A Poesia de Patativa do Assaré: o trovador nordestino.
Resenha Livro – “Cante lá que eu
canto cá: filosofia de um trovador nordestino” – Patativa do Assaré – Ed.
Vozes.
“Arguém
diz que o mundo presta,
Grita
mermo em arto som,
Mas
é tolo e nada sabe
Quem
diz que este mundo é bom.
Como
é que ele tem bondade
Se
a nossa felicidade
Voa
como pensamento
E
da praça inté no campo
O
gozo é cumo relampo
Que
abre e fecha num momento
Dêrne
do primero dia,
Que
Adão mais Eva pecou,
A
rosa criou espinho,
Tudo
se desmantelou.
E
Deus vendo que a desgraça
De
Adão, o chefe da raça,
Precisava
sê comum,
Depressa
sentenciou,
E
uma pacela de dô,
Reservou
para cada um.
(A Menina e a Cajazera)
Patativa é uma
pequena ave cujo canto é fino e melodioso, imitando em alguns casos os sons do
bem-te-vi. O seu nome científico é Sporophila
plúmbea, que dignifica (Ave) cor de chumbo que gosta de sementes.
Foi a ave que
batizou o poeta sertanejo Antônio Gonçalves da Silva (1909/2002) nascido na
cidade de Assaré, situada no sertão do estado do Ceará.
A relação do
poeta com o passarinho decorre da forma e do conteúdo dos seus versos.
No conteúdo pelo
fato de sua poesia ser uma afirmação dos sentimentos da terra: a percepção direta
da natureza e da sociedade rural do sertão são os fatos geradores da arte. Nela
nada há de cerebrino: há uma espécie de filosofia telúrica cujas ideias estão
intimamente relacionadas à experiência e a vivência com a terra. Neste último
ponto, foi uma espécie de versão brasileira de Alberto Caeiro, heterônimo do
poeta português Fernando Pessoa: são poetas ligados à natureza, captada através
da simplicidade das palavras e de uma profunda emotividade.
A poesia exurge
de forma tão natural quanto o canto da ave.
Veja neste sentido
“Aos Poetas Clássicos”
“Poetas niversitário,
Poetas de Cademia,
De rico vocabularo
Cheio de mitologia;
Se a gente canta o que pensa,
Eu quero pedir licença,
Pois mesmo sem português
Neste livrinho apresento
O prazê e o sofrimento
De um poeta camponês.
(...)
Na minha pobre linguage
A minha lira servage
Canto o que minha arma sente
E o meu coração incerra,
As coisa de minha terra
E a vida de minha gente.
(“Aos poetas
clássicos”).
De outro lado, a percepção do imediato não se
limita à contemplação da natureza mas à crítica social: a denúncia do
latifúndio, a exposição da miséria do retirante, o problema da manipulação
política dos coronéis. Porém, o sofrimento do homem do sertão não estimula o
poeta ao rompimento com os seus laços da terra. Com todos os problemas, ainda
afirma que sua felicidade repousa no canto da terra onde nasceu.
Sobre a infância
do poeta, válido citar a “autobiografia” tratada pelo poeta no prefácio do
livro “Cante Cá que eu Canto Lá”:
“Eu, Antônio Gonçalves da Silva, filho de
Pedro Gonçalves da Silva, e de Maria Pereira da Silva, nasci aqui, no Sítio
denominado Serra de Santana, a três léguas da cidade do Assaré. Meu pai,
agricultor muito pobre, era possuidor de uma pequena parte da terra, a qual
depois de sua morte foi dividida entre cinco filhos que ficaram, quatro homens
e uma mulher. Eu sou o segundo filho. Quando completei oito anos fiquei órfão
de pai e tive que trabalhar muito, ao lado de meu irmão mais velho, para
sustentar os mais novos pois ficamos em completa pobreza”
Apenas frequentou
a escola aos doze anos e nela ficou por quatro meses, sem interromper o trabalho
na roça. Apenas aprendeu a ler, e depois nunca frequentou um banco escolar. Ainda,
perdeu a visão de um olho na infância
por conta de sarampo.
Aos 16 anos,
comprou o violão e começou a fazer repentes e a cantar de improviso. Fazia
apresentações em festas populares. E a poesia continuou a fazer parte de sua
vida junto com o trabalho no campo: morreu aos 93 anos na mesma cidade de
Assaré, a despeito de ter sido reconhecido como o grande poeta popular
brasileiro já em vida. Basta dizer que foi agraciado ainda em vida como Doutor
Honoris Causa em mais de uma universidade, além de ter sido criada uma universidade
naquele estado que leva o seu nome e funciona até os dias e hoje.
O leitor que tem
contato com a poesia de Patativa do Assaré é levado à conclusão de que nem sempre
a afirmação da tradição está em contradição com a crítica social que sugere grandes
transformações do mundo.
Sua ideologia
cabocla, em oposição à modernidade, aspira a justiça social. A forma visionária
e lúdica com que descreve o mundo sertanejo nos faz lembrar de um mundo rural
em vias de extinção com a troca do engenho
de pau pelo engenho de ferro e depois pela Usina capitalista. Os filhos dos
camponeses que se aventuram na cidade, tornam-se vítimas da exploração do patrão
da indústria e estão sujeitos à desgraça do crime e da prostituição. O crescimento
da cidade vai fazendo evaporar aquele mundo rural secular.
Curiosamente,
essas ideias o tornariam hoje um “dissidente” em oposição à fragmentação e
desmantelamento dos laços comunitários típicos da modernidade e da sociabilidade
liberal e capitalista.