sábado, 7 de junho de 2025

“Brás, Bexiga e Barra Funda” – Antônio Alcântara Machado

 Brás, Bexiga e Barra Funda” – Antônio Alcântara Machado



Resenha Livro - “Brás, Bexiga e Barra Funda” – Antônio Alcântara Machado – Ed. Universidade de São Paulo

Quando Antônio Alcântara Machado escreveu o livro de contos “Brás, Bexiga e Barra Funda” (1927), tinha apenas 26 anos de idade.  O escritor paulista foi um dos expoentes do movimento modernista, na sua fase inicial, inaugurada através da Semana de Arte Moderna de 1922.

É certo que aquele movimento tinha como norte a oposição ao academicismo e à arte puramente decorativa. O modernismo refletia as incertezas sociais do contexto da I Guerra Mundial, da Revolução Russa de 1917 e da ascensão do fascismo na Europa ( a “Marcha sobre Roma” de Mussolini efetivamente ocorreu 9 meses após a Semana de 22).

Além disso, o novo grupo de artistas expressava as novas realizações tecnológicas de fins do século XIX e início do XX: os automóveis velozes circulando nas cidades, o advento do cinema, a fotografia, o telefone, o gramofone, os bondes elétricos, a revolução causada pelo desenvolvimento da aviação, implicaram num conceito dinâmico da arte associada à velocidade e à simultaneidade, em oposição ao conceito estático tradicional, baseado no equilíbrio e na ordem.

Entretanto, a adesão de Alcântara Machado ao novo movimento literário foi tardia.

Quando ocorreu a Semana de 1922, o escritor era um jovem estudante da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Tomou parte do grupo de alunos que compareceu no Teatro Municipal para vaiar o evento. Naquele momento, já tinha publicado alguns artigos de jornais de crítica literária, além de desempenhar papel de orador do Centro Acadêmico XI de Agosto. Mas tinha restrições aos exageros dos modernistas.

O escritor nasceu em 25 de maio de 1901 na cidade de São Paulo. Pertencia às  chamadas “famílias quatrocentonas” paulistas, que remetam aos primeiros povoadores da Capitania de São Vicente, depois Província e depois Estado de São Paulo.

Por parte de pai, teve como ascendentes presidentes de províncias, deputados, barões e professores da Faculdade de Direito de São Paulo. Do lado materno, foi neto de gente de Taubaté, ligada ao bandeirantismo. Ele próprio, como um membro da aristocracia da terra, foi jornalista, advogado e crítico literário, viajou em três ocasiões à Europa e nunca sofreu de privação material. Participou da Revolução de 1932 e foi eleito deputado por São Paulo, falecendo, entretanto, antes de exercer o mandato.   

Sua efetiva adesão ao movimento modernista se deu por intermédio de Oswald de Andrade. E isso ocorreu depois de uma viagem à Europa no ano de 1925, onde, suponho, tenha tido contato com as novas correntes artísticas do velho continente:  foram as vanguardas europeias que igualmente expressavam um rompimento com o tradicionalismo e apontavam para a experimentação artística, através do cubismo, futurismo, dadaísmo e surrealismo. Foram a expressão de um momento em que o progresso tecnológico redimensionou as fronteiras e os limites da comunicação, por intermédio do rádio, do cinema, do automóvel e do telégrafo. O otimismo em torno da ciência e do progresso tecnológico oriundo das correntes de pensamento do século XIX, levado até às últimas consequências pelo Positivismo, se desdobraria, no século subsequente, numa nova etapa de esgarçamento. O cientificismo e a apologia do progresso terminariam culminando na barbárie e na irracionalidade da guerra generalizada (I Guerra Mundial). A razão levada até às últimas consequência conduziu-nos ao colonialismo, ao eugenismo às teorias de supremacia racial. O pensamento artístico e a vanguarda modernista correspondem à etapa imediatamente anterior, premonitória, desse movimento da razão em direção à  barbárie.    

“Brás, Bexiga e Barra Funda” trata da vida dos recém chegados imigrantes italianos na cidade de São Paulo. Inicialmente, foram engajados no trabalho do campo, nas fazendas de café do interior paulista, através de um regime de trabalho parecido com a servidão, como forma de substituição do trabalho escravo, abolido em 1888.

Já na década de 1920, esses imigrantes italianos são a força de trabalho da nascente indústria de São Paulo. Tiveram importante papel no desenvolvimento dos primeiros sindicatos e na divulgação das ideias políticas anarquistas; a partir de 1917, sob o impacto da Revolução Russa, os anarquistas tornam-se socialistas constituem o Partido Comunista Brasileiro em 1922.  

 Os italianos são referidos na introdução do livro como a terceira geração dos mamelucos brasileiros.

“Durante muito tempo a nacionalidade viveu uma mescla de três raças que os poetas xingaram de tristes: as três raças tristes.

A primeira, as caravelas descobridoras encontraram aqui comendo gente, e desdenhosa de mostrar suas vergonhas. A segunda veio nas caravelas. Logo os machos sacudidos desta se enamoraram das moças bem gentis daquela, que tinham cabelos mui pretos, compridos pela espádoas.

E nasceram os primeiros mamelucos.

A terceira veio dos porões dos navios negreiros trabalhar o solo e servir a gente. Trazendo moças gentis, mucamas, mucambas, mumbandas, macumas.

E nasceram os segundo mamelucos.

(...) E então os transatlânticos trouxeram da Europa outras raças aventureiras. Entre elas uma alegre que pisou a terra paulista cantando e na terra brotou e se alastrou como aquela planta imigrante que há duzentos anos veio fundar a riqueza brasileira.

Do consórcio da gente imigrante com o ambiente, do consórcio da gente imigrante com a indígena nasceram os novos mamelucos”.

Ao qualificar os imigrantes com mamelucos, o autor reforça o processo de integração e miscigenação que foi um fator bastante positivo no desenvolvimento histórico do Brasil.

Desde os tempos mais remotos da vinda dos portugueses, não houve por aqui a colonização de “povoamento”, aos moldes da América do Norte, quando grupos familiares buscam constituir sociedades autônomas e segregados dos povos que aqui habitavam – na maior parte, eram esses povoadores protestantes radicais e indesejáveis até mesmo na Europa.... A grande vantagem da nossa colonização por “exploração” foi que os portugueses se lançavam numa aventura em torno da extração de riquezas e o enriquecimento imediato: não buscaram, assim, criar uma nova sociedade segregada, aos moldes europeus, mas se integraram e constituíram suas famílias por meio da miscigenação. Primeiro com os índios para constituir a 1ª Geração dos Mamelucos. E depois com os negros para constituir a 2ª Geração dos Mamelucos.

A terceira geração de mamelucos, os italianos, inicialmente eram chamados pejorativamente pelos brasileiros de “carcamanos” e “pés de chumbo”. Mas, seguindo essa tradição dos tempos da colônia, se integraram, se miscigenaram, casaram e constituíram famílias com os/as brasileiros/as e, no limite, foram um dos alicerces da indústria e do desenvolvimento econômico do país, emprestando a sua força de trabalho ou até prosperando e tornando-se eles próprios figuras importantes da política e cultura nacional: Conde de Matarazo, Menotti del Pichia e Anita Malfati são alguns nomes de ilustres imigrantes italianos a quem o livro é dedicado.

As histórias de “Brás, Bexiga e Barra Funda” são curtas, sugerindo uma narrativa em alta velocidade, tal qual os novos bondes e carros que surgem como uma novidade no início do desenvolvimento de São Paulo. Os efeitos visuais e sonoros da cidade em movimento são explorados no texto, remetendo à experimentação formal da vanguarda modernista: são as fábricas que “apitam”, os carros que circulam em alta velocidade e o povo que grita diante do jogo de futebol. As histórias vão fazendo remissão às ruas e bairros conhecidos daqueles que moram em São Paulo: Largo da Santa Cecília, Largo São Francisco, Avenida Paulista, Avenida Angélica, Avenida da Liberdade.

O recurso do humor, tão caro aos modernistas que por meio dele querem demolir as formas tradicionais de arte, aparece no texto, mesmo em sua feição do trágico cômico. É o caso do conto “Gaetaninho”, um italianinho que morre atropelado por um bonde. O seu maior sonho é andar num automóvel e o acaba o realizando no final da história, dentro de um caixão.

Não foi extensa a produção literária de Alcântara Machado. Além de “Brás, Bexiga e Barra Funda”,  publicou “Laranja da China” (1928) e “Mana Maria” (1936), esse último lançado postumamente. Isso porque o autor morreu cedo, aos 35 anos, após uma intervenção cirúrgica fracassada por um problema de apendicite. Deixou ainda os seus artigos de jornal, crítica literária e artigos em revistas de literatura. Tal qual Álvares de Azevedo, também acadêmico da Faculdade de Direito de São Paulo, poderia ter sido um dos maiores da literatura brasileira não tivesse falecido tão jovem.

quarta-feira, 4 de junho de 2025

“O Saci” – Monteiro Lobato

 “O Saci” – Monteiro Lobato



Monteiro Lobato certamente é o escritor mais conhecido do Brasil. E ficou notabilizado por conta dos seus livros infantis.

Ocorre que a opção por escrever livros para crianças ocorreu num momento tardio da produção ficcional do escritor. O primeiro livro da Coleção Sítio do Picapau Amarelo, chamado “O Saci”, foi publicado em 1921, quando o escritor tinha 39 anos de idade. Consta ter sido o retorno à literatura infantil um reflexo dos desgostos dos adultos que o perseguiram injustamente.  

O escritor nasceu na cidade de Taubaté, no interior paulista. E foi no interior de São Paulo que passou a maior parte da sua vida. Depois de diplomar-se em Direito pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco, é nomeado Promotor na cidade de Areias em maio de 1907. Já no ano de 1911, morre o seu avô, o Visconde de Tremembé, e dele herda a fazenda de Buquira. Deixou de ser promotor de justiça para ser fazendeiro.

E foi o cenário dessa fazenda que imaginou e criou as histórias do Sítio do Pica Pau Amarelo.

“O sítio de Dona Benta ficava num lugar muito bonito. A casa era das antigas, de cômodos espaçosos e frescos. Havia o quarto de Dona Benta, o maior de todos, e junto o de Narizinho, que morava com sua avó. Havia ainda o ‘quarto de Pedrinho’ que lá passava as férias todos os anos; e o da tia Nastácia, a cozinheira e faz-tudo da casa. Emília e Visconde não tinham quartos; moravam num cantinho do escritório, onde ficavam as três estantes de livros e a mesa de estudo da menina”.

Saci é o primeiro livro da série do Sítio do Pica-pau Amarelo.

Em uma das férias de verão, Pedrinho escuta de Dona Benta a história de Saci Pererê, um ser astucioso que se diverte fazendo pequenas trapaças. Traz sempre na boca um cachimbo acesso e na cabeça uma carapuça vermelha. A força do Saci Pererê está na carapuça vermelha, como a força do Sansã está nos cabelos.

O Saci é incapaz de cometer uma grande maldade. Mas diverte-se cometendo pequenas reinações: azeda o leite, quebra as pontas das agulhas, faz dedal das costureiras cair nos buracos, bota moscas na sopa.

Pedrinho vai em busca de um vizinho chamado Tio Barnabé que lhe explica  e orienta como captar um Saci. Ao finalmente entrar em contato com o pequeno diabo, trava com ele uma aventura na floresta, onde se deparam com o lobisomem, a caipora, o curupira, o negrinho do pastoreio, a mula sem cabeça, a Iara e finalmente a temida Cuca.

Em breves tintas, somos introduzidos a cada um desses personagens do folclore brasileiro.

Conta-se a história do negrinho do pastoreio, considerando um santo pelo povo gaúcho. O menino foi sacrificado por um estancieiro malvado para puni-lo por ter lhe perdido um novilho. Amarrou-o sobre um formigueiro de formigas carnívoras e deixou-as come-lo vivo. Como ele sofreu na pele o maior dos sofrimentos, ele se compadece daqueles que sofrem.

Há a história de mula sem cabeça que vomita fogo pelas ventas. Conta a história da caipora que é um duende peludo, meio homem, meio mono, que costuma cavalgar os porcos do mato e deter os viajantes para exigir fumo.  E finalmente, a Cuca que mencionamos na canção de dormir:

“Durma, nenê, que a Cuca já lá vem, Papai está na roça; mamãezinha no Belém...”.

A Cuca tem cara de Jacaré, garras de gavião e 3000 anos de idade. Ela sequestra Narizinho, fazendo com que Pedrinho e o Saci saíssem em resgate da neta de Dona Benta. Há o confronto entre a astúcia do Saci e a força da Cuca. E ao final, a inteligência prevalece sobre a força.

O protagonista deste livro é certamente o Saci.

Ele sagra-se vencedor sobre a Cuca por conhecer a fundo a natureza a ponto de, num determinado momento, numa conversa filosófica com Pedrinho, afirmar que os animais são mais inteligentes que os homens. Por que? Porque os homens precisam aprender antes de fazer. Já os animais já nascem sabendo a fazer.

O Saci possui a astúcia e o conhecimento sobre a vida misteriosa da floresta.

O preto com cachimbo na boca foi alçado a condição de herói pelo escritor que os ignorantes e mal intencionado acusam de ser um supremacista branco!

Falamos que o escritor passou para a literatura infantil já na meia idade, desgostoso com as perseguições que a vida adulta lhe impunham. Seu mérito literário e sua importância política como criador da primeira editora de livros brasileira e defensor do petróleo fazem-no perseguido ainda nos dias de hoje. Para sua glória, perseguidos por aqueles que odeiam o Brasil.

domingo, 1 de junho de 2025

“O Cortiço” – Aluísio Azevedo

 “O Cortiço” – Aluísio Azevedo



Resenha Livro - “O Cortiço” – Aluísio Azevedo – Ed. Principis


Aluísio Azevedo (1857/1913) foi talvez o primeiro escritor brasileiro que pôde sobreviver de sua própria pena.

Como pontua o crítico Alfredo Bosi, o escritor conseguiu por certo tempo viver apenas do seu trabalho de jornalista, caricaturista e romancista, mas apenas para conquistar o “pão”, sem a “manteiga”; ou seja, com o seu trabalho literário obteve apenas o mínimo para subsistir, após se mudar do seu estado natal no Maranhão para o Rio de Janeiro, então capital do Brasil.

Nascido em São Luís/MA, ele próprio foi vítima dos estigmas sociais e preconceitos que retrataria em seus livros. Num tempo em que o divórcio era uma realidade impensável, sua mãe casou-se em segundas núpcias com o seu pai, este último vice-cônsul de Portugal. O matrimônio ocorreu sem aprovação da Igreja, gerando escândalo naquela cidade provinciana.

O seu segundo romance, denominado “O Mulato” (1881), é uma crítica pioneira desse conservadorismo da sua terra natal. Conta a história de um jovem bacharel formado na Europa, mas mestiço de cor, e não aceito pela alta sociedade local, a despeito dos seus méritos intelectuais e morais. Vive uma história de amor com uma mulher branca, mas o casamento é impedido pela família da moça, dada a diferença racial, ensejando, ao final, uma tentativa de fuga dos consortes, que iria se transformar em tragédia.

Esse romance despertou a fúria da elite maranhense, incluindo o clero, fazendo com que o escritor, a convite de seu irmão, o teatrólogo Arthur Azevedo, se mudasse para a capital do Império, no ano de 1876. Lá estudaria pintura na escola de Belas Artes e colaboraria como escritor e caricaturista em jornais e revistas.  

Essa situação, envolvendo o trabalho de artista e a luta pela sobrevivência, explica a diferença de qualidade literária dos seus romances. Ao mesmo tempo em que se ocupou de criar uma nova arte experimental, fortemente influenciada pelas ideias do escritor francês Emile Zola, precisava produzir escritos palatáveis ao gosto popular, se quisesse sobreviver de sua pena.

Os seus trabalhos mais importantes para a história da literatura brasileira são aqueles que serviram de ponto de partida para a nova estética naturalista: “O Mulato” (1881), “Casa de Pensão” (1884) e “O Cortiço” (1890). Em paralelo, publicou obras folhetinescas, de apelo mais comercial, algumas delas ainda presas à estética romântica. Ainda assim, obras como “Filomena Borges” (1884), “Livro de uma Sogra” (1895) e o “O Coruja” (1890) não deixam de ser fontes interesses para o leitor de hoje entrar em contato com a cultura, os costumes e a sociedade do Rio de Janeiro na época do II Império (1840/1889).  

Pode-se dizer que Aluísio Azevedo é o maior expoente do naturalismo literário no Brasil.

Não foi o único escritor naturalista e nem mesmo o primeiro. Antes do lançamento de “O Mulato” (1881) frequentemente mencionado como o ponto de partida do naturalismo brasileiro, ainda no ano de 1877, Inglez de Souza lançaria o romance regionalista “O Coronel Sagrado”, que deve ser situado como o marco inicial daquele movimento literário no Brasil, junto com os seus outros dois trabalhos mais conhecidos do público: “O Missionário” de 1888 e “Contos Amazônicos” de 1893.

Em todo o caso, Inglez de Souza é pouco conhecido até os dias de hoje, talvez pelo fato de ter sido um paraense, que viveu e escreveu apenas sobre a realidade do povo da Amazônia, algo muito distante do centro cultural do Brasil, situado no Rio de Janeiro. Por conta disso, Aluísio Azevedo, se não foi o primeiro naturalista, é certamente o mais conhecido deles.

O Naturalismo literário tem como premissa a ideia de que o comportando humano e os fenômenos físicos são regidos pelas mesmas leis naturais.

Esta etapa da evolução histórica da literatura acentuou um sentido geral de objetividade que advinha já da 3ª Fase do Romantismo e do Realismo. No caso do Naturalismo, a objetividade ganha contornos de cientificidade, havendo mesmo uma proposta de fusão entre a arte e a ciência. Enquanto na escola romântica, a salvação humana está no retorno do homem ao seu estado natural, no Naturalismo, a salvação dá-se em torno da explicação científica do mundo, mediante a descrição empírica dos fenômenos sociais. Não raramente, fatos sociais se equivalem aos fatos da natureza, revestidos da mesma fatalidade.

Este tipo de arte suscita boas fontes históricas para o leitor dos dias de hoje. A descrição do Cortiço no romance homônimo de Aluísio Azevedo possibilita um contato direto com a realidade do subúrbio do Rio de Janeiro do século XIX, descrevendo os tipos populares, como o taverneiro português João Romão, o capoeirista Firmo ou a mulata sensual Rita Baiana.

É certo, contudo, que este protagonismo dos tipos populares ainda é parcial neste romance, publicado em 1890. O grande protagonista d’o Cortiço é o próprio espaço territorial, que se apresenta ao leitor como um organismo social, com uma vida própria, tendo, ironicamente, os personagens o caráter mais paisagístico. A comparação com um formigueiro, dentro da perspectiva naturalista, não seria de todo errada.

Assim é descrita a forma como foi se constituindo o cortiço:

“E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa, começou a minhocar, a fervilhar, a crescer um mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro e multiplicar-se como larvas no esterco”.

A história se passa no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro, onde João Romão, um português avarento que vive em função do lucro, constitui um cortiço, onde gente do mais baixo extrato social irá constituir suas casas. São lavadeiras, trabalhadores braçais, vagabundos, capoeiras, pedintes, prostitutas e gente da pequena burguesia que irão construir sua vida no cortiço. Romão também é proprietário de uma venda para monopolizar o comércio dos bens de primeira necessidade aos seus inquilinos, além de emprestar dinheiro com juros de agiota.

Cada ato por ele praticado tem a finalidade de obter alguma vantagem financeira, seja através da exploração do trabalho alheio, seja por meio de um auto sacrifício que não revela qualquer traço de moralidade ou heroísmo mas expressa em tom de caricatura o típico português pão duro:

“Sempre em mangas de camisa, sem domingo nem dia santo, não perdendo nunca a ocasião de assenhorar-se do alheio, deixando de pagar todas as vezes que podia e nunca deixando de receber, enganando os fregueses, roubando nos pesos e nas medidas, comprando por dez réis de mel coado o que os escravos furtavam da casa dos seus senhores, apertando cada vez mais as próprias despesas, empilhando privações, trabalhando e mais a amiga como uma junta de bois.”.

João Romão ascende financeiramente através do trabalho, ainda que norteado pela especulação e pelo proveito da desgraça alheia. O seu vizinho Miranda, por outro lado, representa outra forma de manifestação da elite econômica brasileira. Casou-se com uma mulher com grandes dotes financeiros, que fez dele um barão. Herdou o dinheiro sem precisar trabalhar, mas teve como contrapartida que engolir o orgulho de ver sua mulher, a verdadeira dona da riqueza, lhe trair  com outros homens e o humilhar perante a sociedade fluminense. Aguentava a mulher para não perder a fortuna financeira.

Há no início da história uma rivalidade entre João Romão e Miranda. O primeiro é exemplo representativo da burguesia que ascende através do trabalho, da avareza, da exploração e da atividade especulativa. O segundo é o exemplo representativo da nobreza, da riqueza herdada sem o exercício do trabalho e o consequente suor do próprio rosto. Ambos ao final da história entram em simbiose: João Romão, após conquistar o dinheiro que lhe tornaria rico, deseja agora conquistar os títulos de nobreza do seu vizinho e para isso lança-se como candidato de casamento à filha do Miranda. Não bastava a aquisição da riqueza, mas a sua ostentação através dos títulos de Barão ou Visconde.

No que concerne aos extratos populares, o livro também tem o mérito de descrever algumas nuanças das diversas camadas sociais do povo. Há desde o velho Libório, um mendigo que representa o mais alto grau da miséria material, até a presença de setores do uma pequena burguesia citadina: “estudantes pobres com uma pontinha de cigarro a queimar-lhes a penugem do buço”; “contínuos de repartição pública”, “caixeiros de botequim”, “artistas de teatro”, “condutores de bonde” e “vendedores de bilhete de loteria”.

O grande mérito de “O Cortiço” foi o de introduzir ao romance brasileiro algum protagonismo aos extratos sociais mais baixos da sociedade brasileira. Desde o romantismo, passando pelo Realismo, de José de Alencar a Machado de Assis, serão predominantes as referências aos proprietários de terra e aos capitalistas das cidades: a alusão ao popular aparecia até o “Cortiço” de forma bastante incidental. Já em O Cortiço, vemos mais de perto as manifestações populares: as festas de domingo, os sambas, as brigas de vizinho, a maledicência, a miséria material que leva ao crime e à prostituição.

Entretanto, seria apenas a partir da literatura Modernista, especialmente em sua fase Regionalista, que os extratos populares seriam alçados à uma verdadeira condição de protagonismo. Em Aluísio de Azevedo, o povaréu que reside no cortiço se assemelha mais a uma massa de gente, a um conjunto uniforme de tipos sociais embaralhados. Existe o quadro, que é o cortiço, e dele derivam as figuras, que são os personagens.

Já a partir dos livros de Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz e Guimarães Rosa, o personagem oriundo do povo passa a ser alçado a verdadeira condição humana, descrevendo-os agora não como uma massa indistinguível, mas como o homem integral, eivado de todas as suas contradições.  

 

Bibliografia:

“História Concisa da Literatura Brasileira” – Alfredo Bosi.