sexta-feira, 22 de agosto de 2025

“Banana Brava” - José Mauro de Vasconcelos

 “Banana Brava” - José Mauro de Vasconcelos



Resenha Livro - “Banana Brava” - José Mauro de Vasconcelos – Ed. Melhoramentos

“Um dia, saí pelo sertão adentro à procura de uma vida diferente. Deixei o meu coração parado à sombra de uma árvore, aguardando ansioso a minha volta e caminhei. Caminhei sem parar.  O sol tostou-me o rosto e as mãos.  Percorri muitas estradas empoeiradas, silenciosas e longas.  Esqueci-me do que se chama tempo e espaço, para perder-me na realidade da distância. Só havia distância...”. 

 

O livro mais conhecido do escritor fluminense José Mauro Vasconcelos certamente é “Meu Pé de Laranja Lima” (1968), espécie de relato autobiográfico da infância do escritor, vivenciada na pobreza de um bairro de subúrbio de Bangu/RJ.

As fantasias de uma criança que cultiva amizade com uma árvore de laranjeira do seu quintal, o encanto produzido pela imaginação dos menores, que conseguem abstrair as dificuldades da vida e encará-la com ternura e alegria, certamente cativou leitores de todas as idades e fez de Vasconcelos um dos poucos escritores brasileiros que pôde viver exclusivamente dos direitos autorais de sua obra. 

Façanha que encontra poucos paralelos no Brasil: Érico Verissimo, Jorge Amado e Monteiro Lobato são outros poucos exemplos de escritores de uma literatura ao mesmo tempo popular, acessível a todos e de rara qualidade estética.

“Meu Pé de Laranja Lima” vendeu mais de dois milhões de exemplares, tendo sido publicada em 15 países. “Rosinha Minha Canoa” (1962) foi a primeira obra de sucesso do nosso escritor, que igualmente relata um mundo encantado e fantástico, em que o pescador mantém dialogo e afeto com sua canoa, cuja origem advém de uma árvore capaz de sentir e de se comunicar. E esta pequena novela “Coração de Vidro” teve mais de 650.000 exemplares vendidos, publicações em 10 países, traduções em três idiomas e mais de 70 edições no Brasil.

A popularidade de Vasconcelos, por diferentes razões, não se traduziu em reconhecimento na academia. Aliás, a própria figura do escritor representa a mas completa oposição a tudo o que se posse considerar acadêmico.

De família pobre, nascido no estado do Rio de Janeiro, aos nove anos mudou-se para a casa dos tios em Natal/RN. Chegou a frequentar dois anos do curso de medicina naquele estado, mas a sua personalidade irrequieta e aventureira o faria abandonar o curso e retornar ao Rio de Janeiro a bordo de um navio cargueiro, levando uma simples maleta de papelão como bagagem.

Nesta peregrinação pelo país a fora, trabalhou como treinador de boxe, carregador de bananas na capital do Rio de Janeiro, pescador do litoral fluminense, professor primário num núcleo de pescadores no Recife, garçom em São Paulo. Além de escritor, foi ator de cinema e modelo.

Em dado momento de sua vida, se junto aos irmãos Villas Bôas, sertanistas e indigenistas, enveredando-se pelo sertão da região do Araguaia, contando povos indígenas desconhecidos e cartografando terras. O contato direto com aqueles povos sertanejos e indígenas criaria as condições para o escritor fazer relatos minuciosos (ainda que sua arte realista enveredasse para o fantástico, com animais e árvores falantes) dos povos do Araguaia, no seu já mencionado “Rosinha Minha Canoa” e no romance “O Garanhão das Praias” – ambos tratando de missões “civilizatórias” junto aos povos sertanejos e indígenas dos rincões do país.

BANANA BRAVA

“Banana Brava” foi o primeiro romance de José Mauro de Vasconcelos, escrito quando tinha apenas 22 anos de idade. Também nesta história existe um elemento autobiográfico representado na figura do protagonista do enredo. 

Joel também abandona a vida na cidade para lançar-se ao mundo – renuncia aos valores de sua origem urbana e o conforto do lar familiar para se aventurar no centro oeste, coração do Brasil, para o trabalho no garimpo.

Trata-se de uma história de estilo regionalista que descreve a vida dos sertanejos ligados ao trabalho da caça de diamantes. O realismo que marca as obras do escritor não permite qualquer tipo de idealização em torno da figura dos garimpeiros. São descritos como pessoas brutais e o que mais os caracteriza é a ausência da capacidade de sentir compaixão. Lançam-se à busca dos diamantes nos sertões, desbravando a selva, enfrentando a fúria das onças das matas e das piranhas dos rios. A cobiça e a luxúria são qualidades que informam a psicologia daqueles que se aventuram à busca pela riqueza imediata – qualidades que o historiador paulista Paulo Prado em seu “Retrato do Brasil” (1922) estende a própria psicologia do povo brasileiro.

São homens temperados dentro de uma realidade brutal com o objetivo do enriquecimento rápido – de certa forma, o sonho do El Dorado remete mesmo aos tempos do Brasil colônia, já desde o bandeirantismo, particularmente em sua fase tardia, quando os sertanistas de São Paulo abandonam a atividade da captura dos índios para se voltar à busca do ouro e do diamante.  

Joel, um garoto de coração puro, com mãos delicadas de um pianista, tem a sua fisionomia moral radicalmente alterada através do trabalho no garimpo.

A lhaneza do seu coração é revelada nos primeiros capítulos do livro, na sua relação com Gregorão, um homem bruto que o acompanha nos trabalhos do garimpo. Frequentemente, é obrigado a resgatar o seu amigo da prisão, quando Gregorão passa a noite envolvido em bebedeira e brigas – são as pequenas tragédias que ocorrem nos domingos, dia de folga dos garimpeiros:

“Domingo. Ninguém trabalha no garimpo. É o dia de Deus. Somente o comércio abre as portas. Os garimpeiros metem sua melhor calça. Calçam botas ou sandálias. Batem pernas pela rua, levantando uma poeira ininterrupta. Vão de boteco em boteco. Comem doce de gergelim. Bebem pinga de todo o jeito, convidam todo mundo e aceitam todo o convite. É o dia de Deus, ninguém trabalha. Dia de Deus e da polícia. O melhor dia para a pensão da cadeia melhorar dos seus hóspedes e alugar os seus quartos de janelas cruzadas...”.

A amizade e o cuidado de Joel e Gregorão se assemelham ao afeto de um filho em relação ao pai. Entretanto, o primeiro, cansado de estar sempre arrastando o segundo das confusões causadas pela bebida, decide se mover para outro destino. Deixa o pouco de dinheiro que lhe resta para pagar a fiança de Gregorão e parte para Banana Brava, uma terra distante, no Araguaia, onde afirmam estar situada a mais promissora fonte de riqueza rápida.

Nessa jornada até Banana Brava, o coração puro de Joel vai sendo paulatinamente corrompido.

O garimpo é fonte de destruição da natureza e dos campos onde se cultivam as fontes de subsistência. A terra que serve de fonte de alimento é queimada e destruída na busca desenfreada pelo ouro. São as queimadas que preparam a abertura das catras. Mas o garimpo também destrói e aniquila a alma do homem.

Joel se envolve com um grupo de pessoas que se dirigem à Banana Brava. O trajeto é feito atravessando léguas a fio dentro da mata, numa selva infernal, cercadas de animais selvagens e insetos. Há escassez de água e de alimentos. Cardumes de piranhas impedem o acesso aos rios. Nas caminhadas, topam com “uma infinidade de espinhos de toda a espécie. A macambira não perdoava, com as suas garras de espinho. Lembrava um polvo, cujos tentáculos eram cheios de espinhos. Havia também o capim tiririca, que grudava nos braços e nas pernas, rasgando as carnes, como giletes. O bambu cipó era outro suplício, porque quando aparecia, enchia os campos em massa compacta”.

Não habituado àquele ambiente hostil, Joel é deixado para trás e perde a trilha dos demais companheiros – e, como dito, a compaixão é um sentimento ignorado por aqueles garimpeiros, que não hesitam e deixar o rapaz para trás.

Joel fica nove dias isolado e perdido na selva, sem comida e sujeito ao ataque de animais selvagens. Chega a desfalecer de sede e de fome, até o ponto de urubus estarem-no cercando, aguardando o momento certo para lhe comer a carniça. Nesses últimos instantes de vida, é resgatado por Seu Diolino, um camponês que vive naquelas matas com a sua família. Leva para casa e cuida dos ferimentos.

Recuperado, Joel jura vingança. O ódio àqueles que o abandonaram o leva a planejar uma revanche desleal – promove uma falsa denúncia às autoridades locais de que aqueles garimpeiros que o abandonaram, na verdade, tentaram-no assassinar para lhe tomar o dinheiro. Por sua culpa, os homens são açoitados a mando da autoridade local e todo o dinheiro do grupo é dado de volta a Joel, como se fosse a título de “restituição.”.

Esse ato desleal de vingança é o ponto de partida da desagregação moral do protagonista – e é agravada ainda pela adesão ao hábito de beber pinga. A história de Joel é a expressão da brutalização do homem quando confrontado com as circunstâncias do meio.

Não propriamente através de uma orientação determinista – o meio hostil é um elemento de desagregação da moral do protagonista, mas ainda há esperanças. Ao fim da história, Joel recupera a consciência e o discernimento entre o certo e o errado. O seu reencontro comovente com Gregorão ao final da história revela que ainda existe ternura no seu coração, a despeito da violência e barbárie do ambiente a que esteve submetido.

As tragédias que remontam a orientação realista de José Mauro de Vasconcelos não implicam a desilusão em relação ao ser humano. Ao lado da violência gratuita e dos assassinatos, há espaço também para atos de amor e altruísmo, revelados na parte final da história, quando Gregorão dá a sua vida para salvar Joel.

A brutalidade do sertanejo convive com uma certa dose de inocência. O garimpeiro também pode ter um coração cândido. Não são movidos por uma maldade inata, mas parecem antes serem crianças em corpo de adulto. A origem do mal está nas condições sociais do Garimpo e não na natureza selvagem.

domingo, 10 de agosto de 2025

“Mar Morto” – Jorge Amado

"Mar Morto" - Jorge Amado


  

Resenha Livro - “Mar Morto” – Jorge Amado – Ed. Record

“... Agora eu quero contar as histórias da beira do cais da Bahia. Os velhos marinheiros que remendam velas, os mestres de saveiros, os pretos tatuados, os malandros sabem essas histórias e essas canções. Eu as ouvi nas noites de lua no cais do Mercado, nas feiras, nos pequenos portos do Recôncavo, junto aos enormes navios suecos nas pontes de Ilhéus. O povo de Iemanjá tem muito que contar”.

 É bastante extensa a produção literária do escritor baiano Jorge Amado (1912/2001). Em vida o escritor publicou 49 livros, entre romances, novelas, peças de teatro e biografias. Seus trabalhos foram traduzidos em cerca de 50 idiomas, além de adaptações das obras no teatro, no cinema e na televisão.

Jorge Amado é também um dos escritores brasileiros mais conhecido e lidos fora do país – no ano de 1971, por exemplo, o autor é convidado para acompanhar um curso sobre sua obra na Universidade de Pensilvânia nos EUA. O que é notável, neste caso, é a forma como o autor consegue suscitar obras tanto reconhecidas pela crítica especializada quanto pelo público: em que pese as nuanças que marcam a evolução de sua obra, há sempre uma abordagem de pessoas e ambientes que realçam aspectos da cultura popular.

Convencionou-se dividir a literatura de Jorge Amado em dois grandes períodos.

Uma fase de cunho nitidamente político ideológico perpassa sua produção dos anos 1930/1940. É deste período romances como “Cacau” (1932) que descreve a opressão dos trabalhadores rurais nos latifúndios do sul da Bahia, região na qual o escritor nasceu. É também nesta primeira fase que o escritor publica o seu famoso  “Capitães de Areia” (1937) relato da vida de menores abandonados que sobrevivem de pequenos atos de bandidagem nas ruas da Bahia, convivem e descobrem o amor, o sexo e a solidariedade dos oprimidos desde um trapiche onde se refugiam.

Estes livros se situam num movimento literário conhecido como segunda fase do modernismo, de cunho nitidamente regionalista e com um forte acento na denúncia das iniquidades sociais. Andam num sentido semelhante aos romances de Graciliano Ramos, Rachel de Queirós e José Lins do Rego. No caso de Jorge Amado, especificamente, os mais humildes e oprimidos são erigidos na condição de heróis, seja os trabalhadores rurais do cacau, seja os “bandidos sociais” do trapiche, para usar a terminologia do historiador Eric Hobsbawm. 

A segunda fase da produção literária do escritor baiano se relaciona com uma reorientação política. Teve como eixo a ruptura de muitos intelectuais com o movimento comunista no contexto do XX Congresso do PCUS no ano de 1956, quando Nikita Kruschev denunciou aquilo que caracterizava como os “crimes do stalinismo” – na prática, tratava-se do marco inicial da restauração capitalista da União Soviética.  São desta segunda fase romances não tão abertamente ideológicos como “Gabriela Cravo e Canela” (1958) e “Dona Flor e Seus Dois Maridos” (1966).

Apesar de “Mar Morto” (1936) ser uma obra da juventude de Jorge Amado, foi por ele considerado o seu melhor romance.

A história dos homens que vivem no mar, transportando mercadorias nos seus barcos a vela (saveiros), em condições de extrema pobreza e sujeitos ao risco de uma tempestade leva-los à morte, remonta à preocupação  do escritor com a vida e a luta do povo e dos trabalhadores. Mas, o componente político não compromete a qualidade literária da obra.

A grandeza do escritor reside justamente nessa capacidade de expressar a luta de classes sem o fazê-lo por meio de proselitismo partidário ou até mesmo com uma intenção de agitação e propaganda em torno de determinada ideologia. Com esse arranjo, suas histórias são factíveis, a conduta dos personagens, ainda que heroica em determinados momentos, não se revela como algo não plausível.  

O protagonista da história chama-se Guma, mais um daqueles muitos homens do cais. O seu pai sofrera o destino irremediável daqueles marinheiros: morrera num naufrágio do seu Saveiro para o encontro inevitável com Iemanjá, a divindade protetora dos marinheiros. Sua mãe foi uma prostituta que, sem condições de cuidar do filho, deixou-o aos cuidados de um Tio, também marinheiro, que ensinou à Guma desde menino a pilotar o barco de vela,  chamado simbolicamente de “Valente”.

O que caracteriza aqueles homens do mar é a coragem.  E a experiência de viver o amor e a vida em geral de forma intensa.

A coragem reside na formação para um trabalho em que estarão sempre cercados pelo risco da morte. São as tempestades repentinas e os ventos que destroem os saveiros e levam seus condutores ao encontro de Iemanjá. Além disso, Guma e os demais são desde criança levados ao trabalho no mar. Apenas frequentam poucos anos de escola para apenas aprender de forma rudimentar a escrever o seu próprio nome. Já aos 10 ou 11 anos de idade, abandonam o estudo para cumprir o seu destino. Reproduzem um ciclo que vem dos seus pais e avós. Tornam-se por isso homens antes do tempo.

Além disso, os homens do cais vivem o amor de forma intensa. Passam temporadas em viagens e quando retornam à família, amam suas mulheres como se não houvesse amanhã. Afinal, nunca saberão o dia em que não retornarão.

Não encaram essa fatalidade com revolta, nem tão pouco com resignação. Trata-se de predestinação, vista por eles em seu caráter heroico. Todos aqueles homens sabem que o seu destino é perecer nas águas do mar. O tio de Guma, uma exceção à regra, envelhece até esgotar suas forças para conduzir o saveiro. Perecer de velhice, sem cumprir o seu destino de marinheiro, é motivo de tristeza àqueles homens.

A dimensão política da obra se revela na exposição das condições de vida dos trabalhadores do mar. Os marinheiros quando naufragam obrigam suas esposas a sobreviver da prostituição ou do trabalho precário nas fábricas. O baixo preço pago pelas viagens levam-nos em determinado momento a cogitar a greve geral. Há ainda na história dois personagens oriundos de uma pequena burguesia que aderem e defendem os interesses dos trabalhadores. São os intelectuais que gravitam em torno da luta social.

Dona Dulce é uma professora de escola primária, ensina os meninos que dentro de pouco tempo abandonarão ao estudo para o trabalho. Acredita que haverá no futuro um grande milagre que trará a redenção do povo: sem atribuir nome a esse milagre, o leitor facilmente compreende essa esperança com o advento do socialismo. Outro intelectual é o Dr. Rodrigo, um médico que renuncia a riqueza e a vida confortável do trabalho na cidade para viver no cais, lado a lado com os trabalhadores, ajudando-nos com dinheiro e medicando o povo de forma gratuita.

“Mar Morto” é também uma história de amor.

As mulheres dos marinheiros vivem um triste destino: esperam a cada noite de tempestade a notícia da morte dos seus maridos.

Lívia, a companheira de Guma, é uma delas. Contra a vontade da família, casa-se por amor sincero. Em toda a história, passa pela não aceitação do destino que leva os trabalhadores ao encontro inevitável com Iemanjá. No início do casamento, busca até mesmo acompanhar Guma nas suas viagens no navio. E o amor de ambos enseja pela primeira vez um sentimento de medo em Guma: nas viagens em que está acompanhado de Lívia, experimenta um novo sentimento de temor de um naufrágio, que agora arrastaria consigo a sua companheira.

A morte heroica do protagonista no final da história traz-nos a revelação de que Lívia não fora simplesmente uma companheira de Guma. Na busca pelo corpo do marido, a história termina com a sugestão de que Lívia nada mais fora do que uma materialização de Iemanjá, também conhecida pelo povo como Janaína. A vida no mar os uniu e a morte no naufrágio do barco “Valente” os reuniu.  

sábado, 19 de julho de 2025

“Cândido ou O Otimismo” – Voltaire

 “Cândido ou O Otimismo” – Voltaire





Resenha Livro - “Cândido” – Voltaire – Ed. Lafonte

Cândido é o mais conhecido texto de Voltaire. Ao ponto de um dos seus personagens assumir a qualidade de um adjetivo.

Até hoje se fala que determinada pessoa ou ideia é panglossiano(a).

O termo vem do personagem Dr. Pangloss, filósofo e preceptor dos filhos de um rico Barão de Vestfália. Significa atribuir um otimismo exagerado e inadequado às situações de maior adversidade. Aplica-se às pessoas que têm a mania de sustentar que está tudo bem quando tudo vai mal. O termo ainda tem uma conotação de ironia, justamente quando o otimismo exacerbado é confrontado com a dura realidade – o que provoca o efeito do humor. Como diria um panglossiano, apesar de todas as desgraças do mundo, as coisas não poderiam ser diferentes porque elas sempre acontecem da melhor maneira possível.

“Está demonstrado – dizia Pangloss – que as coisas não podem ser de outra forma, pois, uma vez que tudo é feito para um fim, tudo é necessariamente feito para o melhor dos fins. Reparem que o nariz foi feito para sustentar os óculos. Por isso usamos óculos. As pernas foram visivelmente instituídas para vestirem calças; por isso usamos calças. As pedras foram formadas para serem talhadas e para construir castelos; por isso o senhor barão tem um castelo lindíssimo. O maior barão da província deve ter a melhor moradia. E ainda, como os porcos foram feitos para serem comidos, comemos porco o ano inteiro. Por conseguinte, aqueles que afirmam que tudo está bem disseram uma tolice; deveriam, na realidade, dizer que tudo está da melhor forma possível”.

Cândido, o protagonista do conto, foi um aluno do grande filósofo do otimismo. Morava de favor no Castelo, até ser expulso, logo após ser flagrado beijando a bela Cunegundes, filha do Barão.

Como o seu nome sugere, Cândido tem uma alma pura e é incapaz de trair a verdade. Entusiasta das ideias de seu mestre, ao ser lançado ao mundo, irá confrontar as premissas panglossianas com a realidade. Aqui já temos um primeiro enunciado filosófico do texto: a filosofia deve ter fundamento na experiência, as ideias devem ser confrontadas com a prática, a verdade não reside na atividade puramente especulativa. Será através do giro de Cândido pela Europa, pela América e pelo Mediterrâneo que poderá testar na prática as ideias do seu mestre Pangloss.

Nas suas andanças, cai nas mãos do exército búlgaro, presencia a guerra, massacres e estupros coletivos. Em fuga num navio, sofre um naufrágio e consegue chegar até Lisboa, porém é surpreendido por um terremoto que devasta a cidade. Era no tempo da Inquisição, e um Auto de Fé é realizado para exorcizar os pecados que teriam dado causa ao desastre natural: o seu mestre Pangloss é capturado aleatoriamente e enviado à forca pela Santa Inquisição, com a finalidade de expurgar a humanidade e evitar um novo castigo divino.

Numa nova rota de fuga, Cândido sai de Portugal em direção às Américas, onde trava relações com os jesuítas do Paraguai. (Voltaire, quando criança, estudara num colégio de Jesuítas. A crítica radical da Igreja Católica e da mistificação religiosa, dentro da sua orientação Iluminista, é traço característico de sua obra).

Cândido e seus companheiros de viagem são em determinado momento capturados por selvagens chamados “orelhudos”. Aqui, pode-se notar uma nova polêmica filosófica, dirigida em face de Rousseau, que propugnava a teoria do bom selvagem. De acordo com essa teoria, o índio vive no seu estado natural, por não estar sujeito à influência da sociedade, e por isso é naturalmente bom, pacífico e virtuoso. Já os índios “orelhudos” de Voltaire perseguem Cândido para matá-lo e exercer a antropofagia. Outras mulheres da tribo travam relações sexuais e amorosas com macacos.

Finalmente, o protagonista consegue ser libertado dos selvagens e num lance de sorte chega à cidade de Eldorado.

Trata-se de um lugar cercado por altas montanhas, tornando impossível o contato dos seus habitantes com o restante do mundo. Suas areias são feitas de ouro. Diamantes e todo tipo de riqueza natural são tão abundantes que os seus habitantes desconhecem o seu valor. Ficam chocados quando Cândido e seu companheiro Cacambo pedem para si todo aquele ouro, cuja abundância era tamanha, que fazia com que os moradores de El Dorado o comparassem a lixo.

Sob toda essa riqueza material, e totalmente isolada do resto da humanidade, Eldorado surge como a confirmação das ideias de Pangloss. Uma sociedade perfeita, onde uma elite política de sábios governa em prol da coletividade, desprovida de qualquer interesse que não servir o povo. Os estrangeiros são recebidos com grandes banquetes, oferecidos com tamanha generosidade, que os convivas estranham e riem quando Cândido se oferece para retribuir em dinheiro o tratamento hospitaleiro. O conhecimento e a tecnologia desenvolvida pelos habitantes de El Dorado levam seus habitantes a criar uma máquina voadora para levar os aventureiros de volta ao mundo que cerca a cidade utópica.

As desventuras de Cândido prosseguem. Retorna da América à Europa, onde passa por Paris (o mais detestável dos lugares por que passou), Veneza e finalmente Constantinopla. Depois de confrontar a filosofia do otimismo com aquilo que viu no seu giro pelo mundo, Cândido chega ao fim da história à conclusão de que o mundo não existe para ser pensado.

A redenção descoberta por Cândido se dá através do trabalho.

É através do trabalho que se combate os três maiores males da vida: a necessidade, o vício e o tédio.

Sabe-se que o Iluminismo é a expressão filosófica e ideológica da burguesia enquanto classe social emergente. Trata-se de um movimento ideológico de oposição ao Antigo Regime e ao Absolutismo Monárquico que iria se materializar politicamente através da Revolução Francesa de 1789.

Cândido ao final da história rejeita a filosofia especulativa para afirmar que o que vale na vida é “trabalhar e cuidar do seu jardim”. Ou seja, o Trabalho e a Propriedade, os dois fundamentos do liberalismo burguês.  

O “cuidar do seu jardim” a que se refere à Cândido diz respeito a um dos elementos constitutivos dessa ideologia burguesa: a propriedade privada. 

O “trabalho” também encontra o seu fundamento na burguesia quando ela se opõe aos privilégios instituídos pelo Antigo Regime, defendendo a igualdade de todos perante a lei – o próprio nascimento da classe trabalhadora se dá no seio do desenvolvimento dessa burguesia citadina da Europa, ao ponto de ulteriormente (e dialeticamente) constituir-se como uma classe em oposição à própria burguesia.

O proletariado nasce no seio da revolução da burguesia para logo depois se constituir como a classe social que leva adiante essa mesma revolução até as suas últimas consequências: o socialismo.

Enquanto em 1789, a burguesia por meio da revolução põe abaixo o absolutismo para instituir um novo regime político, já no século subsequente, em 1848, passa a ser confrontada pelos primeiros movimentos socialistas dos trabalhadores. Quando a Comuna de Paris em 1871 coloca em pauta pela primeira vez na história a tomada do poder pelo proletariado, sua derrota por meio do massacre da contrarrevolução já evidencia o esgotamento da fase “revolucionária” da burguesia. Torna-se a partir de então uma classe reacionária. Vai decaindo desde o século XIX até os dias de hoje. O seu liberalismo, hoje, é a fonte fundamental da tragédia econômica e social produzida pelo capitalismo em sua fase imperialista, marcada por crises, guerras e revoluções.  É uma ideologia que no passado cumpriu um papel heroico, mas hoje merece ser derrotada.

Voltaire é uma expressão da fase revolucionária do liberalismo.

Apesar de ser conhecido como um filósofo, Voltaire não foi propriamente um teórico ou criador de algum sistema filosófico próprio. Foi antes de tudo um polemista e propagandista.

Morreu no ano de 1778, poucos anos antes da grande Revolução de 1789, que corou as ideias do movimento ideológico do qual fez parte. Os revolucionários franceses, no ano de 1791, trouxeram os restos mortais do filósofo ao Panteão de Paris, mausoléu onde estão enterrados os grandes homens da França.  

segunda-feira, 7 de julho de 2025

“Triste Fim de Policarpo Quaresma” – Lima Barreto

 “Triste Fim de Policarpo Quaresma” – Lima Barreto



Resenha Livro - “Triste Fim de Policarpo Quaresma” – Lima Barreto – Ed. Projetus

“Policarpo era patriota. Desde moço, aí pelos vinte anos, o amor da Pátria tomou-o todo inteiro. Não fora o amor comum, palrador e vazio; fora um sentimento sério, grave e absorvente. Nada de ambições políticas ou administrativas; o que Quaresma pensou, ou melhor: o que o patriotismo o fez pensar, foi num conhecimento inteiro do Brasil, levando-o a meditações sobre os seus recursos, para depois então apontar os remédios, as medidas progressivas, com pleno conhecimento de causa”.

“Triste Fim de Policarpo Quaresma” é sem dúvidas o mais conhecido romance do escritor fluminense Afonso Henriques de Lima Barreto (1881/1922). Foi publicado inicialmente em folhetim no ano de 1911 na edição vespertina do “Jornal do Comércio” do Rio de Janeiro. Quatro anos depois, foi publicado integralmente em livro, ao que consta, a muito custo, com os parcos rendimentos do escritor.

Lima Barreto não obteve o reconhecimento literário ao seu tempo, a despeito de ser provavelmente o melhor cronista da incipiente vida urbana do Brasil do início do Século XX. Foi em três ocasiões preterido de uma vaga na Academia Brasileira de Letras. Foi excluído e silenciado pela crítica oficial e passou os últimos anos de sua vida internado em hospital psiquiátrico por problemas com alcoolismo.

Em parte, a marginalização do escritor se explica pela sua origem social e racial. E, de outro lado, o seu estilo literário igualmente destoava das tendências predominantes da época, ainda influenciadas pelo apego ao formalismo, levado até as últimas consequências pelo parnasianismo.  

Os romances do escritor envolvem uma escrita simples, de estilo realista, que procura expressar os tipos populares e suburbanos do Rio de Janeiro, então capital do Brasil. Em Lima Barreto, a palavra não serve de anteparo entre o homem e os fatos que serão narrados. Opunha-se ferozmente a qualquer tipo de preciosismo literário, ao ponto de dizer: “não posso compreender que a literatura seja um culto ao dicionário”. Neste contexto, fazia oposição direta aos dois mais importantes escritores do período em que viveu: Rui Barbosa e Coelho Neto.

Curiosamente, um dos poucos que reconheceram a capacidade do escritor negro e pobre do Rio de Janeiro foi Monteiro Lobato, o mesmo que muitos hoje em dia buscam também silenciar por conta do seu “racismo” e “elitismo”. Foi o próprio Lobato o único que quem publicou em sua editora os livros de Lima Barreto.

A segunda razão do ostracismo em vida do escritor, como dissemos, diz respeito à sua origem social. Veio do subúrbio carioca, foi filho de um tipógrafo e de uma professora primária, falecida quando Lima Barreto tinha sete anos de idade.

O seu pai era monarquista e protegido de Visconde de Ouro Preto. O político do II Império tornou-se padrinho de Lima Barreto e o auxiliaria a ingressar  na escola politécnica do Rio de Janeiro. Lá estudou engenharia, sem terminar o curso. Com a queda de Dom Pedro II e a proclamação da República, o pai de Lima Barreto, até então protegido pelo influente ministro do Imperador, perde o emprego. Já o autor de Policarpo Quaresma sobrevive escrevendo em jornais e revistas do Rio de Janeiro  e, em 1903, é aprovado em concurso para trabalhar como funcionário público da Secretaria da Guerra.

Há em toda obra do escritor um componente autobiográfico. Ele é mais visível especialmente do seu primeiro romance "Recordações do escrivão Isaías Caminha" (1909) no qual traça um panorama satírico dos artistas, escritores, poetas e jornalistas que participam da vida cultural do Brasil dos anos de 1900. Desde o favoritismo, até ao culto do bacharelismo, vemos a mediocridade se impondo e prevalecendo sobre a originalidade nas artes. Em regra, o bacharel é aquele que se torna um sábio através do estudo – o diploma parece ser antes um mero título de nobreza. A ausência de autenticidade, quando não o puro e simples plágio, dão o tom da literatura da época.

O componente auto biográfico está igualmente presente no seu mais conhecido romance.

Triste Fim de Policarpo Quaresma

O major Policarpo Quaresma pode ser comparado como a versão brasileira de Dom Quixote.

É um nacionalista movido por um sincero, cândido e ingênuo otimismo em relação ao Brasil. O aspecto quixotesco do personagem se revela especialmente em alguns lances cômicos do protagonista.

Quaresma é um burocrata que trabalha na Secretaria de Guerra e desde cedo se dedica ao estudo da realidade nacional. Depois de ler absolutamente toda a bibliografia disponível sobre a história, botânica, geologia, política, sociologia e a geografia do Brasil, surpreende os seus vizinhos fazendo aulas de violão, por entender ser o instrumento, então visto como algo vulgar, uma das mais altas expressões do sentimento nacional.

Vai estudar o folclore brasileiro e busca entrevistar uma velha escrava para lhe contar as cantigas da época do cativeiro. A própria mulher estranha o pedido e mal se lembra das tais histórias.

Inicialmente visto como um esquisitão, Quaresma passa a ser visto como louco depois de propor uma reforma ao legislativo para instituir o Tupi como língua oficial do Brasil. É aposentado de forma compulsória da Secretaria de Guerra e então se muda para uma fazenda chamada “Sossego” onde traça um programa ambicioso para impulsionar a agricultura nacional.

Frequentemente, o seu idealismo é confrontado com a dura realidade.

Leu tratados de botânica, trabalha ele próprio a terra em conjunto com um ex escravo, que se diverte vendo o major com o seu pince-nez mal saber manusear a enxada. Todo o esforço e esperança dedicados à agricultura são destruídos pelo poder invencível das .... formigas. São elas tão frequentemente lembradas na tradição brasileira, que remontam à famosa assertiva de “Macunaíma” de Mário de Andrade: “Muitas Saúvas e Pouca Saúde, os males do Brasil são”.

Mas certamente o momento em que Quaresma mais verá confrontado o seu idealismo com a dura e bruta realidade país se dará na última parte do livro, quando o major se voluntaria para defender a República e a presidência de Floriano Peixoto durante a Revolta da Armada. Trata-se de uma Guerra Civil que foi brutalmente reprimida pelo ditador da República.

Se o protagonista via o Brasil como um país divino, inigualável em sua perfeição natural, o idealismo se estende aos poderes políticos: via uma figura medíocre como a do presidente do Brasil como uma versão nacional de Napoleão, de Henrique IV ou de Bismark.  Novamente a expectativa em torno do ideal, confrontada com a realidade, produz um novo fracasso, com tons de humor.

Ao término da revolta, Floriano Peixoto encerra uma perseguição incruenta contra os rebeldes, ensejando a oposição de Quaresma, sempre movido por uma intenção sincera de servir a pátria. E, ao final da obra, o protagonista é mandado à prisão e tratado por todos como um traidor da pátria. É o “triste fim” a que se reporta o título do livro.

E esse “triste fim”, esse não reconhecimento de um espírito virtuoso, sincero e ativo em defesa do Brasil é um dos paralelismos entre a obra de ficção e a vida de Lima Barreto. Tal qual Quaresma, Lima Barreto morreu sem o reconhecimento da sua contribuição ao país e à literatura nacional.

Não reconhecido em vida, entretanto, Lima Barreto hoje certamente é mais lido e conhecido que um Coelho Neto, o escritor erudito mais popular do Brasil no início do século XX.

sábado, 7 de junho de 2025

“Brás, Bexiga e Barra Funda” – Antônio Alcântara Machado

 Brás, Bexiga e Barra Funda” – Antônio Alcântara Machado



Resenha Livro - “Brás, Bexiga e Barra Funda” – Antônio Alcântara Machado – Ed. Universidade de São Paulo

Quando Antônio Alcântara Machado escreveu o livro de contos “Brás, Bexiga e Barra Funda” (1927), tinha apenas 26 anos de idade.  O escritor paulista foi um dos expoentes do movimento modernista, na sua fase inicial, inaugurada através da Semana de Arte Moderna de 1922.

É certo que aquele movimento tinha como norte a oposição ao academicismo e à arte puramente decorativa. O modernismo refletia as incertezas sociais do contexto da I Guerra Mundial, da Revolução Russa de 1917 e da ascensão do fascismo na Europa ( a “Marcha sobre Roma” de Mussolini efetivamente ocorreu 9 meses após a Semana de 22).

Além disso, o novo grupo de artistas expressava as novas realizações tecnológicas de fins do século XIX e início do XX: os automóveis velozes circulando nas cidades, o advento do cinema, a fotografia, o telefone, o gramofone, os bondes elétricos, a revolução causada pelo desenvolvimento da aviação, implicaram num conceito dinâmico da arte associada à velocidade e à simultaneidade, em oposição ao conceito estático tradicional, baseado no equilíbrio e na ordem.

Entretanto, a adesão de Alcântara Machado ao novo movimento literário foi tardia.

Quando ocorreu a Semana de 1922, o escritor era um jovem estudante da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Tomou parte do grupo de alunos que compareceu no Teatro Municipal para vaiar o evento. Naquele momento, já tinha publicado alguns artigos de jornais de crítica literária, além de desempenhar papel de orador do Centro Acadêmico XI de Agosto. Mas tinha restrições aos exageros dos modernistas.

O escritor nasceu em 25 de maio de 1901 na cidade de São Paulo. Pertencia às  chamadas “famílias quatrocentonas” paulistas, que remetam aos primeiros povoadores da Capitania de São Vicente, depois Província e depois Estado de São Paulo.

Por parte de pai, teve como ascendentes presidentes de províncias, deputados, barões e professores da Faculdade de Direito de São Paulo. Do lado materno, foi neto de gente de Taubaté, ligada ao bandeirantismo. Ele próprio, como um membro da aristocracia da terra, foi jornalista, advogado e crítico literário, viajou em três ocasiões à Europa e nunca sofreu de privação material. Participou da Revolução de 1932 e foi eleito deputado por São Paulo, falecendo, entretanto, antes de exercer o mandato.   

Sua efetiva adesão ao movimento modernista se deu por intermédio de Oswald de Andrade. E isso ocorreu depois de uma viagem à Europa no ano de 1925, onde, suponho, tenha tido contato com as novas correntes artísticas do velho continente:  foram as vanguardas europeias que igualmente expressavam um rompimento com o tradicionalismo e apontavam para a experimentação artística, através do cubismo, futurismo, dadaísmo e surrealismo. Foram a expressão de um momento em que o progresso tecnológico redimensionou as fronteiras e os limites da comunicação, por intermédio do rádio, do cinema, do automóvel e do telégrafo. O otimismo em torno da ciência e do progresso tecnológico oriundo das correntes de pensamento do século XIX, levado até às últimas consequências pelo Positivismo, se desdobraria, no século subsequente, numa nova etapa de esgarçamento. O cientificismo e a apologia do progresso terminariam culminando na barbárie e na irracionalidade da guerra generalizada (I Guerra Mundial). A razão levada até às últimas consequência conduziu-nos ao colonialismo, ao eugenismo às teorias de supremacia racial. O pensamento artístico e a vanguarda modernista correspondem à etapa imediatamente anterior, premonitória, desse movimento da razão em direção à  barbárie.    

“Brás, Bexiga e Barra Funda” trata da vida dos recém chegados imigrantes italianos na cidade de São Paulo. Inicialmente, foram engajados no trabalho do campo, nas fazendas de café do interior paulista, através de um regime de trabalho parecido com a servidão, como forma de substituição do trabalho escravo, abolido em 1888.

Já na década de 1920, esses imigrantes italianos são a força de trabalho da nascente indústria de São Paulo. Tiveram importante papel no desenvolvimento dos primeiros sindicatos e na divulgação das ideias políticas anarquistas; a partir de 1917, sob o impacto da Revolução Russa, os anarquistas tornam-se socialistas constituem o Partido Comunista Brasileiro em 1922.  

 Os italianos são referidos na introdução do livro como a terceira geração dos mamelucos brasileiros.

“Durante muito tempo a nacionalidade viveu uma mescla de três raças que os poetas xingaram de tristes: as três raças tristes.

A primeira, as caravelas descobridoras encontraram aqui comendo gente, e desdenhosa de mostrar suas vergonhas. A segunda veio nas caravelas. Logo os machos sacudidos desta se enamoraram das moças bem gentis daquela, que tinham cabelos mui pretos, compridos pela espádoas.

E nasceram os primeiros mamelucos.

A terceira veio dos porões dos navios negreiros trabalhar o solo e servir a gente. Trazendo moças gentis, mucamas, mucambas, mumbandas, macumas.

E nasceram os segundo mamelucos.

(...) E então os transatlânticos trouxeram da Europa outras raças aventureiras. Entre elas uma alegre que pisou a terra paulista cantando e na terra brotou e se alastrou como aquela planta imigrante que há duzentos anos veio fundar a riqueza brasileira.

Do consórcio da gente imigrante com o ambiente, do consórcio da gente imigrante com a indígena nasceram os novos mamelucos”.

Ao qualificar os imigrantes com mamelucos, o autor reforça o processo de integração e miscigenação que foi um fator bastante positivo no desenvolvimento histórico do Brasil.

Desde os tempos mais remotos da vinda dos portugueses, não houve por aqui a colonização de “povoamento”, aos moldes da América do Norte, quando grupos familiares buscam constituir sociedades autônomas e segregados dos povos que aqui habitavam – na maior parte, eram esses povoadores protestantes radicais e indesejáveis até mesmo na Europa.... A grande vantagem da nossa colonização por “exploração” foi que os portugueses se lançavam numa aventura em torno da extração de riquezas e o enriquecimento imediato: não buscaram, assim, criar uma nova sociedade segregada, aos moldes europeus, mas se integraram e constituíram suas famílias por meio da miscigenação. Primeiro com os índios para constituir a 1ª Geração dos Mamelucos. E depois com os negros para constituir a 2ª Geração dos Mamelucos.

A terceira geração de mamelucos, os italianos, inicialmente eram chamados pejorativamente pelos brasileiros de “carcamanos” e “pés de chumbo”. Mas, seguindo essa tradição dos tempos da colônia, se integraram, se miscigenaram, casaram e constituíram famílias com os/as brasileiros/as e, no limite, foram um dos alicerces da indústria e do desenvolvimento econômico do país, emprestando a sua força de trabalho ou até prosperando e tornando-se eles próprios figuras importantes da política e cultura nacional: Conde de Matarazo, Menotti del Pichia e Anita Malfati são alguns nomes de ilustres imigrantes italianos a quem o livro é dedicado.

As histórias de “Brás, Bexiga e Barra Funda” são curtas, sugerindo uma narrativa em alta velocidade, tal qual os novos bondes e carros que surgem como uma novidade no início do desenvolvimento de São Paulo. Os efeitos visuais e sonoros da cidade em movimento são explorados no texto, remetendo à experimentação formal da vanguarda modernista: são as fábricas que “apitam”, os carros que circulam em alta velocidade e o povo que grita diante do jogo de futebol. As histórias vão fazendo remissão às ruas e bairros conhecidos daqueles que moram em São Paulo: Largo da Santa Cecília, Largo São Francisco, Avenida Paulista, Avenida Angélica, Avenida da Liberdade.

O recurso do humor, tão caro aos modernistas que por meio dele querem demolir as formas tradicionais de arte, aparece no texto, mesmo em sua feição do trágico cômico. É o caso do conto “Gaetaninho”, um italianinho que morre atropelado por um bonde. O seu maior sonho é andar num automóvel e o acaba o realizando no final da história, dentro de um caixão.

Não foi extensa a produção literária de Alcântara Machado. Além de “Brás, Bexiga e Barra Funda”,  publicou “Laranja da China” (1928) e “Mana Maria” (1936), esse último lançado postumamente. Isso porque o autor morreu cedo, aos 35 anos, após uma intervenção cirúrgica fracassada por um problema de apendicite. Deixou ainda os seus artigos de jornal, crítica literária e artigos em revistas de literatura. Tal qual Álvares de Azevedo, também acadêmico da Faculdade de Direito de São Paulo, poderia ter sido um dos maiores da literatura brasileira não tivesse falecido tão jovem.

quarta-feira, 4 de junho de 2025

“O Saci” – Monteiro Lobato

 “O Saci” – Monteiro Lobato



Monteiro Lobato certamente é o escritor mais conhecido do Brasil. E ficou notabilizado por conta dos seus livros infantis.

Ocorre que a opção por escrever livros para crianças ocorreu num momento tardio da produção ficcional do escritor. O primeiro livro da Coleção Sítio do Picapau Amarelo, chamado “O Saci”, foi publicado em 1921, quando o escritor tinha 39 anos de idade. Consta ter sido o retorno à literatura infantil um reflexo dos desgostos dos adultos que o perseguiram injustamente.  

O escritor nasceu na cidade de Taubaté, no interior paulista. E foi no interior de São Paulo que passou a maior parte da sua vida. Depois de diplomar-se em Direito pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco, é nomeado Promotor na cidade de Areias em maio de 1907. Já no ano de 1911, morre o seu avô, o Visconde de Tremembé, e dele herda a fazenda de Buquira. Deixou de ser promotor de justiça para ser fazendeiro.

E foi o cenário dessa fazenda que imaginou e criou as histórias do Sítio do Pica Pau Amarelo.

“O sítio de Dona Benta ficava num lugar muito bonito. A casa era das antigas, de cômodos espaçosos e frescos. Havia o quarto de Dona Benta, o maior de todos, e junto o de Narizinho, que morava com sua avó. Havia ainda o ‘quarto de Pedrinho’ que lá passava as férias todos os anos; e o da tia Nastácia, a cozinheira e faz-tudo da casa. Emília e Visconde não tinham quartos; moravam num cantinho do escritório, onde ficavam as três estantes de livros e a mesa de estudo da menina”.

Saci é o primeiro livro da série do Sítio do Pica-pau Amarelo.

Em uma das férias de verão, Pedrinho escuta de Dona Benta a história de Saci Pererê, um ser astucioso que se diverte fazendo pequenas trapaças. Traz sempre na boca um cachimbo acesso e na cabeça uma carapuça vermelha. A força do Saci Pererê está na carapuça vermelha, como a força do Sansã está nos cabelos.

O Saci é incapaz de cometer uma grande maldade. Mas diverte-se cometendo pequenas reinações: azeda o leite, quebra as pontas das agulhas, faz dedal das costureiras cair nos buracos, bota moscas na sopa.

Pedrinho vai em busca de um vizinho chamado Tio Barnabé que lhe explica  e orienta como captar um Saci. Ao finalmente entrar em contato com o pequeno diabo, trava com ele uma aventura na floresta, onde se deparam com o lobisomem, a caipora, o curupira, o negrinho do pastoreio, a mula sem cabeça, a Iara e finalmente a temida Cuca.

Em breves tintas, somos introduzidos a cada um desses personagens do folclore brasileiro.

Conta-se a história do negrinho do pastoreio, considerando um santo pelo povo gaúcho. O menino foi sacrificado por um estancieiro malvado para puni-lo por ter lhe perdido um novilho. Amarrou-o sobre um formigueiro de formigas carnívoras e deixou-as come-lo vivo. Como ele sofreu na pele o maior dos sofrimentos, ele se compadece daqueles que sofrem.

Há a história de mula sem cabeça que vomita fogo pelas ventas. Conta a história da caipora que é um duende peludo, meio homem, meio mono, que costuma cavalgar os porcos do mato e deter os viajantes para exigir fumo.  E finalmente, a Cuca que mencionamos na canção de dormir:

“Durma, nenê, que a Cuca já lá vem, Papai está na roça; mamãezinha no Belém...”.

A Cuca tem cara de Jacaré, garras de gavião e 3000 anos de idade. Ela sequestra Narizinho, fazendo com que Pedrinho e o Saci saíssem em resgate da neta de Dona Benta. Há o confronto entre a astúcia do Saci e a força da Cuca. E ao final, a inteligência prevalece sobre a força.

O protagonista deste livro é certamente o Saci.

Ele sagra-se vencedor sobre a Cuca por conhecer a fundo a natureza a ponto de, num determinado momento, numa conversa filosófica com Pedrinho, afirmar que os animais são mais inteligentes que os homens. Por que? Porque os homens precisam aprender antes de fazer. Já os animais já nascem sabendo a fazer.

O Saci possui a astúcia e o conhecimento sobre a vida misteriosa da floresta.

O preto com cachimbo na boca foi alçado a condição de herói pelo escritor que os ignorantes e mal intencionado acusam de ser um supremacista branco!

Falamos que o escritor passou para a literatura infantil já na meia idade, desgostoso com as perseguições que a vida adulta lhe impunham. Seu mérito literário e sua importância política como criador da primeira editora de livros brasileira e defensor do petróleo fazem-no perseguido ainda nos dias de hoje. Para sua glória, perseguidos por aqueles que odeiam o Brasil.

domingo, 1 de junho de 2025

“O Cortiço” – Aluísio Azevedo

 “O Cortiço” – Aluísio Azevedo



Resenha Livro - “O Cortiço” – Aluísio Azevedo – Ed. Principis


Aluísio Azevedo (1857/1913) foi talvez o primeiro escritor brasileiro que pôde sobreviver de sua própria pena.

Como pontua o crítico Alfredo Bosi, o escritor conseguiu por certo tempo viver apenas do seu trabalho de jornalista, caricaturista e romancista, mas apenas para conquistar o “pão”, sem a “manteiga”; ou seja, com o seu trabalho literário obteve apenas o mínimo para subsistir, após se mudar do seu estado natal no Maranhão para o Rio de Janeiro, então capital do Brasil.

Nascido em São Luís/MA, ele próprio foi vítima dos estigmas sociais e preconceitos que retrataria em seus livros. Num tempo em que o divórcio era uma realidade impensável, sua mãe casou-se em segundas núpcias com o seu pai, este último vice-cônsul de Portugal. O matrimônio ocorreu sem aprovação da Igreja, gerando escândalo naquela cidade provinciana.

O seu segundo romance, denominado “O Mulato” (1881), é uma crítica pioneira desse conservadorismo da sua terra natal. Conta a história de um jovem bacharel formado na Europa, mas mestiço de cor, e não aceito pela alta sociedade local, a despeito dos seus méritos intelectuais e morais. Vive uma história de amor com uma mulher branca, mas o casamento é impedido pela família da moça, dada a diferença racial, ensejando, ao final, uma tentativa de fuga dos consortes, que iria se transformar em tragédia.

Esse romance despertou a fúria da elite maranhense, incluindo o clero, fazendo com que o escritor, a convite de seu irmão, o teatrólogo Arthur Azevedo, se mudasse para a capital do Império, no ano de 1876. Lá estudaria pintura na escola de Belas Artes e colaboraria como escritor e caricaturista em jornais e revistas.  

Essa situação, envolvendo o trabalho de artista e a luta pela sobrevivência, explica a diferença de qualidade literária dos seus romances. Ao mesmo tempo em que se ocupou de criar uma nova arte experimental, fortemente influenciada pelas ideias do escritor francês Emile Zola, precisava produzir escritos palatáveis ao gosto popular, se quisesse sobreviver de sua pena.

Os seus trabalhos mais importantes para a história da literatura brasileira são aqueles que serviram de ponto de partida para a nova estética naturalista: “O Mulato” (1881), “Casa de Pensão” (1884) e “O Cortiço” (1890). Em paralelo, publicou obras folhetinescas, de apelo mais comercial, algumas delas ainda presas à estética romântica. Ainda assim, obras como “Filomena Borges” (1884), “Livro de uma Sogra” (1895) e o “O Coruja” (1890) não deixam de ser fontes interesses para o leitor de hoje entrar em contato com a cultura, os costumes e a sociedade do Rio de Janeiro na época do II Império (1840/1889).  

Pode-se dizer que Aluísio Azevedo é o maior expoente do naturalismo literário no Brasil.

Não foi o único escritor naturalista e nem mesmo o primeiro. Antes do lançamento de “O Mulato” (1881) frequentemente mencionado como o ponto de partida do naturalismo brasileiro, ainda no ano de 1877, Inglez de Souza lançaria o romance regionalista “O Coronel Sagrado”, que deve ser situado como o marco inicial daquele movimento literário no Brasil, junto com os seus outros dois trabalhos mais conhecidos do público: “O Missionário” de 1888 e “Contos Amazônicos” de 1893.

Em todo o caso, Inglez de Souza é pouco conhecido até os dias de hoje, talvez pelo fato de ter sido um paraense, que viveu e escreveu apenas sobre a realidade do povo da Amazônia, algo muito distante do centro cultural do Brasil, situado no Rio de Janeiro. Por conta disso, Aluísio Azevedo, se não foi o primeiro naturalista, é certamente o mais conhecido deles.

O Naturalismo literário tem como premissa a ideia de que o comportando humano e os fenômenos físicos são regidos pelas mesmas leis naturais.

Esta etapa da evolução histórica da literatura acentuou um sentido geral de objetividade que advinha já da 3ª Fase do Romantismo e do Realismo. No caso do Naturalismo, a objetividade ganha contornos de cientificidade, havendo mesmo uma proposta de fusão entre a arte e a ciência. Enquanto na escola romântica, a salvação humana está no retorno do homem ao seu estado natural, no Naturalismo, a salvação dá-se em torno da explicação científica do mundo, mediante a descrição empírica dos fenômenos sociais. Não raramente, fatos sociais se equivalem aos fatos da natureza, revestidos da mesma fatalidade.

Este tipo de arte suscita boas fontes históricas para o leitor dos dias de hoje. A descrição do Cortiço no romance homônimo de Aluísio Azevedo possibilita um contato direto com a realidade do subúrbio do Rio de Janeiro do século XIX, descrevendo os tipos populares, como o taverneiro português João Romão, o capoeirista Firmo ou a mulata sensual Rita Baiana.

É certo, contudo, que este protagonismo dos tipos populares ainda é parcial neste romance, publicado em 1890. O grande protagonista d’o Cortiço é o próprio espaço territorial, que se apresenta ao leitor como um organismo social, com uma vida própria, tendo, ironicamente, os personagens o caráter mais paisagístico. A comparação com um formigueiro, dentro da perspectiva naturalista, não seria de todo errada.

Assim é descrita a forma como foi se constituindo o cortiço:

“E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa, começou a minhocar, a fervilhar, a crescer um mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro e multiplicar-se como larvas no esterco”.

A história se passa no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro, onde João Romão, um português avarento que vive em função do lucro, constitui um cortiço, onde gente do mais baixo extrato social irá constituir suas casas. São lavadeiras, trabalhadores braçais, vagabundos, capoeiras, pedintes, prostitutas e gente da pequena burguesia que irão construir sua vida no cortiço. Romão também é proprietário de uma venda para monopolizar o comércio dos bens de primeira necessidade aos seus inquilinos, além de emprestar dinheiro com juros de agiota.

Cada ato por ele praticado tem a finalidade de obter alguma vantagem financeira, seja através da exploração do trabalho alheio, seja por meio de um auto sacrifício que não revela qualquer traço de moralidade ou heroísmo mas expressa em tom de caricatura o típico português pão duro:

“Sempre em mangas de camisa, sem domingo nem dia santo, não perdendo nunca a ocasião de assenhorar-se do alheio, deixando de pagar todas as vezes que podia e nunca deixando de receber, enganando os fregueses, roubando nos pesos e nas medidas, comprando por dez réis de mel coado o que os escravos furtavam da casa dos seus senhores, apertando cada vez mais as próprias despesas, empilhando privações, trabalhando e mais a amiga como uma junta de bois.”.

João Romão ascende financeiramente através do trabalho, ainda que norteado pela especulação e pelo proveito da desgraça alheia. O seu vizinho Miranda, por outro lado, representa outra forma de manifestação da elite econômica brasileira. Casou-se com uma mulher com grandes dotes financeiros, que fez dele um barão. Herdou o dinheiro sem precisar trabalhar, mas teve como contrapartida que engolir o orgulho de ver sua mulher, a verdadeira dona da riqueza, lhe trair  com outros homens e o humilhar perante a sociedade fluminense. Aguentava a mulher para não perder a fortuna financeira.

Há no início da história uma rivalidade entre João Romão e Miranda. O primeiro é exemplo representativo da burguesia que ascende através do trabalho, da avareza, da exploração e da atividade especulativa. O segundo é o exemplo representativo da nobreza, da riqueza herdada sem o exercício do trabalho e o consequente suor do próprio rosto. Ambos ao final da história entram em simbiose: João Romão, após conquistar o dinheiro que lhe tornaria rico, deseja agora conquistar os títulos de nobreza do seu vizinho e para isso lança-se como candidato de casamento à filha do Miranda. Não bastava a aquisição da riqueza, mas a sua ostentação através dos títulos de Barão ou Visconde.

No que concerne aos extratos populares, o livro também tem o mérito de descrever algumas nuanças das diversas camadas sociais do povo. Há desde o velho Libório, um mendigo que representa o mais alto grau da miséria material, até a presença de setores do uma pequena burguesia citadina: “estudantes pobres com uma pontinha de cigarro a queimar-lhes a penugem do buço”; “contínuos de repartição pública”, “caixeiros de botequim”, “artistas de teatro”, “condutores de bonde” e “vendedores de bilhete de loteria”.

O grande mérito de “O Cortiço” foi o de introduzir ao romance brasileiro algum protagonismo aos extratos sociais mais baixos da sociedade brasileira. Desde o romantismo, passando pelo Realismo, de José de Alencar a Machado de Assis, serão predominantes as referências aos proprietários de terra e aos capitalistas das cidades: a alusão ao popular aparecia até o “Cortiço” de forma bastante incidental. Já em O Cortiço, vemos mais de perto as manifestações populares: as festas de domingo, os sambas, as brigas de vizinho, a maledicência, a miséria material que leva ao crime e à prostituição.

Entretanto, seria apenas a partir da literatura Modernista, especialmente em sua fase Regionalista, que os extratos populares seriam alçados à uma verdadeira condição de protagonismo. Em Aluísio de Azevedo, o povaréu que reside no cortiço se assemelha mais a uma massa de gente, a um conjunto uniforme de tipos sociais embaralhados. Existe o quadro, que é o cortiço, e dele derivam as figuras, que são os personagens.

Já a partir dos livros de Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz e Guimarães Rosa, o personagem oriundo do povo passa a ser alçado a verdadeira condição humana, descrevendo-os agora não como uma massa indistinguível, mas como o homem integral, eivado de todas as suas contradições.  

 

Bibliografia:

“História Concisa da Literatura Brasileira” – Alfredo Bosi.

 

segunda-feira, 12 de maio de 2025

“Khadji-Murát” – Lev Tolstói

 “Khadji-Murát” – Lev Tolstói



Resenha Livro - “Khadji-Murát” – Lev Tolstói – Editora 34 – Tradução Boris Schnaidermann

A Guerra do Cáucaso (1817 – 1864) foi um conflito instaurado pelo Império Russo com o objetivo de expandir os seus territórios e fronteiras em direção ao sul. Trata-se de região situada na parte meridional da Rússia, entre o Mar Negro e o Mar Cápio, onde hoje se situa a Geórgia, a Chechênia e o Daguestão.

Desde a Idade Média, a região do Cáucaso foi objeto de disputa entre o Império Bizantino e as populações árabes. Já a penetração russa da região ocorre a partir do século XVIII e XIX, com a anexação da Geórgia em 08 de Janeiro de 1801, pelo Czar Paulo I.

A subsequente Guerra do Cáucaso dá continuidade ao movimento de russificação da região do Cáucaso. Entretanto, os russos encontraram duríssima resistência das tribos e populações montanhesas, de religião muçulmana. Esses povos eram de forma indiscriminada apelidados  pelos invasores de “tártaros”, frequentemente de forma pejorativa. Tais populações resistiram à ofensiva russa durante os reinados de três czares, entre períodos de guerra aberta e tréguas. Ao término do conflito, a despeito da anexação do norte do Cáucaso pelo Império Russo, o principal líder dos rebeldes foi poupado, após jurar fidelidade ao Czar.

Uma das principais lideranças daqueles povos camponeses das montanhas onde hoje se situa o Daguestão foi “Khadji-Murát” que dá o nome à novela de Leon Tolstoi publicada em 1905, cinco anos antes da morte do escritor.

Trata-se de um livro baseado nas próprias experiências pessoais do autor.  

Após abandonar a Universidade e passar por um período de vida de completa dissipação e ócio, quando se envolve com jogos e mulheres, em 1851, Tolstoi alista-se no exército russo. Tinha 23 anos e é engajado na Guerra do Cáucaso no período entre 1851/1852, mesmo momento em que se passam os eventos da novela.

Khadji-Murát era um conhecido e temido líder militar tártaro. Em certa passagem da novela, um dos personagens afirma que se tivesse nascido na Europa, granjearia a mesma autoridade de Napoleão Bonaparte. Começou como comandante em chefe de Chamil, esse último o líder supremo da resistência caucasiana e terceiro imã (“sacerdote”) do Daguestão. Entretanto, Murát irá posteriormente romper com Chamil e criar uma facção política e militar própria. Após ver sua mãe, esposa e filhos sequestrados por Chamil, Murát passa para o lado dos Russos. Jura fidelidade ao Czar não pela renúncia dos seus ideais de independência política ou pelo abandono dos rígidos preceitos religiosos, mas traça uma aliança meramente tática com os Russos, para vingar-se do Amã.

O final da história revela como essa aliança era frágil. Após se entregar ao comandante militar do Czar em Tiblissi, na Geórgia, o protagonista é permanentemente vigiado pelos russos, com quem mantem uma relação de desconfiança. Reivindica autorização para resgatar a sua família, com a contrapartida de apoiar os russos na luta contra Chamil. Entretanto, o seu grupo militar estava sob dura vigilância dos prepostos do Czar e cada passo de seus membros era rastreado. Decidem assim ludibriar os russos e fogem do seu controle, com o objetivo de levar adiante a guerra contra Chamil – o mesmo chefe caucaciano que ao fim da Guerra também juraria fidelidade ao...Czar.

A novela descreve o encontro e o conflito de civilizações. Há o “Ocidente”, representado pelos Russos, e o “Oriente”, representado pelos camponeses do Cáucaso. De um lado uma monarquia absolutista fundada no cristianismo ortodoxo e forças militares dirigidas por membros da aristocracia russa. De outro lado, uma guerrilha de camponeses divididos em diferentes etnias, de orientação muçulmana, com disposição de luta até a morte. Esse conflito, em Tolstoi, assume características muito particulares que vão muito além de uma afirmação “nacionalista” do Império Russo ou, por outro lado, da defesa da luta independentista/separatista dos povos do Cáucaso.

Em se tratando de um escritor do porte de Lev Tolstói, o problema da Guerra surge como uma ótima oportunidade para retratar a complexidade da alma humana e suas contradições. O escritor não tinha a pretensão de ser um historiador, mas de elaborar uma obra de ficção, ou mais exatamente uma obra de literatura com lastro naquilo que viu na sua experiência de soldado na Guerra do Cáucaso.

Isso não significa que o livro tenha a pretensão de se passar por apartidário.

Tolstói é um crítico duro do czarismo e especialmente da crueldade de Nicolau I, que personifica o orgulho que cega os poderosos:

“Para que, naquele tempo, um homem estivesse à testa do povo russo, precisava ter perdido todos os atributos humanos: tinha de ser uma criatura mentirosa, ateia, cruel, ignorante e estúpida, e precisava não apenas sabe-lo, mas também, estar convencido de ser o paladino da verdade e da honra e um sábio governante, benfeitor do seu povo. Assim era Nikolai. E nem podia ser diferente. Toda a sua vida fora uma preparação para isso (...) Existe somente uma explicação para tão surpreendente fenômeno: o que é grande perante os homens é uma vilania perante Deus”.

 Por outro lado, existe nobreza na relação de Murát com algumas lideranças militares russas ao Sul. O líder caucasiano é convidado para jantar junto à residência de um aristocrata que serve na guerra como chefe das forças russas. Em determinados casos, a conduta nobre e corajosa dos oficiais russos desperta o respeito de Murát e de seus companheiros. Nesse contato, há a descoberta de atos heroicos não só do lado dos montanheses mas dos russos, criando a possibilidade de relações de confluência e não apenas de conflito entre o “ocidente” e o “oriente”.

A despeito do notório posicionamento pacifista de Tolstói, a guerra e a morte heroica aparecem na novela como os momentos de maior afirmação de beleza literária.

A novela foi escrita num momento que poderíamos chamar como pertencendo a uma segunda fase das obras de Leon Tolstói. Os seus grandes livros como “Guerra e Paz” (1865/1869) e “Anna Kariênina” (1875/1878) vem antes de um momento em que há uma espécie de “despertar da consciência” que altera a visão de mundo do escritor a partir de 1880.

Consta que imediatamente após ter publicado Anna Kariênina, Tolstói passou al por uma crise de consciência em torno do seu passado desregrado, com um comportamento de autopunição e culpa, que marcaria sua obra subsequente. O autor assume uma postura social-religiosa que daria ensejo até mesmo à criação de um movimento chamado “tolstoismo” que reunia adeptos (geralmente jovens) que se reuniam em torno do mestre. Já antes desse período, na década de 1860, o escritor fundara uma escola para crianças camponesas na sua propriedade rural chamada Iásnaia Poliana, quando já inicia a defesa e a afirmação dos valores populares, a fonte do conhecimento residindo no mujique do campo em detrimento das instituições oficiais, do Estado e da Igreja.

Na literatura, baseando-se na concepção de mundo do camponês russo, defende uma arte  baseada na clareza de exposição e sinceridade, isso é, nas suas palavras, “uma relação correta, isto é, moral do autor com o seu objeto e a sinceridade, isto é, um sentimento não fingido de amor ou ódio àquilo que o artista descreve”.

No âmbito político, o tolstoismo pode ser qualificado como a expressão de um socialismo utópico de tipo pacifista e avesso às instituições e à modernidade burguesa. Nele há a renúncia da Igreja Oficial mas também a afirmação radical do cristianismo primitivo. Ao ponto de traçar como  horizonte político do seu movimento:  “cada um possuir apenas a roupa do corpo, renunciar ao dinheiro e não se aproveitar do trabalho alheio, inclusive de empregados domésticos. E o fundamental, evidentemente, é não mentir.  

domingo, 20 de abril de 2025

INTRODUÇÃO À TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES

 

INTRODUÇÃO À TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES


A todo o direito que o ordenamento jurídico confere a determinado titular, existe de forma correspondente um dever, ou uma obrigação. E todo o direito confere ao seu titular a possibilidade de promover uma ação que lhe assegure esse mesmo direito. No âmbito do Direito de Família, o direito do menor de idade à pensão alimentícia tem como contrapartida o dever alimentar do detentor do poder familiar. No âmbito do Direito Constitucional, o direito à educação assegurado no artigo 205 da CF/88 gera a obrigação do Estado através das instituições de ensino público de fornecer os serviços de formação e qualificação profissional. No âmbito do Direito Tributário, o direito a um determinado benefício fiscal está sujeito à obrigação do Ente Público de dispensa do recolhimento do tributo, mesmo em prejuízo do erário, mas sempre diante de uma hipótese prevista em lei. Descumprindo o dever alimentar, ao credor há o direito de ingressar com a ação de alimentos. Descumprindo o Ente Público a lei autorizadora da isenção tributária ou de um serviço público como o acesso à Educação, caberá ao cidadão postular o seu direito perante o Poder Judiciário, seja através de uma ação declaratória seja através de uma ação constitutiva.   

O sentido de “obrigações” no âmbito do Direito Civil tem um alcance mais restrito.   

A Teoria Geral das Obrigações consiste num capítulo específico do Direito Civil que disciplina as relações negociais, ou seja, os atos de intercâmbio de bens e serviços. Envolve ainda a reparação de danos, quando surge a obrigação de indenizar oriunda de um ato ilícito. E ainda pode dizer respeito ao dever de restituir benefícios injustamente auferidos em detrimento de outrem, ou seja, o enriquecimento ilícito (artigo 884 CC/02). Assim, quando falamos de obrigações, estamos basicamente falando de contratos (ou de maneira mais ampla, de negócios jurídicos), da responsabilidade civil e de atos unilaterais que são “fontes de obrigação”, como o pagamento indevido ou enriquecimento ilícito, ou seja, obter uma vantagem econômica em detrimento de outrem sem justa causa.

Apesar do aparente alto nível de abstração do estudo da Teoria Geral das Obrigações, há na verdade uma dimensão bastante prática nesse capítulo do Direito Privado. É um assunto do qual nos ocupamos no dia a dia. Na nossa vida estabelecemos a todo momento relações negociais ou sofremos ou causamos danos geradores de responsabilidade civil que estão sujeitas ao regime das obrigações. Ao contratar um serviço de um pintor, estabelece-se uma obrigação consubstanciada no contrato de prestação de serviços: o pintor obriga-se a pintar a casa e o contratante obriga-se a remunerar o serviço. Ao colidir e abaloar um carro estacionado na garagem, agindo com negligência, o causador do acidente (do ato ilícito) obriga-se a indenizar a vítima restituído os valores de reparação do veículo e até os prejuízos pelo tempo em que o proprietário se viu privado do bem. (artigo 186 c/c 927 CC). Aquele que aufere uma vantagem indevida em dinheiro deve se obrigar a restituir o valor ao seu titular, com correção monetária, sob pena de enriquecimento ilícito. (artigo 884 CC/02).

A mais conhecida definição de obrigação no sentido técnico aqui tratado é aquela oriunda do Direito Romano. A definição dada pelas Institutas de Justiniano é: obrigação é um vínculo jurídico (obligatio est juris vinculum) que nos obriga a pagar alguma coisa, fazer ou deixar de fazer.

Clóvis Beviláqua, mentor do Código Civil de 1916, definiu obrigação como “relação transitória de direito, que nos constrange a dar, fazer ou não fazer alguma coisa, em regra economicamente apreciável, em proveito de alguém conosco juridicamente relacionado, ou em virtude da lei, adquiriu o direito de exigir de nós essa ação ou omissão”.

Washington de Barros Monteiro define obrigação como “relação jurídica, de caráter transitório, estabelecida entre devedor e credor e cujo objeto consiste numa prestação pessoal econômica, positiva ou negativa, devida pelo primeiro ao segundo, garantindo-lhe o adimplemento através do seu patrimônio”.

De maneira mais didática, Sílvio de Salvo Venosa define obrigação “como uma relação jurídica transitória de cunho pecuniário, unindo duas (ou mais pessoas), devendo uma (o devedor) realizar uma prestação à outra (o credor).”.  

A obrigação envolverá sempre uma relação jurídica, um vínculo que liga duas ou mais pessoas. Trata-se de uma relação jurídica, diferentemente de uma relação puramente moral ou religiosa, nas quais a lei não estabelece sanção pelo seu descumprimento e que são indiferentes do ponto de vista estritamente do Direito. Pode ser considerada uma obrigação moral o dever de visitar um amigo querido internado no hospital. Pode ser considerada uma obrigação religiosa não comer carne no feriado da sexta feira santa. Mas essas não são obrigações jurídicas e, a princípio, não se revestem de relevância ao Direito ao ponto de sancionar aquele que descumpre o tal dever moral ou religioso. Em alguns momentos, os limites entre o Direito e a moral são mais tênues. Um exemplo de uma obrigação jurídica com dimensão moral é a hipótese do ato de ingratidão do donatário que pode ocasionar a revogação da doação (artigo 555 do CC/02).

Essa relação jurídica irá sempre envolver a figura do credor e do devedor. São os dois lados da obrigação, também denominados sujeitos da relação obrigacional.

O sujeito ativo da obrigação é o credor, ou seja, aquele que tem interesse em que a prestação seja cumprida. Devedor é a pessoa que deve praticar certa conduta, determinada atividade, em prol do credor, ou de quem este determinar. Trata-se da pessoa sobre a qual recai o dever de efetuar uma determinada prestação.

O objeto da relação obrigacional é a prestação, o que vem a ser justamente o elemento que irá vincular os sujeitos: a prestação pode ser dar algo, fazer algo ou deixar de fazer algo. Dentro da obrigação de dar, se insere a obrigação de pagar quantia certa.  

A prestação sempre terá uma dimensão patrimonial, ou seja, poderá ser convertida em pecúnia que é um termo latino que significa dinheiro. (Em Roma, “pecus” era o significado da palavra gado, que era utilizado como moeda de troca. Do termo, veio também a palavra “pecuária”).

A prestação sempre terá um conteúdo patrimonial e conversível em dinheiro. Ainda que haja uma obrigação de fazer (por exemplo, eu me obrigo a pintar um quadro) o seu descumprimento, se não comportar a execução específica, poderá ser convertido em perdas e danos, ou seja, numa indenização pelo descumprimento da obrigação em benefício do credor.

Essa possibilidade de conversão da obrigação em perdas e danos está presente de maneira mais evidente nas obrigações infungíveis, ou seja, aquelas em que só é possível ser cumprida por determinado devedor, sem possibilidade de substituição. Contrato um violinista famoso para fazer uma apresentação no meu casamento. Esse violinista não comparece no dia e hora marcados. Aqui, a única saída ao credor é a conversão da obrigação de fazer (apresentação de violino pelo artista famoso) nas perdas e danos, que é a indenização pecuniária, que abrange os danos emergentes e os lucros cessantes, nos termos do artigo 402 do CC/02, e, em alguns casos, até mesmo os danos morais (artigo 186 e 927).

As obrigações têm ainda um outro aspecto que as diferenciam, que é a sua natureza transitória. Ao contratar um serviço, como a instalação de um fogão no meu apartamento, temos a expectativa de que após a execução dos trabalhos, de forma satisfatória, e com o pagamento, a obrigação será extinta. As partes, num contrato, podem estabelecer relação por um longo período, mas ainda assim não é um vínculo que se caracteriza pela eternidade. O ciclo natural da obrigação é o seu nascimento e a sua extinção, seja com o adimplemento, ou seja, o cumprimento do avençado, seja nos casos de mora (inadimplemento parcial) ou inadimplemento total, quando o credor poderá se munir do processo judicial para executar um crédito ou pedir a indenização das perdas e danos pelo descumprimento do pactuado.

Do exposto, verificamos o caráter universal e abstrato dos Direitos das Obrigações, que fez com que mantivesse uma estrutura que se manteve desde a época do Direito Romano, obviamente trilhando uma linha de evolução. Hoje em dia, apenas o patrimônio do devedor responderá por suas dívidas (artigo 391 CC/02) enquanto em Roma o devedor poderia responder por suas dívidas não só com os seus bens, mas com a sua liberdade, estando sujeito a ser um escravo por dívidas. Por outro lado, os elementos da estrutura obrigacional, suas fontes e o seu alcance são tão amplos que se pode dizer ser talvez um dos ramos do Direito de maior dimensão universal. As obrigações regem a vida comum dos particulares e, mesmo sem sabermos, estamos a todo momento sujeito às suas regras.

Bibliografia: VENOSA, Sílvio de Salvo. “Direito Civil – Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos”. Ed. Atlas,