terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

"Teoria da Organização Política V. II" Ademar Bogo (Org.)



Resenha Livro #50 “Teoria da Organização Política” Volume II. Ed. Expressão Popular. Ademar Bogo (Org.).



 “Teoria da Organização Política” (V. II) corresponde à compilação de escritos de dirigentes revolucionários do século XX, tendo por fio condutor a questão de como organizar a classe trabalhadora e seus aliados para a derrubada do capitalismo e a construção do Socialismo. Nesta seara, discute-se a relação entre partido político e as massas, as características essenciais do partido revolucionário em cada conjuntura e a combinação da luta anti-imperialista com a luta por um novo tipo de sociedade (ideias presentes particularmente nos escritos de Mariátegui, Che, Ho Chi-minh e Agostinho Neto). Destacamos dois nomes presentes em “Teoria da Organização Política V. II”, um peruano e um brasileiro.

José Carlos Mariátegui

Filho de pai espanhol e funcionário público e mãe índia, Mariátegui nasceu em 1894 no interior do Peru. Em 1909 passa a trabalhar como funcionário de um jornal diário e dois anos depois escreve seu primeiro artigo, tornando-se, com o passar do tempo, jornalista.  Em 1919 é enviado pelo governo do Peru à Itália para atuar como agente de propaganda: na Europa, tem contato com o marxismo e com as ideias de A. Gramsci, participando do congresso do Partido Socialista Italiano (1921). Em 1929 publicou sua principal obra (a única traduzida no Brasil): “Sete ensaios de interpretação da realidade peruana”. Nos escritos de Mariátegui observa-se em primeiro lugar uma preocupação incomum na literatura marxista com a questão da cultura e, especificamente, da identidade latino-americana como elementos prementes da luta revolucionária. Em outro sentido Mariátegui se coloca como alguém à frente de seu tempo: já na década de 1920 denuncia as ilusões de setores da esquerda com as burguesias nacionais e as pequeno-burguesias, como supostos aliados da luta anti-imperialista. “Nem a burguesia, nem a pequena burguesia no poder podem realizar uma política anti-imperialista”. Em primeiro lugar porque Mariátegui não superestima ou romantiza a luta anti-imperialista, enquanto certos setores falam em uma “segunda independência”, situando a burguesia nacional dentro desta luta. Para Mariátegui o anti-imperialismo não é um fim em si mesmo, mas um momento da revolução socialista. “Em suma, somos anti-imperialistas porque somos marxistas, porque somos revolucionários, porque contrapomos ao capitalismo o socialismo como sistema antagônico”. 

O outro elemento central no pensamento de Mariátegui é o papel da cultura e do imaginário social quanto à composição, aos movimentos e aos conflitos das classes sociais. Assim, enquanto na China, a aliança com a burguesia nacional forjou-se por meio de uma luta comum contra o invasor japonês, na América Latina “a aristocracia não se sente solidária com o povo por não ter história e nem uma cultura comum”. O mito da “segunda independência” desconsidera o fato de não haver contradições de fundo entre as burguesias nacionais e o imperialismo – as elites dominantes veem-se antes como parceiras do antigo colonizador do que colaboradoras das lutas populares. Tal concepção mostrar-se-ia correta pela forma mais dolorosa possível na América Latina – a confiança do movimento de massas em lideranças da burguesia “nacionalista” ou pequeno-burguesa negligenciou a fraqueza destas direções frente ao inimigo imperialista e sua preferência em ceder o poder à reação do que apostar suas forças na revolução operário-popular. Em termos práticos, esta política levou à vitória dos diversos golpes militares na América Latina e a implementação das mais brutais ditaduras. Quanto ao elemento cultural, ele também está presente, em Mariátegui, nas suas considerações, no Peru, acerca das massas indígenas, que deveriam ser protagonistas no processo de revolucionário naquele país.

Luiz Carlos Prestes

Se por um lado Prestes é um conhecido personagem da história brasileira do séc. XX – do movimento tenentista e da Coluna Prestes até a sua adesão ao Partido Comunista – pouco se discute e se lembra dos seus escritos e de sua colaboração teórica.

Prestes foi durante 30 anos dirigente do PCB, atuando como secretário-geral. Via de regra, deixou-se centralizar pelas orientações da III Internacional Comunista, o que o levou a alguns equívocos, decorrentes das diferenças de condições objetivas e subjetivas para a luta revolucionária, dentro da experiência soviética e brasileira. Assim, no Manifesto de 5 de Julho da Aliança Nacional Libertadora, quando aborda a unificação nacional e a luta contra o imperialismo e o “feudalismo” (sic) no Brasil, deposita confiança numa suposta “parte da burguesia nacional não vendida ao imperialismo”. A própria caracterização do Brasil como um país ainda com resquícios “feudais” dava suporte ao “etapismo”, concepção segundo a qual o Brasil deveria primeiro passar por uma revolução que resolvesse as suas tarefas democrático-burguesas, eliminando o feudalismo, para depois passar à ofensiva socialista. Esta estratégia (sem delimitações de classe e ancorada na ilusão de uma frente política com a Burguesia) corroborou para a tragédia do golpe militar 1º de Abril de 1964: a falta de confiança no movimento de massa e a permanência de uma direção pequeno-burguesa e vacilante criou as condições para a dispersão dos movimentos sociais após o golpe.

Quanto aos escritos de Prestes, particularmente interessante é a sua Carta Aos Comunistas (1980). Trata-se de um documento elaborado quando da volta de Prestes do exílio. Aborda a crise política do PCB do final dos anos 1970. O partido deixava de exercer um papel de vanguarda e, sob o efeito de forças externas que visavam aniquilar o comunismo no Brasil, deixava-se domesticar, transformando-se num partido reformista. Prestes responsabiliza a direção do partido pela sua atual situação: a direção não preparou os comunistas para enfrentar a ditadura e não tomou sequer providências para defender seus militantes da repressão. Além disso, a direção era incapaz de se debruçar sobre a realidade brasileira (problema que, como vimos, também se reproduziu quando Prestes dirigia o partido) e não exercitava a "auto-crítica".

Enfim, “o oportunismo, o carreirismo e compadrismo, a falta de uma justa política de quadros, a falta de princípios e a total ausência de democracia interna no funcionamento do partido” são os principais problemas do PCB, relatados por Prestes. A carta situa-se nos marcos da realização do VII Congresso do Partido Comunista Brasileiro. Posteriormente, este partido foi terminantemente extinto, criando-se em seu lugar o direitista PPS. Mais recentemente e a partir de um esforço militante digno de respeito por parte de todos os comunistas brasileiros, o PCB foi re-construído e atua hoje no campo de oposição de esquerda aos governos social-liberal de Lula/Dilma.

Em fevereiro de 1980 Prestes rompe pela com o PCB. A esta altura, sua crítica ao partido diz respeito à sua adaptação à realidade institucional, perdendo de vista a perspectiva revolucionária:


"Nós, comunistas, não podemos abdicar de nossa condição de lutadores pelo socialismo, restringindo-nos à suposta “democracia” que nos querem impingir agora os governantes, nem às conquistas muito limitadas alcançadas pela atual “abertura”, que na prática exclui as grandes massas populares. Não podemos concordar com uma situação que assegure liberdades apenas para as elites, em que a grande maioria da sociedade continua na miséria e sem a garantia dos mais elementares direitos humanos. Um partido comunista não pode, em nome de uma suposta democracia abstrata e acima das classes, abdicar do seu papel revolucionário e assumir a posição de freio dos movimentos populares, de fiador de um pacto com a burguesia, em que sejam sacrificados os interesses e as aspirações dos trabalhadores.”


A crítica ao reformismo é atual e aplicável aos partidos de “esquerda” voltados a administração do capital no país.      

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

"O Capital" - Karl Marx



Resenha Livro # 49 – “O Capital – O Processo de Produção do Capital” – Livro I Volume I



Impressões decorrentes de uma visão panorâmica de “O Capital”

Ler a famosa crítica à economia política que é “O Capital” pode parecer ou dar a impressão de ser uma tarefa árdua. De fato, aqueles que tiveram contatos com obras de autores marxistas (ou autores que reivindicam algumas de suas categorias de análise), já devem ter ouvido falar em mais valia absoluta, mais valia relativa, capital constante, capital variável, força de trabalho, modo de produção, meios de produção e capital. E, de fato, “O Capital” é um livro essencialmente analítico e teórico, que se serve das experiências históricas apenas e na medida em que as mesmas ilustram o desenvolvimento de uma teoria, uma teoria para explicar a sociedade do capital, e, em última análise, interpretar o mundo em que vivemos. Em certas passagens estas teorias determinam verdadeiras leis econômicas. (Por exemplo, a determinação do valor da mercadoria a partir do tempo médio socialmente necessário de trabalho para a sua composição).

Ocorre que Marx, além de teórico da mais importante obra de análise crítica do capitalismo, foi, ele próprio, um militante comunista. (O fato de Marx ter participado da construção da 1ª Internacional e o aspecto “militante” da vida do velho Mouro, são sintomaticamente esquecidos por uma parcela da esquerda marxista “academicista”, exclusivamente engajada no debate teórico, sem qualquer compromisso com uma prática política cotidiana e consequente, uma efetiva intervenção na luta política colocando todo o saber e o conhecimento acumulado nas universidades à serviço das lutas e da organização dos trabalhadores).

Pois bem, voltando a Marx, o fato do velho Mouro estar efetivamente engajado nas disputas políticas e ideológicas (“batalha das ideias”) de seu tempo implicou em importante preocupação no sentido de que suas ideias fossem compreendidas, inclusive pelo mais humilde operário. É perceptível o esforço com que Marx tenta ser didático, mesmo quando aborda temas inicialmente bastante abstratos, como “o duplo caráter do trabalho materializado na mercadoria”  ou “a forma relativa de valor” e “a forma equivalente de valor”.

Todos estes conceitos vão sendo enunciados de forma quase exaustiva, por meio de exemplos abstratos ou exemplos da história do capitalismo na Europa, ou até mesmo por fórmulas matemáticas e expressões algébricas: é como se Marx fosse o professor que soubesse que o tema de sua aula é árido e de difícil compreensão, e, especialmente por isso, tenta ser o mais claro/didático possível.

Outrossim, Marx diferencia-se de toda uma tradição de economistas burgueses que são incapazes de ver as relações de exploração e de dominação de classes que existe, que são intrínsecas ao processo de formação de capital. Ao criticar a tradicional economia política burguesa, nestes momentos, a leitura pode ser um pouco mais difícil, já que ele discute temas candentes na época e no contexto por que passava a Europa do séc. XIX, destacando a revolução social introduzida para Revolução Industrial, a luta pela regulação da jornada de trabalho e os efeitos econômicos das distintas jornadas, as novas tecnologias de produção e suas implicações nas condições de vida da classe operária. A diminuição de extração de mais valia absoluta e aumento de extração de mais valia relativa, por meio da intensificação do ritmo de trabalho, sob jornadas de trabalho mais curtas, é relatada por Marx por meio de dados/relatórios oficiais sobre a classe de trabalhadores da Inglaterra a partir de meados do século XIX– o cenário descrito é de penúria, fome, péssimas condições de trabalhos, insalubridade no trabalho e nas instalações onde moram os proletários, jornadas de 10 a 12 horas de trabalho, e presença de crianças de até 5 anos de idade trabalhando nas fábricas.  

Estrutura da Obra

Tivemos acesso ao Livro I Volume I do Capital, publicado pela Ed. Civilização Brasileira, que trata da produção do capital. O Capital é uma relação social que pode ser descrita algebricamente como M (mercadoria força de trabalho) - D (retribuição monetária da força de trebalho correspondente ao mínimo necessário para a reprodução da força de trabalho - M' (valorização do capital por meio da extração de trabalho excedente, a chamada mais valia).

O Livro I foi o único publicado por Marx ainda vivo, e foi o único volume que contou com revisões do próprio autor. A edição da Civilização Brasileira contém o Prefácio da 1ª, 2ª, 3ª e 4ª Edições na Alemanha, além dos prefácios das edições francesas e Inglesas. No Livro 2, publicado em 1885, discute-se o processo de circulação do capital. O livro 3 trata do processo global da produção capitalista (1894) e, finalmente, o Livro 4 – publicado por Karl Kautsky – trata das Teorias da mais valia (1905).

A guiza de conclusão.

Não é nosso objetivo aprofundar cada um dos conceitos e das ideias originais introduzidas por Marx em “O Capital”. Neste ponto, vale ressaltar que a profundidade de diversas passagens do texto com certeza podem ser melhor apreendida a partir de esforço coletivo de leitura e debate da obra, por meio de um grupo de estudos, portanto, estudando e destacando trecho por trecho, destrinchando cada detalhe e buscando traduzir a crítica feita por Marx a partir da  atual conformação do capital: em que medida as análises de Marx permanecem atuais e dão conta de explicar, por exemplo, as crises cíclicas do capital? Como não participamos de tal “grupo de discussão” e como a nossa intenção com as resenhas é apenas a de introduzir o leitor às obras, convidá-lo a lê-las e provocar algum tipo de reflexão crítica, encerramos esta resenha com algumas passagens-chave, em que, por meio de sínteses, Marx dá algumas mostras de sua genialidade. Sua crítica ao capital é o que há de mais avançado em toda literatura da economia política dedicada à análise das sociedades modernas.

“Uma teoria que considera a moderna produção capitalista mero estágio transitório da história econômica da humanidade tem, naturalmente, de utilizar expressões diferentes daquelas empregadas por autores que encaram esse modo de produção como imperecível e final”.


“O reflexo religioso do mundo real só pode desaparecer quando as condições práticas das atividades cotidianas do homem representem, normalmente, relações racionais claras entre os homens e entre estes e a natureza. A estrutura do processo vital da sociedade , isto é, do processo da produção material, só pode depreender-se do seu véu nebuloso e místico no dia em que for obra de homens livremente associados, submetida a seu controle consciente e planejado. Para isso, precisa a sociedade de uma base material ou de uma série de condições materiais de existência, que, por sua vez, só podem ser o resultado natural de um longo e penoso processo de desenvolvimento”.


“A parte do capital, portanto, que se converte em meios de produção, isto é, em matéria-prima, materiais acessórios e meios de trabalho não muda a magnitude de seu valor no processo de produção. Chamo-a, por isso, parte constante do capital, ou simplesmente capital constante.


A parte do capital convertida em força de trabalho, ao contrário, muda de valor no processo de produção. Reproduz o próprio equivalente e, além disso, proporciona um excedente, a mais valia, que pode variar, ser maior ou menor. Esta parte do capital transforma-se continuamente de magnitude constante em magnitude variável. Por isso, chamo-a parte variável do capital ou simplesmente capital variável. As mesmas partes do capital, que do ponto de vista do processo do trabalho, se distinguem em elementos objetivos e subjetivos, em meios de produção e força de trabalho, do ponto de vista do processo de produzir mais valia, se distinguem em capital constante e variável. “      

domingo, 13 de janeiro de 2013

"Terra e Liberdade" - Ken Loach

Resenha Filme #4 “Terra e Liberdade” – Ken Loach




“Terra e Liberdade” aborda a Guerra Civil Espanhola a partir das experiências de David Carr. David é um jovem desempregado de Manchester, filiado ao Partido Comunista Inglês. Assistiu palestra sobre a luta contra o fascismo na Europa que o cativou a se inserir nas fileiras de batalha do campo Republicano, contra Franco e o Fascismo.

A questão do internacionalismo é reiterada ao longo do filme: das milícias do POUM (Partido Operário de Unificação Marxista) havia irlandês, francês, alemão e inglês. Sob outro aspecto o conflito apontava para o internacionalismo – o fascismo avançava sobre a Itália e Alemanha, de forma que a derrota de Franco poderia significar o fortalecimento tanto dos setores democrático-liberais, como dos partidos comunistas e socialistas naqueles países. Nesse sentido, a Espanha era observada pelo mundo e palco privilegiado da luta de classes.

David Carr, por uma questão de contingência e não, inicialmente, por opção política, adere ao POUM: ele havia conhecido militantes desta organizaão na sua viagem de trem para a Espanha.

A Guerra Civil Espanhola foi o produto de uma tentativa de golpe liderado por militares de Direita contra o governo legal e democrático. Em 17 de Julho de 1936, após um pronunciamento dos militares rebeldes, teve início a guerra. O POUM nascera em 1935, a partir de uma fusão da Esquerda Comunista Espanhola (trotskysta) e do Bloco Operário Camponês. Este último era de orientação comunista, implantado e com maior força na Catalunha, tendo como principal referência Joaquim Maurín.

O partido ao qual David se inseriu atuava na guerra por meio de milícias. Pelo filme de Ken Loach, nota-se que as brigadas mantinha tratamento equitativo entre homens e mulheres: as mulheres também tomavam parte das lutas nas barricadas e das discussões políticas. Após libertar um vilarejo do domínio fascista, o filme retrata o que seria uma primeira assembleia geral dos moradores do local. Os milicianos socialistas puderam, antes de assembleia, experimentar do ódio que aquele povoado mantinha pelos fascistas. Mães denunciavam o Padre local – que havia dedurado e provocado a morte de alguns jovens anarquistas. O ódio popular fez com que fossem feitas fogueiras e queimados os adereços da Igreja. Agora, na assembleia, ainda sob o calor daqueles acontecimentos, os moradores passaram a dirigir os rumos do povoado. Inicialmente os militantes do POUM buscavam não intervir e deixar os moradores deliberarem sobre o que fazer com as terras abandonadas. Convidados a participar do debate, os mesmos se dividem: uns defendem a imediata coletivização da terra e o fim da propriedade privada, enquanto outros defendem a manutenção da pequena propriedade e a liberdade de comerciar. Prevaleceu a 1ª tese após a defesa de um militante alemão do POUM que, oportunamente, lembrou que as hesitações e vacilações reformistas dos comunistas daquele país estava levando o fascismo ao poder – não poderiam cometer o mesmo erro na Espanha. Era parte da percepção daquele pequeno agrupamento revolucionário que a luta contra Franco caminhava junto com a revolução.

A desmobilização do POUM

No filme, podemos acompanhar cena de forte carga emotiva em que soldados do exército republicano apontam armas para os milicianos do POUM, exigindo a sua desmobilização, em troca de um exército regular, com hierarquias, sem mulheres e sem perspectiva revolucionária – um exército controlado pelo governo e internacionalmente apoiado pela URSS. A guerra revolucionária , que era então conduzida dentro desta perspectiva mobilizadora, com variações táticas, pelo POUM e pelos anarquistas da CNT, implicava na desestabilização política de um regime de conciliação com a burguesia. Além disso, uma revolução socialista em Espanha não interessava a União Soviética àquele momento – do ponto de vista diplomático a linha era não criar conflitos e ganhar tempo para se armar para o iminente conflito mundial. O Partido Comunista Espanhol stalinista entra em confronto com este campo político (Poum e anarquistas). Enquanto os fascistas eram alimentados pela máquina de Guerra da Alemanha e Itália, comunistas de um lado e anarquistas e socialistas revolucionários do outro lado da trincheira combatiam em armas nas ruas de Barcelona (Jornadas de Maio), ambos acusando-se reciprocamente de favorecerem o fascismo. O fato é que Stálin e sua teoria do socialismo em um só país via tanto como um risco revolucionário as milícias operarias que, por meio do PCE, tratava de impedir que as armas soviéticas chegassem aos milicianos. A radicalização e o transcrescimento da luta anti-fascista em uma mobilização na perspectiva socialista não estava na agenda dos burocratas de moscou. David Carr rasga sua carteira de membro do partido comunista inglês, mas, sem contarmos o final do filme, concluímos que Carr morreu ainda esparançoso quanto ao advento do socialismo. De fato a guerra civil espanhola teve como vitorioso o regime reacionário e detestável do fascismo. Mas a mobilização espontânea e generosa de milhares de brigadistas de todo o mundo e mesmo da Espanha para lutar nas trincheiras daquela guerra ainda nos lança esperança, até hoje, sobre a existência de pessoas em todo mundo que amam a liberdade e por isso estão dispostas a lutar até a morte contra o fascismo. Não Passarão!

sábado, 12 de janeiro de 2013

"A vida de Lênin" - Louis Fischer

Resenha livro #48 “A vida de Lênin” – Louis Fischer – Volume II


capa

Tivemos acesso unicamente ao volume II desta majestosa biografia do líder do partido bolchevique e da Revolução Russa Vladimir I. Lênin. Nossa edição contém do capítulo 25, “A Paz é uma Arma”, correspondente aos anos de Guerra Civil, até o capítulo 51, “O Fim”, com relatos da reação popular e da burocracia à morte do principal dirigente do país, àquela altura, já incapacitado para o trabalho.


Sobre o autor


Louis Fischer (1896-1970) foi um jornalista norte-americano que teve a oportunidade de ver de perto a realidade da Rússia dos primeiros anos pós-revolução. Iniciou a carreira trabalhando como correspondente na Revista The Nation, a mais antiga publicação em forma de revista dos Estados Unidos. Fischer participou como correspondente durante a Guerra Civil Espanhola e efetivamente tomou parte na brigada internacional contra o fascismo. Finalmente, Fisher deu aulas sobre a URSS na Universidade de Princeton, até a sua morte.

Visão panorâmica da obra

Ao contrário do que ocorre com alguns biógrafos, Fischer consegue manter certa distância crítica de seu objeto de estudo. Não hesita em estabelecer críticas e traça um panorama o mais realista possível da vida de Lênin, desde os anos do comunismo de guerra, passando pela NEP, a disputa pelo poder e a conformação da burocracia, corroborando para ascensão de Stálin - falo aqui, por suposto, do volume II da obra. Todo o relato é embasado por documentação extensa, que envolve correspondências pessoais, documentos oficiais e relatos pessoais de pessoas que conheceram Lênin.

Também a personalidade do líder é extraída de suas correspondências e de relatos de jornalistas, políticos estrangeiros, militantes do partido e diplomatas que puderam conhecê-lo pessoalmente. Em geral, a impressão pessoal destas pessoas fazem-nos crer que Lênin, pessoalmente, era uma pessoa afável e que tendia a escutar mais do que falar. Tinha estatura baixa e certa mania de forçar a vista e os olhos quando estava diante de seu interlocutor. Gostava de gatos e deixou-se fotografar em algumas ocasiões com felinos. Tal temperamento aparentemente doce contrasta com sua intransigente defesa de princípios e das suas ideias da tática e estratégia políticas, em geral. A ineficiência da administração do governo soviético, com os atrasos de abastecimento, a falta de produtos e as dificuldades de relacionamento com os camponeses implicavam em cartas bastante duras, apontando onde há o erro, condenando os responsáveis e ditando o que se devia fazer.

É bastante perceptível a clareza de Lênin quanto à necessidade de outras revoluções estourarem na Europa ocidental: esta seria pré-condição para o êxito total da Revolução Russa. Seu internacionalismo já contrastava tanto com a linha de Stálin acerca nas minorias nacionais em Rússia, quanto com a teoria stalinista de socialismo “em um só país”. Muito provavelmente, e teoria do “socialismo em um só país” deveria ter provocado risos ou, talvez, revolta e indignação em Lênin, se tivesse vivido ao ponto de conhecê-la.

Por último, o biógrafo lembra que Lênin era capaz de manter alguma separação entre relações pessoais e políticas. Ainda que os primeiros anos da revolução tenham exigido censura, prisões e pena de morte aos elementos contra-revolucionários, Lênin, por exemplo, dizia gostar da pessoa de Molotov, apesar das divergências políticas. Por outro lado, segundo Fischer, Trótsky – que, principalmente nos anos imediatamente anteriores à morte de Lênin, juntou-se a Lenin contra Stálin quanto à questão da Geórgia –não causava uma boa impressão pessoal ao líder do partido bolchevique. Lênin achava Trótsky excessivamente vaidoso e muito focado no aspecto administrativo e não político dos problemas. Entretanto, em sua carta testamento, não deixou de citar Trotsky como um dos militantes mais capazes. (Stálin não é citado por Lênin).
 
Comunismo de Guerra

O livro inicia-se narrando a difícil situação do Estado Operário, diante da guerra imperialista e da contra-revolução burguesa, envolvendo desde elementos que vão do antigo feudalismo russo, até mencheviques e socialistas revolucionários (partido socialista moderado com maior adesão no campo), todos engajados em desestabilizar o regime dos Soviets. Durante os primeiros momentos da revolução russa, o Estado Operário buscou estabelecer um controle total sobre economia e sociedade. O monopólio do comércio exterior por parte do estado, a proibição da comercialização e a distribuição de terras aos camponeses, com o fim do comércio neste setor, tinha a ver com o próprio esforço de sobrevivência da Rússia. O país, que já sofrera com os efeitos da guerra e com a guerra civil, via seu parque produtivo completamente desorganizado, levando ao desabastecimento nas cidades, à fome e epidemias, como de tifo. A vitória definitiva do exército vermelho sobre as forças da reação ainda não resolveriam outros impasses significativos naquela país. Uma dificuldade particularmente significativa era a falta de quadros capazes de assumir o Estado e mesmo as tarefas administrativas: muitos dos revolucionários bolcheviques tombaram na sangrenta Guerra Civil.

Em síntese o comunismo de guerra implicou no controle estatal direto da economia, em decorrência da fuga dos capitalistas, da destruição do mercado pela guerra e relação de desconfiança com a classe camponesa. A tensão entre cidade e campo expressava um desnível nas relações sociais entre a Rússia e os demais países capitalistas. Enquanto estes já possuíam um proletariado em expansão e organizando-se, a Rússia ainda era um país predominantemente rural, com maioria populacional camponesa. Inicialmente, os bolcheviques distribuíram as terras aos camponeses, montaram algumas cooperativas agrícolas, estatizaram fábricas e proibiram o comércio. Havia distribuição de tíquetes e talões de racionamento no lugar de pagamentos em moeda e trocas diretas de produtos. Ainda assim, ao longo do livro somos constantemente deparados com uma Rússia extremamente carente materialmente, com enormes dificuldades de locomoção sobre seu enorme território, com a fome e as mortes assombrando a cidade e o campo.

Em termos práticos as primeiras medidas tomadas pelo estado operário envolviam: requisição de cereais, o que era feito com muita dificuldade já que os camponeses escondiam parte da produção para comercializar clandestinamente; nacionalização de todos os bancos, fábricas e terras; decreto do trabalho obrigatório; requisição da produção agrícola; Retirada da Rússia da Primeira Guerra Mundial, estabelecida por meio do meio do Acordo de Brest-Litovski.

Paz, Terra e Pão

Sobre a questão da primeira guerra mundial, é válido um pequeno destaque. Deve se observar que ela é um dos motivos que explicam a própria Revolução Rússia. Tratou-se a guerra de um conflito extremamente impopular naquele país, em particular em função dos cerca de quatro milhões de russos mortos. O descontentamento da guerra e as desersões foram instrumentalizados politicamente pelos bolcheviques.

Após a Revolução de fevereiro, com a vinda de Lênina da Finlândia, de forma clandestina e com anuência dos alemães, o dirigente manifestou aquilo que ficou conhecido como as teses de abril. O pilar da tese era “Paz, Terra e Pão”, palavra de ordem da subsequente à revolução (ou golpe?) de outubro de 1917.

Em meio a toda esta turbulência, Lênin veio a se destacar como líder por meio de suas intervenções nos órgãos do partido e nos veículos de imprensa. Defendia suas posições com ênfase e força, mas quando era derrotado, centralizava-se pelo partido. Fischer cita alguns pontos de divergência entre os bolcheviques, destacando-se, particularmente, a questão das nacionalidades, o problema do comércio exterior, a relação conflituosa com os camponeses e estreitamento cada vez maior (implicando em maior autoritarismo político) entre estado e partido.

A Questão Nacional

A questão nacional colocou-se com vigor em um país de proporções continentais. Não é difícil perceber a enorme tarefa que estava à frente dos bolcheviques: articular diferentes etnias, línguas e culturas dentro de uma União de Repúblicas Soviéticas. “Como se fora gerente de uma empresa gigante, Lênin sabia que não podia ser rígido, tinha de manobrar, para que as coisas pudessem andar. Para espalhar a revolução, ordenou ao exército vermelho avançar Polônia adentro no verão de 1920. Mas ordenou contenção na reconquista das áreas do antigo império czarista”.

O fato é que um encaminhamento satisfatório para a questão das nacionalidades no interior da União Soviética envolvia a análise de cada caso em concreto – haviam regiões muçulmanas, e outras em que vigorava forte tendência anti-russa. Lênin advogava pela “independência” destes países, buscando relacionar a intervenção soviética como parte de uma luta geral anti-imperialista. Divergia de Stálin (ele próprio georgiano) que advogava um controle mais duro junto a tais nacionalidades. Ambos não abriam mão da liderança do Estado Operário frente às minorias étnicas da rússia. A diferença foi a de que Stálin advogava um controle ainda maior e mais duro, sem concessões.

Luta de classes sob o estado operário

Não só o descontentamento e o espírito separatista ou nacionalista de alguns povos da Rússia punham em risco a coesão e estabilidade do governo. O fato é que se observa a reprodução da luta de classes dentro do Estado Operário. O descontentamento dos marinheiros de Kronstadt (1921), uma rebelião operária esmagada pelos bolcheviques, e que ainda hoje divide ativistas quanto à conduta dos bolcheviques e de Trótsky. Greves ocorreram durante os anos 1920 da URSS e o descontentamento aumentava – na cidade pela falta de abastecimento, pelas epidemias, pela ineficiencia administrativa e corrupção, e no campo especialmente pela política de requisição forçada. Neste contexto, o governo operário adota a NEP (Nova Política Econômica), uma tentativa de restaurar elementos do capitalismo para avançar no desenvolvimento material e administrativo de um estado ainda esfacelado pela revolução e guerra civil. Lênin escreve artigos defendendo a implantação de empresas estrangeiras na Rússia – só assim, poderiam desenvolver as técnicas de produção, já que a produtividade do trabalho era muito baixa na Rússia. No campo ainda se trabalhava com os arados da época medieval. Outras diretrizes da NEP: liberdade de comércio; autorização para o funcionamento de empresas particulares; liberdade de salário para os empregados. O slogan pelo qual ficou conhecida a restauração parcial capitalista na URSS é "dar um passo para trás e dois para frente."

Últimos momentos da vida de Lênin

Lênin dedicou inteiramente sua vida à causa da Revolução. A partir da tomada do poder político pelos bolcheviques, relata-se que o mesmo trabalhava de 12 a 14 horas por dia. Todos os médicos foram unânimes em dizer que a gradual convalescência tinha a ver com o excesso de labor. Em sua sala de estudos, empilhavam-se livros sobre história, economia, relatórios da produção industrial e agrícola da Rússia, jornais e periódicos internacionais. Lênin dizia não ter tempo para ler romances, saia pouco, ia pouco ao teatro, e estava sempre acompanhado de Krupskaja, companheira e militante bolchevique. Antes de morrer, uma das principais preocupações de Lênin era a burocratização do poder, observada por por meio de uma série de exemplos de ineficiência administrativa ou mesmo corrupção – ineficiência que, por suposto, criava descontentamento popular e punha em risco mesmo a sobrevivência do estado operário. Lênin via se formar um contingente de burocratas intermediários sem qualquer preparo técnico para dirigir as fábricas, conduzir e administrar os serviços estatais, etc. Nos últimos anos de vida, já havia observado a excessiva concentração de poder nas mãos de Stálin. Para Lênin, o mais importante era a sobrevivência do governo soviético russo, mesmo havendo de fazer concessões.

A Nova Política Econômica é parte desta preocupação em fazer concessões para salvar o governo operário, assim como a diplomacia soviética e a condução política das nacionalidades remotas da Rússia. A falta de “democracia” e a centralização do poder não se explicam, naquele contexto, como algum desvio, ou o fruto de um temperamento “autoritário” de Lênin. Como político genial que foi, tenha certo senso pragmático (a teoria, para Lênin, é um guia para a ação). Entendia o partido como uma organização centralizada, com hierarquia e disciplina - sem este tipo de organização, pensava Lênin, jamais poderiam ter se organizado, principalmente nos anos de repressão czarista, até a tomada do poder político. Fischer nos faz crer que para um país atrasado como a rússia, avançar e dar passos em direção à industrialização, era necessário um regime mais centralizado.

Lênin também sabia bem que no campo havia uma tendência pró-capitalista e para garantir a direção do proletariado no governo, tinha de fazer concessões. Sabia e reiterava francamente que tanto do ponto de vista do desenvolvimento das técnicas de produção, quando do nível educacional, cultural e civilizatório do povo russo naqueles anos estava inferior à situação média dos países capitalistas.

O legado

O legado de Lênin traduz-se pelo seu exemplo de vida: foi um homem que vivem cada minuto da vida adulta pensando e agindo em torno da luta socialista. Literalmente, morreu de tanto trabalhar. Sua obra teórica igualmente merece lembrança, como parte do legado do que há de mais importante dentre os autores ligados à tradição marxista.

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

"A Revolução Traída" - Leon Trotsky

Resenha #46 "A Revolução Traída: o que é e para onde vai a URSS" - Leon Trotsky. Ed. Sundermann



Leon Trotsky nasceu no distrito de Oblast na Ucrânia em 1879. Iniciou sua trajetória política como um socialista independente: é no decurso da Revolução que adere ao partido bolchevique de Lênin. Destaca-se como orador e agitador: é eleito presidente do soviet de Petrogrado e lidera o Comitê Militar Revolucionário que viria a concretizar a tomada do Palácio de Inverno, a queda de Kerensky e a tomada do poder pelos bolcheviques.

Uma vez consumada a Revolução de Outubro, Trotsky exerceu as funções de Comissário do Povo para Negócios Estrangeiros (quando foi destacado para negociar com a Alemanha o pacto Brest-Litovski) e Comissário do Povo para os Assuntos Militares (quando viria a organizar e liderar o exército vermelho, instrumento militar decisivo para a sobrevivência da revolução durante a guerra civil (1918-1920).

“A Revolução Traída: o que é e para onde vai a URSS” foi escrita no ano de 1936, quando Trotsky encontrava-se no exílio no México. Vale recordar que, com a morte de Lênin, houve uma re-ordenação das forças internas do partido bolchevique. Já desde os últimos momentos de vida de Lênin, já se esboça tensões políticas acumuladas: em 1924, Trótsky publica “As Lições de Outubro” em que critica Stalin e a direção do Komitern por sua política frente ao levante operário na Alemanha em 1923. As mesmas hesitações daquele campo político, segundo Trotsky, também puderam ser vistas às vésperas da Revolução de Outubro. Outrossim, já naqueles anos, surge, de forma embrionária, a oposição entre duas estratégias para o movimento: a tese de Stálin (que é a personificação da burocracia) do “Socialismo em um só país” e a perspectiva internacionalista da Oposição de Esquerda e de Trotsky.

Em 1927, Trotsky é afastado do partido e, dois anos depois, é expulso da URSS. Poucos foram os personagens na história que foram tão perseguidos e caluniados por uma poderosa máquina burocrática: o trotskysmo é um inimigo declarado da burocracia, que irá caçar Trotsky e seus familiares até conseguir calar sua voz em 1940, com seu assassinato no México.

Foi no exílio que Trotsky produziu a maior parte de sua obra escrita. “A Revolução Traída” é um destes ensaios do tempo fora da URSS: a partir de uma vasta e crítica pesquisa de números oficiais e estimativas acerca da produção industrial, agrícola, da produtividade do trabalho e do nível de desenvolvimento das técnicas de produção, Trotsky elabora uma poderosa síntese histórica, buscando descrever a natureza política do estado soviético e o papel histórico da burocracia.

O Caráter do Estado Operário

Segundo Trotsky, a “ditadura do proletariado é uma ponte entre as sociedades burguesa e socialista. A sua própria essência confere-lhe, pois, um caráter temporário. O Estado que realiza a ditadura tem por tarefa derivada, mas absolutamente primordial, preparar a sua própria abolição”. Ora o que se via então na União Soviética era um movimento contrário: conforme se fortalecia o poder da burocracia, esta se afastava cada vez mais das massas e das organizações de democracia direta. Restaurava-se o direito burguês, com a finalidade de garantir a posse e usufruto de bens por parte da camada privilegiada. O Estado ao invés de agonizar, “torna-se cada vez mais despótico; se os mandatários da classe operária se burocratizam e a burocracia eleva-se acima da sociedade renovada, não é por causas secundárias, como as sobrevivências históricas do passado etc., é em virtude da inflexível necessidade de formar e de conservar uma minoria privilegiada enquanto não é possível assegurar a igualdade real.”

Enquanto já nos anos 1930, a burocracia soviética e seus “amigos do ocidente” como o casal Webb, já alardeavam solenemente o fim da divisão das sociedades em classes e uma realidade socialista na URSS, Trotsky, ancorado especialmente nos níveis de produção e produtividade do trabalho, entende que o Estado Operário, para se encontrar ainda no primeiro estágio do socialismo, precisa encontrar um equilíbrio entre produção e consumo, realidade bastante distinta da URSS. O mesmo podia-se dizer com relação ao nível de desenvolvimento das forças produtivas: naquela conjuntura, inferior aos países capitalistas. Vale ressaltar os inúmeros exemplos de desigualdade social, com o acesso aos bens de consumo e conforto exclusivos aos burocratas, enquanto parcelas significativas do proletariado e do campesinato persistiam em condições sociais análogas ao do tempo dos czares. Aliás, mesmo as relações de Mando, a restauração da hierarquia dentro das forças armadas e da polícia (os três fenômenos discutidos por Trotsky) só faziam com que o Estado Operário se aproximasse mais do passado feudal do que do futuro comunista. Assim, mesmo com a planificação da economia e o monopólio do comércio exterior, Trotsky não caracterizava o Estado Operário, naquele momento, como socialista: tratar-se-ia de um estado operário a meio caminho entre o capitalismo e o socialismo. A vitória do socialismo na URSS dependeria da vitória das revoluções operárias nos países avançados do capitalismo: uma nova revolução socialista na europa criaria a força e confiança para o proletariado e as massas russas avançassem sobre a burocracia, promovendo a necessária Revolução Política. Dois caminhos estavam em aberto para URRS naquela conjuntura: o perigo da restauração capitalista (reação) ou uma nova revolução, de tipo política, que viria a derrotar a burocracia e restabelecer o regime de produção planificada para melhor satisfação das necessidades humanas.

A Burocracia Soviética cumpre, segundo Trotsky, um papel análogo à “reação termidoriana”. O significado da expressão remete a derrubada do setor mais radicalizado da Revolução Francesa (Jacobinos), iniciando-se o período da reação, com a extinção das medidas revolucionárias e perseguições dos antigos líderes. A explicação para a equiparação da burocracia à reação encontra os seus fundamentos na história:

“O Caráter proletário da Revolução de Outubro resulta da situação mundial e de certa relação de forças no interior. Mas, na Rússia, as classes tinham-se formado no seio da barbárie czarista e de um capitalismo atrasado, e não tinham sido preparadas de encomenda para a Revolução socialista. Muito pelo contrário, foi precisamente porque o proletariado russo, em muitos aspectos, ainda atrasado, conseguiu dar o salto em alguns meses sem precedentes na História, de uma monarquia semifeudal para uma ditadura socialista, que a reação foi obrigada, inelutavelmente, a fazer valer os seus direitos no interior das próprias fileiras. Ela cresceu no decurso das ondas que se seguiram”.

Outra razão para o fortalecimento da burocracia deu-se na medida das derrotas do proletariado em nível mundial. Em contraposição à perspectiva do internacionalismo, a burocracia soviética (e sua tese de Socialismo em um só país) ganhava segurança, enquanto a classe operária dos países europeus sofria derrotas históricas: a derrota da insurreição na Alemanha em 1923, Estônia em 1924, a liquidação da greve geral na Inglaterra e a derrota da revolução chinesa em 1927 foram implicando na desilusão crescente das massas na perspectiva da revolução mundial, “permitindo à burocracia soviética elevar-se cada vez mais como alto farol indicando o caminho da salvação”.

Hoje, mais de oito décadas depois de “A Revolução Traída”, esta bela obra de história ainda tem força para formar politicamente e inspirar novas gerações à luta socialista. A defesa intransigente dos princípios marxistas acerca da revolução mundial e de seu sentido igualitarista – em contraponto à conformação de uma burocracia dirigente que viria a ser parte da restauração capitalista – ainda se mantêm bastante atual, quando parcelas da esquerda ainda depositam esperanças em torno de governos da Frente Popular, com deformações análogas ao stalinismo. A crítica radical à burocracia – buscando identificar como e porquê se fortalece – parece-nos ser o que há de mais atual em “A Revolução Traída”.

sábado, 15 de dezembro de 2012

"Rumo à Estação Finlândia" - Edmund Wilson



Resenha #45 “Rumo à Estação Finlândia: escritores e atores da história”  - Edmund Wilson


A Estação Finlândia sobre a qual  o título do ensaio do jornalista norte americano Edmund Wilson faz menção refere-se à estação de trem pela qual o líder do partido Bolchevique V. I. Lênin embarcou à Russia em abril de 1917.

Como se sabe, as lutas sociais contra a autocracia e o regime dos Czares na Rússia datam desde o final do século XIX. O próprio irmão mais velho de Lênin envolvera-se no grupo terrorista “Pervomartovtsi” e foi morto, aos 21 anos de idade, fato que teve implicações objetivas na vida de Lênin (dificuldade de acesso a estabelecimentos superiores de ensino em função do passado do seu irmão) e dos desdobramentos em sua política, que seria consolidada a partir do marxismo.

Em 1905, uma grande mobilização em São Petersburgo exigindo reformas democráticas e liberalizantes terminou com naquilo que ficou conhecido como domingo sangrento, quando a guarda imperial massacrou os manifestantes pacíficos em praça pública.  

Após o domingo sangrento, as forças da reação ganharam força, assim como as perseguições políticas, censuras e expurgos. Entretanto, o grande número de mortos russos na 1ª Guerra Mundial,  o descontentamento dos camponeses, submetidos à relação feudal de produção e a fome nas cidades criariam o caldo a partir do qual um conjunto de mobilizações culminaria nas  revoluções de fevereiro e outubro de 1917.

As conjunturas revolucionárias, esquinas perigosas da história, são capazes de surpreender até mesmo os mais bem preparados líderes políticos,  tal qual Lenin.  Assim, em 1922 de janeiro de 1917, Lenin disse a uma plateia de jovens, em uma conferência sobre a Revolução de 1905: “Nós, que pertencemos à Geração mais velha, talvez não vivamos o suficiente para ver as batalhas decisivas da revolução vindoura”. Pois é justamente o lado mais humano das personagens (com as suas contradições internas, seus traços de personalidade e suas relações pessoais), um dos aspectos que Wilson mais busca destacar dos seus “atores da história”.

“Rumo à Estação Finlândia” é um ensaio que versa sobre a história das ideias. Tem como ponto de partida a análise das ideias do historiador francês Michelet (autor de importante obra sobre a Revolução Francesa), fazendo um itinerário que vai do momento em que a burguesia ainda mantém uma perspectiva revolucionária, passando pela fase de declínio da tradição revolucionária burguesa em Renan, Taine e Anatole France. O movimento prossegue, agora descrevendo a origem do socialismo, primeiro por meio do socialismo utópico (Babeuf, Sain-Simon, Fourier e Owen), pelo socialismo científico de Marx e Engels, até, finalmente, atingir a estação Finlândia, correspondendo a momento de intervenção revolucionária do proletariado a partir de Lênin e Trótsky.

Vemos assim, a partir de uma leitura panorâmica de “Rumo à Estação Finlândia”, a correspondência entre as ideias, os escritores e os atores da história e a co-relação de forças entre as classes sociais, em determinado momento da história: Michelet foi pioneiro por ser o primeiro historiador a encarar seu objeto de estudo como produto da ação humana. A história, em Michelet, não é feita exclusivamente por grandes líderes que conduzem o processo histórico: “outra coisa que essa História  demonstrará com clareza, e que vigora em todos os casos, é que o povo era normalmente mais importante que os líderes. Quanto mais fundo escavei, mais me convenci de que o melhor estava no fundo, nas profundezes obscuras. E compreendi que é um grande erro tomar esses oradores brilhantes e poderosos, que exprimiam o pensamento das massas, como os únicos atores desse drama. Eles receberam impulsos de outrem muito mais do que o impediram. O ator principal é o povo”.

Michelet expressa as ideias da nova classe dominante burguesa: busca, nestes marcos de transformação social, criar um novo método para escrever sobre a história – e escreve, emblematicamente, sobre a Revolução Francesa, experiência que derrotou a monarquia e o feudalismo na França, repercutindo, o evento, por todo o mundo.

A voga revolucionária burguesa ganharia algum fôlego com a primavera dos povos de 1848. Entretanto, a classe burguesa, com o advento da revolução industrial e o surgimento do proletariado, passa a temer o crescimento deste novo ator político. Assim a revolução de fevereiro e outubro de 1948 em França contou com a participação de socialistas dirigidos por Auguste Blanqui, que dirigiu desde Paris uma insurreição em junho daquele ano, esmagada pela reação. Se à grande burguesia industrial interessava um regime liberal e constitucional, ao mesmo tempo, a agitação e radicalização política poderia colocar aqueles processos revolucionários fora do controle da burguesia. É nesses marcos que autores como Renan Taine ou Anatole France já representam um momento em que a produção das ideias burguesas perdem o ímpeto revolucionário. Entra em cena, do ponto de vista da teoria da história, a equiparação entre a mesma e as ciências naturais. Segundo Wilson, “o entusiasmo pela ciência que caracterizara o iluminismo persistia, sem o entusiasmo político do Iluminismo”.

Os personagens da história, para além do mito

Como analisamos, “Rumo à Estação Finlândia” aborda um conjunto de pensadores e escritores que viveram entre os séculos XVIII, XIX e XX. Trata-se de um ensaio que versa sobre a história das ideias: o leitor vai percebendo como o desenvolvimento do processo histórico caminha pari passu com o universo de escolhas e expectativas de cada autor para cada contexto histórico e para cada correlação de forças entre as classes sociais. Acompanhamos uma trajetória que vai da burguesia em sua fase revolucionária, da burguesia em sua fase conservadora desde que à frente da sociedade e sob a pressão da insurreição proletária, dos pensadores socialistas utópicos, do socialismo científico e do movimento socialista colocado em prática na Rússia de 1917.

Edmund Wilson foi um jornalista e crítico literário norte-americano. Foi editor da revista “Vanity Afair” e da “The New Yorker” (Revista que existe até hoje e que equivaleria a nossa Piauí). Não se trata de um autor marxista: muito pelo contrário, o autor, em diversas passagens, tece duras críticas a um dos pontos mais centrais do marxismo, a dialética. Segundo Wilson, a dialética, em Marx e Engels, quando relacionada à análise da história, assume, sem que os autores o percebam, um caráter metafísico. Assim, o ensaísta vai relatando uma série de textos e cartas de Marx e Engels que fazem crer que ambos tinham uma noção teleológica da história, o que é alcançado por meio de uma noção vaga do sentido de dialética.

O fato é que a dialética hegeliana, assumida pela teoria marxista, não corresponde a uma ideia irracionalista, mística, etc. A dialética é re-elaborada pelo marxismo, relacionando-a com os conflitos de classe que dão propulsão à história. Não se trata de um mecanismo “oculto” ou, como em Hegel, um movimento que leva o filósofo a uma espécie de verdade ideial, mas de método fortemente imbricada no materialismo, na análise concreta da realidade concreta.

Feita esta consideração, “Rumo à Estação Finlândia” é um livro que vale a pena ser lido, eventualmente para situar como um liberal (com vasto repertório cultural) interpreta e critica o marxismo, que reivindicamos. Trata-se de uma crítica que parte de um ponto de vista especial e incomum.

Citação Final

“Quanto aos objetivos e ideais do marxismo, há neles uma característica que atualmente é encarada com suspeita, e não sem razão. Não basta que o estado assuma o controle dos meios de produção e se estabeleça uma ditadura que defenda os interesses do proletariado para que esteja garantida a felicidade de ninguém – exceto dos próprios ditadores. (...) Porém, feitas todas essas considerações, resta algo mais importante que é comum a todos os grandes marxistas: o desejo de abolir os privilégios de classe baseados no berço e nas diferenças de renda; a vontade de estabelecer uma sociedade em que o desenvolvimento superior de alguns não seja custeado pela exploração – ou seja, pela degradação proposital – de outrem: uma sociedade que seja homogênea e cooperativa, algo bem diverso de nossa sociedade comercial (...)”.   

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Triologia Suja de Havana - Pedro Juan Gutiérrez


Resenha Livro #44 Triologia  Suja de Havana - Pedro Juan Gutiérrez




Triologia Suja de Havana narra a vida cotidiana do povo cubano durante o contexto de grave crise econômica por que passa Cuba durante os anos de 1990.

Como se sabe, Cuba, em 1959, passou por uma revolução popular que pôs fim à ditadura corrupta de Fulgêncio Batista. Inicialmente, a revolução cubana não teve um caráter socialista, tal qual a revolução russa de outubro de 1917. Tanto é verdade que mesmo o governo dos EUA inicialmente (antes das nacionalizações) viu com simpatia aquele movimento, sugerindo eventual adesão da Ilha aos ditames do imperialismo após a fase revolucionária. Na verdade, Cuba, até a revolução, foi um país dominado pelo imperialismo – seja em sua fase colonial por Espanha seja em sua fase independente pelos EUA. Com as nacionalizações e frente ao contexto geopolítico internacional da Guerra Fria, a nação Cubana aderiu ao campo socialista, colocando-se em lado oposto ao imperialismo norte-americano. No âmbito tanto da economia quanto da política, a ilha tinha a URSS como principal aliada: com o fim da URSS a partir de 1990 Cuba viveu uma grande crise econômica, desde que perdera uma parceira comercial que praticamente a sustentava economicamente.

Pedro Juan narra como os cubanos vão sobrevivendo frente à crise.  Seu texto dialoga com o jornalismo, desde que as histórias narradas contêm uma forte carga de realismo e mesmo de objetividade.  Em meio a uma situação de escassez de alimentos, de moradia digna e de acesso a algum serviço público de qualidade, os personagens aparecem como indivíduos abandonados e que lutam pela sobrevivência diariamente: muitas das mulheres (e alguns homens) optam pela prostituição enquanto outros lidam com contrabando, compra e venda de alimentos e outros bens de baixo valor, além dos trabalhos estatais muito mal remunerados.

Do ponto de vista político, a impressão que o leitor tem é a de que a perspectiva da criação de um novo mundo socialista, em que os valores de solidariedade, fraternidade e coletividade sejam hegemônicos, choca-se  com uma realidade de escassez, de fome e de miséria do povo cubano. A luta pela sobrevivência vem antes da luta abstrata por um outro tipo de sociedade. Cada história individual relatada mostra personagens que passam fome e em extrema penúria, passando-se em branco eventual interesse pela grande política por parte da esmagadora maioria dos personagens. Se por um lado há a expectativa de que, num país que reivindica o socialismo, houvesse a percepção crítica da população acerca da realidade e dos problemas pelos quais passam, o que se percebe é uma sensação de indiferença com relação à política: luta pela sobrevivência e o contexto de total escassez criam condições para uma situação que remete à animalização do homem. A sexualidade exacerbada do narrador Pedro e dos demais  aparece repetitivamente no ensaio. São relatadas a todo momento cenas de sexo, como se o ato sexual fosse um mecanismo de compensação à vulnerabilidade da vida.

Raramente, há críticas sutis à burocracia, sugerindo que eventuais indivíduos bem relacionados com o governo não estivessem sofrendo as mesmas agruras que o povo. Entretanto, como afirma José Rubens Siqueira, “os personagens deste livro são sobrevivente que não questionam o comunismo revolucionário do sistema e ao mesmo tempo não acreditam nele”.  Ou seja, os desafios da construção de uma nova sociedade passam longe dos interesses daqueles que a cada dia buscam o mínimo para sobreviver.

Assim, os anos de crise são marcados por desilusão, sem que a mesma se traduza em algum momento em revolta ou rebelião contra a ordem dominante.

A leitura deste livro pode chocar muitos que ainda interpretam Cuba como um país isento de contradições, particularmente frente à consolidação de uma burocracia dirigente em detrimento da conformação de um socialismo “de baixo para cima”, a partir da tomada do poder político pelas massas. Como se sabe, é impossível construir o socialismo em um país só e a tragédia cubana, além do bloqueio econômico, refere-se à ausência da generalização do socialismo em nível mundial.  

Não se pode, por outro lado, perder de vista a existência de inimigos do socialismo que podem tirar proveito dos relatos de “Triologia Suja de Havana” para denunciar a suposta inviabilidade do socialismo de maneira geral. Além do embargo promovido pelos EUA, a crise relatada no livro é parte da crise do socialismo em nível mundial. A incredulidade com relação ao socialismo generalizou-se mundialmente a partir da emergente hegemonia neoliberal, também a partir dos 1990. 

Seja como for, é por meio da contextualização histórica que o livro de Pedro Juan Gutiérrez deve ser visto: como parte de um momento histórico de crise de alternativas societárias ao capitalismo e isolamento geopolítico total de Cuba. As derrotas do socialismo não devem servir de base para uma restauração capitalista, mas pela renovação deste modelo societário, fazendo-se autocríticas e aprendendo sempre com os erros do passado.