“Capítulos de História Colonial” – Capistrano de Abreu
Resenha Livro - “Capítulos de História Colonial” – Capistrano de Abreu - Edições Senado Federal
Quando João
Capistrano de Abreu escreveu os artigos que foram depois reunidos sob o nome “Capítulos
de História Colonial”, o estudo da História do Brasil ainda estava em suas primeiras
fases de desenvolvimento. A obra data de 1907, quando não havia Faculdades de História no país e ainda
estavam para ser criados os estudos mais sistemáticos em torno da identidade
nacional.
Os primeiros esforços
acerca do estudo da História Nacional ocorreram em meados do século XIX, durante
o II Império, através da criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
(IHGB), um centro de estudos planejado por Dom Pedro II, este último, como se
sabe, um incentivador militante da arte e da cultura. Naquele contexto, aquele
que pode ser considerado como o patrono dos estudos da História do Brasil foi Francisco
Adolfo de Varhagen, um diplomata brasileiro que através de suas viagens à
Europa teve contato com fontes e documentos preciosos, que serviram de base para a criação de uma História
Oficial.
É comum
qualificar esse primeiro momento dos estudos da História do Brasil como Positivista.
Trata-se de uma História oficial, que ressalta a evolução política e das
instituições do país – e não dá grande ênfase a outros aspectos da questão
nacional, como a cultura, as relações sociais, o desenvolvimento econômico, etc.
Está centrada nos grandes eventos – as datas comemorativas e os feriados
nacionais são formas de expressão dessa orientação Positivista, na qual o
estudo da História se desenvolve através de uma sequência cronológica dos
principais eventos políticos: a descoberta (ou melhor diríamos o achamento) do
Brasil em 1500; a criação das capitanias hereditárias em 1534; a instituição do
governo geral através da expedição de Thomé de Souza (1549/1553); o sete de
setembro de 1822; etc.
É necessário
relacionar este primeiro momento do estudo da História do Brasil com o contexto
político em que esteve inserido: a independência política conquistada em 1822
era um evento político recente e, no Brasil, a constituição do Estado Nacional
precedeu a existência de um espírito de nacionalidade – diferentemente das nações
europeias como Alemanha e Itália, que já existiam como nação, mas que se
tornaram Estado Nacional, posteriormente, apenas em meados do século XIX.
No Brasil, ao
contrário daqueles países europeus, o Estado precedeu a Nação.
Quando o Brasil
tornou-se independente em relação à Portugal, nosso país era antes de tudo uma
reunião de províncias desarticuladas entre si, sem um sentimento coeso de
nacionalidade. Alguém do norte se via mais como pernambucano ou baiano do que
como brasileiro, o mesmo valendo-se aos paulistas, ao sul. A necessidade da
constituição de uma História Nacional, de caráter oficial, era uma exigência do
Estado, tal qual a criação de ministérios, forças armadas e demais instituições
políticas. Daí a criação do IHGB e a importância da obra de Varnhagen, que remontam
ao esforço da própria construção do país.
E ainda assim, demoraria
alguns anos até haver condições para se desenvolver estudos mais sistemáticos
em torno da seguinte questão: o que caracteriza o povo brasileiro?
Seria só partir
da década de 1930, através dos trabalhos de Gilberto Freire, Sérgio Buarque de
Holanda e Caio Prado Júnior que se desenvolveria um estudo mais sistemático sobre
os traços distintivos que caracterizam a formação do povo Brasileiro. Essa
geração modernista no âmbito da historiografia da década de 30 traria como
novidade a ampliação do estudo da História para além da mera análise de
documentos e fontes oficiais. A História em conexão com as demais ciências
sociais. No caso de Gilberto Freire, com ênfase nos estudos da cultura e da
antropologia. Em Sérgio Buarque de Holanda, na análise da sociedade e da
psicologia do brasileiro, através de uma orientação weberiana. E em Caio Prado
Júnior, prevalecendo as preocupações econômicas, dentro de um viés marxista.
Capistrano de
Abreu está situado no período intermediário entre a primeira etapa positivista
da historiografia brasileira e a geração modernista de 1930. Na verdade, ele de
certa forma antecipou preocupações e orientações metodológicas que apareceriam
depois.
Até Capistrano de
Abreu, a História de tipo Positivista centrava-se nos grandes eventos políticos,
como se a História do Brasil fosse a História do Estado Brasileiro e das suas
Instituições. Capistrano pioneiramente traz elementos interdisciplinares ao
estudo da História – tinha particular predileção pela Geografia. Também trouxe
na sua obra preocupações em torno do desenvolvimento da sociedade, da cultura,
da composição étnica do país e da mestiçagem, o que obviamente escapa à
orientação puramente institucional dos Positivistas. Ao seu lado, figuram nessa
mesma geração autores que poderíamos chamar de “pré modernistas”, como Euclides
da Cunha e Sílvio Romero.
João Capistrano
de Abreu nasceu em 23 de outubro de 1853 no Município de Maraguape, no Ceará. Daquela
província era o grande escritor romântico José de Alencar, que ajudou a
introduzir Capistrano de Abreu no movimento intelectual da época. Em 1875, o
futuro historiador transfere-se ao Rio de Janeiro e candidata-se à vaga de
professor de História do Brasil no renomado Colégio Dom Pedro II.
O título da
dissertação que apresentou para se habilitar no concurso foi “O descobrimento
do Brasil e o seu desenvolvimento no século XVI”. Foi aprovado com louvor em
1883 e reconhecido que o seu trabalho superava até mesmo as produções dos seus
examinadores. Antes disso, Capistrano já havia sido aprovado em concurso para a
Biblioteca Nacional. Reunindo o trabalho como professor e pesquisador, teve
acesso às fontes documentais que subsidiaram o seu trabalho como historiador –
a ênfase no estudo documental, a História criada através das fontes primárias,
é um traço que evidencia como Capistrano é um dos nossos primeiros “historiadores
profissionais”.
“Capítulos de
História Colonial” consiste num conjunto de ensaios escritos pelo escritor que descreve
em linhas rápidas a evolução histórica brasileira, desde o descobrimento até o
século XIX.
No primeiro
capítulo, denominado “Antecedentes Indígenas”, inicia tratando do palco onde se
desenrolará a história que será contada. Aqui ele fala do cenário onde irá
surgir o Brasil – a geografia, o clima, os rios, a fauna e a flora, além dos
índios, que aparecem nesse primeiro momento como um elemento paisagístico, que
se confunde com os animais selvagens e a natureza inexplorada:
“As guerras
ferviam contínuas; a cunhã prisioneira agregava-se à tribo vitoriosa, pois
vigorava a ideia da nulidade da fêmea na procriação, exatamente como a da terra
no processo vegetativo; os homens eram comidos em muitas tribos no meio de
festas rituais. A antropofagia não despertava repugnância e parece ter sido
muito vulgarizada; algumas tribos comiam inimigos, outras os parentes e amigos,
eis a diferença.
Viviam em
pequenas comunidades. Pouco trabalho dava fincar uns paus e estender folhas por
cima, carregar algumas cabaças e panelas; por isso andavam em contínuas mudanças,
já necessitadas pela escassez dos animais próprios à alimentação”.
Obviamente, essa
inclusão do índio dentro de uma figuração paisagística não significava diminuir
o papel daqueles povos originários na formação do povo brasileiro. Aliás,
Capistrano foi um pioneiro dos estudos das línguas indígenas e consta que nos
seus estudos sobre o assunto, chegou a trazer índios bravios para a sua residência
a fim de estudá-los.
O que se
evidencia nesse capítulo é que a existência prévia daqueles povos pré
colombianos não significa dizer que o Brasil já existia antes de 1500 – por
isso são tratados como parte da paisagem onde se desenrolará a história. Se
entendermos que a nação Brasileira constituiu-se e teve como ponto de partida a
grande epopeia das navegações, dentro de um movimento de confluência das raças
branca, ameríndia e negra, por meio de uma colônia de exploração, não restam
dúvidas que aqueles povos que aqui habitavam antes dos portugueses não poderiam
ser considerados “brasileiros”.
O capítulo mais extenso
e mais importante do livro certamente o nono chamado “Sertão”. O tema da
ocupação territorial do país é talvez o eixo condutor e a principal preocupação
de Capistrano de Abreu, o que explica também o seu interesse pela geografia,
dado que o nosso povoamento se deu através das confluências dos rios, sob a
influência favorável ou desfavorável do relevo, e nas trilhas abertas pelos
indígenas.
Ganha evidência,
dentro do movimento de expansão territorial, a atividade da mineração e da pecuária,
que promovem a interiorização da ocupação do país.
O bandeirantismo
é reconhecido pelo escritor como um fator decisivo neste movimento. Num
primeiro momento, os sertanistas paulistas agem como fator de desagregação
social e até mesmo esvaziamento populacional, quando desenvolvem a sua
atividade de captura dos índios. Os bandeirantes logo dirigem a sua atividade
bandoleira sobre as missões dos jesuítas, o que é fácil de explicar: mais simples
do que capturar índios selvagens dispersos na mata seria sequestrá-los nas
missões jesuíticas, quando os índios já estão agrupados, habituados ao trabalho
organizado, relativamente civilizados e até mesmo com algumas noções da língua
geral.
Já num segundo
momento, os bandeirantes deixam de ser um fator de desagregação para assumir a
posição desbravadores do hinterland brasileiro; numa primeira etapa, a
preocupação era a captura de escravos e depois será a busca do ouro e do
diamante, o que criará as bases de ocupação do território onde hoje se situa o
Brasil, já delineado através do Tratado de Madrid (1750) por meio da uti
possedetis – o território pertence àqueles que o ocupam. Devemos aos
bandeirantes a expansão de nossas fronteiras, inicialmente circunscritas ao
litoral dentro do Tratado de Tordesilhas, para seguir em direção ao sertão. Nossa
unidade linguística e coesão social também são tributárias dos sertanistas, que
eram em geral mamelucos, andavam descalços e falavam a língua geral. Se a
mineração expandiu o território, a pecuária serviu como meio de povoamento e
consolidação do homem na terra, sendo o segundo fator decisivo descrito no
capítulo “Sertão”.
A síntese dos
três séculos de colonização portuguesa é descrita no último capítulo do livro.
Assim conclui Capistrano
de Abreu a sua obra, tecendo em um
parágrafo uma síntese dos três séculos de evolução histórica do Brasil:
“Cinco grupos
etnográficos, ligados pela comunidade ativa da língua e passiva da religião,
moldados pelas condições ambientes de cinco regiões diversas, tendo pelas
riquezas naturais da terra um entusiasmo estrepitoso, sentido pelo português aversão
ou desprezo, não se prezando, porém, uns aos outros de modo particular – eis em
suma ao que se reduziu a obra de três séculos”.
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