quarta-feira, 29 de junho de 2011

"Reforma ou Revolução" - Rosa Luxemburgo

Resenha Livro #27 - "Reforma ou Revolução" - Rosa Luxemburgo - Ed. Expressão Popular




Antecedentes

“Reforma e Revolução” é na verdade uma compilação de dois artigos escritos por Rosa Luxemburgo entre setembro de 1898 e abril de 1899. Os ensaios são uma resposta política a setores do Partido Social Democrata alemão (SPD), agrupados em torno de Eduardo Bernstein.

O revisionismo era então uma força política ainda em vias de ascensão. A série de textos publicados por Bernstein na revista Neue Zeit do SPD (entre 1897-1898) era, então, o primeiro grande esforço de sistematização teórica de uma nova orientação política. O reformismo seria predominante nas décadas subseqüentes no SPD, na II Internacional e em parcela considerável de partidos de esquerda (inclusive comunistas) em todo o mundo, especialmente após a II Guerra Mundial.

O revisionismo enquanto movimento político tem como principais pontos de partida: a instituição do socialismo a partir de reformas sociais; o controle da produção pelos sindicatos; a supressão da teoria do desmoronamento do capitalismo frente à constatação (meramente impressionista) da capacidade de adaptação do capitalismo frente às crises; a negação da tomada do poder político pelo proletariado como um fim das lutas específicas agrupadas em torno do projeto revolucionário (alega-se, entre outros, a ideia de os operários não estarem “maduros”).

O socialismo, aqui, aparece como uma decorrência de um processo de longuíssimo prazo, baseado no controle jurídico e institucional da economia capitalista, promovido pelo desenvolvimento de cooperativas no plano econômico e pela ocupação gradual do parlamento pelos operários: “os fins não são nada, os meios são tudo” é a frase mais lembrada de Bernstein.

A proposta teórica dos revisionistas é então combatida por Rosa, preocupada, particularmente, com as implicações políticas daquele grupo dentro do movimento operário. Ao confrontar o revisionismo com a realidade do capitalismo mundial, particularmente a emergência do militarismo e da formação de grandes monopólios, Rosa nos mostra como a teoria do grupo de Bernstein tem como implicação política mais importante a negação da alternativa socialista: as reformas atendem exigências do capitalismo e conformam-no de maneira a fazê-lo sobreviver, exclusivamente.

Vale destacar, aqui, que Rosa não cai no erro de opor Reforma e Revolução como dois entes separadas: a revolucionária, por suposto, reconhece o papel das reformas (meios) que educam e conscientizam o movimento operário em torno de um projeto de emancipação pela via revolucionária (fins). Ainda assim, a conclusão teórica a que Rosa chega, em Reforma e Revolução, é que o reformismo, quando desprovido de uma estratégia de ruptura com o capitalista, tem como significado prático a inserção da ideologia burguesa dentro do dentro do SPD e dentro do movimento operário, de forma geral.

O texto é escrito de forma didática: Reforma e Revolução é um manifesto necessário e atual contra as tendências que buscam revisitar o marxismo, incutindo-lhe uma interpretação eclética (“apropriando-se o que há de bom e afastando o que dele há de mau”) cujo fim principal é desarmar a teoria no que se refere a sua ligação com a transformação social (negação da teoria do desmoronamento do capitalismo e tese dos meios sobrepostos aos fins).

O combate ao Revisionismo

A teoria do desmoronamento do capitalismo, em Marx, baseia-se em três elementos fundamentais: a socialização do processo de produção, a “anarquia crescente da economia capitalista” e suas crises cíclicas, e a organização e consciência do proletariado, potencializada pela generalização das relações capitalistas. Bernstein vale-se da análise de supostas formas de adaptação capitalista (sociedades de ações, concessões de créditos, melhoria relativa da classe operária em alguns países) para demonstrar como o desmoronamento do capitalismo é improvável/impossível. Já Rosa destaca a contradição original do revisionismo, a negação da teoria do colapso: “mas se os cartéis, o sistema de crédito, os sindicatos etc., suprimem assim as contradições capitalistas, e se, por conseguinte, salvam da ruína o sistema capitalista, se permitam ao capitalismo conservar-se em vida – é por isso que Bernstein os chama de “meios de adaptação” – como podem eles, ao mesmo tempo, ser ‘condições e mesmo, em parte, germes’ do socialismo?”

Em outras palavras, em que medida qualquer iniciativa cujo resultado prático seja a mera atenuação provisória dos conflitos sociais decorrentes do capitalismo podem (de forma processual, como um “meio”) gerar o socialismo? Salvar capitalismo de suas crises concilia-se de qual forma com a sua superação?

Partindo-se da negação das crises estruturais do sistema, toda a teoria de Berstein é desconstruída por Rosa Luxemburgo. No que se refere, por exemplo, aos sindicatos, Rosa resgata passagens importantes do Capital, lembrando que estes são instrumentos de luta por salário e redução da jornada de trabalho, sem incidir absolutamente sobre as relações de produção dadas.

Os sindicatos operam dentro dos marcos do capitalismo, atuam a partir das tendências de valorização e desvalorização monetária da força de trabalho, não incidem sobre a gestão dos meios de produção, não alteram a natureza exploratória do trabalho (valor de troca) no capitalismo. Já as cooperativas, igualmente criticadas por Rosa, ancorada nas análises de Marx, tem como destino sua dissolução frente aos monopólios capitalistas ou a sua conversão em novas empresas capitalistas (pequenas, médias e grandes).

A partir das críticas em torno do programa revisionista, Rosa extrai algumas conclusões importantes. I- Trata-se de um movimento tipicamente pequeno-burguês, relacionando-se particularmente com as aspirações da aristocracia operária; ii- sua orientação filosófica igualmente tem definição pequeno burguesa já que, ao negar a relação indissociável entre a teoria marxista e o projeto revolucionário, adotando uma orientação “eclética”, acaba dando por “científico” aquilo que é típico interesse de classe; iii- o revisionismo é idealista em suas análises econômicas, não levando em consideração as crises capitalistas como parte de sua própria natureza auto-destrutiva e prendendo-se a interpretações meramente impressionistas e empiristas da realidade (ver significado em Bernstein dos monopólios, do militarismo, do protecionismo alfandegário e das sociedades de ações).

Antecipações de Rosa Luxemburgo

É interessante notar como Rosa, ao contrapor o revisionismo à aplicação do método marxista para análise da realidade alemã, antecipa fatos políticos. Ao discutir o significado do militarismo e sua relação com as disputas imperialistas, Rosa acena, com mais de uma década de antecedência, a ocorrência da 1ª Guerra Mundial. Ao discutir o significado da política de créditos, Rosa, ao contrário de Bernstein, vê no fenômeno não uma forma irremediável de adaptação do capitalismo, mas uma fonte de crises futuras – “assim, em vez de um meio de supressão ou atenuação das crises, o crédito, ao contrário, não é senão um meio particularmente poderoso de formação das crises”. A Crise Mundial de 1929 comprovaria na prática o acerto de Rosa e a fragilidade da tese revisionista.

Há uma previsão que, infelizmente, Rosa não acertou. A revolucionária afirma ser o revisionismo de Bernstein uma teoria natimorta, sem qualquer possibilidade de ascensão. Eventualmente, Rosa referia-se à fraqueza do reformismo mais como forma de mobilizar o movimento operário, fazer com que os operários não se deixassem seduzir pelo discurso fácil do reformismo. Seja como for, as críticas teóricas elencadas como manifesto em Reforma e Revolução são hoje bastante atuais. Resgatar Rosa Luxemburgo, para os revolucionários, é uma exigência do momento.

Citação Final

“As relações de produção da sociedade capitalista aproximam-se cada vez mais das reelações de produção da sociedade socialista, mas, inversamente, as relações políticas e jurídicas estabelecem entre a sociedade capitalista e a sociedade socialista um muro cada vez mais alto. Muro este que não é arrasado, antes, porém, reforçado, consolidando pelo desenvolvimento das reformas sociais e da democracia. Por conseguinte, é somente o martelo da revolução que poderá abatê-lo, isto é, a conquista do poder político pelo proletariado”.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

"As Esquinas Perigosas da História" - Valério Acary

"As Esquinas Perigosas da História" - Valério Acary

Resenha Livro #26 - “As esquinas perigosas da História: situações revolucionárias em perspectiva marxista” – Valério Acary





“Revoluções são, portanto, um fenômeno histórico que tem como característica definidora mais importante a intervenção ativa das massas na arena política, com uma abrupta elevação da intensidade das lutas de classes e aceleradas mudanças nas relações de forças entre as classes. Por mais aguda que seja a crise econômica, por mais severa as seqüelas das catástrofes sociais, por mais dramática que seja a agonia do regime, sem que as massas entrem em cena não se abre uma situação revolucionária”

Nem sempre as melhores contribuições teóricas para a batalha das ideias correspondem ao lançamento de respostas mais ou menos fechadas acerca da realidade, interpretações esquemáticas do passado que se projetam em formas ortodoxas de se intervir no presente para o futuro. Aliás, de uma maneira geral, nem sempre o mais importante são as respostas. As perguntas antecedem as respostas. Eventualmente, perguntas mal formuladas são a fonte dos erros práticos, políticos ou teóricos. Erros políticos costumam ser comuns. Erros políticos em situações revolucionárias mostraram ser fatais.

O trabalho de Valério Acary é bastante oportuno principalmente por ser capaz de abrir a discussão realizando perguntas. O objeto do estudo do autor é interpretar as revoluções por que passa o mundo ao longo do séc. XX. Não se discute isoladamente as experiências revolucionárias da Rússia (1905-1917), Espanha (1937), Iuguslávia (1945), China (1949), Cuba (1959), França (1968), Portugal (1979) ou Nicarágua (1979). O que se faz é, através das experiências históricas, procurar sistematizar, em primeiro lugar, o que todos estes eventos tiveram de comum, quais foram os pré-requisitos para a explosão e aceleração do tempo histórico decorrente dos momentos revolucionários. Pegunta-se qual foi a participação dos sujeitos coletivos/partidos/movimentos e sua relação com os embates de classe nas revoluções.

Pergunta-se enfim: como podemos dar sentido para os diversos momentos revolucionários ao longo do século de forma a pensarmos, num segundo momento, em algo como as diversas experiências (ainda que fracassadas) servem à luta anti-capitalista.

Levantar perguntas acerca da natureza das classe em luta, os seus horizontes políticos e, talvez a pergunta mais instigante, por que (com exceção de Outubro de 1917), nenhuma revolução alcançou aquilo que L. Trótsky chama de “transcrescimento” (a generalização da socialização dos meios de produção e um movimento de transformação societária numa orientação pós-capitalista) é fonte de controvertidas análises que ainda hoje dividem a esquerda.

As muitas perguntas que o livro levanta, parece-nos, corresponderia a um ponto de partida para um objetivo mais geral do livro de Valério Acary: o desenvolvimento de uma Teoria Geral das Revoluções.

O Papel dos Partidos Políticos

“Nunca existiu uma relação simples – de causa e efeito – entre a crise terminal de um regime e seu colapso revolucionário. Governos com bases sociais de sustentação muito minoritárias podem-se manter por muito tempo. Nenhuma ordem econômico-social desmorona sozinha. Não são as organizações revolucionárias, contudo, que fazem revoluções. Revoluções são feitas pelos sujeitos sociais. A qualidade maior ou menor da representação política das classes exploradas pode acelerar ou retardar uma situação revolucionária e, finalmente, decidir a sorte da revolução. Mas nem o partido mais revolucionário pode substituir o movimento prático de milhões de pessoas mobilizadas. A improvisação da liderança demonstrou-se quase uma regra nas revoluções políticas do último quartel do século XX, sem que fosse, todavia, decisiva. A força irreprimível da luta de massas foi suficiente para derrubar governos tirânicos e regimes ditatoriais, mesmo quando não dispuseram de direções temperadas em décadas de perseverante preparação. A debilidade subjetiva de comando foi, no entanto, fatal em todas as revoluções sociais”.

Destacamos a passagem acima por ela ilustrar, eventualmente, certo posicionamento político acerca dos papeis dos partidos no preparo e direção das massas dentro dos momentos revolucionários: neste ponto controverso, a análise histórica é pertinente, mas nem sempre conclusiva.

Interpretamos a orientação de Acary no sentido de, por um lado, reconhecer os episódios de espontaneidade que perpassam as experiências revolucionárias, assim como o fenômeno da própria produção de lideranças ao longo dos momentos de acentuação dos conflitos. Entretanto, ainda segundo o autor, a ausência de uma direção preparada teve papel “fatal”, no sentido de não fazer com que os diversos “Fevereiros”, que se repetiram nas diversas experiências revolucionárias do século XX, não avançassem em “Outubros”, passando de revoluções meramente políticas (derrubada de tiranias e ditaduras) a revoluções econômico-sociais (extinção da hetero-gestão produtiva, abolição do aparato repressivo-ideológico do estado e construção do socialismo).

Uma pergunta decisiva, aqui, é o de se delimitar os papeis dos sujeitos coletivos, o que, deve ser mesmo antecedido pela pergunta acerca das relações entre partidos políticos e classes sociais. O partido político foi uma expressão política das classes e, definitivamente, a dificuldade dos partidos socialistas imprimirem uma orientação anti-capitalistas aos diversos “fevereiros” é parte da explicação para os fracassos das revoluções. Entretanto, e aqui explicamos o fato da experiência histórica não ser sempre conclusiva, pensamos que os fracassos das experiências autônomas de luta, ativa e coletiva, contra o capitalismo, ainda que derrotadas historicamente, não invalidam as possibilidades da auto-organização, da mesma maneira como não entendemos serem as experiências históricas de burocratização dos partidos socialistas/comunistas uma inevitabilidade essencialista que implicam na negação da forma partido. As duas orientações, parece-nos, chegam a conclusões baseadas em interpretações históricas, não se levando em consideração que a história, ainda que dotada de sentidos, sempre está aberta a novas possibilidades (inclusive, o colapso, ao contrário de certa orientação fatalista acerca da realização da revolução a partir da crise objetiva do capitalismo).

Para dar uma conclusão a esta pequena ponderação, acreditamos que o problema da direção dentro dos projetos de revolução se encerram em formas de organização que tenham capilaridade social, que incidam de maneira a potencializar a capacidade política das massas e o seu senso crítico de maneira a inviabilizar cada vez mais a burocratização. Como afirma Tony Cliff, o que corrompe as organizações políticas não é o poder, mas a impotência, a falta de controle (auto-controle) sobre os partidos e organizações (meios).

Uma bela citação para concluir o artigo

Cumpre ressaltar que Valério Acary escreve muito bem. O seu texto é fluente, claro e é muito prazeroso de ler. Vamos citar uma última e pequena passagem, à guiza de conclusão.

“Quando o proletariado perde o medo ancestral de se rebelar, perde até o medo de morrer, toda a sociedade mergulha em um turbilhão e em uma vertigem da qual não poderá emergir sem grandes convulsões e mudanças. E, se esse sentimento for compartilhado por milhões, então essa força social transforma-se em força material, em uma força material terrível, maior que todos os exércitos, do que as polícias, do que as mídias, as igrejas, maior do que tudo, quase imbatível. Esses momentos são as crises revolucionárias. Que a maioria das revoluções do século XX tenha sido derrotada, não demonstra que não venham ocorrer novas vagas revolucionárias no futuro”.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

"O estrangeiro" - Albert Camus

Resenha Livro #25 – “O estrangeiro” – Albert Camus




Mersault trabalha num emprego sem importância. Quando sua mãe morre, chega a hesitar se deve ou não pedir desculpas ao seu chefe: precisará faltar alguns dias para velar o corpo, preocupando-o a reação do patrão às suas faltas. A falecida faz com que Mersault, adulto, provavelmente branco e francês, viaje a Marengo (80 Km de Argel), onde providenciará o cortejo do corpo e o enterro.

De volta à Argel, Mersault envolve-se com uma datilógrafa do trabalho. Encontra Marie tomando banho de mar. Tanto seu relacionamento amoroso, quanto os conflitos posteriores envolvendo o protagonista só assumem importância na medida em que servem para revelar a forma particular como Mersault parece ver o mundo. O trabalho é encarado como uma banalidade, a morte da mãe parece assumir a mesma importância que o café com leite tomado antes do enterro e detalhes da arquitetura do caixão, o relacionamento amoroso é narrado como um encontro casual e desprovido de sentimentos não racionais, a prisão, como uma necessidade irresistível da vida.

A banalidade do cotidiano e o desencontro

Chama atenção a forma como os eventos e as sensações pessoais de Mersault vão sendo relatadas de forma indiferente. O personagem, que narra sua história em 1ª pessoa, parece despir-se por inteiro, revela os eventos por que passa com o máximo de sinceridade, o que, de alguma forma, implica naquela indiferença: o autor não se sente obrigado a justificar seus atos, pouco lhe parece importar a reação do leitor àquilo que narra.

A sensação de indiferença parte da sinceridade de Mersault e, igualmente, justifica-se diante da própria vida.

A mãe lhe surge como um parente distante, o que decorre da distância e do tempo que passaram afastados. A ausência de lágrimas derramadas pelo filho chama atenção dos demais presentes no enterro, mas explica-se pela compreensão de que a mãe levara uma vida melhor longe do filho. O leitor a todo momento compreende Mersault e igualmente compreende o porque os demais não compreendem Mersault – o personagem parece não manter relação de pertencimento ao mundo.

Contingências determinando o fluxo da vida

Tanto eventos cotidianos quanto os conflitos, correspondentes à morte da mãe, às relações amorosas com Marie, aos enigmáticos árabes com quem Mersault acaba por se envolver, à prisão e à condenação à morte, surgem como se fossem parte de uma inevitável contingência de fatos a que Mersault vivencia antes como um espectador. Decorre, imaginamos, daí o nome da obra de Albert Camus. Mersault é um estrangeiro, não apenas por ser um francês residente na Argélia, mas por, parece-nos, ser alguém que vivencia suas experiências de forma alheia, como um observador distante.


Humanidade x Barbárie

Particularmente, Mersault vê-se afetado pelos sinais climáticos. O frio, o calor e as circunstâncias do meio lhe afetam provavelmente mais do que o normal. Ainda, Mersault parece ser bastante perspicaz ao compreender e identificar os sentimentos daqueles com quem interage. Não há, portanto, insensibilidade ou falta de sentimentos humanos em Mersault. O fato dele sentir-se estrangeiro, parece-nos, decorre da barbárie social, da incompreensão geral determinada por um fluxo inevitável de eventos do qual Mersault parece ser expectador. O fim trágico de Mersault é uma decorrência lógica de uma sequencia de eventos que, em seu todo, parece ser absurda. A justiça oficial e a religião surgem particularmente como parte da irracionalidade, fazendo com que a sensação final é a de que, num mundo alienado e desumano, a honestidade radical de Mersault faz com que ele se afaste da realidade e seja vítima dos eventos.

O estrangeiro é um texto enigmático. Trata-se do primeiro romance de Albert Camus (1942) e, ainda hoje, dialoga bastante com um mundo que reifica o homem, fetichiza a mercadoria e parece ser incapaz de dotar a história de sentidos.

domingo, 15 de maio de 2011

"Condição Pós-Moderna" - David Harvey

Resenha Livro #24- “Condição Pós-Moderna “ – David Harvey – Ed. Loyola





Autor

Harvey é um geógrafo britânico e professor de universidades norte-americanas. Suas pesquisas são focadas particularmente sobre o estudo das cidades – as análises sobre as implicações econômicas sobre a arquitetura das cidades e as noções de espaço-tempo discutidas em “Condição Pós-Moderna” sinalizam o diálogo particular de Harvey com a geografia. “Condição Pós-Moderna” corresponde ao seu terceiro livro, tendo sido lançado no Brasil em 1993.

Visão Panorâmica da Condição Pós Moderna

“O Novo valor atribuído ao transitório, ao fugidio e ao efêmero, a própria celebração do dinamismo, revela um anseio por um presente estável, imaculado e não corrompido” – Jürgen Habermas – Citado por David Harvey


O livro de Harvey tem seu formato pensado e organizado de maneira a oferecer uma crítica dialética do que é apresentado como “condição pós-moderna”. O significado dialético da análise de Harvey refere-se ao esforço de confrontar as tendências da arte, da arquitetura, da filosofia e da política pós-modernas com as exigências econômicas decorrentes dos ciclos de expansão e crise do capitalismo. É nesse sentido que toda a análise de Harvey acerca da “Condição Pós-Moderna) diz respeito a certa condição histórico-geográfica.

O próprio autor dá uma boa síntese das suas preocupações e objetivos da obra.

“Por meio do primeiro (materialismo histórico), podemos compreender a pós-modernidade como uma condição histórico-geográfica. Com essa base crítica, torna-se possível lançar um contra-ataque da narrativa contra a imagem, da ética contra a estética e de um projeto de Vir-a-Ser em vez de Ser, buscando a unidade no interior da diferença, embora um contexto em que o poder da imagem e da estética, os problemas da compreensão do tempo-espaço e a importância da geopolítica e da alteridade sejam claramente entendidos”. (Pg. 325)

Destacamos a ponderação final do autor: reconhecer a necessidade de ampliar o campo de compreensão da alteridade e o que ele chama de novas relações de “tempo-espaço” também deve ser objeto das análises críticas. Se a intenção geral de Harvey nos pareceu lançar uma crítica sobre a condição pós-moderna, se apropriando da dialética e da ideia do materialismo histórico, sua opção metodológica não implica na mera negação “em bloco” dos questionamentos dos desafios teórico-metodológicos colocados pela “condição pós-moderna”. Muito pelo contrário: há, sim, o esforço de se promover uma “renovação do materialismo histórico-geográfico (que) pode na verdade promover a adesão a uma nova versão de projeto do Iluminismo”.

Outro aspecto interessante da obra, e que igualmente sinaliza a apropriação da dialética como fonte de crítica social, é a própria forma como o ensaio é dividido. As IV partes do texto complementam e confrontam ideias entre si, de maneira que a parte 4 (Condição Pós-Moderna) corresponde a uma síntese das discussões acerca do significado geral das mudanças culturais, geográficas (ideia de espaço-tempo) e políticas da fase da acumulação flexível.


Breve síntese do ensaio

Na Parte I – “A Passagem da Modernidade à Pós-Modernidade na cultura contemporânea”, são apresentados em linhas gerais os elementos que configuram a estética pós-moderna, destacando-se especialmente a arquitetura, de maneira a introduzir o debate, ilustrando a forma como a condição pós-moderna se situa no espaço urbano, na arte, na publicidade, nos meios de comunicação. Há a exposiçãoda forma como o discurso da pós-modernidade incide no cotidiano, sugerindo a atualidade do debate. Neste momento, ainda não identificamos as posições políticas do autor com relação ao problema.

Na Parte II – Em “A transformação político-econômica do capitalismo do final do séc. XX”, as atenções do autor voltam-se agora para as relações econômicas, e particularmente o momento de transição das formas de organização do trabalho. A transição do modelo fordista ao modelo da “acumulação flexível” passa a subsidiar o entendimento materialista histórico-geográfico da condição pós moderna. A definição de acumulação flexível parece ser do próprio autor (não conhecemos a origem da expressão) e é amplamente descrita, a partir de gráficos e tabelas, como momento da reestruturação produtiva do capitalismo a partir dos anos de 1970.

“A acumulação flexível, como vou chamá-la, é marcada por um confronto direto com a rigidez do fordismo. Ela se apóia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional”.

Evidentemente, as mudanças econômicas exigem transformações nos discursos que dão sustentação à natureza ideológica do trabalho. Harvey identifica autores que falam em “fim do trabalho”, particularmente Gorz, com distorções que têm a ver com a condição pós-moderna.

Na parte III, na nossa opinião o momento mais complexo e difícil do texto, Harvey discute as experiências do espaço-tempo ao longo da história: do começo da modernidade, referindo-se às mudanças das noções de espaço e tempo decorrentes das transformações tecnológicas, políticas e sociais do início da modernidade, o sentido de tempo e espaço dentro do projeto Iluminista e, talvez o capítulo mais interessante do livro, a discussão do tempo e espaço no cinema pós-moderno a partir de análises dos filmes “Blade Runner” de Ridley Scott e “Asas do Desejo” do cineasta alemão Wim Wenders.

O que há de comum nas duas películas é a forma como são retratados o espaço-tempo na pós-modernidade. A tese de Harvey é a de que, ao contrário do momento Iluminista em que a noção do “Vir-a-Ser” tem importância central na percepção social do tempo e do espaço – remetendo, na nossa interpretação, a uma história dotada de sentidos, a condição Pós-Moderna, ao fastar o “Vir-a-ser” e instaurar a hegemonia do “ser”, implica numa crise de representatividade do tempo e do espaço, dinamizada pela lógica da acumulação flexível. No Caso de Blade Runner, a crise diz respeito às experiências dos “Replicantes”, espécies de robôs fabricados à imagem e semelhança dos homens, que têm sentimentos, mas não têm história de vida: são simulacros de pessoas que, ao final do filme, pouco se diferenciam dos homens enquanto sujeitos sociais e históricos. As diferentes noções de tempo e espaço vivenciadas por personagens que convivem e interagem, também aparece em Asas do Desejo, estabelecendo relações entre homens a anjos, mortais e imortais, pouco se podendo diferenciar passado, presente e futuro. Tais exemplos sinalizam aquilo que se chama de Crise da representatividade do Tempo e Espaço. Mais uma vez, o desafio aqui é identificar tais crises não enquanto inevitabilidades que corroboram para uma visão irracionalista da vida – aquilo que Carlos Nelson Coutinho diria ser a “Miséria da Razão”.

O desafio é transpor os discursos ideológicos identificando as crises de representação enquanto partes de um determinado desenvolvimento histórico pautado por exigências econômicas e pelos conflitos de classe. Este é o termo a que se chega a parte IV. Há aqui uma proposta de síntese, sinalizando, dentre outros, os desafios colocados pela Condição Pós-Moderna àqueles que lutam por uma sociedade que, nas palavras de Harvey, equiparem as potencialidades econômicas às necessidades humanas, o que quer dizer socialismo.

O Materialismo Histórico frente à Crise da representação do espaço-tempo

O sentido e as implicações gerais da Condição Pós Moderna podem não ter sido bem captadas pela esquerda, de maneira a não contrapor as críticas acerca da “insuficiência” ou “reducionismo” do materialismo histórico e dialético frente às esferas culturais e políticas da era da acumulação flexível. Particularmente, a reflexão acerca da crise das representações de tempo-espaço deve ser objeto de atenção, até para se considerar em que medida formas de organização e intervenção política anti-capitalistas podem estar desgastadas frente às circunstâncias tecnológicas e sociais que viabilizam trocas de experiência e de ideias em curto espaço de tempo. Ações diretas, lutas espontâneas, intervenções lúdicas e poéticas podem somar-se às tradicionais formas de resistência e mobilização, contrapondo a crise de representação de tempo-espaço a uma percepção humanista e dotada de sentidos acerca do tempo e do espaço. Capacitar estudantes e trabalhadores a serem protagonistas históricos significa também combater os discursos de fragmentação ou eliminação da história, decorrentes daquela crise de representação.

Harvey elenca quatro itens que, no nosso entendimento, bem corresponderia a 4 novas exigências de estudos por parte da esquerda diante da era da acumulação flexível. Vale a pena citar os 4 desafios, a título de conclusão.

1-“ O tratamento da diferença e da “alteridade” não como uma coisa a ser acrescentada a categorias marxistas mais fundamentais (como classe e forças produtivas), mas como algo que deveria estar onipresente desde o início em toda tentativa de apreensão da dialética da mudança social. A importância da recuperação de aspectos da organização social como raça, gênero, religião, no âmbito do quadro geral da investigação materialista histórica (com a sua ênfase no poder do dinheiro e na circulação do capital) e da política de classe (com sua ênfase na unidade da luta emancipatória) não pode ser superestimada”.

2- Um reconhecimento de que a produção de imagens e discursos é uma faceta importante de atividade que tem que ser analisada como parte integrante da reprodução e transformação de toda ordem simbólica. As práticas estéticas e culturais devem ser levadas em conta, merecendo as condições de sua produção cuidadosa atenção.

3- Um reconhecimento de que as dimensões do espaço e do tempo são relevantes, e de que há geografias reais de ação social, territórios e espaços de poder reais e metafóricos que se tornam vitais como forças organizadoras na geopolítica do capitalismo, ao mesmo tempo em que são sede de inúmeras diferenças e alteridades que têm de ser compreendidas tanto por si mesmas quanto no âmbito da lógica global do desenvolvimento capitalista. O materialismo histórico finalmente começa a levar a sério sua geografia.

4- O materialismo histórico-geográfico é um modo de pesquisa aberto e dialético, em vez de um corpo fixo e fechado de compreensões. A metateoria não é uma afirmação de verdade total, e sim uma tentativa de chegar a um acordo com as verdades históricas e geográficas que caracterizam o capitalismo, tanto em geral como em sua fase presente”.

domingo, 24 de abril de 2011

"O Estruturalismo e a Miséria da Razão" - Carlos Nelson Coutinho

Resenha #23 0 “O Estruturalismo e A Miséria da Razão” – Carlos Nelson Coutinho – Ed. Expressão Popular




Autor

Carlos Nelson Coutinho é filósofo marxista, militou no PT e hoje mantém proximidade com o PSOL. Introduziu no Brasil, junto com Leandro Konder e outros, as idéias do filósofo húngaro György Lukács. Alguns anos após a publicação do “Estruturalismo”, passaria a estudar o filósofo italiano Antônio Gramsci. E é a partir da influência gramsciana que Coutinho lançará seu provável mais famoso ensaio, “A Democracia Como Valor Universal”.


Objetivos do Estudo

A publicação de “Estruturalismo e A Miséria da Razão”, cerca de 30 anos após o seu lançamento (1971), revela a atualidade das discussões propostas pelo autor. O objetivo da obra, então, era o de fazer crítica militante acerca da tendência filosófica predominante nas universidades brasileiras após 1968. O exílio dos intelectuais brasileiros de esquerda e o cerco ideológico promovidos pela repressão criou condições para a importação daquela nova moda filosófica francesa. No Brasil, o Estruturalismo viria a preencher o vazio intelectual decorrente da repressão e da fragilidade política da esquerda, pouco capaz de dar respostas teóricas às críticas do estruturalistas à razão dialética, ao humanismo e à história dotada de sentidos.

Já o objetivo da obra de Carlos Nelson Coutinho, hoje, vai além de ilustrar os embates filosóficos de sua época e/ou tratar de alguns tópicos da filosofia de Marx, e particularmente de Lukács e sua ontologia do ser social.

O texto é ainda capaz de armar o campo crítico e marxista de argumentos e respostas às tendências filosóficas irracionalistas: hoje, o estruturalismo deixa de ser a moda filosófica, havendo versões atualizadas da “miséria da razão” sob os nomes de pós-estruturalismo e pós-modernismo. Igualmente, estruturalismo e pós-estruturalismo têm lances de continuidade e sinalizam respostas do mundo da filosofia às exigências da economia e manifestações dos ciclos de crise e expansão do capitalismo. O Estruturalismo, filosofia européia que mantém correspondência com um momento de expansão do capital, estabelece suas bases filosóficas a partir de modelos esquemáticos, da técnica, da razão instrumental, tabelas, números e eficácia. O pós-estruturalismo, correspondendo aos eventos da reestruturação produtiva e crise econômica estrutural, sinaliza insegurança, contingência, irracionalismo, o resgate da filosofia pessimista de Nietzche e Heidegger, dentre outros. O que há de comum entre estruturalismo e pós-estruturalismo é a negação dos 3 eixos fundamentais da filosofia do marxismo: o humanismo, o historicismo e a dialética.

Batalha das Ideias

Ao negar o humanismo, o Estruturalismo é incapaz de revelar a “mutilação da práxis pela manipulação, a necessária irracionalidade de uma vida voltada para o consumo supérfluo e humanamente insensato”. Ao negar o historicismo, o estruturalismo naturaliza as relações históricas de exploração, chegando a teses extremas, como em Levi-Strauss, de se defender a existência de estruturas e normas sociais que antecedem o homem, e portanto, a própria história. Ao negar a dialética, o Estruturalismo instaura a hegemonia da razão meramente instrumental – chamada por Carlos Nelson Coutinho de Intelecto. Negar a dialética, seja por estruturas normativas imutáveis (estruturalismo) seja pela pura e simples negação da racionalidade a priori (pós-estruturalismo) significa contrapor-se aos esforços de promover um entendimento totalizante da realidade, capaz de tornar o mundo congniscível e passível de ser transformado: pensar para além do intelecto significa utilizar a razão decorrente das descobertas filosóficas de Hegel e Karl Marx, negadas pelas mais distintas formas pelas filosofias manipulatórias.

Reinvindicar a atualidade da filosofia crítica e emancipatória significa confrontá-la com as demais filosofias associadas, de forma mais ou menos consciente, à lógica de reprodução do capital. A batalha das ideias segue viva, 30 anos após o lançamento do “Estruturalismo e A Miséria da Razão”.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

"Felicidade Conjugal" - Lev Tolstoi

Resenha #22 “Felicidade Conjugal” – Lev Tolstoi – Editora 34 – Tradução Boris Schnaidermann



Sobre a obra

Felicidade Conjugal foi lançada em 1859, tratando-se de obra da fase jovem do escritor russo Lev Tolstoi ( 1828-1919). Quando o romance foi escrito, o autor tinha pouco mais de 30 anos. Não se identifica em Felicidade Conjugal algumas idéias relacionadas à moral e política que marcariam sua obra mais reconhecida.

Ainda não se aborda em Felicidade Conjugal questões sociais, não há descrição das profundas desigualdades econômicas dentre as classes sociais da Rússia do séc. XIX. Não há relatos das condições de vida de camponeses e mujiques contrapostas à descrição e à crítica do luxo exacerbado das classes dominantes da Rússia – tanto a aristocracia quanto à burguesia incipiente das cidades – tema que será particularmente analisado no útlimo romance do autor, “Resurreição”.

No que se refere à moral, não há o viés doutrinário do cristianismo, que igualmente é parte do conjunto de idéias que se abrigam sobre o termo "tolstoísmo". Felicidade Conjugal é um romance sucinto, é um relato pessoal das experiências amorosas de Mária Aleksândrovna. O objeto central do texto são os sentimentos da personagem, ou talvez mais exatamente, o desenvolvimento dos sentimentos de afeto e amor da Maria ao longo do seu amadurecimento pessoal e do amadurecimento de sua relação com seu marido Sierguiéi Mikháilitch.

Em um aspecto pudemos, porém, identificar um traço de continuidade entre Felicidade Conjugal e a obra subseqüente de Lev Tolstoi. Trata-se da habilidade com que o autor traduz os sentimentos das personagens, sensações sutis decorrentes dos relacionamentos humanos ou mesmo da percepção humana acerca da natureza. A descrição de nuvens movimentando-se no céu, formando chuvas e posteriormente dissipando-se combina-se no enredo com a trajetória das personagens de forma bastante interessante.

Tolstói foi muito capaz de captar e e comunicar coisas sutis das pessoas e dos ambientes. Exige-se boa capacidade de interpretação do homem e do mundo para conseguir descrever sensações profundas e complexas de forma tão simples. De maneira geral, os textos de Tolstoi são sempre bastante acessíveis. Frases curtas, orações diretas e vocabulário comum oferecem análises e reflexões aprofundadas acerca dos diversos temas decorrentes do amor. No caso de “Felicidade Conjuugal”, do amor burguês.

Sobre a História

Mária Aleksândrovna casa-se ainda muito jovem com Sierguiéi Mikháilitch. Seu amor pelo marido é relatado desde sua infância, quando o afeto então assumia a forma de admiração e respeito análogo ao amor por seu pai. Conforme a jovem amadurece, igualmente seu amor por Mikháilitch vai tomando formas distintas. Apaixonam-se, casam-se e retiram-se para o campo, para uma vida inicialmente feliz. A diferença de idade passa a ser fonte de angústia e inquietações por parte de ambos e o desenvolvimento da felicidade conjugal em diferentes aspectos vai sendo relatada por Maria.

Cumpre ressaltar que o casal possui terras e muitos recursos financeiros. Na gleba do casal moram camponeses trabalhadores, não se sabendo em que condições. Pouca ou nenhuma atenção é dada pelo texto (e por Maria) a qualquer questão que não a relação amorosa do casal. A descrição reiterada dos sentimentos individuais, mesmo se tratando de sentimentos sutis e originais, pode parecer um pouco entediante para certo tipo de leitores.

Possibilidades

Ainda assim, é possível extrair algumas lições de Felicidade Conjugal. O interessante aqui é tentar extrair da história algumas idéias sobre como se fundam as relações de gênero numa sociedade em que co-existem relações capitalistas e pré-capitalistas de produção, desenvolvimento de cidades e ilustração burguesa convivendo com o domínio aristocrático no campo, forte presença religiosa da Igreja Ortodoxa, suntuosidade e opulência em bailes e eventos envolvendo o conjunto da classa dominante russa. Neste tipo de sociedade, não cabia à mulher nenhuma preocupação que não fosse tocar piano, conversar com outras mulheres durante o dia e viver de forma subserviente ao homem, reconhecer-lhe total autoridade sobre si. Mária não só o faz, como parece que o deseja a todo momento. A dominação masculina é parte daquilo que sente e interpreta como "felicidade conjugal" na medida em que seu amor é fruto também de suas expectativas sobre o que é ser mulher naquela sociedade.

O desafio inconcluso de “Felicidade Conjugal” é buscar a compreensão da forma como o amor e a felicidade podem subsistir às relações de opressão e dominação. Mária é feliz e sua felicidade está totalmente comprometida com um mundo radicalmente machista. Hoje isso deve significar, entre outras coisas, repensar o que é o amor e como ele pode projetar novas relações de gênero distintas daquelas das sociedades pré-capitalistas e capitalistas descritas em ‘Felicidade Conjugal’.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

"A Chinesa" - Jean Luc-Godard

Resenha Filme #3 – “A Chinesa” – Jean Luc-Godard



6 Pontos sobre "A Chinesa" de Jean Luc-Godard

1- O filme retrata jovens universitários franceses organizados numa célula política de orientação maoísta. O grupo passa os dias dentro de um apartamento, de onde praticamente não saem, falando de temas teóricos ligados à arte, filosofia da linguagem e política internacional, sempre se orientando pelas críticas ao imperialismo norte-americano e ao revisionismo soviético. (O fato dos jovens estarem isolados do mundo é determinante, por suposto, na conformação de suas análises políticas da realidade). A obra passa-se em Paris de 1967 e ilustra a geração de universitários franceses que participariam das revoltas do maio de 68.

2- Veronique tem 19 anos, estuda filosofia, aparenta possuir vasta formação teórica, ainda que imatura e impaciente politicamente. Kirilov é um artista, pouco intevem nas discussões do grupo e defende o terrorismo político. Henri é químico e tensiona o coletivo acerca da necessidade de objetividade nas análises: “o marxismo é uma ciência.” É acusado de revisionista e, ao defender a coexistência pacífica entre URSS e EUA, é expulso da célula. Guillaume é ator, fala sobre política de forma intensa, lê trechos do livro vermelho em voz alta e aparenta ser arrogante. Yvonne é de origem camponesa, diferencia-se do restante do grupo por sua origem social, pelo fato de não compreender as discussões na forma como elas são feitas pelos universitários. Na cidade, trabalhou como faxineira e eventualmente prostitui-se.

3- O filme tem uma linguagem bastante específica, os diálogos são intercalados com mensagens políticas, imagens de Lênin, Mao-Tsé Tung, Malcon X e Stálin ou cartazes de propaganda política, fotografias ilustradas da revolução cultural chinesa, da resistência na Argélia e jovens dissidentes na URSS. O apartamento é decorado com mensagens políticas pintadas nas paredes e diversos livros vermelhos. Os livros vermelhos são utilizada como barricada em luta simbólica contra o imperialismo ou jogados num tanque de guerra de brinquedo. A forte presença do livro vermelho remete à centralidade da revolução cultural dentro do imaginário dos jovens franceses do final dos anos 1960. Os impactos decorrentes da morte de Stálin, o imperialismo soviético, a coexistência pacífica e a emergência das guerrilhas no chamado terceiro mundo são retratados nas discussões políticas, nas imagens e nos desdobramentos finais do filme (que não serão contatos nesta resenha).

4- Uma discussão específica entre Veronique e um antigo professor da universidade nos pareceu o ponto alto do filme. O fato do diálogo dar-se fora do apartamento favorece a crítica sobre as políticas dos jovens universitários: dentro de um trem em movimento, aquele é um dos poucos momentos que Veronique convive com pessoas de fora da célula. A conversa gira em torno dos problemas das universidades francesas, do autoritarismo e sensação de sufocamento cultural e das formas de luta de resistência. Veronique revela neste momento o fato de que os dois anos de estudos teóricos de marxismo não expressam conhecimento e sensibilidades acerca do real, dos desafios concretos e objetivos dos estudantes na luta pelo socialismo. A proposta da ação terrorista, de lançar bombas na universidade defendida por Veronique é duramente criticada. As ações terroristas não vinculadas com um movimento de massas e com um alguma possibilidade de adesão no sentido de promover uma luta generalizada não são objeto de preocupação na estudante. A luta revolucionária surge à personagem como algo pessoal. Lênin quando discute o esquerdismo, relaciona-o à política pequeno-burguesa. Não se pode fazer a revolução pela maioria mas necessariamente com a maioria.

5- O isolamento da célula revolucionária em relação ao mundo é igualmente fonte de provocação àqueles que hoje lutam pelo socialismo num contexto em que a possibilidade de um futuro pós-capitalista aparenta ter sido jogada no lixo da história. O fato é que todo o estudo teórico não suprime a exigência da experiência prática como forma de apreensão do real, dos objetivos e dos meios de luta através da “análise concreta da realidade concreta” (Lênin). O apartamento da célula maoísta existe como um mundo à parte, sem conexão orgânica com a realidade dos trabalhadores. Emblemático o fato da camponesa Yvone estar isolada politicamente do grupo. Em uma de suas poucas intervenções é vaiada pelos estudantes, ao responder que a origem da verdade é o “céu”. No que se refere à nossa realidade, a provocação vai num sentido mesmo além da crítica à política de seita. A provocação trata daquilo que costuma-se chamar das condições objetivas e subjetivas da revolução. Se o conhecimento teórico do grupo dá suporte às interpretações teóricas acerca das condições objetivas, esta depende da vivência concreta dentro da realidade do trabalho – fora do apartamento ou de reuniões internas de partidos e dentro de fábricas, escolas, nos bairro populares. Sobre as condições subjetivas, estas se expressam na organização política, nos fluxos de consciência da classe que vive do trabalho e na sua interação com as análises das condições objetivas.

6- A ideia de que um apartamento fechado ao mundo de onde um grupo jovens dará partida a uma revolução mundial é comparada a uma fábula, relatada no filme, que oferece uma boa síntese de a Chinesa. No Egito, acreditava-se que a língua falada por aquele povo era a mesma que a língua de deus. Para demonstrá-lo, conta-se que um pequeno grupo de bebês foi deixado numa casa em total isolamento do mundo: havia a expectativa de que os pequenos aprendessem a língua naturalmente. Passados alguns anos, constatou-se que as crianças comunicavam-se grunhindo como carneiros – notaram que havia carneiros ao lado da casa onde as crianças foram abandonadas. A crítica política de Godard refere-se à ideia de que o apartamento equivale a casa das crianças egípcias. Infelizmente, a crítica tem sua atualidade.