terça-feira, 4 de junho de 2019

“Panorama do Segundo Império” – Nelson Werneck Sodré


“Panorama do Segundo Império” – Nelson Werneck Sodré



Resenha livro - “Panorama do Segundo Império” – Nelson Werneck Sodré  - Graphia Editorial

Nelson Werneck Sodré foi historiador e militar. Publicou mais de meia centena de livros editados no Brasil e no exterior. Obras em geral relacionadas à questão nacional, à história do brasil e sua literatura. Foi ligado ao ISEB, instituto que fez contraponto, do ponto de vista de sua produção cultural, à Escola Superior de Guerra. O ISEB oferecia a perspectiva nacionalista, desenvolvimentista e anti-imperialista e a vinculação de Sodré com os movimentos de libertação nacional fizeram com que o historiador não fosse muito longe na carreira militar. Com o golpe militar de 1964, teve seus direitos políticos cassados e foi proibido de lecionar e escrever artigos na imprensa.

Este Panorama do Segundo Império foi publicado em 1939, trata-se do segundo livro do autor. A obra se situa num contexto de mudanças no país e nas elaborações teórico-metodológicas da historiografia nacional. Estamos diante do contexto do modernismo historiográfico em que o velho positivismo de Varnhagen e, em certa medida, Capistrano de Abreu, vão sendo substituídos pela forma do ensaio e por uma maior aproximação da história com as demais ciências sociais. É o caso de Casa Grande e Senzala (1933) de Gylberto Freire em que se verifica uma abordagem influenciada pela antropologia norte americana com o problema da cultura tendo ênfase decisiva na constituição do povo, da nação e na própria explicação dos destinos históricos. É o caso de outros como Sérgio Buarque de Holanda e sua orientação webberiana e a primazia dos elementos econômicos e dos sentidos da história através do marxismo original de Caio Prado Júnior.

No caso de Nelson Werneck Sodré sua proposta metodológica é indubitavelmente materialista – não é preciso estar de acordo com algumas conclusões discutíveis do livro, mas deve-se reconhecer o esforço do autor em explicar os fenômenos da história através de um complexo painel envolvendo instituições políticas, relações econômicas de base e a intervenção dos indivíduos na história. Vai além portanto do mero inventário sucessivo de fatos sem a explicação dos processos imanentes.

“Ora, a mutação dos padrões econômicos produz, necessariamente, uma mutação nos valores políticos. Isso é axiomático. As sociedades industrializadas não têm as mesmas instituições que as sociedades agrárias. Nem os agrupamentos humanos, acostumados a um certo padrão de vida, que lhes é proporcionado pela organização econômica, podem ter a mesma moral e costumes idênticos aos dos outros agrupamentos humanos que vivem ainda da caça e da pesca, na mais primária situação econômica”.  

Os capítulos estão subdivididos dentre os panoramas da escravidão, o panorama da política, o panorama parlamentar, o panorama da economia. Aborda-se a questão dos partidos, a questão da centralização política tão decisiva ao II Império e mesmo os problemas da organização judiciária e organização fiscal. Tais aspectos políticos se somam por outro lado às mudanças na composição das classes sociais hegemônicas ao longo do séc. XIX. Nos três séculos coloniais verifica-se a elite portuguesa diante do exclusivismo comercial e da própria política da metrópole que buscava fazer com que as questões de cada região fossem tratadas diretamente com Portugal evitando-se a comunhão de interesses nacionais que pudesse colocar em risco todo o sistema colonial. Após o advento da corte em 1808, a independência, a regência e no começo do império, a nova hegemonia é a da a elite agrária, dos latifundiários do açúcar, do algodão do Maranhão, da sociedade pecuarista, dos domínios do metal e do diamante e mais recentemente do café no Rio de janeiro e no Vale do Paraíba. Paulatinamente, com o advento da urbanização, com a renitente centralização do regime e o enfraquecimento econômico da lavoura da cana de açúcar diante da concorrência do açúcar de beterraba, o advento e crescimento da chamada elite dos letrados. O termo não é de Nelson Werneck Sodré mas de Oliveira Vianna. Sobre a transição, diz o autor:

“A própria evolução dos acontecimentos, mais do que a ação dos partidos, confusa e duvidosa, apressaria a circulação das elites. O advento da imigração, em São Paulo, e a crise econômica da lavoura da cana e da indústria açucareira, em Pernambuco, fazendo com que os representantes agrários das duas províncias se bandeassem, contribuiu para a vitória da elite dos letrados. Aceitando o abolicionismo, pactuavam com a república. República e abolição, da forma como foram estabelecidas, era a morte da representação da lavoura, o fim da fase agrária na vida brasileira, o advento nítido e real da fase urbana, com o domínio pleno, absoluto, preciso, da elite letrada”.

A proposta de interpretação do segundo reinado por Nelson Werneck Sodré envolve uma interpretação não só materialista, mas dialética. Foram as próprias contradições do II Regime que o fizeram cair sem qualquer reação, seja das forças sociais do país seja do próprio regime em forma de retaliação ou luta por sobreviver.  

O regime do II Reinado seguiria um desenvolvimento ascendente até o advento da Guerra do Paraguai. Antes da Guerra sulina o Brasil virtualmente não possuía forças armadas – havia algo em torno de 15 mil pessoas em todo o país em armas. A mobilização envolveu gente de todos os cantos do país. Criou as bases para a conformação de uma classe de militares que, emponderados, passariam à ação política com o término da Guerra. O elemento servil aqui também merece uma menção: muitos escravos foram arregimentados para lutar no Paraguai, ombro a ombro com outros compatriotas dos mais diversos recantos do país sendo contraditório que os praças retornassem ao país na condição de servos. Para os dirigentes militares brasileiros era motivo de vergonha perante os demais países conduzir exército feito de escravos.

A abolição da escravatura em 1888 foi igualmente um dos elementos decisivos para a queda final do regime. Enquanto à abolição do tráfico marítimo deu-se em 1850, o regime servil ainda permaneceu bastante presente em algumas regiões do país – destaque para o Rio de janeiro e Pernambuco. Em outras províncias como o Ceará e o Amazonas, onde não se dependia tanto da mão de obra escrava, a escravidão foi abolida antes da cessão final. Em São Paulo, sob o crescimento da cultura cafeeira e já com uma política de imigração como substituição da mão de obra, a abolição não trouxe grandes impactos políticos. Mas o mesmo não se pode dizer das remanescentes províncias latifundiárias do açúcar que, do dia para a noite, viram-se privadas das suas propriedades e retiram o seu apoio ao regime.

O povo assiste aos eventos de 1889 de forma bestializado, no sentido de indiferença  pela sorte do império.

Um dos aspectos mais decisivos naquele desenvolvimento histórico foi o problema da centralização. No Brasil do II Império a noção de federalismo equivalia, para as elites políticas, a secção territorial e à quebra da unidade. 

Com isto, o regime administrativo era ultra-centralizado: os presidentes das províncias eram indicados desde o Rio de Janeiro, não raro por pessoas que sequer eram da terra. O sistema fiscal era todo ele drenado  da periferia ao centro não restando às assembleias provinciais a possibilidade de ajustar recursos para mover as potencialidades e a vida local. O Império emanava ordens e diretrizes que deviam ser uniformes, dogmáticas e auto-aplicáveis em todos os cantos do país, o que era impraticável considerando os problemas do vasto território nacional e as dificuldades de comunicação – o transporte se fazia de forma bastante irregular, através de rios e mulas. Relata-se o assombro do Conde D’Eu que esteve numa pequena vila no interior do Rio Grande do Sul do séc. XIX. Os moradores construíram uma pequena igrejinha e aguardavam o despacho do Bispo do Rio de Janeiro e do Imperador para proceder a uma simples transferência da paróquia. Em uma província aguardava-se 3, 4 ou mais anos para autorizar-se a criação de uma simples alfândega ou de um porto. O centro decidia tudo, dos livros adotados em determinadas cadeiras da faculdade de direito de Recife (fato igualmente relatado) até a concessão de mercês e comendas destinadas à elite agrária que, em contrapartida, via perdendo seu prestígio político no centro através da nova elite dos letrados. O centro não tinha a iniciativa de um largo programa de reconstrução nacional e organismo político era atrofiado com sua cabeça enorme e seus membros periféricos definhando.

“Havia, porém, o desejo de acudir a tudo, de atender a tudo, de tomar conta de tudo. Nada devia fugir à vigilância extrema desses guardas invioláveis da centralização. Era uma mentalidade dogmática e tola, risível em muitos pontos, mas dominante e que pondera em toda a parte e em todos os recantos, abrangendo todos os assuntos”.

A questão do federalismo surgiria de forma embrionária com o partido republicano (1870). Depois seria incorporada como bandeira dos liberais até impor-se como política com o advento da República. Questão interessante para se discutir é entender porque a queda de um império de meio século de consolidação caiu com o golpe militar sem qualquer reação. Nelson Werneck chama atenção para um fato pouco suscitado pelos historiadores: os momentos que precederam o fim do II Império envolveram alguma hesitação no sentido do que se fazer com D. Pedro II. O desejo ocultos de alguns era mesmo esperar a morte do imperador para proceder-se a um novo arranjo institucional republicano através dos gabinetes. D. Pedro II não perdera o prestígio pessoal mas perdera o apoio político. A centralização ocasionara a crise com a Igreja. A centralização culminou no descontentamente das elites agrárias deslocadas do poder pela elite dos letrados. A guerra do Paraguai e a intervenção dos militares na política como um novo agente implicaria na divisão dos partidos tradicionais e no re-equilíbrio das forças políticas. Aliás, se no começo do segundo império havia alguma nitidez na divisão partidária entre liberais e conservadores, as sucessões de gabinetes e as mudanças na composição social das organizações acabariam com qualquer linha demarcatória entre os partidos.

A abolição da escravatura alienando o apoio das forças agrárias que haviam permitido a centralização. A destruição das oligarquias pela e retirada de prerrogativas. Estes foram os males e enfermidades que implicaram na queda do II Império, iniciando-se a etapa da república cujo mote passa a ser o federalismo e a descentralização.     

sexta-feira, 17 de maio de 2019

“Formação Econômica do Brasil” – Celso Furtado


“Formação Econômica do Brasil” – Celso Furtado 



Resenha livro - “Formação Econômica do Brasil” – Celso Furtado – Ed. Companhia das Letras

“Observado de um ângulo distinto, o desenvolvimento da primeira metade do século XX apresenta-se basicamente como um processo de articulação das distintas regiões do país em um sistema com um mínimo de integração. O rápido crescimento da economia cafeeira - durante o meio século compreendido entre 1880 e 1930 -, se por um lado criou fortes discrepâncias regionais de níveis de renda per capita, por outro dotou o Brasil de um sólido núcleo em torno ao qual as demais regiões tiveram necessariamente de articular-se”.

Celso Furtado nasceu em 1920 na Paraíba. Foi um dos fundadores da Comissão Econômica da América Latina (CEPAL), instituto de importância no pensamento social brasileiro envolvendo de maneira central o problema do subdesenvolvimento, a ampliação do acesso a tecnologias nos países periféricos e o avanço da industrialização. Neste contexto, vale ressaltar que Celso Furtado foi criador e dirigiu a SUDENE até 1964, além de ter sido ministro do planejamento no governo de João Goulart.

“Formação Econômica do Brasil” se insere assim num contexto do pensamento social de formulações no sentido da superação do subdesenvolvimento – foi escrito em 1958 durante o governo de Juscelino Kubitschek e já num contexto de discussão das chamadas reformas de base que seriam intentadas ainda que timidamente por João Goulart.

A obra serve-se da economia e da história para explicar o processo de desenvolvimento da economia brasileira na longa duração. Do sistema açucareiro no nordeste, primeira forma economicamente estruturada de produção em território brasileiro, da pecuária que se desenvolve como um apêndice do açúcar em regiões periféricas do nordeste interiorizando a ocupação territorial; da economia de extrativismo vegetal no norte amazônico dirigida primeiramente pelos jesuítas com a utilização da mão de obra indígena; da economia mineradora que erigiu um tipo de sociedade bastante diferente do sistema agrícola açucareiro começando pelo fato que o ouro brasileiro é de aluvião, acessível a produção sem expressivo capital; dos ciclos da borracha no norte, do cacau e do fumo na Bahia passando pela economia do café que, servindo-se paulatinamente da mão de obra livre, criou as condições para acumulação de capital, o desenvolvimento industrial (num primeiro momento indústrias de bem de produção) e a ampliação do mercado interno.

Como se sabe, nos primeiros 30 anos do descobrimento do Brasil não se instalou aqui qualquer atividade produtiva que não o escambo entre portugueses e índios envolvendo o extrativismo vegetal. As coroas portuguesa e espanhola estavam vislumbradas com a miragem do ouro que foi precocemente descoberto pelos espanhóis no eixo Perú-México. Havia também a necessidade de defender militarmente os territórios em face de Holanda, Inglaterra e França.

A precoce descoberta do ouro pela Espanha deu fisionomia bastante distinta ao processo colonizador da américa espanhola – a defesa territorial da vasta porção de terras que iam no México ao extremo sul do continente fez com que a intervenção espanhola tivesse um caráter de tipo militar o que não impediu a instalação de franceses, ingleses e holandeses nas Antilhas da américa central, além da porção setentrional do continente.  A Espanha não desenvolveu produtos agrícolas que amparassem sua economia e sucumbia diante da economia do ouro – inflação e fortalecimento dos setores sociais não produtivos que vivem da renda concentrada no Estado.

No caso Brasileiro, o açúcar desenvolveu-se em grandes propriedades, inicialmente através do trabalho indígena e, uma vez aferido a rentabilidade do sistema, através da importação do trabalho africano. O escravo africano é certamente mais eficiente e de recrutamento menos incerto que o do índio. O modelo de economia agrário exportadora envolvendo a monocultura tem como desdobramento uma  forte dependência da economia da colônia às oscilações do mercado mundial. O período de apogeu efetivo da economia açucareira vai de fins do séc. XVI até meados do séc. XVII. Enquanto o açúcar era produzido no Brasil, a refinaria do produto e sua comercialização na Europa estavam nas mãos dos holandeses. O segredo da fabricação do açúcar, a proibição que técnicos e peritos nesta produção saíssem do seu próprio território faziam com que a produção brasileira fosse efetivada virtualmente em regime de monopólio mundial. Com a ocupação holandesa do nordeste nas primeiras três décadas do XVII os neerlandeses adquiram o conhecimento técnico da produção e depois a instalaram nas Antilhas, estabelecendo concorrência e diminuindo sensivelmente a produção brasileira.

Um aspecto interessante que Celso Furtado chama atenção é para a criação de economias apêndices de produção pecuária iniciada no nordeste de forma articulada com o engenho de açúcar e no sul articulada com a economia mineradora. A produção de couro realmente foi alta no Brasil substituindo produtos manufaturados importados que na colônia tinham preços só acessíveis aos muito ricos[1]. Além do couro, a pecuária produz a mula que é a base do transporte naquele país continental. Por último, a pecuária atende ao consumo de carne na colônia. Quando o açúcar entra em crise, a pecuária entra numa espécie de regressão tornando-se economia de subsistência. Fenômeno semelhante ocorre com a crise da economia mineira e a pecuária sulista. Pode-se falar que houve articulações, mas o que resta inconcluso na economia nacional é uma verdadeira integração das regiões, elemento de superação do subdesenvolvimento com o aproveitamento mais racional  de recursos e fatores no conjunto da economia nacional.

Outro problema que remete ao nosso passado colonial é uma tendência à concentração de renda, ainda que haja uma diversificada destinação das riquezas a depender dos diferentes ciclos econômicos. O que há de reiteração é que os aumentos de produtividade e da renda nacional não são revertidos para o conjunto da população: se destinam ora aos produtores, ora ao setor ligado ao comércio internacional. Quando muito o estado de limita ao controle do câmbio e à facilitação da importação de equipamentos, insumos e outros bens de produção.

Como foi dito, o livro foi escrito em meados do século passado, quando o Brasil ainda não completara sua transição demográfica, uma das mais rápidas do mundo, do campo para as cidades. O problema do desenvolvimento se colocava então a partir da superação de uma herança agrário-exportadora, com o escopo de incrementar por um lado a produtividade do trabalho e por outro o próprio crescimento econômico como um todo. Criar as bases de uma economia cada vez menos dependente do mercado externo e reduzir ao máximo a concentração de renda. Mesmo com mudanças então bastante imponderáveis para um observador de 60 anos atrás como a chamada globalização econômica, a brutal flexibilização das relações de trabalho, a disseminação da informalidade, a economia de serviços já superando a economia industrial, em que pese todos estes elementos imponderáveis, a conclusão final do livro é de uma lamentável atualidade:

“Sendo assim, o Brasil por essa época ainda figurará como uma das grandes áreas da terra em que é maior a disparidade entre o grau de desenvolvimento e a constelação de recursos potenciais”.  

*
Monocultura e Industrialização

“O sistema de monocultura é, por natureza, antagônico a todo processo de industrialização. Mesmo que, em casos especiais, constitua uma forma racional (do ponto de vista econômico) de utilização dos recursos da terra, a monocultura só é compatível com um alto nível de renda per capita quando a densidade demográfica é relativamente baixa. Ali onde é elevada essa densidade - o que ocorre na faixa úmida do Nordeste – a monocultura impossibilita alcançar formas superiores de organização da produção. Com efeito, nas regiões densamente povoadas uma elevada densidade de capital por homem - condição básica para o aumento de produtividade - só se consegue com a industrialização. Ora, a industrialização vem sempre acompanhada de rápida urbanização, que só pode se efetivar se o setor agrícola responde com uma oferta adequada de alimentos. Se a totalidade das boas terras agrícolas está concentrada em um sistema ancilosado de monocultura, a maior procura de alimentos terá de ser atendida com importações. No caso do Nordeste, a maior procura urbana tende a ser satisfeita com alimentos importados da região sul, o que contribui para agravar a disparidade entre salário nominal e produtividade em prejuízo da região mais pobre”.


[1] Na capitania de São Vicente (São Paulo) da era colonial algumas peças de roupa importada tinham mais valor do que uma casa.

segunda-feira, 13 de maio de 2019

“São Bernardo” – Graciliano Ramos


“São Bernardo” – Graciliano Ramos




Resenha Livro - “São Bernardo” – Graciliano Ramos – Editora Record

“Ora, essas coisas não passam como antigamente. Mudou tudo. Gente nasceu, gente morreu, os afilhados do major cresceram e foram para o serviço militar, em estrada de ferro. O povoado transformou-se em vila, a vila transformou-se em cidade, com chefe político, juiz de direito, promotor e delegado de polícia. Trouxeram máquinas – e a bolandeira do major parou. Veio vigário, que fechou a capela e construiu uma igreja bonita. As histórias dos santos morreram na memória das crianças”.

“São Bernardo” foi publicado em 1936, pouco após Graciliano Ramos ter renunciado ao cargo de prefeito de Palmeiras dos Índios (1928). Foi o segundo livro escrito pelo autor e é de uma qualidade superior à sua primeira obra, Caetés. Há neste romance algo que vai ser reiterado nas obras posteriores, como Angústia e Vidas Secas – a desagregação do mundo rural e a modernização capitalista que informa o desenvolvimento histórico do país a partir da independência ou se quisermos 1808. Os engenhos de açúcar e os potentados rurais que têm seu domínio local sempre inconteste passam a conviver com aquelas mudanças de longa duração com a abolição do tráfico e do trabalho escravo; a expansão do café e do trabalho livre; as novas tecnologias de transporte e comunicação com as linhas de trens, os bondes, a luz a gás e as cidades. Esta tradição é mencionada à propósito quando o narrador deste São Bernardo, o fazendeiro Paulo Honório, conta a história de um de seus subordinados, o seu Ribeiro.

Seu Ribeiro antes fora coronel e era respeitado e acatado por todos de sua vila. Se uma moça dizia-se grávida, o coronel descobria o sedutor, impunha o casamento e ainda virava padrinho. Se havia queixas e conflitos, o coronel decidia como juiz e sua decisão era irrecorrível. Mas vieram os delegados de polícia e juízes e não precisaram do coronéis para dirimir as lides. A mulher de seu Ribeiro deixou de prescrever curas caseiras pois agora havia médico. Deixa de ser o indivíduo quem infunde o respeito e o temor mas o estado com suas autoridades e bacharéis.

Pois é bem este tipo de mundo, obviamente relacionado à herança colonial do Brasil, que parece desagregar-se. Quem se lembrará das gerações que precederam Luís de Angústia: seu avô, um opulento fazendeiro. Seu pai, totalmente desinteressado pelos destinos do empreendimento rural, rolava o dia todo à rede lendo romances enquanto pingos de chuva inundam o interior da casa. E o neto, Luís, muda-se para o subúrbio da capital onde trabalha como escrevinhador, sempre ganhando uma miséria.

São Bernardo é um livro que diz bastante sobre a chamada geração modernista de 1930 que tinha um compromisso bastante evidente em descrever a realidade social, caracterizar o Brasil e, particularmente, o problema regional. José Lins do Rego e Rachel de Queiróz serão outros representantes desta corrente literária regionalista, que acaba suscitando as contradições sociais sem um simples esquema de maniqueísmos, mas elaborando as complexidades das personagens. Uma literatura que chama a atenção para as injustiças sociais sem com isso ser meramente panfletária e superficial.

Paulo Honório começa descrevendo-se como um homem de 50 anos, pouco instruído e que começou a vida lá de baixo, fazendo bicos quando criança nas ruas da cidade. Foi acumulando capital por conta própria. Adquiriu a fazenda de São Bernardo através da manipulação de Padilha, um escrevinhador de jornais com ideias de esquerda além de proprietário da fazenda abandonada.  Paulo Honório fez-lhe empréstimos de dinheiro  enquanto cobiçava São Bernardo. Aguardou o momento de fraqueza do devedor e pressionou-o sob ameaças a ceder-lhe a Fazenda.

A partir de estão, o empreendimento passa a ser a maior preocupação do nosso narrador. Para diminuir a mortalidade dos matutos e aumentar a produção, Paulo Honório proíbe a aguardente em São Bernardo. O fazendeiro tem interesse em obter favores do governo para o seu maquinário e constrói uma escola: não como um ato de solidariedade mas como um investimento.

“A escola é um capital, os alicerces da igreja são um capital”.

A certa feita, Paulo Honório descobre o agora professor da escola Padilha supostamente injuriando-o aos matutos e difundindo ideias revolucionárias. O fazendeiro reage com pontapés e injúrias contra o empregado dizendo que São Bernardo não é a Rússia. Depois, humilha Padilha negando-lhe o pagamento do ordenado, requerendo que o Professor seja “camarada”.  

Este temperamento brutal, duro e insensível não deixa de ser posteriormente reconhecido pelo autor-narrador. A maior parte da vida ponderou suas escolhas por aquilo que lhe fosse mais lucrativo: mas o trágico desenvolvimento da sua vida, a partir do surgimento de Madalena, além da decadência econômica de São Bernardo, irão fazê-lo pensar se tudo aquilo que fora construído valera a pena: o açude, a igreja, a escola, a estrada, a luz e o telefone instalados na fazenda.

Não se sabe se Paulo ama efetivamente Madalena. Certamente Madalena jamais amou Paulo. O protagonista conclui a proposta do casamento como se propusesse um negócio: a princípio o fazendeiro desejava casar apenas para ter um herdeiro para guardar São Bernardo. O enlace foi aceito e Madalena, uma alma boa e generosa, logo passa a se preocupar com a sorte e a pobreza dos moradores de São Bernardo. A moça era professora e instruída, falava e escrevia palavras ininteligíveis para Paulo Honório. Este só lia no máximo manuais de escrituração mercantil e de agricultura. E os seus ciúmes nascem e parecem ser o principal efeito de seu suposto amor. A vida familiar desperta atenção do fazendeiro para as suas fraquezas: sua ignorância e grosseria, seus modos de homem do mato, sua barba mal feita e corpo sujo de quem trabalho o dia inteiro no campo. A experiência amorosa de Paulo Honório revela-se assim pelo ciúmes, pelo ódio e pela insegurança.       

A desagregação daquele mundo rural forjado em 3 séculos de regime colonial, agrário-exportador e escravista, com a marca da pessoalidade no mando e da centralização político-administrativa em torno de  poderes locais. A instância máxima do poder público e familiar dos coronéis, agora em crise. São estes o pano de fundo das tramas de Graciliano Ramos. Mudanças sociais, políticas e econômicas dos anos 1930, no Brasil com a revolução de Vargas e no Mundo com os impactos da I Guerra, da Revolução Russa de 1917 e da Crise de 1929.   

A modernização de longa duração que ganha maior dinâmica no Brasil a partir de meados do séc. XIX tem como origens uma multiplicidade de fatores que envolvem a abolição do tráfico, a Guerra do Paraguai, a cultura do café, a introdução das linhas de ferro, a urbanização, o desenvolvimento da imprensa, do ensino e das artes. Mas certamente ainda há muito daqueles aspectos do passado colonial que foram herdados e sobrevivem. Os chamados sentidos da colonização enunciados por Caio Prado Jr. ainda revelam algo de nossa paisagem tanto econômica como política, seja com a permanência da concentração fundiária brasileira[1] e seja com a perpetuação de velhas oligarquias dirigindo politicamente  o país.




[1] Grandes propriedades somam apenas 0,91% do total dos estabelecimentos rurais brasileiros, mas concentram 45% de toda a área rural do país. Por outro lado, os estabelecimentos com área inferior a dez hectares representam mais de 47% do total de estabelecimentos do país, mas ocupam menos de 2,3% da área total. Dados 2006.

sexta-feira, 10 de maio de 2019

“O Coruja” – Aluísio Azevedo


“O Coruja” – Aluísio Azevedo



Resenha livro - “O Coruja” – Aluísio Azevedo – Livraria Martins Editora 1973

Aluísio Azevedo foi um dos ou talvez o maior dos escritores do nosso naturalismo literário. Suas duas obras mais lembradas são O Cortiço (1890) e O Mulato (1881). Diante do compromisso literário daquela escola com a objetividade na narrativa, as obras naturalistas têm especial importância para o historiador do Brasil. As narrativas revelam aspectos sociais a começar pelos tipos humanos que exsurgem: dos estudantes, dos bacharéis, dos jornalistas e poetas, das francesas de vida fácil, da solteirona mal dizente, dos trabalhadores manuais, dos agregados, dos comerciantes de pequeno e grande porte. Da cultura da provinciana Maranhão, em O Mulato, ao Cortiço, os naturalistas são pioneiros em direcionar sua atenção para os extratos mais baixos da população. 

No realismo literário ou mesmo no Romantismo de Alencar e Joaquim Manuel de Macedo  figuram com mais frequências os tipos burgueses das cidades, até porque os romances eram naquele tempo lidos pelas mulheres das classes mais altas através dos folhetins. O naturalismo vai mesmo além ao retratar tragédias familiares, todo tipo de violência e questões sexuais então consideradas tabu. Basta lembrar de Adolpho Caminha que em “Bom Crioulo” aborda o tema do amor homossexual em 1895.

Há assim um interesse suplementar nas obras naturalistas e nos livros de Aluísio Azevedo quanto à descrição dos tipos populares, as expressões de linguagem, os enlaces amorosos, o papel eminentemente doméstico da mulher, as estudantadas com sua boemia, a hipocrisia religiosa que começa a partir dos próprios clérigos.

Por outro lado, o realismo literário, que antecede o naturalismo, desnuda os interesses pessoais e até pecuniários que envolvem sentimentos como os de nobreza, coragem e de amor, não raro implicando no humor, através da análise detida da psicologia das personagens. Já o naturalismo literário, muito influenciado por um certo cientificismo que informa a visão social de mundo de fins do séc. XIX, não se caracteriza tanto pela análise psicológica, estando os personagens muito mais sucumbidos em suas atitudes e pensamentos pelas influencias hereditárias, da origem e do meio social. Há um certo fatalismo quando se observa a trajetória de vida das personagens naturalistas, o que é a tônica também deste Coruja.

Os amigos Teobaldo e André tem seus traços essenciais mais ou menos já definidos na infância e a série sequencial de eventos de suas vidas segue uma espécie de teleologia ao inverso: os traços já definidos do caráter, a origem social e mesmo a sorte são pré determinadas a partir da origem, da herança de classe e da formação familiar. O fim trágico da história sugere que a despeito das diferentes trajetórias, seja o genuinamente bom (Coruja) seja o genuinamente vaidoso (Teobaldo) terminam numa situação de amargura e solidão diante da morte.  

As duas crianças conheceram-se numa escola-internato dirigida por um avaro diretor. André logo nos primeiros dias de escola é apelidado de coruja por seu aspecto físico de extrema feiura.


“André representava então nos seus dez anos o espécime mais perfeito de um menino desgraçado. Era pequeno, grosso, muito cabeçudo, braços e pernas curtos, mão avermelhadas e polposas, tez morena e áspera, olhos sumidos de uma cor duvidosa e fosca, cabelo duro e tão abundante que mais parecia um boné russo do que uma cabeleira”.


Já quando criança o Coruja sempre fora muito triste e calado. André fora adotado por um reverendo que por sinal odiava a criança. O Coruja era órfão de pai e mãe e foi acolhido mais pela boa reputação que o ato de bondade do Sr. Vigário fazia junto aos devotos do que por algum interesse pelo menino.

Não poderiam ser mais opostas as origens de Teobaldo Henrique de Albuquerque. Filho de um rico barão, era altivo, belo e arrogante. Pode-se dizer que os dois formavam um contrate tal que se suplementavam. Os colegas da escola igualmente detestavam os dois, o primeiro pela esquisitez e o segundo pela petulância, além da inveja de Teobaldo ser sempre bem tratado pelos funcionários do colégio considerando sua origem de menino rico.

Teobaldo tinha postura de fidalgo, tendo estudado ainda muito jovem em Londres e Portugal. Tinha um espírito inconstante e aventureiro. O Coruja era antissocial, tinha um espírito metódico, muito chegado a livros velhos de sebos - houve quem comparasse o personagem Coruja com um dos nossos maiores historiadores, Capistrano de Abreu.  

O Coruja era extremamente modesto e bondoso, não aceitando que seus colegas que tanto o importunavam fossem capazes de caçar uma borboleta em sua frente. Não só era bom com os homens como com os animais sendo capaz de passar frio e deitar uma blusa a um cão em necessidade. Um gênio improvável para uma criança de 12 anos, o que acabará por causar certa perplexidade face aos atos de altruísmo que o Coruja tomaria em benefício de seu único e exclusivo amigo, Teobaldo.

Na perspectiva do naturalismo, o sucesso e o fracasso na vida parecem ser uma questão de sorte. Teobaldo, pródigo como era, vivera sempre na fortuna, até quando no Rio de Janeiro passou dificuldades com a morte e abandono dos parentes, sendo em grande tempo sustentado pelo amigo. Em seu melhor momento Coruja, tão arredio e rejeitado pelo mundo, conseguiu, com muito trabalho, dirigir um estabelecimento educacional. As situações de vida se inverterão com Teobaldo, após sucessivos eventos que poderíamos chamar de sorte, fazendo com que o mesmo se torne ministro de estado. Mas a força da contingência é aparente, pois os vaivéns da vida em nada alteram a atitude dos personagens, sua força moral, sua psicologia e sua essência. A série de acontecimentos da vida dos dois amigos parecem revelar forças irresistíveis de modo que as personagens não parecem ser protagonistas dos seus destino. Mas a solução final dada pelo livro é a de que, a despeito das contingências, a sorte do homem já está pré-determinada. O que significa dizer que esta proposta não contempla a possibilidade de mudanças radicais quanto aos traços essenciais do  homem.

O compromisso com a objetividade dos naturalistas descortina questões do passado que já aqui revelam o interesse vivo pela leitura dos livros de Aluísio Azevedo. Enquanto no Cortiço o protagonismo não está propriamente nos tipos populares que surgem de uma certa forma superficiais mas no Cortiço propriamente dito; enquanto no Mulato o protagonismo está na provinciana e atrasada Maranhão do Séc. XIX; em o Coruja temos um livro em que a construção de personagens mais complexos parece sinalizar uma etapa de evolução da literatura nacional que tem certa equiparação com os nossos modernistas de 2ª Geração (Graciliano Ramos, Amado Fontes, Rachel de Queróz) que focam suas narrativas nos elementos populares, na maioria camponeses, mantendo ainda humanidade e a complexidade íntima de cada personagem. Se o personagem Coruja parece ser um tanto improvável, temas como o da bondade, da humildade, da ambição, do orgulho e da amizade revelam como esta obra, ainda na perspectiva naturalista, vai mais além do que uma descrição paisagística de elementos humanos submetidos ao meio e à contingencia.