sábado, 11 de outubro de 2025

“Diogo Álvares – O Caramuru”

 “Diogo Álvares – O Caramuru”


 

Resenha Livro – “O Caramuru – Aventuras prodigiosas dum português colonizador do Brasil” – João Ribeiro – Livraria Sá da Costa – Editora Largo do Poço Novo – Lisboa – 1935

 

Diogo Álvares (1475-1557), mais conhecido como o “Caramuru”, foi o primeiro desbravador das terras onde hoje se situa o Estado da Bahia. Sua importância reside no fato de ter preparado o terreno para a ocupação portuguesa do território recém descoberto, trazendo ao convívio dos portugueses os índios tapuias disposto ao convívio pacífico, que o viam como uma liderança com feições sobre humanas.

Esse português que foi alçado à condição de fundador da nacionalidade brasileira aportou no Brasil nos primeiros instantes da chamada “descoberta” em 1500.

Muitos historiadores, a começar por Afrânio Peixoto, muito propriamente dizem ser mais apropriado falar em “achamento” e não “descobrimento” do Brasil. O verbo “achar” remete à ideia de algo que sabemos existir, mas não sabemos exatamente onde a coisa está. E todas as evidências documentais revelam que antes de 1500 ao menos já se desconfiava da existência do território onde hoje se situa o Brasil.

A própria data da assinatura do Tratado de Tordesilhas, que se deu em 1494, reforça a tese. O tratado não só dividiu entre Portugal e Espanha as terras recém descobertas como “terras a se descobrir”. Fato curioso, e pouco ensinado na escola, é que a própria linha de demarcação, feita seis anos antes da expedição de Cabral, já envolve parte do território brasileiro: se o tratado é anterior à 1500, presume-se que já se tinha noção da existência das terras de Santa Cruz, depois batizada de Brasil.

Outra forte evidência do conhecimento do território antes da chegada de Cabral dá-se quando da expedição de Martim Afonso de 1530 para reconhecimento, exploração e defesa do território em face do assédio das demais potências marítimas, especialmente os franceses. Na expedição de reconhecimento foram localizados portugueses degredados que provavelmente já aqui estavam antes de Pedro Álvares Cabral. Os mais conhecidos são João Ramalho, patriarca de São Paulo e Caramuru, o seu equivalente baiano, além do bacharel de Cananeia, todos eles possivelmente já estabelecidos aqui antes de 1500.

Muito provavelmente, a expedição de Cabral seria o ato de consumação formal da tomada do território: é a certidão de nascimento ou o momento em que nasceu o Brasil oficialmente. Já se tinha alguma noção da existência desse território – por questões geopolíticas, eram informações tratadas como segredo de estado entre as duas principais potências marítimas, Espanha e Portugal. Degredados eram despejados no litoral para travarem as primeiras relações com os índios bárbaros, pavimentando o caminho da colonização. A grande expedição dirigida por Cabral que aportou em 1500 foi apenas, neste sentido, um ato oficial de consumação das descobertas.

Diogo Álvares, ou o Caramuru, aportou nas praias da Bahia após um acidente que levou ao naufrágio e a morte a maior parte dos tripulantes. Sobreviveram apenas 7, que foram acossados pelos índios e tornados prisioneiros. Conforme a prática daqueles povos, alimentavam e engordavam os prisioneiros para depois comê-los. Todos os navegantes foram vítimas no ritual antropofágico, exceto Diogo, que consegue escapar num momento em que os tapuias se vêm obrigados a enfrentar o ataque de uma tribo rival.

Sozinho e doente, Diogo consegue resgatar da embarcação que naufragou algumas armas que lhe garantiriam a sobrevivência. Encontrou escudos de guerra, capacetes, pólvora, espingarda e balas. Ao manejar a arma de fogo e dar tiros ao ar, apavora os índios que o vêm como um ente sobrenatural capaz de provocar raios e trovões. Relacionado às crenças mitológicas dos indígenas, o português é temido e adorado por manifestar poderes sobre humanos através das armas de fogo e dos recursos da pólvora. À noite, na escuridão, utilizando a pólvora, Diogo magicamente acende o fogo que ilumina, assombrando os índios que só sabiam fazer a luz com muito esforço, esfregando pedações de madeira uns com os outros.

Conforme conta o historiador João Ribeiro, os índios “por isso ficam atônitos ao ver a chama nascer tão rapidamente do fuzil de ferro. Julgam que ela vem do céu ou que nasce das mãos de Diogo. E mais se persuadem do poder sobrenatural que nele creem existir”.

Utilizando mais a astúcia e a inteligência do que a força física, o Caramuru consegue exercer prestígio e influência sobre os indígenas.  

O nome Caramuru vem do espanto dos índios com o barulho da arma de fogo. Existe alguma controvérsia em torno da origem da palavra no idioma do índio, mas a versão mais conhecida é que se trata do nome de um peixe violento que ao atacar faz um som parecido com os tiros de pólvora.

Alçado à condição de um líder com poderes sobrenaturais, o Caramuru se envolve nas guerras dos tapuias contra os caités. Diante da superioridade das armas de fogo, impõe a derrota aos inimigos dos tapuias.  

A ele é dada a mão da filha do chefe Gupeva, a bela e desejada Paraguaçú. Trata-se da primeira família brasileira e da mais antiga linha genealógica do nosso país.

Residindo no litoral da Bahia, o Caramuru trava relações com os navegantes portugueses, espanhóis e franceses que aqui transitam em busca do pau brasil. Ele exerce o papel de articulador e mediador daqueles dois povos.

Dentro da mitologia criada em torno da sua figura, ele é descrito como o agente que leva os índios selvagens à salvação pela fé e aos hábitos da civilização europeia. Usando da ameaça de suas armas, proíbe os índios de praticarem a antropofagia. Leva aos índios os ensinamentos do cristianismo e os mobiliza para defender os interesses da Monarquia Portuguesa e do Rei.

Escolhe Paraguaçú como esposa e, após travar relações com navegantes franceses, consegue fazer uma viagem levando consigo sua companheira à França, onde é recebido pela Corte. A bela índia é batizada e recebe o nome de Catarina. O casal fica três anos na Europa e retorna à Bahia, onde o Caramuru segue exercendo o papel de proeminência perante os índios do litoral.

Essa importância conferida ao Caramuru se evidencia quando o próprio Rei de Portugal recomenda Diogo Álvares a Tomé de Souza, o primeiro governador geral do Brasil. Após o insucesso da maioria das capitanias hereditárias, foi instituído o Governo Geral (1548) como uma primeira tentativa de centralização política administrativa com a constituição de cargos e funções para assuntos de natureza judicial, financeira e militar.

O primeiro governo geral teve como sede a Bahia, onde Tomé de Souza fundou a cidade de Salvador, chamada “São Salvador da Bahia de Todos os Santos”. O primeiro governador geral desembarcou na colônia em 29 de março de 1549 e contou com a colaboração decisiva do Caramuru para fundar a primeira capital do Brasil.  

Deixando de lado o mito, a figura de Caramuru evidencia aquilo que Darcy Ribeiro, no seu livro “O Povo Brasileiro” (1995), caracteriza como a instituição social que pavimentou a formação do povo brasileiro. A essa instituição ele atribui o nome de “cunhadismo”. Trata-se de um velho uso indígena “de incorporar estranhos à sua comunidade. Consistia em lhe dar uma moça índia como esposa. Assim que ele a assumisse, estabelecia, automaticamente, mil laços que o aparentavam com todos os membros do grupo”.

A mestiçagem que caracteriza a gênese do povo brasileiro se inicia através das relações sexuais abertas e desregradas dos portugueses com as índias – ao contrário das colônias de ocupação ao norte, quando as famílias entram transplantadas para o novo mundo, no Brasil, uma colônia de exportação, sem a presença da mulher branca, as primeiras famílias eram aqui constituídas pela relação do português com a índia, formando os mamelucos, ou seja, os primeiros brasileiros.

A criação de laços de parentesco amplo, com europeus travando relações poligâmicas com as índias, a despeito da censura dos jesuítas, foi o que Darcy Ribeiro chamou de cunhadismo, prática sem a qual era impraticável a crianção do Brasil.

Os primeiros povoadores, como o Caramuru, consistiam em alguns poucos náufragos ou degredados, além de marinheiros fugidos para aventurar vida nova entre os nativos. Em pouco número, por si sós, teriam passado desapercebido se não tivessem sido assimilados pelos grupos indígenas e inseridos como parte de uma mesma família.  

Bibliografia:

BARROS, João. “O Caramuru: aventuras prodigiosas dum português colonizador do Brasil”.

RIBEIRO, Darcy. “Formação do Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil”.

segunda-feira, 6 de outubro de 2025

“Formação Histórica da Nacionalidade Brasileira” - Oliveira Lima

 “Formação Histórica da Nacionalidade Brasileira”  - Oliveira Lima



Resenha – “Formação Histórica da Nacionalidade Brasileira”  - Manuel de Oliveira Lima – Coleção “Grandes Nomes do Pensamento Brasileiro” – Folha de São Paulo

 

“Os portugueses, misturando-se com os índios, produziram uma raça igualmente valente e fundamentalmente empreendedora, à qual é sobretudo devida a conquista do interior do Brasil (...) O Brasil é, pois, a obra nacional – geográfica tanto quanto política – dos seus próprios filhos. Isto nos garantiu uma tradição no passado e nos representa uma garantia para o futuro. Foram com efeito os bandeirantes, a saber, os aventureiros votados à pesquisa do ouro e dos escravos que recuaram as nossas fronteiras, dilataram nosso Império, e emprestaram ao Brasil essa maravilhosa uniformidade social que lhe é tão particular e que se destaca tão bem sobre o fundo constituído pela diversidade dos efeitos pitorescos e pelo variegado das três raças misturadas: branca, vermelha e negra”. 

 

Manoel de Oliveira Lima foi diplomata, jornalista e historiador, tendo cumprido papel intelectual proeminente entre os fins do século XIX e inícios do século XX.

Basta dizer que foi membro do IHGB e assumiu a cadeira de Francisco Varnhagen na Academia Brasileira de Letras. Além disso, participou intimamente da convivência com figuras como D. Pedro II, José Martiniano de Alencar, Rui Barbosa, Afonso Celso e Machado de Assis (com quem trocou cartas), havendo em seus livros a percepção efetiva de quem vivenciou diretamente os fatos políticos e institucionais do Brasil do II Império.

O historiador nasceu em Recife/PE no dia do natal em 1868, sendo o último filho de Luiz de Oliveira Lima, um rico comerciante português que fez fortuna e garantiu a sua família prosperidade. Contudo, consta que o pai do de Oliveira Lima foi de origem simples, tendo alcançado com o seu esforço a riqueza, sem que, com isso, fosse parte da tradicional elite pernambucana.

Logo na infância, aos seis anos de idade, o historiador mudou—se para Portugal. Matriculou-se na Universidade de Lisboa, onde estudou e se formou no Curso Superior de Letras.

Aqui já existe algo que irá particularizar o futuro historiador.

Até então, os grandes estudiosos da História do Brasil eram em certo sentido “auto-didatas” – os primeiros cursos superiores de História só foram criados no país no ano de 1930. Parte desses estudiosos sem formação específica vinha da diplomacia, a começar pelo pioneiro e fundador do estudo da disciplina no país, Francisco Adolfo Varnhagen, o Visconde de Porto Seguro. Outros tinham formação em Direito, como Joaquim Nabuco e Caio Prado Júnior. Já Capistrano de Abreu, o discípulo de Varhagen e um dos nossos melhores historiadores de todos os tempos, sequer estudou em instituição de Ensino Superior. Euclides da Cunha, outro grande historiador daquela época, era militar. Já Oliveira Lima, graduado em Portugal, num momento em que não existiam cursos de Letras e História no Brasil, foi um dos primeiros pesquisadores do nossa passado com uma formação mais especializada.

Quando jovem estudante de Letras em Lisboa, Oliveira Lima era simpática ao republicanismo. Posteriormente, mudaria o seu posicionamento, tanto que em 1913 (14 anos após a proclamação da república) o senado votou contra a sua entrada na embaixada de Londres alegando que o candidato era monarquista.

Pode-se dizer que os seus trabalhos historiográficos evidenciam que o escritor parecia mesmo ser um saudosista da Monarquia – com certeza, foi um descrente da República, que viu ser alçada como regime político oficial no Brasil quando tinha 20 anos de idade.   

Nas suas conferências sobre a História do Brasil reunidas no livro “Formação Histórica da Nacionalidade Brasileira” (1911),  descreve D. Pedro II como o rei filósofo, incentivador  da cultura e da ciência, ele próprio criador do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB) e frequentador de suas reuniões.

O Imperador de fato, era bastante liberal em relação às críticas incendiárias da imprensa então nascente, de natureza bastante panfletária, especialmente a partir de 1870, com a criação do Partido Republicano. Cioso, portanto, da liberdade de imprensa e de pensamento, o Imperador não desencadeou perseguições políticas de maior importância aos seus detratores de imprensa, tinha um posicionamento tolerante e pendente à conciliação, o que garantiu a estabilidade do II Império, que perdurou por mais de meio século. Oliveira Lima descreve D. Pedro II como um homem cioso da moralidade pública, mais interessados em travar relações com intelectuais do que com gente da aristocracia, e indulgente para com os inimigos políticos, mas ainda intransigente em seu patriotismo, conduzindo o país à vitória na Guerra do Paraguai.

O posicionamento francamente favorável à monarquia também se revela no peso que o historiador atribuiu aos eventos que vão da chegada da Corte Portuguesa em 1808 e ao Reinado de Dom. João VI como os momentos precursores de maior importância para o advento da independência e para a formação histórica da nacionalidade brasileira.

Dentro da historiografia, Oliveira Lima é mais frequentemente estudado pelos historiadores que pesquisam o nosso processo de independência; e o intelectual pernambucano atribui um peso decisivo ao processo de emancipação ao arranjo institucional muito particular em que se deu a nossa emancipação, considerando a manutenção da dinastia dos Brangança e o transplante do regime político português ao Brasil desde a chamada “fuga” da corte portuguesa em 1808, sob a mira do exército napoleônico.

Oliveira Lima quebra alguns preconceitos em torno dos eventos do ano de 1808 e da própria figura de D. João VI, frequentemente ridicularizado como um rei fraco e pusilânime, além de exposto ao ridículo pelas notórias traições extraconjugais por parte de Carlota Joaquina, a Imperatriz.

Não se tratou de uma “fuga”, mas de uma decisão assertiva de D. João VI que conseguiu manter a existência do Império Português, transplantando a sua sede ao Rio de Janeiro – se tivesse optado por ficar em Portugal, acabaria como os espanhóis, que capitularam ao exército napoleônico e consequentemente perderam não só o país mas também suas colônias na América para a França.

Ao chegar ao Brasil, Dom João VI afirmou que sua intenção era formar um novo Império. O Rio de Janeiro foi elevado à condição de capital da monarquia portuguesa. O Brasil, até então uma mera colônia de exploração dos portugueses, foi alçado à condição de Reino Unido a Portugal e Algarves (1815), um ato com efeito revolucionário, pois colocou ao menos juridicamente o Brasil em condições de igualdade a Portugal.

Toda essa situação conferiu a originalidade da independência brasileira ressaltada pelo monarquista Oliveira Lima, já que ela se deu por meio da manutenção da Casa e Bragança, quando D. Pedro I se opõe às pretensões recolonizadoras das Cortes de Lisboa, se recusa a atender a sua convocatória para retornar à Portugal e grita no 7 de Setembro seu famoso brado: independência ou morte. Ela foi precedida pela literal “transplantação” do regime político português ao Brasil, o que serviu de base à formação de um regime monárquico constitucional que perduraria até 1889.

O transplante da corte portuguesa e essa particularidade acarretaram num caso singular: o país que saiu do movimento de independência manteve o regime monárquico, com a constituição do I Império, diferentemente da experiência dos países da América Espanhola que se fracionaram em diversas repúblicas, criadas a base de guerras de maior proporção do que os conflitos ocorridos no Brasil.

Em certo momento, Oliveira Lima afirma que a independência do Brasil foi conquistada com “luvas de pelica” o que resultou em críticas de s historiadores que corretamente afirmam que a nossa independência também foi marcada por guerras – certamente não foi um movimento pacífico, mas certamente menos conturbado que a experiência da América Espanhola, com acréscimo da manutenção da integridade do território, mantida sua dimensão continental estabelecida desde o Tratado de Madrid (1750). Se tivéssemos trilhado o mesmo caminho dos espanhóis, o Brasil hoje estaria fracionado em diversos estados menores – a manutenção da grandeza territorial, mesmo após os episódios de turbulência, bastante graves na época da regência – sem dúvida é uma conquista do Império, ou seja, do Estado Brasileiro dentro do regime monárquico.   

VIDA E OBRA DO HISTORIADOR/DIPLOMATA

Oliveira Lima Iniciou sua carreira diplomática como segundo secretário da legação de Lisboa (1891). Naquela época, o ingresso nesta carreira não se dava por concurso público, mas por indicação. Sua seleção deu-se, entre outros, após estabelecer relações com Quintino Bocaiuva e o Visconde de Cabo Frio, bem como diante da influência de sua esposa Flora Cavalcanti de Albuquerque que, como o sobrenome indica, pertencia a família firmemente estabelecida entre os proprietários de engenho e tinha boas credenciais junto à sociedade pernambucana.

Na diplomacia, ocupou cargos em Lisboa, Alemanha, Venezuela, Bruxelas e Suécia, além de ter sido professor de Direito Internacional da Universidade Católica da América em Washington, para quem doou sua biblioteca sobre a História do Brasil, que conta com 56 mil volumes, além de peças de arte, incluindo os famosos quadros de Frans Post, que retratou em pinturas a história do um quarto de século da ocupação holandesa no Brasil.

Esta biblioteca é hoje a terceira maior do mundo no que toca à História do Brasil, perdendo apenas para a Biblioteca Nacional do Brasil e para a biblioteca da Universidade de São Paulo.

José Verissimo no prefácio do livro “Formação Histórica da Nacionalidade Brasileira” ressalta como o escritor não só serviu o Brasil através da atividade de diplomata como foi um verdadeiro embaixador da cultura e história do Brasil pelo estrangeiro.

A forma como escreveu a nossa história também teve como fundamento a preocupação em realizar uma boa propaganda das nossas potencialidades aos estrangeiros. O escritor acredita que o Brasil através da sua História tem lições à ensinar aos demais países do mundo, incluindo os ditos “civilizados”.

O próprio livro em questão, “Formação da Nacionalidade Brasileira”, corresponde a 12 conferências do escritor na Faculdade de Letras de Sorbonne, onde se propôs apresentar uma grande síntese da evolução histórica do país a um publico estrangeiro, francamente interessado em conhecer a trajetória das nações latino americanas.

Logo na sequência, Oliveira Lima é convidado a lecionar História do Brasil e da América do Sul em Standford nos EUA e fazer uma série de conferências em universidades americanas. Verissimo ainda cita um congresso científico em Viena de música clássica,  quando Oliveira Lima conseguiu que as composições do brasileiro Padre José Maurício figurassem ao lado de Mozard e Haydyn.

E mais do que tudo isso, a própria forma como Oliveira Lima relata a História do Brasil para um público estrangeiro tem algo que remonta a esse papel de “embaixador cultural” – sem fazer uma apologia injusta da História Nacional, não deixa também de evidenciar a todo mundo as contribuições brasileiras à civilização geral, aquilo que de mais duradouro e significativo legou os três séculos de colonização até a independência.

Essa contribuição particular do Brasil como exemplo de alternativa institucional aparece especialmente quando fala da particularidade como estruturou a sua independência e formou o seu regime político, uma experiência que soaria como um exemplo a seguir, especialmente se cotejada com as demais repúblicas da América.

 Bibliografia

LIMA, Oliveira, "Formação da Nacionalidade Brasileira". 

LIMA, Oliveira. O Império Brasileiro (1822/1889) 

domingo, 14 de setembro de 2025

“Capítulos de História Colonial” – Capistrano de Abreu

 “Capítulos de História Colonial” – Capistrano de Abreu


Resenha Livro - “Capítulos de História Colonial” – Capistrano de Abreu - Edições Senado Federal 

Quando João Capistrano de Abreu escreveu os artigos que foram depois reunidos sob o nome “Capítulos de História Colonial”, o estudo da História do Brasil ainda estava em suas primeiras fases de desenvolvimento. A obra data de 1907, quando  não havia Faculdades de História no país e ainda estavam para ser criados os estudos mais sistemáticos em torno da identidade nacional.

Os primeiros esforços acerca do estudo da História Nacional ocorreram em meados do século XIX, durante o II Império, através da criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), um centro de estudos planejado por Dom Pedro II, este último, como se sabe, um incentivador militante da arte e da cultura. Naquele contexto, aquele que pode ser considerado como o patrono dos estudos da História do Brasil foi Francisco Adolfo de Varhagen, um diplomata brasileiro que através de suas viagens à Europa teve contato com fontes e documentos preciosos,  que serviram de base para a criação de uma História Oficial.

É comum qualificar esse primeiro momento dos estudos da História do Brasil como Positivista. Trata-se de uma História oficial, que ressalta a evolução política e das instituições do país – e não dá grande ênfase a outros aspectos da questão nacional, como a cultura, as relações sociais, o desenvolvimento econômico, etc. Está centrada nos grandes eventos – as datas comemorativas e os feriados nacionais são formas de expressão dessa orientação Positivista, na qual o estudo da História se desenvolve através de uma sequência cronológica dos principais eventos políticos: a descoberta (ou melhor diríamos o achamento) do Brasil em 1500; a criação das capitanias hereditárias em 1534; a instituição do governo geral através da expedição de Thomé de Souza (1549/1553); o sete de setembro de 1822; etc.  

É necessário relacionar este primeiro momento do estudo da História do Brasil com o contexto político em que esteve inserido: a independência política conquistada em 1822 era um evento político recente e, no Brasil, a constituição do Estado Nacional precedeu a existência de um espírito de nacionalidade – diferentemente das nações europeias como Alemanha e Itália, que já existiam como nação, mas que se tornaram Estado Nacional, posteriormente, apenas em meados do século XIX.

No Brasil, ao contrário daqueles países europeus, o Estado precedeu a Nação.

Quando o Brasil tornou-se independente em relação à Portugal, nosso país era antes de tudo uma reunião de províncias desarticuladas entre si, sem um sentimento coeso de nacionalidade. Alguém do norte se via mais como pernambucano ou baiano do que como brasileiro, o mesmo valendo-se aos paulistas, ao sul. A necessidade da constituição de uma História Nacional, de caráter oficial, era uma exigência do Estado, tal qual a criação de ministérios, forças armadas e demais instituições políticas. Daí a criação do IHGB e a importância da obra de Varnhagen, que remontam ao esforço da própria construção do país.  

E ainda assim, demoraria alguns anos até haver condições para se desenvolver estudos mais sistemáticos em torno da seguinte questão: o que caracteriza o povo brasileiro?

Seria só partir da década de 1930, através dos trabalhos de Gilberto Freire, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior que se desenvolveria um estudo mais sistemático sobre os traços distintivos que caracterizam a formação do povo Brasileiro. Essa geração modernista no âmbito da historiografia da década de 30 traria como novidade a ampliação do estudo da História para além da mera análise de documentos e fontes oficiais. A História em conexão com as demais ciências sociais. No caso de Gilberto Freire, com ênfase nos estudos da cultura e da antropologia. Em Sérgio Buarque de Holanda, na análise da sociedade e da psicologia do brasileiro, através de uma orientação weberiana. E em Caio Prado Júnior, prevalecendo as preocupações econômicas, dentro de um viés marxista.

Capistrano de Abreu está situado no período intermediário entre a primeira etapa positivista da historiografia brasileira e a geração modernista de 1930. Na verdade, ele de certa forma antecipou preocupações e orientações metodológicas que apareceriam depois.

Até Capistrano de Abreu, a História de tipo Positivista centrava-se nos grandes eventos políticos, como se a História do Brasil fosse a História do Estado Brasileiro e das suas Instituições. Capistrano pioneiramente traz elementos interdisciplinares ao estudo da História – tinha particular predileção pela Geografia. Também trouxe na sua obra preocupações em torno do desenvolvimento da sociedade, da cultura, da composição étnica do país e da mestiçagem, o que obviamente escapa à orientação puramente institucional dos Positivistas. Ao seu lado, figuram nessa mesma geração autores que poderíamos chamar de “pré modernistas”, como Euclides da Cunha e Sílvio Romero.

João Capistrano de Abreu nasceu em 23 de outubro de 1853 no Município de Maraguape, no Ceará. Daquela província era o grande escritor romântico José de Alencar, que ajudou a introduzir Capistrano de Abreu no movimento intelectual da época. Em 1875, o futuro historiador transfere-se ao Rio de Janeiro e candidata-se à vaga de professor de História do Brasil no renomado Colégio Dom Pedro II.

O título da dissertação que apresentou para se habilitar no concurso foi “O descobrimento do Brasil e o seu desenvolvimento no século XVI”. Foi aprovado com louvor em 1883 e reconhecido que o seu trabalho superava até mesmo as produções dos seus examinadores. Antes disso, Capistrano já havia sido aprovado em concurso para a Biblioteca Nacional. Reunindo o trabalho como professor e pesquisador, teve acesso às fontes documentais que subsidiaram o seu trabalho como historiador – a ênfase no estudo documental, a História criada através das fontes primárias, é um traço que evidencia como Capistrano é um dos nossos primeiros “historiadores profissionais”.

“Capítulos de História Colonial” consiste num conjunto de ensaios escritos pelo escritor que descreve em linhas rápidas a evolução histórica brasileira, desde o descobrimento até o século XIX.

No primeiro capítulo, denominado “Antecedentes Indígenas”, inicia tratando do palco onde se desenrolará a história que será contada. Aqui ele fala do cenário onde irá surgir o Brasil – a geografia, o clima, os rios, a fauna e a flora, além dos índios, que aparecem nesse primeiro momento como um elemento paisagístico, que se confunde com os animais selvagens e a natureza inexplorada:

“As guerras ferviam contínuas; a cunhã prisioneira agregava-se à tribo vitoriosa, pois vigorava a ideia da nulidade da fêmea na procriação, exatamente como a da terra no processo vegetativo; os homens eram comidos em muitas tribos no meio de festas rituais. A antropofagia não despertava repugnância e parece ter sido muito vulgarizada; algumas tribos comiam inimigos, outras os parentes e amigos, eis a diferença.

Viviam em pequenas comunidades. Pouco trabalho dava fincar uns paus e estender folhas por cima, carregar algumas cabaças e panelas; por isso andavam em contínuas mudanças, já necessitadas pela escassez dos animais próprios à alimentação”.

Obviamente, essa inclusão do índio dentro de uma figuração paisagística não significava diminuir o papel daqueles povos originários na formação do povo brasileiro. Aliás, Capistrano foi um pioneiro dos estudos das línguas indígenas e consta que nos seus estudos sobre o assunto, chegou a trazer índios bravios para a sua residência a fim de estudá-los.

O que se evidencia nesse capítulo é que a existência prévia daqueles povos pré colombianos não significa dizer que o Brasil já existia antes de 1500 – por isso são tratados como parte da paisagem onde se desenrolará a história. Se entendermos que a nação Brasileira constituiu-se e teve como ponto de partida a grande epopeia das navegações, dentro de um movimento de confluência das raças branca, ameríndia e negra, por meio de uma colônia de exploração, não restam dúvidas que aqueles povos que aqui habitavam antes dos portugueses não poderiam ser considerados “brasileiros”.

O capítulo mais extenso e mais importante do livro certamente o nono chamado “Sertão”. O tema da ocupação territorial do país é talvez o eixo condutor e a principal preocupação de Capistrano de Abreu, o que explica também o seu interesse pela geografia, dado que o nosso povoamento se deu através das confluências dos rios, sob a influência favorável ou desfavorável do relevo, e nas trilhas abertas pelos indígenas.

Ganha evidência, dentro do movimento de expansão territorial, a atividade da mineração e da pecuária, que promovem a interiorização da ocupação do país.

O bandeirantismo é reconhecido pelo escritor como um fator decisivo neste movimento. Num primeiro momento, os sertanistas paulistas agem como fator de desagregação social e até mesmo esvaziamento populacional, quando desenvolvem a sua atividade de captura dos índios. Os bandeirantes logo dirigem a sua atividade bandoleira sobre as missões dos jesuítas, o que é fácil de explicar: mais simples do que capturar índios selvagens dispersos na mata seria sequestrá-los nas missões jesuíticas, quando os índios já estão agrupados, habituados ao trabalho organizado, relativamente civilizados e até mesmo com algumas noções da língua geral.

Já num segundo momento, os bandeirantes deixam de ser um fator de desagregação para assumir a posição desbravadores do hinterland brasileiro; numa primeira etapa, a preocupação era a captura de escravos e depois será a busca do ouro e do diamante, o que criará as bases de ocupação do território onde hoje se situa o Brasil, já delineado através do Tratado de Madrid (1750) por meio da uti possedetis – o território pertence àqueles que o ocupam. Devemos aos bandeirantes a expansão de nossas fronteiras, inicialmente circunscritas ao litoral dentro do Tratado de Tordesilhas, para seguir em direção ao sertão. Nossa unidade linguística e coesão social também são tributárias dos sertanistas, que eram em geral mamelucos, andavam descalços e falavam a língua geral. Se a mineração expandiu o território, a pecuária serviu como meio de povoamento e consolidação do homem na terra, sendo o segundo fator decisivo descrito no capítulo “Sertão”.  

A síntese dos três séculos de colonização portuguesa é descrita no último capítulo do livro.

Assim conclui Capistrano de Abreu  a sua obra, tecendo em um parágrafo uma síntese dos três séculos de evolução histórica do Brasil:

“Cinco grupos etnográficos, ligados pela comunidade ativa da língua e passiva da religião, moldados pelas condições ambientes de cinco regiões diversas, tendo pelas riquezas naturais da terra um entusiasmo estrepitoso, sentido pelo português aversão ou desprezo, não se prezando, porém, uns aos outros de modo particular – eis em suma ao que se reduziu a obra de três séculos”.

 

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

“Banana Brava” - José Mauro de Vasconcelos

 “Banana Brava” - José Mauro de Vasconcelos



Resenha Livro - “Banana Brava” - José Mauro de Vasconcelos – Ed. Melhoramentos

“Um dia, saí pelo sertão adentro à procura de uma vida diferente. Deixei o meu coração parado à sombra de uma árvore, aguardando ansioso a minha volta e caminhei. Caminhei sem parar.  O sol tostou-me o rosto e as mãos.  Percorri muitas estradas empoeiradas, silenciosas e longas.  Esqueci-me do que se chama tempo e espaço, para perder-me na realidade da distância. Só havia distância...”. 

 

O livro mais conhecido do escritor fluminense José Mauro Vasconcelos certamente é “Meu Pé de Laranja Lima” (1968), espécie de relato autobiográfico da infância do escritor, vivenciada na pobreza de um bairro de subúrbio de Bangu/RJ.

As fantasias de uma criança que cultiva amizade com uma árvore de laranjeira do seu quintal, o encanto produzido pela imaginação dos menores, que conseguem abstrair as dificuldades da vida e encará-la com ternura e alegria, certamente cativou leitores de todas as idades e fez de Vasconcelos um dos poucos escritores brasileiros que pôde viver exclusivamente dos direitos autorais de sua obra. 

Façanha que encontra poucos paralelos no Brasil: Érico Verissimo, Jorge Amado e Monteiro Lobato são outros poucos exemplos de escritores de uma literatura ao mesmo tempo popular, acessível a todos e de rara qualidade estética.

“Meu Pé de Laranja Lima” vendeu mais de dois milhões de exemplares, tendo sido publicada em 15 países. “Rosinha Minha Canoa” (1962) foi a primeira obra de sucesso do nosso escritor, que igualmente relata um mundo encantado e fantástico, em que o pescador mantém dialogo e afeto com sua canoa, cuja origem advém de uma árvore capaz de sentir e de se comunicar. E esta pequena novela “Coração de Vidro” teve mais de 650.000 exemplares vendidos, publicações em 10 países, traduções em três idiomas e mais de 70 edições no Brasil.

A popularidade de Vasconcelos, por diferentes razões, não se traduziu em reconhecimento na academia. Aliás, a própria figura do escritor representa a mas completa oposição a tudo o que se posse considerar acadêmico.

De família pobre, nascido no estado do Rio de Janeiro, aos nove anos mudou-se para a casa dos tios em Natal/RN. Chegou a frequentar dois anos do curso de medicina naquele estado, mas a sua personalidade irrequieta e aventureira o faria abandonar o curso e retornar ao Rio de Janeiro a bordo de um navio cargueiro, levando uma simples maleta de papelão como bagagem.

Nesta peregrinação pelo país a fora, trabalhou como treinador de boxe, carregador de bananas na capital do Rio de Janeiro, pescador do litoral fluminense, professor primário num núcleo de pescadores no Recife, garçom em São Paulo. Além de escritor, foi ator de cinema e modelo.

Em dado momento de sua vida, se junto aos irmãos Villas Bôas, sertanistas e indigenistas, enveredando-se pelo sertão da região do Araguaia, contando povos indígenas desconhecidos e cartografando terras. O contato direto com aqueles povos sertanejos e indígenas criaria as condições para o escritor fazer relatos minuciosos (ainda que sua arte realista enveredasse para o fantástico, com animais e árvores falantes) dos povos do Araguaia, no seu já mencionado “Rosinha Minha Canoa” e no romance “O Garanhão das Praias” – ambos tratando de missões “civilizatórias” junto aos povos sertanejos e indígenas dos rincões do país.

BANANA BRAVA

“Banana Brava” foi o primeiro romance de José Mauro de Vasconcelos, escrito quando tinha apenas 22 anos de idade. Também nesta história existe um elemento autobiográfico representado na figura do protagonista do enredo. 

Joel também abandona a vida na cidade para lançar-se ao mundo – renuncia aos valores de sua origem urbana e o conforto do lar familiar para se aventurar no centro oeste, coração do Brasil, para o trabalho no garimpo.

Trata-se de uma história de estilo regionalista que descreve a vida dos sertanejos ligados ao trabalho da caça de diamantes. O realismo que marca as obras do escritor não permite qualquer tipo de idealização em torno da figura dos garimpeiros. São descritos como pessoas brutais e o que mais os caracteriza é a ausência da capacidade de sentir compaixão. Lançam-se à busca dos diamantes nos sertões, desbravando a selva, enfrentando a fúria das onças das matas e das piranhas dos rios. A cobiça e a luxúria são qualidades que informam a psicologia daqueles que se aventuram à busca pela riqueza imediata – qualidades que o historiador paulista Paulo Prado em seu “Retrato do Brasil” (1922) estende a própria psicologia do povo brasileiro.

São homens temperados dentro de uma realidade brutal com o objetivo do enriquecimento rápido – de certa forma, o sonho do El Dorado remete mesmo aos tempos do Brasil colônia, já desde o bandeirantismo, particularmente em sua fase tardia, quando os sertanistas de São Paulo abandonam a atividade da captura dos índios para se voltar à busca do ouro e do diamante.  

Joel, um garoto de coração puro, com mãos delicadas de um pianista, tem a sua fisionomia moral radicalmente alterada através do trabalho no garimpo.

A lhaneza do seu coração é revelada nos primeiros capítulos do livro, na sua relação com Gregorão, um homem bruto que o acompanha nos trabalhos do garimpo. Frequentemente, é obrigado a resgatar o seu amigo da prisão, quando Gregorão passa a noite envolvido em bebedeira e brigas – são as pequenas tragédias que ocorrem nos domingos, dia de folga dos garimpeiros:

“Domingo. Ninguém trabalha no garimpo. É o dia de Deus. Somente o comércio abre as portas. Os garimpeiros metem sua melhor calça. Calçam botas ou sandálias. Batem pernas pela rua, levantando uma poeira ininterrupta. Vão de boteco em boteco. Comem doce de gergelim. Bebem pinga de todo o jeito, convidam todo mundo e aceitam todo o convite. É o dia de Deus, ninguém trabalha. Dia de Deus e da polícia. O melhor dia para a pensão da cadeia melhorar dos seus hóspedes e alugar os seus quartos de janelas cruzadas...”.

A amizade e o cuidado de Joel e Gregorão se assemelham ao afeto de um filho em relação ao pai. Entretanto, o primeiro, cansado de estar sempre arrastando o segundo das confusões causadas pela bebida, decide se mover para outro destino. Deixa o pouco de dinheiro que lhe resta para pagar a fiança de Gregorão e parte para Banana Brava, uma terra distante, no Araguaia, onde afirmam estar situada a mais promissora fonte de riqueza rápida.

Nessa jornada até Banana Brava, o coração puro de Joel vai sendo paulatinamente corrompido.

O garimpo é fonte de destruição da natureza e dos campos onde se cultivam as fontes de subsistência. A terra que serve de fonte de alimento é queimada e destruída na busca desenfreada pelo ouro. São as queimadas que preparam a abertura das catras. Mas o garimpo também destrói e aniquila a alma do homem.

Joel se envolve com um grupo de pessoas que se dirigem à Banana Brava. O trajeto é feito atravessando léguas a fio dentro da mata, numa selva infernal, cercadas de animais selvagens e insetos. Há escassez de água e de alimentos. Cardumes de piranhas impedem o acesso aos rios. Nas caminhadas, topam com “uma infinidade de espinhos de toda a espécie. A macambira não perdoava, com as suas garras de espinho. Lembrava um polvo, cujos tentáculos eram cheios de espinhos. Havia também o capim tiririca, que grudava nos braços e nas pernas, rasgando as carnes, como giletes. O bambu cipó era outro suplício, porque quando aparecia, enchia os campos em massa compacta”.

Não habituado àquele ambiente hostil, Joel é deixado para trás e perde a trilha dos demais companheiros – e, como dito, a compaixão é um sentimento ignorado por aqueles garimpeiros, que não hesitam e deixar o rapaz para trás.

Joel fica nove dias isolado e perdido na selva, sem comida e sujeito ao ataque de animais selvagens. Chega a desfalecer de sede e de fome, até o ponto de urubus estarem-no cercando, aguardando o momento certo para lhe comer a carniça. Nesses últimos instantes de vida, é resgatado por Seu Diolino, um camponês que vive naquelas matas com a sua família. Leva para casa e cuida dos ferimentos.

Recuperado, Joel jura vingança. O ódio àqueles que o abandonaram o leva a planejar uma revanche desleal – promove uma falsa denúncia às autoridades locais de que aqueles garimpeiros que o abandonaram, na verdade, tentaram-no assassinar para lhe tomar o dinheiro. Por sua culpa, os homens são açoitados a mando da autoridade local e todo o dinheiro do grupo é dado de volta a Joel, como se fosse a título de “restituição.”.

Esse ato desleal de vingança é o ponto de partida da desagregação moral do protagonista – e é agravada ainda pela adesão ao hábito de beber pinga. A história de Joel é a expressão da brutalização do homem quando confrontado com as circunstâncias do meio.

Não propriamente através de uma orientação determinista – o meio hostil é um elemento de desagregação da moral do protagonista, mas ainda há esperanças. Ao fim da história, Joel recupera a consciência e o discernimento entre o certo e o errado. O seu reencontro comovente com Gregorão ao final da história revela que ainda existe ternura no seu coração, a despeito da violência e barbárie do ambiente a que esteve submetido.

As tragédias que remontam a orientação realista de José Mauro de Vasconcelos não implicam a desilusão em relação ao ser humano. Ao lado da violência gratuita e dos assassinatos, há espaço também para atos de amor e altruísmo, revelados na parte final da história, quando Gregorão dá a sua vida para salvar Joel.

A brutalidade do sertanejo convive com uma certa dose de inocência. O garimpeiro também pode ter um coração cândido. Não são movidos por uma maldade inata, mas parecem antes serem crianças em corpo de adulto. A origem do mal está nas condições sociais do Garimpo e não na natureza selvagem.

domingo, 10 de agosto de 2025

“Mar Morto” – Jorge Amado

"Mar Morto" - Jorge Amado


  

Resenha Livro - “Mar Morto” – Jorge Amado – Ed. Record

“... Agora eu quero contar as histórias da beira do cais da Bahia. Os velhos marinheiros que remendam velas, os mestres de saveiros, os pretos tatuados, os malandros sabem essas histórias e essas canções. Eu as ouvi nas noites de lua no cais do Mercado, nas feiras, nos pequenos portos do Recôncavo, junto aos enormes navios suecos nas pontes de Ilhéus. O povo de Iemanjá tem muito que contar”.

 É bastante extensa a produção literária do escritor baiano Jorge Amado (1912/2001). Em vida o escritor publicou 49 livros, entre romances, novelas, peças de teatro e biografias. Seus trabalhos foram traduzidos em cerca de 50 idiomas, além de adaptações das obras no teatro, no cinema e na televisão.

Jorge Amado é também um dos escritores brasileiros mais conhecido e lidos fora do país – no ano de 1971, por exemplo, o autor é convidado para acompanhar um curso sobre sua obra na Universidade de Pensilvânia nos EUA. O que é notável, neste caso, é a forma como o autor consegue suscitar obras tanto reconhecidas pela crítica especializada quanto pelo público: em que pese as nuanças que marcam a evolução de sua obra, há sempre uma abordagem de pessoas e ambientes que realçam aspectos da cultura popular.

Convencionou-se dividir a literatura de Jorge Amado em dois grandes períodos.

Uma fase de cunho nitidamente político ideológico perpassa sua produção dos anos 1930/1940. É deste período romances como “Cacau” (1932) que descreve a opressão dos trabalhadores rurais nos latifúndios do sul da Bahia, região na qual o escritor nasceu. É também nesta primeira fase que o escritor publica o seu famoso  “Capitães de Areia” (1937) relato da vida de menores abandonados que sobrevivem de pequenos atos de bandidagem nas ruas da Bahia, convivem e descobrem o amor, o sexo e a solidariedade dos oprimidos desde um trapiche onde se refugiam.

Estes livros se situam num movimento literário conhecido como segunda fase do modernismo, de cunho nitidamente regionalista e com um forte acento na denúncia das iniquidades sociais. Andam num sentido semelhante aos romances de Graciliano Ramos, Rachel de Queirós e José Lins do Rego. No caso de Jorge Amado, especificamente, os mais humildes e oprimidos são erigidos na condição de heróis, seja os trabalhadores rurais do cacau, seja os “bandidos sociais” do trapiche, para usar a terminologia do historiador Eric Hobsbawm. 

A segunda fase da produção literária do escritor baiano se relaciona com uma reorientação política. Teve como eixo a ruptura de muitos intelectuais com o movimento comunista no contexto do XX Congresso do PCUS no ano de 1956, quando Nikita Kruschev denunciou aquilo que caracterizava como os “crimes do stalinismo” – na prática, tratava-se do marco inicial da restauração capitalista da União Soviética.  São desta segunda fase romances não tão abertamente ideológicos como “Gabriela Cravo e Canela” (1958) e “Dona Flor e Seus Dois Maridos” (1966).

Apesar de “Mar Morto” (1936) ser uma obra da juventude de Jorge Amado, foi por ele considerado o seu melhor romance.

A história dos homens que vivem no mar, transportando mercadorias nos seus barcos a vela (saveiros), em condições de extrema pobreza e sujeitos ao risco de uma tempestade leva-los à morte, remonta à preocupação  do escritor com a vida e a luta do povo e dos trabalhadores. Mas, o componente político não compromete a qualidade literária da obra.

A grandeza do escritor reside justamente nessa capacidade de expressar a luta de classes sem o fazê-lo por meio de proselitismo partidário ou até mesmo com uma intenção de agitação e propaganda em torno de determinada ideologia. Com esse arranjo, suas histórias são factíveis, a conduta dos personagens, ainda que heroica em determinados momentos, não se revela como algo não plausível.  

O protagonista da história chama-se Guma, mais um daqueles muitos homens do cais. O seu pai sofrera o destino irremediável daqueles marinheiros: morrera num naufrágio do seu Saveiro para o encontro inevitável com Iemanjá, a divindade protetora dos marinheiros. Sua mãe foi uma prostituta que, sem condições de cuidar do filho, deixou-o aos cuidados de um Tio, também marinheiro, que ensinou à Guma desde menino a pilotar o barco de vela,  chamado simbolicamente de “Valente”.

O que caracteriza aqueles homens do mar é a coragem.  E a experiência de viver o amor e a vida em geral de forma intensa.

A coragem reside na formação para um trabalho em que estarão sempre cercados pelo risco da morte. São as tempestades repentinas e os ventos que destroem os saveiros e levam seus condutores ao encontro de Iemanjá. Além disso, Guma e os demais são desde criança levados ao trabalho no mar. Apenas frequentam poucos anos de escola para apenas aprender de forma rudimentar a escrever o seu próprio nome. Já aos 10 ou 11 anos de idade, abandonam o estudo para cumprir o seu destino. Reproduzem um ciclo que vem dos seus pais e avós. Tornam-se por isso homens antes do tempo.

Além disso, os homens do cais vivem o amor de forma intensa. Passam temporadas em viagens e quando retornam à família, amam suas mulheres como se não houvesse amanhã. Afinal, nunca saberão o dia em que não retornarão.

Não encaram essa fatalidade com revolta, nem tão pouco com resignação. Trata-se de predestinação, vista por eles em seu caráter heroico. Todos aqueles homens sabem que o seu destino é perecer nas águas do mar. O tio de Guma, uma exceção à regra, envelhece até esgotar suas forças para conduzir o saveiro. Perecer de velhice, sem cumprir o seu destino de marinheiro, é motivo de tristeza àqueles homens.

A dimensão política da obra se revela na exposição das condições de vida dos trabalhadores do mar. Os marinheiros quando naufragam obrigam suas esposas a sobreviver da prostituição ou do trabalho precário nas fábricas. O baixo preço pago pelas viagens levam-nos em determinado momento a cogitar a greve geral. Há ainda na história dois personagens oriundos de uma pequena burguesia que aderem e defendem os interesses dos trabalhadores. São os intelectuais que gravitam em torno da luta social.

Dona Dulce é uma professora de escola primária, ensina os meninos que dentro de pouco tempo abandonarão ao estudo para o trabalho. Acredita que haverá no futuro um grande milagre que trará a redenção do povo: sem atribuir nome a esse milagre, o leitor facilmente compreende essa esperança com o advento do socialismo. Outro intelectual é o Dr. Rodrigo, um médico que renuncia a riqueza e a vida confortável do trabalho na cidade para viver no cais, lado a lado com os trabalhadores, ajudando-nos com dinheiro e medicando o povo de forma gratuita.

“Mar Morto” é também uma história de amor.

As mulheres dos marinheiros vivem um triste destino: esperam a cada noite de tempestade a notícia da morte dos seus maridos.

Lívia, a companheira de Guma, é uma delas. Contra a vontade da família, casa-se por amor sincero. Em toda a história, passa pela não aceitação do destino que leva os trabalhadores ao encontro inevitável com Iemanjá. No início do casamento, busca até mesmo acompanhar Guma nas suas viagens no navio. E o amor de ambos enseja pela primeira vez um sentimento de medo em Guma: nas viagens em que está acompanhado de Lívia, experimenta um novo sentimento de temor de um naufrágio, que agora arrastaria consigo a sua companheira.

A morte heroica do protagonista no final da história traz-nos a revelação de que Lívia não fora simplesmente uma companheira de Guma. Na busca pelo corpo do marido, a história termina com a sugestão de que Lívia nada mais fora do que uma materialização de Iemanjá, também conhecida pelo povo como Janaína. A vida no mar os uniu e a morte no naufrágio do barco “Valente” os reuniu.  

sábado, 19 de julho de 2025

“Cândido ou O Otimismo” – Voltaire

 “Cândido ou O Otimismo” – Voltaire





Resenha Livro - “Cândido” – Voltaire – Ed. Lafonte

Cândido é o mais conhecido texto de Voltaire. Ao ponto de um dos seus personagens assumir a qualidade de um adjetivo.

Até hoje se fala que determinada pessoa ou ideia é panglossiano(a).

O termo vem do personagem Dr. Pangloss, filósofo e preceptor dos filhos de um rico Barão de Vestfália. Significa atribuir um otimismo exagerado e inadequado às situações de maior adversidade. Aplica-se às pessoas que têm a mania de sustentar que está tudo bem quando tudo vai mal. O termo ainda tem uma conotação de ironia, justamente quando o otimismo exacerbado é confrontado com a dura realidade – o que provoca o efeito do humor. Como diria um panglossiano, apesar de todas as desgraças do mundo, as coisas não poderiam ser diferentes porque elas sempre acontecem da melhor maneira possível.

“Está demonstrado – dizia Pangloss – que as coisas não podem ser de outra forma, pois, uma vez que tudo é feito para um fim, tudo é necessariamente feito para o melhor dos fins. Reparem que o nariz foi feito para sustentar os óculos. Por isso usamos óculos. As pernas foram visivelmente instituídas para vestirem calças; por isso usamos calças. As pedras foram formadas para serem talhadas e para construir castelos; por isso o senhor barão tem um castelo lindíssimo. O maior barão da província deve ter a melhor moradia. E ainda, como os porcos foram feitos para serem comidos, comemos porco o ano inteiro. Por conseguinte, aqueles que afirmam que tudo está bem disseram uma tolice; deveriam, na realidade, dizer que tudo está da melhor forma possível”.

Cândido, o protagonista do conto, foi um aluno do grande filósofo do otimismo. Morava de favor no Castelo, até ser expulso, logo após ser flagrado beijando a bela Cunegundes, filha do Barão.

Como o seu nome sugere, Cândido tem uma alma pura e é incapaz de trair a verdade. Entusiasta das ideias de seu mestre, ao ser lançado ao mundo, irá confrontar as premissas panglossianas com a realidade. Aqui já temos um primeiro enunciado filosófico do texto: a filosofia deve ter fundamento na experiência, as ideias devem ser confrontadas com a prática, a verdade não reside na atividade puramente especulativa. Será através do giro de Cândido pela Europa, pela América e pelo Mediterrâneo que poderá testar na prática as ideias do seu mestre Pangloss.

Nas suas andanças, cai nas mãos do exército búlgaro, presencia a guerra, massacres e estupros coletivos. Em fuga num navio, sofre um naufrágio e consegue chegar até Lisboa, porém é surpreendido por um terremoto que devasta a cidade. Era no tempo da Inquisição, e um Auto de Fé é realizado para exorcizar os pecados que teriam dado causa ao desastre natural: o seu mestre Pangloss é capturado aleatoriamente e enviado à forca pela Santa Inquisição, com a finalidade de expurgar a humanidade e evitar um novo castigo divino.

Numa nova rota de fuga, Cândido sai de Portugal em direção às Américas, onde trava relações com os jesuítas do Paraguai. (Voltaire, quando criança, estudara num colégio de Jesuítas. A crítica radical da Igreja Católica e da mistificação religiosa, dentro da sua orientação Iluminista, é traço característico de sua obra).

Cândido e seus companheiros de viagem são em determinado momento capturados por selvagens chamados “orelhudos”. Aqui, pode-se notar uma nova polêmica filosófica, dirigida em face de Rousseau, que propugnava a teoria do bom selvagem. De acordo com essa teoria, o índio vive no seu estado natural, por não estar sujeito à influência da sociedade, e por isso é naturalmente bom, pacífico e virtuoso. Já os índios “orelhudos” de Voltaire perseguem Cândido para matá-lo e exercer a antropofagia. Outras mulheres da tribo travam relações sexuais e amorosas com macacos.

Finalmente, o protagonista consegue ser libertado dos selvagens e num lance de sorte chega à cidade de Eldorado.

Trata-se de um lugar cercado por altas montanhas, tornando impossível o contato dos seus habitantes com o restante do mundo. Suas areias são feitas de ouro. Diamantes e todo tipo de riqueza natural são tão abundantes que os seus habitantes desconhecem o seu valor. Ficam chocados quando Cândido e seu companheiro Cacambo pedem para si todo aquele ouro, cuja abundância era tamanha, que fazia com que os moradores de El Dorado o comparassem a lixo.

Sob toda essa riqueza material, e totalmente isolada do resto da humanidade, Eldorado surge como a confirmação das ideias de Pangloss. Uma sociedade perfeita, onde uma elite política de sábios governa em prol da coletividade, desprovida de qualquer interesse que não servir o povo. Os estrangeiros são recebidos com grandes banquetes, oferecidos com tamanha generosidade, que os convivas estranham e riem quando Cândido se oferece para retribuir em dinheiro o tratamento hospitaleiro. O conhecimento e a tecnologia desenvolvida pelos habitantes de El Dorado levam seus habitantes a criar uma máquina voadora para levar os aventureiros de volta ao mundo que cerca a cidade utópica.

As desventuras de Cândido prosseguem. Retorna da América à Europa, onde passa por Paris (o mais detestável dos lugares por que passou), Veneza e finalmente Constantinopla. Depois de confrontar a filosofia do otimismo com aquilo que viu no seu giro pelo mundo, Cândido chega ao fim da história à conclusão de que o mundo não existe para ser pensado.

A redenção descoberta por Cândido se dá através do trabalho.

É através do trabalho que se combate os três maiores males da vida: a necessidade, o vício e o tédio.

Sabe-se que o Iluminismo é a expressão filosófica e ideológica da burguesia enquanto classe social emergente. Trata-se de um movimento ideológico de oposição ao Antigo Regime e ao Absolutismo Monárquico que iria se materializar politicamente através da Revolução Francesa de 1789.

Cândido ao final da história rejeita a filosofia especulativa para afirmar que o que vale na vida é “trabalhar e cuidar do seu jardim”. Ou seja, o Trabalho e a Propriedade, os dois fundamentos do liberalismo burguês.  

O “cuidar do seu jardim” a que se refere à Cândido diz respeito a um dos elementos constitutivos dessa ideologia burguesa: a propriedade privada. 

O “trabalho” também encontra o seu fundamento na burguesia quando ela se opõe aos privilégios instituídos pelo Antigo Regime, defendendo a igualdade de todos perante a lei – o próprio nascimento da classe trabalhadora se dá no seio do desenvolvimento dessa burguesia citadina da Europa, ao ponto de ulteriormente (e dialeticamente) constituir-se como uma classe em oposição à própria burguesia.

O proletariado nasce no seio da revolução da burguesia para logo depois se constituir como a classe social que leva adiante essa mesma revolução até as suas últimas consequências: o socialismo.

Enquanto em 1789, a burguesia por meio da revolução põe abaixo o absolutismo para instituir um novo regime político, já no século subsequente, em 1848, passa a ser confrontada pelos primeiros movimentos socialistas dos trabalhadores. Quando a Comuna de Paris em 1871 coloca em pauta pela primeira vez na história a tomada do poder pelo proletariado, sua derrota por meio do massacre da contrarrevolução já evidencia o esgotamento da fase “revolucionária” da burguesia. Torna-se a partir de então uma classe reacionária. Vai decaindo desde o século XIX até os dias de hoje. O seu liberalismo, hoje, é a fonte fundamental da tragédia econômica e social produzida pelo capitalismo em sua fase imperialista, marcada por crises, guerras e revoluções.  É uma ideologia que no passado cumpriu um papel heroico, mas hoje merece ser derrotada.

Voltaire é uma expressão da fase revolucionária do liberalismo.

Apesar de ser conhecido como um filósofo, Voltaire não foi propriamente um teórico ou criador de algum sistema filosófico próprio. Foi antes de tudo um polemista e propagandista.

Morreu no ano de 1778, poucos anos antes da grande Revolução de 1789, que corou as ideias do movimento ideológico do qual fez parte. Os revolucionários franceses, no ano de 1791, trouxeram os restos mortais do filósofo ao Panteão de Paris, mausoléu onde estão enterrados os grandes homens da França.  

segunda-feira, 7 de julho de 2025

“Triste Fim de Policarpo Quaresma” – Lima Barreto

 “Triste Fim de Policarpo Quaresma” – Lima Barreto



Resenha Livro - “Triste Fim de Policarpo Quaresma” – Lima Barreto – Ed. Projetus

“Policarpo era patriota. Desde moço, aí pelos vinte anos, o amor da Pátria tomou-o todo inteiro. Não fora o amor comum, palrador e vazio; fora um sentimento sério, grave e absorvente. Nada de ambições políticas ou administrativas; o que Quaresma pensou, ou melhor: o que o patriotismo o fez pensar, foi num conhecimento inteiro do Brasil, levando-o a meditações sobre os seus recursos, para depois então apontar os remédios, as medidas progressivas, com pleno conhecimento de causa”.

“Triste Fim de Policarpo Quaresma” é sem dúvidas o mais conhecido romance do escritor fluminense Afonso Henriques de Lima Barreto (1881/1922). Foi publicado inicialmente em folhetim no ano de 1911 na edição vespertina do “Jornal do Comércio” do Rio de Janeiro. Quatro anos depois, foi publicado integralmente em livro, ao que consta, a muito custo, com os parcos rendimentos do escritor.

Lima Barreto não obteve o reconhecimento literário ao seu tempo, a despeito de ser provavelmente o melhor cronista da incipiente vida urbana do Brasil do início do Século XX. Foi em três ocasiões preterido de uma vaga na Academia Brasileira de Letras. Foi excluído e silenciado pela crítica oficial e passou os últimos anos de sua vida internado em hospital psiquiátrico por problemas com alcoolismo.

Em parte, a marginalização do escritor se explica pela sua origem social e racial. E, de outro lado, o seu estilo literário igualmente destoava das tendências predominantes da época, ainda influenciadas pelo apego ao formalismo, levado até as últimas consequências pelo parnasianismo.  

Os romances do escritor envolvem uma escrita simples, de estilo realista, que procura expressar os tipos populares e suburbanos do Rio de Janeiro, então capital do Brasil. Em Lima Barreto, a palavra não serve de anteparo entre o homem e os fatos que serão narrados. Opunha-se ferozmente a qualquer tipo de preciosismo literário, ao ponto de dizer: “não posso compreender que a literatura seja um culto ao dicionário”. Neste contexto, fazia oposição direta aos dois mais importantes escritores do período em que viveu: Rui Barbosa e Coelho Neto.

Curiosamente, um dos poucos que reconheceram a capacidade do escritor negro e pobre do Rio de Janeiro foi Monteiro Lobato, o mesmo que muitos hoje em dia buscam também silenciar por conta do seu “racismo” e “elitismo”. Foi o próprio Lobato o único que quem publicou em sua editora os livros de Lima Barreto.

A segunda razão do ostracismo em vida do escritor, como dissemos, diz respeito à sua origem social. Veio do subúrbio carioca, foi filho de um tipógrafo e de uma professora primária, falecida quando Lima Barreto tinha sete anos de idade.

O seu pai era monarquista e protegido de Visconde de Ouro Preto. O político do II Império tornou-se padrinho de Lima Barreto e o auxiliaria a ingressar  na escola politécnica do Rio de Janeiro. Lá estudou engenharia, sem terminar o curso. Com a queda de Dom Pedro II e a proclamação da República, o pai de Lima Barreto, até então protegido pelo influente ministro do Imperador, perde o emprego. Já o autor de Policarpo Quaresma sobrevive escrevendo em jornais e revistas do Rio de Janeiro  e, em 1903, é aprovado em concurso para trabalhar como funcionário público da Secretaria da Guerra.

Há em toda obra do escritor um componente autobiográfico. Ele é mais visível especialmente do seu primeiro romance "Recordações do escrivão Isaías Caminha" (1909) no qual traça um panorama satírico dos artistas, escritores, poetas e jornalistas que participam da vida cultural do Brasil dos anos de 1900. Desde o favoritismo, até ao culto do bacharelismo, vemos a mediocridade se impondo e prevalecendo sobre a originalidade nas artes. Em regra, o bacharel é aquele que se torna um sábio através do estudo – o diploma parece ser antes um mero título de nobreza. A ausência de autenticidade, quando não o puro e simples plágio, dão o tom da literatura da época.

O componente auto biográfico está igualmente presente no seu mais conhecido romance.

Triste Fim de Policarpo Quaresma

O major Policarpo Quaresma pode ser comparado como a versão brasileira de Dom Quixote.

É um nacionalista movido por um sincero, cândido e ingênuo otimismo em relação ao Brasil. O aspecto quixotesco do personagem se revela especialmente em alguns lances cômicos do protagonista.

Quaresma é um burocrata que trabalha na Secretaria de Guerra e desde cedo se dedica ao estudo da realidade nacional. Depois de ler absolutamente toda a bibliografia disponível sobre a história, botânica, geologia, política, sociologia e a geografia do Brasil, surpreende os seus vizinhos fazendo aulas de violão, por entender ser o instrumento, então visto como algo vulgar, uma das mais altas expressões do sentimento nacional.

Vai estudar o folclore brasileiro e busca entrevistar uma velha escrava para lhe contar as cantigas da época do cativeiro. A própria mulher estranha o pedido e mal se lembra das tais histórias.

Inicialmente visto como um esquisitão, Quaresma passa a ser visto como louco depois de propor uma reforma ao legislativo para instituir o Tupi como língua oficial do Brasil. É aposentado de forma compulsória da Secretaria de Guerra e então se muda para uma fazenda chamada “Sossego” onde traça um programa ambicioso para impulsionar a agricultura nacional.

Frequentemente, o seu idealismo é confrontado com a dura realidade.

Leu tratados de botânica, trabalha ele próprio a terra em conjunto com um ex escravo, que se diverte vendo o major com o seu pince-nez mal saber manusear a enxada. Todo o esforço e esperança dedicados à agricultura são destruídos pelo poder invencível das .... formigas. São elas tão frequentemente lembradas na tradição brasileira, que remontam à famosa assertiva de “Macunaíma” de Mário de Andrade: “Muitas Saúvas e Pouca Saúde, os males do Brasil são”.

Mas certamente o momento em que Quaresma mais verá confrontado o seu idealismo com a dura e bruta realidade país se dará na última parte do livro, quando o major se voluntaria para defender a República e a presidência de Floriano Peixoto durante a Revolta da Armada. Trata-se de uma Guerra Civil que foi brutalmente reprimida pelo ditador da República.

Se o protagonista via o Brasil como um país divino, inigualável em sua perfeição natural, o idealismo se estende aos poderes políticos: via uma figura medíocre como a do presidente do Brasil como uma versão nacional de Napoleão, de Henrique IV ou de Bismark.  Novamente a expectativa em torno do ideal, confrontada com a realidade, produz um novo fracasso, com tons de humor.

Ao término da revolta, Floriano Peixoto encerra uma perseguição incruenta contra os rebeldes, ensejando a oposição de Quaresma, sempre movido por uma intenção sincera de servir a pátria. E, ao final da obra, o protagonista é mandado à prisão e tratado por todos como um traidor da pátria. É o “triste fim” a que se reporta o título do livro.

E esse “triste fim”, esse não reconhecimento de um espírito virtuoso, sincero e ativo em defesa do Brasil é um dos paralelismos entre a obra de ficção e a vida de Lima Barreto. Tal qual Quaresma, Lima Barreto morreu sem o reconhecimento da sua contribuição ao país e à literatura nacional.

Não reconhecido em vida, entretanto, Lima Barreto hoje certamente é mais lido e conhecido que um Coelho Neto, o escritor erudito mais popular do Brasil no início do século XX.

sábado, 7 de junho de 2025

“Brás, Bexiga e Barra Funda” – Antônio Alcântara Machado

 Brás, Bexiga e Barra Funda” – Antônio Alcântara Machado



Resenha Livro - “Brás, Bexiga e Barra Funda” – Antônio Alcântara Machado – Ed. Universidade de São Paulo

Quando Antônio Alcântara Machado escreveu o livro de contos “Brás, Bexiga e Barra Funda” (1927), tinha apenas 26 anos de idade.  O escritor paulista foi um dos expoentes do movimento modernista, na sua fase inicial, inaugurada através da Semana de Arte Moderna de 1922.

É certo que aquele movimento tinha como norte a oposição ao academicismo e à arte puramente decorativa. O modernismo refletia as incertezas sociais do contexto da I Guerra Mundial, da Revolução Russa de 1917 e da ascensão do fascismo na Europa ( a “Marcha sobre Roma” de Mussolini efetivamente ocorreu 9 meses após a Semana de 22).

Além disso, o novo grupo de artistas expressava as novas realizações tecnológicas de fins do século XIX e início do XX: os automóveis velozes circulando nas cidades, o advento do cinema, a fotografia, o telefone, o gramofone, os bondes elétricos, a revolução causada pelo desenvolvimento da aviação, implicaram num conceito dinâmico da arte associada à velocidade e à simultaneidade, em oposição ao conceito estático tradicional, baseado no equilíbrio e na ordem.

Entretanto, a adesão de Alcântara Machado ao novo movimento literário foi tardia.

Quando ocorreu a Semana de 1922, o escritor era um jovem estudante da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Tomou parte do grupo de alunos que compareceu no Teatro Municipal para vaiar o evento. Naquele momento, já tinha publicado alguns artigos de jornais de crítica literária, além de desempenhar papel de orador do Centro Acadêmico XI de Agosto. Mas tinha restrições aos exageros dos modernistas.

O escritor nasceu em 25 de maio de 1901 na cidade de São Paulo. Pertencia às  chamadas “famílias quatrocentonas” paulistas, que remetam aos primeiros povoadores da Capitania de São Vicente, depois Província e depois Estado de São Paulo.

Por parte de pai, teve como ascendentes presidentes de províncias, deputados, barões e professores da Faculdade de Direito de São Paulo. Do lado materno, foi neto de gente de Taubaté, ligada ao bandeirantismo. Ele próprio, como um membro da aristocracia da terra, foi jornalista, advogado e crítico literário, viajou em três ocasiões à Europa e nunca sofreu de privação material. Participou da Revolução de 1932 e foi eleito deputado por São Paulo, falecendo, entretanto, antes de exercer o mandato.   

Sua efetiva adesão ao movimento modernista se deu por intermédio de Oswald de Andrade. E isso ocorreu depois de uma viagem à Europa no ano de 1925, onde, suponho, tenha tido contato com as novas correntes artísticas do velho continente:  foram as vanguardas europeias que igualmente expressavam um rompimento com o tradicionalismo e apontavam para a experimentação artística, através do cubismo, futurismo, dadaísmo e surrealismo. Foram a expressão de um momento em que o progresso tecnológico redimensionou as fronteiras e os limites da comunicação, por intermédio do rádio, do cinema, do automóvel e do telégrafo. O otimismo em torno da ciência e do progresso tecnológico oriundo das correntes de pensamento do século XIX, levado até às últimas consequências pelo Positivismo, se desdobraria, no século subsequente, numa nova etapa de esgarçamento. O cientificismo e a apologia do progresso terminariam culminando na barbárie e na irracionalidade da guerra generalizada (I Guerra Mundial). A razão levada até às últimas consequência conduziu-nos ao colonialismo, ao eugenismo às teorias de supremacia racial. O pensamento artístico e a vanguarda modernista correspondem à etapa imediatamente anterior, premonitória, desse movimento da razão em direção à  barbárie.    

“Brás, Bexiga e Barra Funda” trata da vida dos recém chegados imigrantes italianos na cidade de São Paulo. Inicialmente, foram engajados no trabalho do campo, nas fazendas de café do interior paulista, através de um regime de trabalho parecido com a servidão, como forma de substituição do trabalho escravo, abolido em 1888.

Já na década de 1920, esses imigrantes italianos são a força de trabalho da nascente indústria de São Paulo. Tiveram importante papel no desenvolvimento dos primeiros sindicatos e na divulgação das ideias políticas anarquistas; a partir de 1917, sob o impacto da Revolução Russa, os anarquistas tornam-se socialistas constituem o Partido Comunista Brasileiro em 1922.  

 Os italianos são referidos na introdução do livro como a terceira geração dos mamelucos brasileiros.

“Durante muito tempo a nacionalidade viveu uma mescla de três raças que os poetas xingaram de tristes: as três raças tristes.

A primeira, as caravelas descobridoras encontraram aqui comendo gente, e desdenhosa de mostrar suas vergonhas. A segunda veio nas caravelas. Logo os machos sacudidos desta se enamoraram das moças bem gentis daquela, que tinham cabelos mui pretos, compridos pela espádoas.

E nasceram os primeiros mamelucos.

A terceira veio dos porões dos navios negreiros trabalhar o solo e servir a gente. Trazendo moças gentis, mucamas, mucambas, mumbandas, macumas.

E nasceram os segundo mamelucos.

(...) E então os transatlânticos trouxeram da Europa outras raças aventureiras. Entre elas uma alegre que pisou a terra paulista cantando e na terra brotou e se alastrou como aquela planta imigrante que há duzentos anos veio fundar a riqueza brasileira.

Do consórcio da gente imigrante com o ambiente, do consórcio da gente imigrante com a indígena nasceram os novos mamelucos”.

Ao qualificar os imigrantes com mamelucos, o autor reforça o processo de integração e miscigenação que foi um fator bastante positivo no desenvolvimento histórico do Brasil.

Desde os tempos mais remotos da vinda dos portugueses, não houve por aqui a colonização de “povoamento”, aos moldes da América do Norte, quando grupos familiares buscam constituir sociedades autônomas e segregados dos povos que aqui habitavam – na maior parte, eram esses povoadores protestantes radicais e indesejáveis até mesmo na Europa.... A grande vantagem da nossa colonização por “exploração” foi que os portugueses se lançavam numa aventura em torno da extração de riquezas e o enriquecimento imediato: não buscaram, assim, criar uma nova sociedade segregada, aos moldes europeus, mas se integraram e constituíram suas famílias por meio da miscigenação. Primeiro com os índios para constituir a 1ª Geração dos Mamelucos. E depois com os negros para constituir a 2ª Geração dos Mamelucos.

A terceira geração de mamelucos, os italianos, inicialmente eram chamados pejorativamente pelos brasileiros de “carcamanos” e “pés de chumbo”. Mas, seguindo essa tradição dos tempos da colônia, se integraram, se miscigenaram, casaram e constituíram famílias com os/as brasileiros/as e, no limite, foram um dos alicerces da indústria e do desenvolvimento econômico do país, emprestando a sua força de trabalho ou até prosperando e tornando-se eles próprios figuras importantes da política e cultura nacional: Conde de Matarazo, Menotti del Pichia e Anita Malfati são alguns nomes de ilustres imigrantes italianos a quem o livro é dedicado.

As histórias de “Brás, Bexiga e Barra Funda” são curtas, sugerindo uma narrativa em alta velocidade, tal qual os novos bondes e carros que surgem como uma novidade no início do desenvolvimento de São Paulo. Os efeitos visuais e sonoros da cidade em movimento são explorados no texto, remetendo à experimentação formal da vanguarda modernista: são as fábricas que “apitam”, os carros que circulam em alta velocidade e o povo que grita diante do jogo de futebol. As histórias vão fazendo remissão às ruas e bairros conhecidos daqueles que moram em São Paulo: Largo da Santa Cecília, Largo São Francisco, Avenida Paulista, Avenida Angélica, Avenida da Liberdade.

O recurso do humor, tão caro aos modernistas que por meio dele querem demolir as formas tradicionais de arte, aparece no texto, mesmo em sua feição do trágico cômico. É o caso do conto “Gaetaninho”, um italianinho que morre atropelado por um bonde. O seu maior sonho é andar num automóvel e o acaba o realizando no final da história, dentro de um caixão.

Não foi extensa a produção literária de Alcântara Machado. Além de “Brás, Bexiga e Barra Funda”,  publicou “Laranja da China” (1928) e “Mana Maria” (1936), esse último lançado postumamente. Isso porque o autor morreu cedo, aos 35 anos, após uma intervenção cirúrgica fracassada por um problema de apendicite. Deixou ainda os seus artigos de jornal, crítica literária e artigos em revistas de literatura. Tal qual Álvares de Azevedo, também acadêmico da Faculdade de Direito de São Paulo, poderia ter sido um dos maiores da literatura brasileira não tivesse falecido tão jovem.