participação direta na vida intelectual do país.

Esse poema de Gonçalves Magalhães foi editado e apoiado pelo próprio Imperador Dom Pedro II e o seu lançamento foi a oportunidade para que Alencar estabelecesse sua crítica àquele que era o maior expoente do romantismo brasileiro. Uma crítica para ele próprio Alencar pudesse depois criar as bases para o seu próprio projeto literário indianista através da publicação do Guarani (1857).

Alencar e Gonçalves Magalhães partilhavam a ideia do indianismo e da poesia épica como eixo de afirmação da nacionalidade Brasileira. O jovem crítico literário criticava o poeta protegido por Pedro II pelo uso abusivo dos cronistas na elaboração do enredo e o fato de a composição de um poema épico ter partido, em Magalhães, por questões triviais relacionadas a assassinato e vingança no bojo da guerra entre os índios Tamoios, aliados aos franceses, em luta contra os portugueses do Rio de Janeiro e São Paulo (1555). No caso do Guarani, esses temas triviais (a guerra e a vingança) se justificavam por se tratar de um romance, e não de um poema fundacional da civilização brasileira.

A polêmica literária de 1856 pode ser considerada o ponto de partida da produção artística e da crítica cultural do autor de Iracema. Sua obra perpassou pelo romance, pelo jornalismo e pelas artes cênicas.

Essa atividade de escritor foi acompanhada a partir do ano de 1860 pela carreira política, quando Alencar foi eleito deputado provincial do Ceará pelo Partido Conservador.  A interface entre política e literatura é destacada por Araripe Júnior, o primeiro biógrafo do escritor com quem conviveu pessoalmente.

Nesta primeira fase da obra do escritor, vemos além do indianista “O Guarani”, peças teatrais como “O Demônio Familiar” (1857) e “A Mãe” (1859) e romances voltados especialmente para o publico feminino como “Lucíola” (1862) e “Diva” (1864), vem as características mais próprias do romantismo, com a sublimação do trivial e o graciosíssimo na descrição dos personagens e da natureza.

A partir de 1870, Araripe Jr.  vê uma mudança no estilo literário que estaria relacionada com a decepção com política: foi naquele ano que José de Alencar sofreu a decepção de ser preterido por D. Pedro II para uma vaga de Senador Vitalício. Teria havido uma profunda mágoa pessoal que não só afastou o escritor da política, como acentuou nos seus textos o caráter polemista e crítico, nem sempre  significando com isso bons resultados estéticos. Nesses livros subsequentes, o biógrafo aponta um viés que se relaciona ao seu humor depressivo e taciturno, após a sua reclusão no bairro da Tijuca.

Falemos agora um pouco da produção teatral de José de Alencar.

A maior parte das suas peças teatrais foram escritas nessa sua primeira fase de “juventude” (1853/1870).Algumas delas foram um sucesso e outras foram um fracasso, como foi o caso de "O Jesuíta" (1875) que correspondeu ao último trabalho e expressou o fim melancólico da carreira do artista.   

A peça “A Mãe” foi anunciada ao público fluminense pelo Correio Mercantil no dia 14 de março de 1860.

Para os padrões da época, o espetáculo foi um sucesso. Foram nove apresentações, além de elogios da crítica, incluindo uma nota positiva de Machado de Assis, que tinha então vinte poucos anos de idade e iniciava sua carreira de crítico literário na imprensa carioca:

“Acaba de publicar-se o drama do Sr. Conselheiro José de Alencar intitulado Mãe, já representado no teatro Ginásio. Por este meio está facilitada a apreciação a frio ee no gabinete das incontestáveis belezas dessa composição. O autor das “Asas de um Anjo” é um dos que melhor reúnem os requisitos necessários a um autor dramático” (Diário do Rio de Janeiro.).

Trata-se de uma tragédia envolvendo os temas da escravidão e da maternidade.

A protagonista Joana aparece como mãe de leite do estudante de medicina Jorge. Ao longo da peça sabemos que a escrava na verdade era a própria mãe de seu senhor, cujo pai de cor branca era então desconhecido, de modo que tal condição desonrosa foi escondida do filho como meio de preservá-lo. Joana e Jorge viveram anos juntos, na visão dele como senhor e escrava, e no coração dela como mãe e filho.

Esse tipo de situação envolvendo enlaces extraconjugais de senhores brancos e escravas são bastantes conhecidos na história do Brasil Colonial, podendo-se dizer o mesmo de outras formas ilícitas de casamento.   O próprio José de Alencar de certa forma tivera experiência parecida com o personagem Jorge. Foi o primeiro dos oitos filhos de um padre e senador com sua prima: filho ilegítimo de padre, preterido em testamento e provocado em vida por seus adversários por causa dessa mancha do seu passado.

Na peça “A Mãe”, Jorge se vê compelido a salvar a honra do pai de sua pretendente Elisa que intentava suicidar-se por não conseguir honrar dívidas pecuniárias junto ao especulador Vicente.

Como meio de salvar o seu futuro genro, Jorge, mesmo tendo a afinidade e amor de filho com sua mãe preta Joana, aceita vender sua escrava provisoriamente até levantar os fundos para quitar a dívida.

Ao mesmo tempo que Jorge desconhecia ser filho de sangue de Joana, intuitivamente a via como tal.

Essa sintonia não era incomum num tempo em que predominava a figura da ama de leite. Acreditava-se que o leite da mulher negra era mais forte do que o da mulher branca.   Por isso, nas fazendas, a escrava que tinha acabado de parir era transferida para a casa de seu senhor para amamentar o recém-nascido branco e tomar conta da criança em tempo integral. Chamava-se essa criança de "nho-nhô". Já o próprio filho escravo dificilmente tinha acesso ao leite materno e era cuidado por outras escravizas que o alimentavam com uma papa de mandioca ou com leite animal não pasteurizado, o que contribuía para o grande número de óbitos. Já os vínculos estabelecidos entre a ama de leite e o filho do dono de Engenho constituíram, como não poderia deixar de ser, um elemento constitutivo da psicologia brasileira. O vínculo afetivo  que contribuiu para a ideia da democracia racial aventada na conhecida tese de Gilberto Freire.

O término da peça “A Mãe” é trágico. Ao fim e ao cabo, Jorge descobre a verdade sobre a sua filiação. Mesmo sendo um estudante de medicina, educado e professor de letras e artes, apenas por ser noticiado ser filho de escrava, vê o seu casamento barrado por Gomes, o mesmo genro que ajudara a quitar a dívida e salvar a honra. Como meio de garantia a felicidade do filho e a manutenção do segredo ao público, a mãe Joana resolve se matar tomando veneno. Sua morte apaga a marca trágica da escravidão na vida do seu filho e garante o seu casamento com a mulher amada.

O sacrifício da mãe pelo filho e martírio sublime da maternidade dão um ar de permanência à peça “A Mãe”. Esse amor incondicional é uma realidade ontem e hoje.

No mais, a obra ainda denota interesse especialmente por seu pioneirismo na descrição e abordagem de personagens dos baixos extratos sociais. Do enredo não há os tipos burgueses citadinos de muitas outras histórias de Alencar, mas o pequeno funcionário público arruinado, o estudante pobre, escrava de ama, o meirinho, o especulador, etc.