sexta-feira, 11 de março de 2011

"O Debate Sobre a Centralidade do Trabalho" - José Organista

Resenha Livro #18 “O Debate Sobre a Centralidade do Trabalho” – José Henrique Carvalho Organista – Ed. Expressão Popular





A série de livros “Trabalho e Emancipação” da Expressão Popular contém pesquisas acadêmicas e textos clássicos que discutem a conformação do trabalho sob o capitalismo e as potencialidades do labor enquanto parte da luta contra o capital. Identificamos aqui uma dupla dimensão do trabalho: por um lado, o trabalho abstrato, historicamente determinado, pensado enquanto valor de troca e alienante; por outro lado, o trabalho concreto, que precede e vai além da configuração do trabalho sob a lógica da heterogestão produtiva, pensado enquanto valor de uso e com potencial revolucionário.

Esta dupla dimensão do trabalho, ao não ser percebida ou claramente distinguida, acabou sendo fonte de confusões teóricas, particularmente quando se discute o problema do trabalho nas sociedades capitalistas de hoje. Identificar as imprecisões das teorias sociais que confundem “trabalho” e “emprego” e decretam, de distintas formas “o fim do trabalho” é o objetivo do estudo “O Debate Sobre a Centralidade do Trabalho”.

Para cumprir esta tarefa, o autor sistematiza os principais argumentos daqueles que pensam, sob diferentes maneiras, o fim da centralidade do trabalho, particularmente a partir da reestruturação produtiva dos últimos 30 anos.
Os fenômenos da flexibilização das relações de trabalho, o cooperativismo, a informalidade e o desemprego estrutural vão sendo interpretados pelos diferentes autores, ora como sinal do “fim do trabalho”, ora questionando a atualidade da “classe trabalhadora”. De maneira geral, cria-se certo senso comum de que existiria hoje tendência da supressão do labor produtivo pela “técnica”, pelo desenvolvimento tecnológico.

Não é difícil identificar a forma como aqueles prognósticos acerca da configuração do mundo do trabalho pós reestruturação produtiva dialoga com a ideologia neoliberal do “fim da história” e das utopias. Este parece ser especificamente o caso dos autores André Gorz (capítulo 1 – “Adeus ao proletariado e a utopia de uma sociedade do tempo livre”), Clauss Offe (capítulo 2- “Questionamentos sobre categoria trabalho) e mesmo Habermas (Capítulo 4 – “Linguagem, Trabalho e Interação”).

O que todos estes autores têm em comum é aquela confusão conceitual derivada da dupla dimensão do trabalho, ora como valor de uso ora como valor de troca, além da apreensão dos fenômenos relacionados ao trabalho apenas no que se refere a sua forma na história. O trabalho, por suposto, encontra-se fragmentado e existe de fato uma nova organização diferente do modelo fordista. Isto, igualmente, não implicou na supressão da exploração do trabalho. Pelo contrário: a redução dos números de trabalhadores empregados, por exemplo, opera dentro da lógica do capital desde que a criação de exército de reserva é a melhor forma de imobilizar os trabalhadores. As redes informais de trabalho não existem separadamente ou à margem da produção de mercadorias no capitalismo. A fragmentação do trabalho, de maneira geral, diz respeito às novas exigências do capitalismo dentro de seus ciclos de expansão e crise.

Habermas, o Social Democrata.

Habermas é um dos autores desconstruídos pelo estudo de José Henrique Organista e pareceu-nos travar uma discussão mais profunda no que se refere às críticas ao trabalho. Habermas opõe o conflito entre classes, o embate entre capital e trabalho a uma alternativa arranjada através de uma nova interação “comunicativa” promovida por um estado de direito democrático. O conflito de classes teria sido “pacificado” pela intervenção do estado na economia a partir das reformas sociais a da entrada do proletariado no parlamento, de maneira que o estado de bem estar social inviabilizaria a possibilidade de se pensar numa identidade de classe na atualidade.

Como se sabe, a social democracia alemã não se credencia como modelo global das relações de trabalho, considerando-se o desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo e, particularmente, o desmonte geral do welfare state pelo neoliberalismo. No que tange especificamente o problema da centralidade do trabalho, a intepretação habermasiana apóia-se na crença de que o desenvolvimento das forças produtivas e da tecnologia faria supostamente com que o capital não necessitasse do trabalho. Esta tese, por suposto, invalida a premisa de que, sob o capitalismo, o trabalho assume um caráter de exploração que não se encerra sob os marcos jurídicos ou formais, que possam ser regulamentados pelo direito, por exemplo. Mesmo a ilegalidade presente no comércio dos camelôs, lembra o autor do ensaio, opera dentro de uma lógica capitalista, promove a circulação de mercadorias e não se opõe a lógica de valorização do capital.

“Embora reconhecendo a heterogeneidade , a fragmentação e a complexidade que se efetivou no mundo do trabalho, (Ricardo) Antunes defende a possibilidade de uma efetiva emancipação humana do e pelo trabalho, posto que, se vivemos numa sociedade produtora de mercadorias, somente a classe-que-vive-do-trabalho pode se contrapor à lógica do capital e à sociedade produtora de mercadorias. (...)" Ainda segundo Ricardo Antunes, “a revolução de nossos dias é, desse modo, uma revolução no e do trabalho. É uma revolução no trabalho na medida em que deve necessariamente abolir o trabalho abstrato, o trabalho assalariado, a condição de sujeito-mercadoria, e instaurar uma sociedade fundada na auto-atividade humana, no trabalho concreto que gere coisas socialmente úteis, no trabalho emancipado. Mas é também uma revolução do trabalho, uma vez que encontra no amplo leque de indivíduos (homens e mulheres) que compreendem a classe trabalhadora, o sujeito coletivo capaz de impulsionar ações dotadas de um sentido emancipador”.

Não conseguiríamos pensar numa melhor síntese da atualidade da centralidade do trabalho, seja como forma de valorização do capital seja como fim revolucionário. A leitura do ensaio de José Henrique Carvalho Organista é uma ótima introdução e apresenta bons argumentos para fazer frente à ideologia do “fim do trabalho”.

quinta-feira, 10 de março de 2011

"Eros e a Civilização" - Hebert Marcuse

Resenha #17 Eros e Civilização – Uma Interpretação Filosófica do Pensamento de Freud



Considerações Preliminares

‘Eros e Civilização’ foi escrito em 1955, correspondendo ao 4º dos 10 grandes livros publicados em vida por Hebert Marcuse (1898 – 1979). O filósofo alemão está relacionado à Escola de Frankfurt e, no imaginário comum, remete ao conjunto de pensadores que influenciou as lutas de maio de 1968 na França.

De fato, Marcuse influenciou aqueles jovens ativistas. E muito do que aparece em ‘Eros e Civilização’ remete às inquietações daquele movimento. A discussão sobre o problema da sexualidade e sua vinculação às relações de poder e/ou arranjos sociais e históricos de dominação e controle; a crítica radical do trabalho alienado, explorando analiticamente os significados simbólicos e psicológicos da exploração e da condição humana em sociedades capitalistas; a sinalização de novas formas de resistência, envolvendo particularmente a crítica igualmente radical dos valores burgueses; enfim, tudo isso sinaliza preocupações semelhantes entre o movimento de maio de 1968 e o filósofo.

No posfácio político da obra, escrito em 1966, Marcuse já saúda os protestos estudantis norte-americanos contra as guerras imperialistas como uma nova etapa da luta. Cintando-o:

“Em defesa da vida: a frase tem um significado explosivo na sociedade afluente. Envolve não só o protesto contra a guerra e a carnificina neocoloniais, a queima de cartão de recrutamento, a luta pelos direitos
civis, mas também a recusa em falar a língua morta da afluência, em usar roupas limpas, desfrutar os inventos da afluência, submeter-se à educação para a afluência. A nova boemia, os beatniks e hipsters, os andarilhos da paz – todos esses “decadentes” passaram agora a ser aquilo que a decadência, provavelmente, sempre foi: pobre refúgio da humanidade difamada”.

O livro, segundo nossa interpretação do posfácio político, associa-se ao movimento de luta política, de “luta pela vida”. Eros, a propósito, designa um deus relacionado à beleza e ao amor sexual – ao longo do ensaio é tratado como sinônimo do “instinto de vida”. A luta pela vida, por sua vez, assume um significado de luta antisistêmica – luta contra o que Marcuse chama de “princípio da realidade” das sociedades repressivas. O instinto pela vida, hoje, passa a ser parte de uma estratégia geral de luta contra o capitalismo – a civilização em sua fase desenvolvida do ponto de vista da luta contra a escassez cria condições objetivas para a construção de uma sociedade igualitária baseada na socialização do trabalho e da política.

Finalmente, ‘Eros e a Civilização’ é um livro de filosofia que tem o objetivo de revisitar as ideias da psicanálise lançadas inicialmente por Freud, criticá-las, relacioná-las ao âmbito da sociedade de classes e destacar os aspectos ainda atuais das teses de Freud, confrontando-os com o revisionismo dos ‘neofreudianos’.

Marcuse parte de algumas categorias que são estranhas a um leitor que não conhece Freud. Logo no capítulo 2, Marcuse, provavelmente atento a tal fato, resgata e descreve didática e rapidamente conceitos da psicanálise – id, ego, superego, repressão, princípio de realidade. A esses termos, acresce outros, destinados a contemplar uma perspectiva mais ampla (que leva em consideração a história e os conflitos de classe), propondo alguns termos novos. “Mais Repressão”, a “restrição requerida pela dominação social” e “princípio de desempenho”, a “forma histórica do princípio de realidade”.

Seja como for, vale ponderar que a leitura deste ensaio de Marcuse nos pareceu bastante difícil. Com certeza, algumas discussões da obra escaparam-nos. Ainda assim, “Eros e Civilização” é um livro que vale ser lido: desafiar-se enfrentar o complexo tema da subjetividade humana, dos desejos libidinais e do impulso pela morte, da repressão moral e do problema da sexualidade no capitalismo cria melhores condições para, hoje, avaliarmos novas formas de lutar frente a uma compreensão mais elaborada da realidade e de suas contradições.

Marcuse interpreta Freud

O objetivo do ensaio é resgatar as ideias de Freud acerca do problema dos instintos humanos na civilização. O “mal estar da civilização” de Freud diz respeito às contradições supostamente insolúveis entre as exigências do instinto em oposição às exigências da vida em sociedade. Marcuse propõe-se, como indica o título, fazer uma interpretação filosófica de Freud. Isto significa que sua interpretação de Freud não remete a certa abordagem “terapêutica”, que irá circunscrever as possibilidades de reflexão lançadas pelo pai da psicanálise a um conjunto meramente instrumental de práticas cujo objeto exclusivo é atenuar o sofrimento e a dor do indivíduo egoísta, solitário e alienado. Esta interpretação filosófica cumpre, igualmente, a função de demarcar os limites e as possibilidades das ideias de Freud para a luta antisistêmica.

Os limites dizem respeito ao já conhecido ceticismo do pai da psicanálise com relação ao socialismo, ou, no que se refere à crítica marcusiana, à suposta inevitabilidade do “mal estar da civilização”. A naturalização do “mal estar da civilização” é oposta à adequação dos conflitos entre
desejos individuais e exigências da civilização, à história e aos conflitos de classe.

Vamos citar, nesse sentido, a crítica da teoria dos instintos.

'Contudo, na teoria de instintos, Freud não extrai quaisquer conclusões fundamentais, a partir da distinção histórica, atribuindo a ambos os níveis uma validade geral e igual. Para a sua metapsicologia não constitui fatos decisivo se as inibições são impostas pela escassez ou pela distribuição hierárquica da escassez, pela luta pela existência ou pelo interesse na dominação. E, com efeito, os dois fatores – o filogenético-biológico e o sociológico – cresceram juntos na história documentada da civilização. Mas a sua união desde há muito se tornou “inatural” – e o mesmo aconteceu à “modificação” opressiva do princípio do prazer pelo princípio da realidade. A sistemática negação, por Freud, da possibilidade de uma libertação essencial do primeiro implica o pressuposto de que a escassez é tão permanente quanto a dominação – uma hipótese que nos parece discutível'.

A noção de civilização em Freud passa a ser extrapolada por Marcuse. O viés marxista de sua reflexão filosófica sobre a psicanálise diz respeito, portanto, ao debate sobre as formas como se dão a repressão instintiva partindo do pressuposto de que a realidade pode/deve ser superada e em como uma sociedade pós-repressiva deveria se diferenciar da sociedade do capital.

As críticas ao revisionismo neofreudiano são, finalmente, objeto de um capítulo exclusivo do ensaio. E neste ponto, Marcuse busca retirar as possibilidades do pensamento de Freud, confrontando-o com a orientação de neofreudianos. De maneira geral, a psicanálise criticada por Marcuse corresponde àquela que tem compromissos exclusivos com a “cura” de pacientes. A abordagem terapêutica dos neofreudianos deve operar de forma a desconsiderar o problema dos controles repressivos forjados pelo Estado, família, trabalho alienado, etc.

“O analista e seu paciente compartilham dessa alienação, e como esta não se manifesta, usualmente, em qualquer sintoma neurótico, mas, pelo contrário, como timbre de ‘saúde mental’, não aparece na consciência revisionista [das idéias de Freud]”.

É interessante notar como, diante dos distintos pressupostos, a psicanálise freudiana pode tanto atuar tanto num sentido emancipatório quanto num viés bastante reacionário. Exemplificando este último viés, Marcuse cita Sullivan que, em estudo sobre neuroses, identifica a conduta de um indivíduo “depreendido voluntariamente” das amarras do senso comum e que, por livre escolha, adota uma ideologia (ou consciência) radical como sinal de “grande insegurança” ou loucura. Marcuse, por suposto, ridiculariza Sullivan. Levada ao pé da letra, a tese de Sullivan faria de Jesus a Lênin, Sócrates a Giodarno Bruno perigosos psicopatas.

Finalmente, “Eros e a Civilização” municia especialistas em psicologia e psicanálise preocupados em entender os fenômenos da neurose individual, da depressão ou do “mal estar da civilização” como sintomas de um mundo igualmente doente e que deve ser revolucionado.

O papel da libido na luta antisistêmica.

Na nossa opinião, o capítulo mais interessante de “Eros e a Civilização” é o décimo, “A transformação da Sexualidade em Eros”. Desde que Marcuse não compartilha da tese de Freud e dos neofreudianos da “naturalização” da sociedade repressiva, o filósofo alemão se aventura corajosamente a pincelar o que seria e quais seria os requisitos de uma sociedade não repressiva. (Interpretamos ser a sociedade não repressiva a sociedade comunista ).

A nova cultura não repressiva tem como eixo central nova relação entre a razão e os instintos. O trabalho não-gratificante passa a ser objeto de prazer, inclusive libidinal. Todo o padrão de prazer libidinal deverá sofrer alterações tão radicais que subverterão e desintegrarão instituições organizadas a partir de relações privadas interpessoais. A família monogâmica e patriarcal, por suposto, desaparece e a transformação da libido (de uma sexualidade refreada a uma espécie de “prazer total”) exigirá mudanças profundas nos marcos políticos e societários. Por isso, a luta de Eros, Deus da beleza física e do amor sexual, é uma luta política.

Como conclusão, vamos transcrever dois parágrafos do capítulo 10. Optamos por finalizar esta resenha com esta passagem, já que aqui surgem boas provocações para reflexão para a atuação.

A complexidade e densidade discursiva do ensaio de Marcuse devem permanecer inquietando os espíritos críticos e servindo como fonte teórica para a luta contra o capital.

'Freud realçou repetidamente que as duradouras relações interpessoais de que a civilização depende pressupõem que o instinto sexual é inibido em seus fins. O amor, e as relações duradouras e responsáveis que ele exige, baseiam-se numa união de sexualidade com o “afeto”, e essa união é o resultado histórico de um longo e cruel processo de domesticação, em que a manifestação legítima do instinto se torna suprema e suas partes componentes são sustadas em seu desenvolvimento. Esse refinamento cultural da sexualidade, essa sublimação do amor, tem lugar numa civilização que estabeleceu relações possessivas particulares separadas e, num aspecto decisivo, conflitantes com as relações sociais de posse. Enquanto, fora do privatismo da família, a existência do homem foi principalmente determinada pelo valor de troca dos seus produtos e desempenhos, sua vida no lar e na cama foi impregnado do espírito da lei divina e moral.

Supôs-se que a humanidade era um fim em si e nunca um simples meio; mas essa ideologia era efetiva mais nas funções privadas do que nas sociais dos indivíduos; mais na esfera da satisfação libidinal do que na do trabalho. A força plena da moralidade civilizada foi mobilizada contra o uso do corpo como mero objeto, meio, instrumento de prazer; tal coisificação era tabu e manteve-se como infeliz privilégio de prostitutas, degenerados e pervertidos. Precisamente em sua gratificação e, em especial, em sua gratificação sexual, o homem tinha de comportar-se como um ser superior, vinculado a valores superiores; a sexualidade tinha de ser dignificada pelo amor. Com o aparecimento de um princípio de realidade não-repressivo, com a abolição da mais repressão requerida pelo princípio do desempenho, esse processo seria invertido. Nas relações sociais, a coisificação reduzir-se-ia à medida que a divisão do trabalho se reorientasse para a gratificação de necessidades individuais desenvolvendo-se livremente; ao passo que, na esfera das relações libidinais, o tabu sobre coisificação do corpo seria atenuado. Tendo deixado de ser usado como instrumento de trabalho em tempo integral, o corpo seria ressexualizado. Essa mudança no valor e extensão das relações libidinais levaria a uma desintegração das instituições em que foram organizadas as relações privadas interpessoais, particularmente a família monogâmica e patriarcal'.

quarta-feira, 2 de março de 2011

“A crise das ditaduras – Portugal, Grécia e Espanha” – Nicos Poulantzas

Resenha #16 A crise das ditaduras – Portugal, Grécia e Espanha – Nicos Poulantzas




Panorâmica do autor e obra

Nicos Poulantzas é um sociólogo grego que passou parte de sua vida na França. Está vinculado à tradição marxista (foi membro do Partido Comunista Grego) e no exílio, teve contato com as idéias althusserianas – foi, na verdade, aluno de Luis Althusser.

A “crise das ditaduras” é o seu 5º livro: foi lançado em 1975, um ano após a publicação de sua (provável) obra mais importante “As Classes Sociais no Capitalismo Contemporâneo”. Em ambos, nota-se preocupação recorrente de se identificar a dinâmica das classes em luta e, particularmente, descrição das formas como as classes dominantes impõem o poder político e em que aspectos frações internas ou externas às burguesias podem ser aproveitadas como focos de intervenção do proletariado.

As tensões entre distintas frações da burguesia, a forma como as tensões de classe vão se reproduzindo nos aparelhos político- ideológicos (Estado, Exército, Igreja, etc.) e as lições dos movimentos socialistas frente às experiências das derrocadas das ditaduras em Portugal, Grécia e Espanha correspondem aos eixos da “Crise das Ditaduras”. De forma geral, o autor busca entender o problema da política interna e as relações dos países em questão com os imperialismos norte-americano e europeu de forma a lançar bases de um entendimento mais detalhado sobre a forma como vai se dando as transformações políticas dos três países em crise e, particularmente, as razões pelas quais as mobilizações e as lutas em curso não configuram numa alternativa socialista.

As lutas são conduzidas por frações específicas das burguesias de cada país. Poulantzas busca analisar os interesses econômicos e as políticas específicas das distintas frações da burguesia e descrever como se dá a conformação da direção política da transição democrática. A participação dos trabalhadores, ocasionalmente, implica naquilo que Tróstky em sua “teoria da revolução permanente” crítica de forma contundente: a ausência de ligação entre a luta democrática e a luta pelo socialismo implica nas ações das massas promovendo revoluções que servem à burguesia.

Aparelhos Ideológicos e luta de classes

Poulantzas centra sua análise particularmente nos aparelhos ideológicos – de maneira geral, o autor identifica as contradições de classe perpassando contradições internas dos aparelhos.

De nossa parte, vemos com alguma reserva a percepção “estruturalista” de Poulantzas, particularmente sobre aspectos do exército e do Estado burgueses. De fato, os aparelhos possuem complexidades internas e acreditamos que os socialistas devem servir-se tanto das contradições internas quanto externas dos Estados nacionais dentro de uma tática que busca alterar a correlação de forças à favor da ruptura com o capitalismo. Entretanto, entender a dinâmica dos aparelhos como fonte de reprodução da luta de classes pode corroborar para o entendimento de que o Estado e as demais instituições políticas são mera reprodutores das relações sociais externas aos aparelhos. O Estado e as instituições políticas deixam de ser a fonte de dominação política da burguesia e objeto da pacificação social e de salvaguarda do capitalismo: o Estado torna-se expressão exterior da luta de classes. No que se refere ao programa político derivado da nossa interpretação do ensaio de Poulantzas, o Estado, as instituições políticas e os aparelhos ideológicos assumiriam um papel mais importante do que a luta coletiva, ativa e autônoma das massas.

Nos momentos revolucionários autênticos – tal qual o que vemos nas revoluções dos países árabes neste exato momento – o Estado e as instituições são antes “atropelados” pelas contradições de classe do que propriamente reprodutores da luta de classes. O debate sobre Estado e Revolução ainda está inconcluso: a contribuição de Poulantzas é uma boa provocação para aprofundar e atualizar nosso entendimento sobre os reais alcances dos aparelhos ideológicos, sua natureza política e seus limites históricos.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

O Futuro da Filosofia da Praxis - Leandro Konder

Resenha livro #15 O Futuro da Filosofia da Práxis: o pensamento de Marx no século XX – Leandro Konder. Ed. Paz e Terra.




As palavras, de tanto repetidas, podem eventualmente ter seu significado prejudicado, sublimado pelo conjunto de usos e entendimentos de acordo com conveniências políticas mais ou menos conscientes. Deve-se sempre atentar para o fato de que falar sobre ‘liberdade’, ‘justiça’, ‘democracia’, ‘socialismo’, ‘holocausto’, ‘direitos humanos’ ou ‘meio ambiente’ vai implicar sempre em certa adequação dos termos a determinados discursos e práticas políticas, eventualmente antagônicas entre si. A palavra ‘democracia’, aqui, assume um papel bastante emblemático. Democracia é reivindicada por quase todos, da direita neoliberal aos socialistas, passando mesmo pelos regimes de ditadura militar ou civil que igualmente justificam a repressão como forma de ‘salvar a democracia’. O significado de palavras como ‘democracia’ passa a ser definido de acordo com as convicções políticas de cada emissor em cada situação histórica específica, determinada por fins ora de legitimação ora de transformação da ordem.

Se o sentido das palavras dialoga com uma sociedade em conflito, a disputa pelos significados dos conceitos relacionados à tradição marxista (socialismo, trabalho, alienação, ideologia e, por suposto, o próprio termo ‘marxismo’) passa a ser algo determinante. Determinante para saber situar melhor nossas práticas de acordo com elaboração teórica mais detalhada das realidades complexas do trabalho e da luta por seu emancipação no século XXI. E determinante, particularmente, para fazer sobreviver e avançar o legado teórico-metodológico do marxismo frente à ideologia pós-moderna e/ou demais ‘filosofias’ que se propõem a negar em bloco qualquer atualidade das teses de Marx – corroborando, na esmagadora maioria das vezes, para a perpetuação do status quo.

Estas duas últimas preocupações, o aprofundamento teórico e a atualização do marxismo a partir da análise concreta das contradições do capitalismo do século XXI, são fontes de preocupação recorrente dos textos de Leandro Konder. Em ‘Derrota da Dialética’, o autor faz um estudo de fôlego sobre a recepção das ideias marxistas no Brasil, destacando as graves dificuldades no acesso, difusão e compreensão da filosofia da práxis como fontes da “derrota da dialética”, da conformação do marxismo sob uma forma esquemática, linear e pouco atenta às potencialidades da dinâmica da história. A dialética é substituída pelo evolucionismo e a teoria passa a ser mera forma de legitimação das práticas política determinadas pela orientação das direções políticas dos instrumentos de luta. Em “Marxismo e Alienação”, Konder dedica dois capítulos ao problema da alienação dentro das organizações de esquerda, no mundo e no Brasil. Já em o ‘Futuro da Filosofia da Práxis’, o objeto do autor é simples, e ao mesmo tempo ousado: partindo do fato de Marx ter disso um pensador do séc. XIX, que influenciou diversos movimentos e autores ao longo do séc. XX, pergunta-se Leandro Konder em que aspecto a filosofia de Marx mantém sua atualidade no séc. XXI. O sentido da palavra “marxismo” tem um tratamento especial no ensaio. Mais uma vez, se as palavras são fontes de disputas políticas, o resgate das principais teses de Marx, relacionando-as com seus usos (e abusos) ao longo dos anos, cumpre o papel de desmistificar certo entendimento dogmático das ideias do filósofo alemão.

Revisitar as ideias de Marx

‘Marx foi um pensador do século XIX’ é o nome do primeiro capítulo do ensaio. Aqui, a constatação, aparentemente óbvia, implica levar em consideração os próprios limites do autor, dado o universo cultural e o repertório de ideias acessíveis a um pensador naquele momento e naquelas circunstâncias históricas. Trata-se, acreditamos, do velho problema do ‘anacronismo’ discutido pelos historiadores. Anacronismo, em primeiro lugar, correspondendo à análise de personagens do passado que não leva em consideração o fato de que aqueles mesmos personagens não terem tido acesso aos acontecimentos subsequentes à sua produção em vida, contrariando eventualmente seus prognósticos. Anacronismo, em segundo lugar, em certa recepção das ideias de Marx como uma doutrina a partir da qual a realidade deve se adequar de maneira esquemática.

Nesse sentido, um fato bastante emblemático tratado por Leandro Konder refere-se às ambigüidades entre as ideias revolucionárias de Karl Marx sobre o problema da consciência política e alienação e a sua conduta própria em vida. Marx lança as bases de um entendimento revolucionário do homem e sua formação de consciência, avançando sobre certa tradição, marcadamente ideológica, que busca encontrar traços mais ou menos universais do ser humano num plano distante das relações de trabalho e sociabilidade. Para Marx, a consciência é produto da experiência humana concreta que se dá, de forma privilegiada, a partir das relações de trabalho, que se modificam e possuem certa dinâmica correspondente aos estágios do desenvolvimento histórico. Ocorre que o indivíduo Marx também é produto de seu tempo. Mesmo lançando as bases de uma teoria crítica radical da realidade, ainda tem seu universo cultural relacionado ao conjunto de ideias disponíveis a um intelectual do séc. XIX e reproduz as práticas sociais de um homem da Inglaterra vitoriana. É conhecido, por exemplo, o etnocentrismo com que o velho Marx tratou as lutas de emancipação na América Latina. Em carta escrita ao genro cubano Paul Lafargue, relatada por Konder, Marx soa claramente racista. E, na verdade, as próprias ideias de Marx, particularmente suas análises sobre a alienação, o estranhamento do homem em relação à vida individualista e solitária no capitalismo, cria condições para se entender as contradições de sua prática em vida.

“O fato de ter sido um desmistificador genial dos fenômenos típicos de uma esfera decisiva da atividade alienada (a esfera da produção e da apropriação) não assegurava a Marx uma consciência isenta de “alienação” na esfera da vida familiar e da moral privada”. (Pg. 32)

Radicalizar o marxismo

Revisitar as ideias de Marx significa, portanto, aplicar até as últimas conseqüências o método crítico de Marx sobre o próprio marxismo. A crítica radical da realidade combinada a um profundo desejo e sincera disposição em engajar-se nas lutas pela superação do capitalismo foram igualmente fundamentais nos séculos XIX e XX. Hoje, a luta pelo socialismo é mais do que nunca necessária. O ‘Futuro da Filosofia da Práxis’, ao fazer o elo do pensamento de Marx ao longo dos séculos, certamente mereceria uma nova edição, quem sabe, pela Expressão Popular.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Ensino Jurídico e Mudança Social - Antônio Alberto Machado

Resenha#14 “Ensino Jurídico e Mudança Social” – Antônio Alberto Machado. Ed. Expressão Popular





Sobre a Obra

Antônio Alberto Machado é professor de direito da UNESP de Franca e coordena naquela universidade o NEDA – Núcleo de Estudos de Direito Alternativo. O Direito Alternativo nasceu como uma proposta de contraponto à cultura jurídica dominante, associada ao pensamento liberal, ao formalismo e à tradição positivista. Faz oposição portanto a certa perspectiva que entende o direito como ciência cuja centralidade está na norma jurídica positivada formalmente pelo Estado: esta oposição parte especialmente da análise crítica das instituições jurídicas, reconhecendo-as portanto como parte de uma superestrutura política que opera dentro de um quadro de dominação e conformação do poder.

O sentido histórico do direito

O direito entendido como “técnica”, como “conjunto de normas positivadas pelo Estado”, ou como “ciência pura” (que é ainda o entendimento dominante nas escolas de direito e na cultura jurídica como um todo) vincula-se a estágio específico de desenvolvimento histórico da burguesia, de classe revolucionária à classe dominante. Isto significa que todo o aspecto ideológico que perpassa as grandes ideias de justiça, igualdade e liberdade mantém correspondência às lutas e revoluções burguesas dos séculos XVIII e XIX, à consolidação e generalização do capitalismo e do domínio burguês. Uma vez consolidado o poder político da nova classe dominante, processa-se a adequação dos discursos às exigências políticas. Não deixa de ser sintomático que a chamada “exegese jurídica”, entendido como expressão do rigor máximo da aplicação das normas jurídicas de acordo com seu enunciado textual e literal, tenha como referência o direito civil napoleônico. Após as lutas revolucionárias que derrubaram o antigo regime francês, a nova conformação de classes exigiu naquele momento histórico um novo arranjo jurídico que daria sustentação e legitimidade política ao Estado moderno e constitucional, não se admitindo, por suposto, uma prática jurídica que aceitasse, por exemplo, interpretações minimamente flexíveis dos textos legais. Como ponto de partida para o seu estudo, Machado identifica neste modelo positivista-liberal – forjado, portanto, num momento de revoluções e mudanças da conformação do poder político – um esgotamento, ou “uma crise”.


A Crise do direito liberal e o alternativismo

A “crise” do modelo positivista e liberal é o seu ponto de partida. Ainda que no estudo o autor não trabalhe especificamente o tema do Direito Alternativo, sua pesquisa pode ser também interpretada como parte daquele movimento de juristas, estudantes e demais profissionais da área. Os alternativistas, ao se depararem com o direito ideologizado, entendido pelo senso comum como “neutro”, operando basicamente como meio de controle social e manutenção da ordem, vão apontar para um movimento oposto que coloca a prática jurídica como fonte de transformação social. Antônio Alberto Machado denomina a nova proposta de atuação como “praxis”, expressão que sugere a conjugação da teoria e prática numa dialética que envolve um norte político frente aos conflitos de classes.

Os limites e potencialidades do direito enquanto meio de transformação social vão sendo entendidos de uma forma bastante variada: tal qual aqueles movimentos de frente única no âmbito da política da esquerda (reformista ou revolucionária), o direito Alternativo vai admitir maior ou menor aceitação da tese da atuação institucional, ora como forma de transformação ora como forma de consentimento e pacificação dos conflitos, da praxis jurídica para a justiça social mais ou menos associada à luta revolucionária pelo socialismo, aos distintos entendimentos sobre o papel e significado político do Estado burguês. As variadas perspectivas sinalizam, por ora, que o debate reforma e revolução ainda está na ordem do dia. As distintas filiações políticas, neste caso, vão ter conseqüências práticas na forma como se pensa os fins do direito e, particularmente, os seus limites históricos.

Reivindicamos a importância das críticas ao modelo positivista lançadas pelo movimento alternativista como parte de uma estratégia geral de despertar da consciência política dos estudantes ou mesmo profissionais da área do direito. Como o próprio texto de Machado nos mostra, a maioria dos operadores, doutrinada e deformada por ensino e cultura jurídica meramente cartorial, burocrática, ideologizada, etc, tem uma percepção bastante despolitizada da realidade, o que implica, analisando casos jurídicos individualmente, em decisões judiciais ou outras manifestações de operadores claramente reacionárias. Eventualmente, o posicionamento do judiciário sobre determinadas questões é radicalmente conservador, mesmo ao senso comum e ao conjunto de idéias dominantes – aqui nos vem à mente penas privativas de liberdade para crimes de bagatela, uso de violência policial em manifestações públicas, ações de reintegração de posse com claríssima sinalização da prevalência do poder econômico. Não raro, os exemplos acima vão sendo justificados/legitimados pela “literalidade da lei”. Dura lex, sed lex.

Duas Problematizações

Para os fins da nossa humilde e rápida resenha, faremos duas problematizações. A primeira diz respeito ao sentido da “crise do modelo positivista-liberal”. A segunda diz respeito aos limites do próprio papel do direito enquanto forma de transformação social.

A proposta de mudanças curriculares surge na pesquisa de Alberto Machado como sendo parte de uma “exigência” da própria realidade do cenário político e jurídico do país. A exigência é fruto de uma crise do modelo liberal-positivista. A constituição de 1988, a promoção de uma nova série de direitos coletivos e difusos, os graves problemas sociais decorrentes do neoliberalismo e as pressões por mudanças na situação de desigualdade do país criaram nova conjuntura que exige do profissional do Direito certa maturidade política para compreender que sua intervenção enquanto jurista, promotor, advogado, etc., deve contemplar as novas exigências do Estado Democrático de Direito.

Em certa passagem da pesquisa, o autor sugere que os direitos sociais enunciados pelo texto constitucional brasileiro implicariam num regime socialista. Temos aqui um problema que não parece ter sido fechado pelo estudo. A admissão de que a efetivação dos direitos sociais elencados ideologicamente pelo extenso rol de direitos sociais e econômicos “socialistas” da constituição de 1988 exclui o que há de mais essencial na estruturação destes direitos: a existência de relações capitalistas de produção, alienação e exploração do trabalho, propriedade privada (ainda que tenha "função social"), o imperialismo, ou seja, a dominação econômica a partir da relações centro e periferia, além da própria conformação desigual e combinada do capitalismo mundial, entre outros.

A “eficácia” do Estado ou do direito quando medida pela “eficácia das normas jurídicas dentro do capitalismo” pressupõe aceitação tácita de que a transformação social seja possível dentro do marco institucional: uma consequência desta perspectiva é a não compreensão de que a alternativa frente à crise do modelo positivista-liberal é, esta sim, uma nova forma mais “eficaz” de controle social e pacificação dos conflitos de classe. De maneira análoga aos tempos da revolução francesa e da exegese napoleônica, os novos operadores do direito “alternativo” credenciam-se como gestores qualificados para atuar em realidades complexas de trabalho e dominação. O sentido da “crise”, portanto, deixe de pertencer ao trabalho. O sentido da “crise” e sua superação apenas servem ao capital quando a práxis jurídica não implica a luta ativa, coletiva e consciente contra o capitalismo.

Cabe aqui perguntar qual é o espaço para uma luta jurídica anticapitalista. E este é o ponto que colocamos como segunda e última problematização.

Como Alberto Machado coloca em seu texto, o Estado opera num sentido literalmente conservador, sua lógica de pacificação de conflitos tem como escopo evitar tensões que prejudiquem a ordem social e econômica sobre o qual se mantém. Está longe das nossas possibilidades nem mesmo iniciar uma discussão sobre limites e potencialidades do direito enquanto transformação social. Nossa provocação, neste ponto, refere-se a uma parte específica do problema. Se o estudo de Machado sugere em diversas partes a necessidade de o direito ser uma ferramenta de transformação social como forma de superar o modelo liberal-positivista, poderíamos igualmente inverter a ordem dos fatores. A possibilidade de mudança social pelo direito pode também admitir a exigência da mudança social para a transformação do Direito e a superação radical do modelo liberal e positivista.

A bem da verdade faremos justiça de dizer que o autor leva em consideração os dois aspectos – mudança social e mudança do paradigma jurídico. “Logo, as perspectivas de mudança social e transformação democrática da sociedade, por meio do direito, estão, de alguma forma, vinculadas à revisão do modelo de ensino jurídico liberal/positivista vigente até hoje no país. Se não é rigorosamente certo dizer que a mudança social e da mentalidade jurídica depende, de modo determinista, da revisão dos paradigmas do ensino jurídico; será, no entanto, correto supor que ambas as coisas, ensino jurídico e mudança social, estão ligadas entre si numa relação, se não de causa e efeito, pelo menos de fator e conseqüência” (Pág.232). Entretanto, sentimos falta de mais reflexão sobre esta dialética que envolve o direito e a revolução social e, especialmente, o problema da transformação do direito pela transformação social, eixo, talvez, negligenciado a favor da transformação social pela transformação do direito. Menos reforma e mais revolução.

O que existe, finalmente, é uma lacuna teórica que deve ser preenchida pelos revolucionários sobre o problema do direito para a revolução anticapitalista. O estudo do Antônio Alberto Machado vale como provocação para mais produção alternativas e contra-hegemônicas.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Trabalho Duro, Discurso Flexível - Márcia Hespanhol Bernardo

Resenha Livro# 13 “Trabalho duro, Discurso Flexível: Uma análise das contradições do toyotismo a partir da vivência de trabalhadores” – Márcia Hespanhol Bernardo



Sobre a obra e sua importância

A editora expressão popular, como se sabe, cumpre papel fundamental de divulgação de textos clássicos do marxismo na língua portuguesa com preços acessíveis. A contribuição ganha relevância no sentido tanto de armar politicamente ativistas e movimentos sociais com formação teórica que subsidie a militância em sindicatos, partidos de esquerda, etc., quanto para viabilizar movimento contra-hegemônico que trave batalha contra os sensos comuns derivados da ideologia burguesa.
Esta dupla preocupação perpassa todo estudo de Márcia Hespanhol Bernardo. Trata-se de uma pesquisa acadêmica crítica, com o objetivo de esmiuçar os mecanismos ideológicos que operam sobre o mundo do trabalho a partir de pesquisa sobre o cotidiano de trabalhadores metalúrgicos de duas grandes montadoras de São Paulo.

No que se refere ao municiamento do pensamento contra-hegemônico, o estudo contribui ao se propor discutir uma contradição aparente entre os novos discursos otimistas da organização flexiva do trabalho (que fala em “participação”, “colaboração”, “trabalhos em equipe”, etc.) e a permanência ou incremento de relatos que expressam intensificação da exploração do trabalho, doenças emocionais, sofrimento e dor. Contradição aparente, uma vez que, ao longo do estudo, vamos percebendo como aquele “discurso otimista” corresponde à ideologia que busca realçar suposta relação de pertencimento do operário à empresa, quando na verdade as novas relações de trabalho intensificam sua exploração a partir de práticas de organização e gestão cada vez mais complexas.
No que se refere à contribuição militante, o estudo em primeiro lugar detalha a forma como as empresas buscam dar sustentação ao novo modelo de trabalho - formas mais ou menos sutis de ameaças àqueles que queiram se organizar para lutar. E, ainda mais importante, a pesquisa dedica um capítulo inteiro à “resistência dos trabalhadores ao poder das empresas”.

Novas formas de resistência

Além das greves e dos trabalhos de agitação e propaganda feitos pelos sindicatos em articulação com trabalhadores da base da categoria considerados (pelos patrões) “rebeldes”, aparecem no estudo novas sinalizações de formas de resistência, individuais e coletivas. Nos relatos de trabalhadores recolhidos pelo estudo, há ações individuais e coletivas, tanto ativas (contra as normas), quanto passivas (sem infringir normas). Além das greves e paralisações, há ações individuais que remetem ao ludismo, com trabalhadores que riscam ou amassam automóveis para arrancar prejuízos à empresa – a intervenção é motivada por reação mais emotiva, um dos relatos fala de operário que trabalha em setor de montagem onde faz calor extremo, a sensação térmica é tão insuportável que, numa ação de “revolta” ou “vingança”, o montador danifica o veículo sem ser percebido e sem saber explicar sua intenção. Há ainda práticas mais sofisticadas de sabotagem, individuais e coletivas, que sinalizam, entre outros, a não adequação do discurso otimista dos gestores à realidade prática dos trabalhadores.

Tornando-se mais complexas ou sutis as relações de exploração, torna-se necessário discutir como atualizar as formas de resistência. De qualquer forma a própria sobrevivência das lutas no toyotismo tem significados importantes. Em primeiro lugar servem para demonstrar aos apologistas do capital como no atual mundo do trabalho não se aboliu a contradição capital e trabalho: muito pelo contrario, houve sim intensificação da exploração do trabalho a partir do aumento do ritmo de produção, da incorporação do trabalho intelectual como forma de aumentar a extração
de mais-valia a partir de formação de “equipes inteligentes de trabalho”, do estímulo à competição, do aumento do exército industrial de reserva como forma de pressionar os trabalhadores diante do medo do desemprego, etc. E o aumento da exploração do trabalho amplifica o conflito de classe, daí havendo necessidade de discursos hegemônicos cada vez mais sofisticados de adequação, convencimento e resignação.

Em segundo lugar, a maior complexidade do toyotismo exige a incorporação por parte dos sindicatos e organizações operárias anticapitalistas de novos métodos de luta que levem em consideração a necessidade de atualizar a forma de se expor o aspecto essencialmente ideológico do discurso flexível. Aumenta a necessidade da luta autônoma, coletiva e ativa dos trabalhadores, para que se torne cada vez mais clara a destreza com que o capitalismo incorporou demandas históricas dos trabalhadores para potencializar a extração de mais valia. Mais do que nunca, a nova realidade do trabalho exige maior preparo dos socialistas e anticapitalistas para a batalha das idéias.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Ressurreição - Liev Tolstói

Resenha #12 Ressurreição Liev Tolstói – Ed. CossacNaify





A emergência do mundo burguês na Rússia do séc. XIX, suas contradições e embates frente à derrocada do mundo aristocrático.

Autor e suas circunstâncias

Liev Tolstói (1828-1910) é provavelmente o escritor Russo mais lido de todos os tempos. As obras mais famosas do escritor são “Guerra e Paz” (1860) que descreve a invasão napoleônica da Rússia e “Ana Kariênina” (1870), extensa história de amor com diversas adaptações para o teatro e cinema. Os livros de Tolstói eram publicados livremente por toda a Europa: por opção ideológica o autor renunciou a todos os seus direitos autorais, de maneira que muitos problemas de tradução e edição grosseiras implicaram em diferentes recepções dos textos. Enquanto as cenas de sexualidade de Ana Kariênina foram ressaltadas nas edições francesas, nas publicações norte-americanas muitas cenas de amor foram suprimidas.

Ainda assim, seu reconhecimento público deu-se em vida, algo raro, o que lhe garantiu provavelmente a liberdade: prendê-lo acarretaria em desgaste político da autocracia russa diante de todo o mundo e particularmente da Europa “ilustrada”.

Vale destacar, aqui, contexto político da Rússia naquele momento histórico – algo que está bastante presente no texto do autor. O império era dirigido por elites políticas em transformação acelerada: a contradição central que impulsiona a mudança refere-se à exigência de sustentar regime político monárquico, centralizador, opressivo e com ranços medievais convivendo com a influência do pensamento liberal da Europa, da pressão por reformas políticas diante das revoluções liberais do séc. XIX e de organizações revolucionárias ou consideradas “subversivas”. Dentre estas últimas se destacam os jovens revolucionários do “Narodniks”– presentes em Ressurreição – que defendem o fim da propriedade privada no campo e radical distribuição de renda; pequenas seitas religiosas cristãs como os “dukhobors” – em russo, “lutadores do espírito” – que desafiam as práticas da Igreja Ortodoxa Russa e a lógica de poder do czarismo.

O próprio Tolstói foi responsável pelo fomento de grupo de discípulos. Estes discípulos tinham em comum a negação do Estado, do dinheiro e da Igreja oficial ortodoxa, praticavam o vegetarianismo e defendiam o pacifismo e a vida comunitária. O “tolstoísmo” é lembrado por certos autores como uma vertente anarquista. Anarco-tolstoísmo é conceito obviamente polêmico, muitos identificam aqui contradição entre os dois termos.

Aspectos Particulares de Ressurreição

Ao falarmos da trilogia dos grandes romances de Tolstói, é provável que Ressurreição (1899) seja a obra menos conhecida. Se nos dois primeiros livros o problema social, a denúncia política e o problema dos privilégios da nobreza são os panos de fundo para o enredo, em Ressurreição estes conflitos ganham maior destaque do que a história das personagens. “(Tolstói) focaliza o sistema judicial e prisional, um cenário e um contingente humano muito diferente do que encontramos nos romances anteriores. Desse ângulo, lança sobre a sociedade inteira uma luz capaz de pôr a nu o sentido da violência, oficial ou não, e sua relação com os privilégios”[1].

Esta nova perspectiva deve ser relacionada ao contexto em que a obra foi escrita.

Em 1894, Nicolau II assume o trono e exige de seus súditos por toda a Rússia juramento de lealdade. A Seita dos “dukhobors”, com quem o autor mantém contato, nega-se a prestar o juramento e alistarem-se ao serviço militar – “alguns jovens dukhobors foram presos e banidos para Sibéria. Em protesto, no Caucásio, milhares de dukhobors queimam todas as armas que ainda possuíam – facas, espadas, pistolas, rifles, usados na sua defesa contra montanheses nômades. As fogueiras arderam numa única noite, em Junho de 1895, num franco desafio ao Estado”[2], que não tardou a sufocar o que julgou ser uma rebelião. Para ajudar a financiar o transporte dos dukhobors ao exílio no Canadá, Tolstói, renunciando sua prática, negociou os direitos autorais da obra para levantar fundos para o transporte de navio. Ainda hoje, a comunidade remanescente no Canadá mantém a memória de Tolstoi em suas comemorações e eventos.

O enredo de Ressurreição

A história do príncipe Nekhliúdov e sua luta para salvar Katiucha e redimir-se moralmente é contada de forma a privilegiar a descrição e análise crítica da sociedade Russa. A opção do escritor em ter como protagonistas de sua história um aristocrata dono de terras, desiludido com sua classe, e uma mulher do povo, vítima de toda sorte de opressão econômica e de gênero, cria condições para se mostrar as raízes da crise moral e política da aristocracia, a corrupção generalizada do Estado, o compromisso das instituições, particularmente do poder judiciário, com os interesses dos ricos e a falência das prisões.

Nekhliúdov foi um idealista durante a juventude. Teve contato com a literatura de reformadores sociais europeus e identificava a propriedade privada das terras como fonte original das desigualdades. Apaixona-se quando estudante pela jovem e bela Katiucha, afilhada adotada por suas tias, durante uma visita por casa de campo da família. Num lapso de egoísmo e brutalidade, força relação sexual com a camponesa e depois a abandona para seguir alistamento no exército. Quando chega à maturidade, esquece seu amor pueril de juventude e passa a viver conforme as expectativas de sua classe: indiferente à brutal desigualdade social, extraindo o máximo de prazer na vida de ócio, amores vulgares, eventos dentro do meio nobre. A formosa Katiucha engravida, fica incapaz para o trabalho, é abandonada por todos: seu filho com Nekhliúdov morre logo após o parto e a jovem vai decaindo por todos os escalões sociais. Os homens assediam-na com violência nas casas onde ela consegue trabalho como empregada doméstica. Após reagir a mais um ataque masculino, é expulsa de seu último trabalho, não restando outra opção que a prostituição.

Convocado para o trabalho de jurado em uma corte penal, Nekhliúdov reencontra Katiucha no banco dos réus, acusada de matar um cliente da casa de prostituição. O enredo tem aqui o seu ponto de partida: a condenação da prostituta aos trabalhos forçados na Sibéria é reconhecida pelo príncipe como grave injustiça. Injusta pena diante do relapso dos réus e dos juizes que deliberam sobre a vida dos pobres sem qualquer atenção, indiferentes. E injusta pena especialmente pelo fato do assédio de Nekhliúdov durante a juventude ter significado o início do triste fim de Katiucha.

A consciência política de Nekhliúdov

Conforme o príncipe Nekhliúdov mobiliza-se para reverter a sentença de sua antiga namorada, vai se afastando cada vez mais de sua posição social e altera gradualmente sua percepção política. A personagem ocupa um lugar social privilegiado para visualizar o Estado e a classe dirigente Russa: sua condição de nobre faz com que tenha acesso fácil aos magistrados, promotores, chefes de repartições policiais, oficiais ligados às funções administrativas do Estado. Na medida em que entrevista diversos personagens ligados à burocracia oficial vai, gradativamente, percebendo a dimensão meramente ideológica ou meramente formalista dos discursos que sustentam a legitimidade do poder político. Esta dimensão ideológica é bastante explícita em algumas falas de Nekhliúdov: em certa passagem do livro, numa discussão política bastante áspera com um cunhado – membro orgânico da classe aristocrática - conclui que a finalidade dos tribunais é manter a estabilidade econômica dos ricos e que, se os fins da justiça penal fossem de fato promover justiça, deveriam fechar todas as prisões.

Vale frisar: as críticas sociais partem do ponto de vista de um nobre que se solidariza com a opressão econômica da maioria popular e particularmente com os de pior sorte que acabam na prisão. Identificamos um duplo significado do conteúdo de classes nas reflexões de Nekhliúdov. Por vezes as críticas apresentam um sentido essencialmente burguês, particularmente no que se refere à crise moral e ideológica da nobreza frente a um mundo que pressiona por modernização. O príncipe passa a ver os seus iguais com um misto de cansaço e desdém, destacando a inadequação da cultura de parcelas da classe dominante àquela realidade histórica. No sentido de parecer mais ilustrada do que é, a aristocracia conversa em francês e deixa-se influenciar pelo que parece, aos olhos do príncipe, modismos superficiais, como a religião espírita. A classe em seu conjunto vê na luta de Nekhliúdov em reverter a injustiça cometida contra Katiucha como uma anedota a ser contada durante conversa de salão: seus pares mostram-se ocasionalmente e apenas nas aparências indignados com a prisão de inocentes, a fome e miséria de camponeses e mujiques contrastando com a luxúria e o ócio de poucos aristocratas. O “mal-estar” de Nekhuliúdov diante de sua condição social reflete a derrocada moral da nobreza, a emergência de valores burgueses (maior igualdade formal, racionalismo, luta por mudanças institucionais). Em passagens destinadas à retratar jantares ou encontros sociais reunindo a elite econômica, o livro de Tolstói lembra literatura burguesa de outros escritores do final do séc. XIX como Eça de Queiroz, Balzac e, aqui no Brasil, Machado de Assis.

Entretanto, a gravidade do fosse social e a vivência do príncipe (e do próprio Tolstói) junto aos elementos mais marginalizados daquele sociedade torna a percepção política do protagonista associável ao socialismo. Esta seria uma segunda dimensão das críticas sociais de Ressurreição.

Socialismo Utópico

Há uma passagem bastante interessante do livro que remete às preocupações do socialismo utópico do séc. XIX. O príncipe decide abrir mão de suas terras para os camponeses – constata que as famílias passam fome e trabalham até a exaustão para atender ao regime de trabalho imposto por um administrador que gere seu domínio como carrasco. Opta por mudar aquela realidade radicalmente. Numa assembléia organizada para discutir a forma como as terras seriam passadas às mãos dos trabalhadores, uma série de questionamentos vêm à cabeça de Nekhliúdov: como garantir que a co-propriedade entre as diversas famílias não implique em diferente usufruto do espaço (desde que algumas parcelas da terra são mais rentáveis do que outras) ou na compra e venda dos lotes de forma a criar nova situação de concentração fundiária; como fazer com que todos trabalhem e recebam de forma proporcional ao seu esforço, sem a exploração do homem pelo homem; e, o que é bastante explorado no enredo, como vencer a desconfiança e o medo dos camponeses, habituados desde sempre à forma servil de produção.

O aspecto utópico deste socialismo é caracterizado por Marx quando coloca que as mudanças históricas das relações de produção se dão a partir da ação revolucionária de uma classe em luta. O reformismo associado à política de Nekhliúdov encontra seus limites na medida em que desconsidera a ação independente protagonizada pelos oprimidos como condição para a viabilização de uma forma alternativa de produção. O príncipe até vê com certa simpatia alguns dos revolucionários do Narodniks – “populistas” russos. Reconhece em alguns deles sinceridade e legitimidade em sua luta contra a exclusão econômica e a opressão política. Assim como alguns revolucionários de seu tempo, também identifica nas instituições políticas e judiciárias e na propriedade privada da terra fonte da desiqualdade e exploração entre os homens. Porém, o prícipe situa toda iniquidade que tem contato a certo plano metafísico e individual. O homem, genericamente considerado, deixara de perceber ser obrigado a tratar seus semelhantes com amor. O prícipe entende que a falta de amor decorre da burocratização ou, nas palavras dele, do distanciamento dos homens entre si, do seu tratamento como “coisas”.


Sínteses

Vamos transcrever um trecho longo, porém bastante expressivo: ele retrata uma espécie de “síntese política” da consciência de Nekhluilov ao final de sua jornada. Serve também como fechamento desta resenha.

Do ponto de vista formal, destacamos aqui beleza com que Tolstoi consegue traduzir o fluxo de pensamento do personagem de forma a retratar de forma sutil como o prícipe reage aos seus pensamentos. Do ponto de vista político, a síntese do príncipe, com suas contradições, sinaliza ainda hoje alguma inquietação anticapitalista. Daí a pertinência de Ressurreição e Tolstói, cem anos depois.


“Se fosse formulado o problema psicológico: como fazer para que pessoas da nossa época, pessoas cristãs, humanas, simples e boas pratiquem maldades mais terríveis sem sentirem-se culpadas, só haveria uma solução possível – seria preciso que se fizesse exatamente como se faz agora, seria preciso que tais pessoas fossem governadores, diretores, oficiais, policiais, ou seja, que em primeiro lugar estivessem convencidas de que existe um trabalho chamado serviço do Estado, no qual é possível tratar as pessoas como coisas, sem relações fraternas e humanas com elas, e em segundo lugar que essas mesmas pessoas do serviço do Estado estivessem unidas de tal forma que a responsabilidade pelo resultado de suas ações para as outras pessoas não recaísse em ninguém isoladamente. Fora de tais condições, não existe possibilidade em nossa época de cumprir tarefas tão horríveis como as que eu vi hoje [Nekhliúdov refere-se ao tratamento dado por agentes penitenciários aos condenados transportados em condições deploráveis aos trabalhos forçados na Sibéria]. A questão toda reside no fato de as pessoas pensarem que existem situações em que se pode tratar um ser humano sem amor, mas tais situações não existem. Pode-se tratar as coisas sem amor: pode-se cortar uma árvore, fazer tijolos, forjar o ferro sem amor; mas é impossível tratar as pessoas sem amor assim como é impossível lidar com as abelhas sem cuidado. Tal é a peculiaridade das abelhas. Se começarmos a tratá-las sem cuidado, causaremos dano a elas e a nós mesmos. O mesmo se passa com as pessoas. (...) Sim, sim, é assim” pensou Nekhliúdov. “Isso está bem, está bem”! repetiu consigo mesmo, experimentando um prazer duplo – o frescor depois do calor torturante e a consciência de ter alcançado um alto grau de clareza numa questão que já o preocupava desde muito tempo”.







[1] Prefácio Rubens Figueiredo.
[2] Ibdem.