domingo, 14 de setembro de 2025

“Capítulos de História Colonial” – Capistrano de Abreu

 “Capítulos de História Colonial” – Capistrano de Abreu


Resenha Livro - “Capítulos de História Colonial” – Capistrano de Abreu - Edições Senado Federal 

Quando João Capistrano de Abreu escreveu os artigos que foram depois reunidos sob o nome “Capítulos de História Colonial”, o estudo da História do Brasil ainda estava em suas primeiras fases de desenvolvimento. A obra data de 1907, quando  não havia Faculdades de História no país e ainda estavam para ser criados os estudos mais sistemáticos em torno da identidade nacional.

Os primeiros esforços acerca do estudo da História Nacional ocorreram em meados do século XIX, durante o II Império, através da criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), um centro de estudos planejado por Dom Pedro II, este último, como se sabe, um incentivador militante da arte e da cultura. Naquele contexto, aquele que pode ser considerado como o patrono dos estudos da História do Brasil foi Francisco Adolfo de Varhagen, um diplomata brasileiro que através de suas viagens à Europa teve contato com fontes e documentos preciosos,  que serviram de base para a criação de uma História Oficial.

É comum qualificar esse primeiro momento dos estudos da História do Brasil como Positivista. Trata-se de uma História oficial, que ressalta a evolução política e das instituições do país – e não dá grande ênfase a outros aspectos da questão nacional, como a cultura, as relações sociais, o desenvolvimento econômico, etc. Está centrada nos grandes eventos – as datas comemorativas e os feriados nacionais são formas de expressão dessa orientação Positivista, na qual o estudo da História se desenvolve através de uma sequência cronológica dos principais eventos políticos: a descoberta (ou melhor diríamos o achamento) do Brasil em 1500; a criação das capitanias hereditárias em 1534; a instituição do governo geral através da expedição de Thomé de Souza (1549/1553); o sete de setembro de 1822; etc.  

É necessário relacionar este primeiro momento do estudo da História do Brasil com o contexto político em que esteve inserido: a independência política conquistada em 1822 era um evento político recente e, no Brasil, a constituição do Estado Nacional precedeu a existência de um espírito de nacionalidade – diferentemente das nações europeias como Alemanha e Itália, que já existiam como nação, mas que se tornaram Estado Nacional, posteriormente, apenas em meados do século XIX.

No Brasil, ao contrário daqueles países europeus, o Estado precedeu a Nação.

Quando o Brasil tornou-se independente em relação à Portugal, nosso país era antes de tudo uma reunião de províncias desarticuladas entre si, sem um sentimento coeso de nacionalidade. Alguém do norte se via mais como pernambucano ou baiano do que como brasileiro, o mesmo valendo-se aos paulistas, ao sul. A necessidade da constituição de uma História Nacional, de caráter oficial, era uma exigência do Estado, tal qual a criação de ministérios, forças armadas e demais instituições políticas. Daí a criação do IHGB e a importância da obra de Varnhagen, que remontam ao esforço da própria construção do país.  

E ainda assim, demoraria alguns anos até haver condições para se desenvolver estudos mais sistemáticos em torno da seguinte questão: o que caracteriza o povo brasileiro?

Seria só partir da década de 1930, através dos trabalhos de Gilberto Freire, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior que se desenvolveria um estudo mais sistemático sobre os traços distintivos que caracterizam a formação do povo Brasileiro. Essa geração modernista no âmbito da historiografia da década de 30 traria como novidade a ampliação do estudo da História para além da mera análise de documentos e fontes oficiais. A História em conexão com as demais ciências sociais. No caso de Gilberto Freire, com ênfase nos estudos da cultura e da antropologia. Em Sérgio Buarque de Holanda, na análise da sociedade e da psicologia do brasileiro, através de uma orientação weberiana. E em Caio Prado Júnior, prevalecendo as preocupações econômicas, dentro de um viés marxista.

Capistrano de Abreu está situado no período intermediário entre a primeira etapa positivista da historiografia brasileira e a geração modernista de 1930. Na verdade, ele de certa forma antecipou preocupações e orientações metodológicas que apareceriam depois.

Até Capistrano de Abreu, a História de tipo Positivista centrava-se nos grandes eventos políticos, como se a História do Brasil fosse a História do Estado Brasileiro e das suas Instituições. Capistrano pioneiramente traz elementos interdisciplinares ao estudo da História – tinha particular predileção pela Geografia. Também trouxe na sua obra preocupações em torno do desenvolvimento da sociedade, da cultura, da composição étnica do país e da mestiçagem, o que obviamente escapa à orientação puramente institucional dos Positivistas. Ao seu lado, figuram nessa mesma geração autores que poderíamos chamar de “pré modernistas”, como Euclides da Cunha e Sílvio Romero.

João Capistrano de Abreu nasceu em 23 de outubro de 1853 no Município de Maraguape, no Ceará. Daquela província era o grande escritor romântico José de Alencar, que ajudou a introduzir Capistrano de Abreu no movimento intelectual da época. Em 1875, o futuro historiador transfere-se ao Rio de Janeiro e candidata-se à vaga de professor de História do Brasil no renomado Colégio Dom Pedro II.

O título da dissertação que apresentou para se habilitar no concurso foi “O descobrimento do Brasil e o seu desenvolvimento no século XVI”. Foi aprovado com louvor em 1883 e reconhecido que o seu trabalho superava até mesmo as produções dos seus examinadores. Antes disso, Capistrano já havia sido aprovado em concurso para a Biblioteca Nacional. Reunindo o trabalho como professor e pesquisador, teve acesso às fontes documentais que subsidiaram o seu trabalho como historiador – a ênfase no estudo documental, a História criada através das fontes primárias, é um traço que evidencia como Capistrano é um dos nossos primeiros “historiadores profissionais”.

“Capítulos de História Colonial” consiste num conjunto de ensaios escritos pelo escritor que descreve em linhas rápidas a evolução histórica brasileira, desde o descobrimento até o século XIX.

No primeiro capítulo, denominado “Antecedentes Indígenas”, inicia tratando do palco onde se desenrolará a história que será contada. Aqui ele fala do cenário onde irá surgir o Brasil – a geografia, o clima, os rios, a fauna e a flora, além dos índios, que aparecem nesse primeiro momento como um elemento paisagístico, que se confunde com os animais selvagens e a natureza inexplorada:

“As guerras ferviam contínuas; a cunhã prisioneira agregava-se à tribo vitoriosa, pois vigorava a ideia da nulidade da fêmea na procriação, exatamente como a da terra no processo vegetativo; os homens eram comidos em muitas tribos no meio de festas rituais. A antropofagia não despertava repugnância e parece ter sido muito vulgarizada; algumas tribos comiam inimigos, outras os parentes e amigos, eis a diferença.

Viviam em pequenas comunidades. Pouco trabalho dava fincar uns paus e estender folhas por cima, carregar algumas cabaças e panelas; por isso andavam em contínuas mudanças, já necessitadas pela escassez dos animais próprios à alimentação”.

Obviamente, essa inclusão do índio dentro de uma figuração paisagística não significava diminuir o papel daqueles povos originários na formação do povo brasileiro. Aliás, Capistrano foi um pioneiro dos estudos das línguas indígenas e consta que nos seus estudos sobre o assunto, chegou a trazer índios bravios para a sua residência a fim de estudá-los.

O que se evidencia nesse capítulo é que a existência prévia daqueles povos pré colombianos não significa dizer que o Brasil já existia antes de 1500 – por isso são tratados como parte da paisagem onde se desenrolará a história. Se entendermos que a nação Brasileira constituiu-se e teve como ponto de partida a grande epopeia das navegações, dentro de um movimento de confluência das raças branca, ameríndia e negra, por meio de uma colônia de exploração, não restam dúvidas que aqueles povos que aqui habitavam antes dos portugueses não poderiam ser considerados “brasileiros”.

O capítulo mais extenso e mais importante do livro certamente o nono chamado “Sertão”. O tema da ocupação territorial do país é talvez o eixo condutor e a principal preocupação de Capistrano de Abreu, o que explica também o seu interesse pela geografia, dado que o nosso povoamento se deu através das confluências dos rios, sob a influência favorável ou desfavorável do relevo, e nas trilhas abertas pelos indígenas.

Ganha evidência, dentro do movimento de expansão territorial, a atividade da mineração e da pecuária, que promovem a interiorização da ocupação do país.

O bandeirantismo é reconhecido pelo escritor como um fator decisivo neste movimento. Num primeiro momento, os sertanistas paulistas agem como fator de desagregação social e até mesmo esvaziamento populacional, quando desenvolvem a sua atividade de captura dos índios. Os bandeirantes logo dirigem a sua atividade bandoleira sobre as missões dos jesuítas, o que é fácil de explicar: mais simples do que capturar índios selvagens dispersos na mata seria sequestrá-los nas missões jesuíticas, quando os índios já estão agrupados, habituados ao trabalho organizado, relativamente civilizados e até mesmo com algumas noções da língua geral.

Já num segundo momento, os bandeirantes deixam de ser um fator de desagregação para assumir a posição desbravadores do hinterland brasileiro; numa primeira etapa, a preocupação era a captura de escravos e depois será a busca do ouro e do diamante, o que criará as bases de ocupação do território onde hoje se situa o Brasil, já delineado através do Tratado de Madrid (1750) por meio da uti possedetis – o território pertence àqueles que o ocupam. Devemos aos bandeirantes a expansão de nossas fronteiras, inicialmente circunscritas ao litoral dentro do Tratado de Tordesilhas, para seguir em direção ao sertão. Nossa unidade linguística e coesão social também são tributárias dos sertanistas, que eram em geral mamelucos, andavam descalços e falavam a língua geral. Se a mineração expandiu o território, a pecuária serviu como meio de povoamento e consolidação do homem na terra, sendo o segundo fator decisivo descrito no capítulo “Sertão”.  

A síntese dos três séculos de colonização portuguesa é descrita no último capítulo do livro.

Assim conclui Capistrano de Abreu  a sua obra, tecendo em um parágrafo uma síntese dos três séculos de evolução histórica do Brasil:

“Cinco grupos etnográficos, ligados pela comunidade ativa da língua e passiva da religião, moldados pelas condições ambientes de cinco regiões diversas, tendo pelas riquezas naturais da terra um entusiasmo estrepitoso, sentido pelo português aversão ou desprezo, não se prezando, porém, uns aos outros de modo particular – eis em suma ao que se reduziu a obra de três séculos”.

 

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