OS BANDEIRANTES NA OBRA DE PAULO SETÚBAL
Resenha Livro – “Os Irmãos Leme”-
Paulo Setúbal – Ed. Iba Mendes
Paulo de Oliveira Leite Setúbal
(1893/1937) foi advogado, escritor e jornalista. A despeito de ser pouco
conhecido hoje em dia, ao seu tempo, nas primeiras décadas do século passado, chegou
a ser o escritor mais lido do Brasil.
O sucesso de público dos seus livros diz
respeito aos seus “romances históricos” pelos quais o Autor contou a história
de nosso país romanceando o passado, tornando a História, uma disciplina das
ciências humana, numa expressão da cultura popular. Tornou, neste sentido, muito
mais acessível ao povo o conhecimento de nossa história.
Dentre os seus livros populares,
pode-se citar “Marquesa de Santos” (1925) e “O Príncipe Nassau” (1926). Dedicou
especial atenção em seu trabalho à história de São Paulo da época colonial.
Seus romances sobre o ciclo das bandeiras como o “Ouro de Cuiabá” (1933) e “O
Sonho das Esmeraldas” (1935) podem ser relacionados com um esforço geral de
valorização da atividade dos paulistas travada no bojo da (derrotada) Revolução
Constitucionalista de 1932.
Em “Os Irmãos Leme” (1932) vemos, por
outro lado, uma pintura muito pouco lisonjeira do bandeirantismo.
Trata-se de um romance histórico que
conta a história dos irmãos Pedro e Lourenço Leme, sertanistas e bandoleiros oriundos
do interior paulista, cuja atuação se deu em torno da busca pelos diamantes, do
assassinato e da corrupção das autoridades régias, durante as primeiras décadas
do século XVII.
O livro é uma adaptação em romance da
História de São Paulo certificada através de fontes primárias (cartas,
correspondências das autoridades régias, atas e regulamentos da capitania) e
dos trabalhos historiográficos de Washington Luís (mau ex-presidente do Brasil
e excelente historiador) e principalmente Pedro Taques.
Os irmãos Leme são oriundos de Itu e
filhos de Pedro Leme, um valente sertanista que ao seu tempo travou lutas de
conquista e manutenção do território da Corte portuguesa; expulsou espanhóis das
terras onde hoje se constituiu o Brasil.
“Ora, João Leme e Lourenço Leme haviam herdado, com sangue, a valentia chucra
do pai. Eram dois caboclos desabusados. Desabusados e selvagens. Duas onças.
Mas a bravura deles não era a nobre, a refulgente bravura dos heróis. Não. "Degenerou
o merecimento destes Lemes em extorsões e violências", diz com amargura o
linhagista e parente. Sim, que insolentes sertanejos eram aqueles dois irmãos! Que
horrendas coisas viviam eles a praticar pelas redondezas de Itú! Desde mocinhos
ganharam fama de gente perigosa. Ficaram homens. A fama deles não mudou. Um
dia, aventureiros e destemerosos, partiram ambos para as Gerais à cata de ouro.
Voltaram com a fama ainda mais negra. Contavam-se, com os cabelos em pé, as
proezas que haviam cometido nas Gerais. É verdade que lá tiveram a boa sorte de
catar bastante ouro. Enriqueceram. Ricos, já poderosos, com grande séqüito de
apaniguados, tornaram eles de novo a Itú. Aí viviam, ao tempo da festa do
Penteado, aturdindo a vila com os desregramentos das suas vidas soltas. As
gentes da terra fugiam deles como ia peste. Eles eram o terror do povoado.”.
Após assassinaram um potentado local
de Itu, além de desonrarem suas filhas, os Lemes são perseguidos pelas
autoridades régias, levando-os a se dirigir às minas de Cuiabá em busca do
ouro. No trajeto, no meio do mato cerrado, aderem ao bando escravos fugidos, ladrões,
homicidas, mulheres desonradas. E índias, que eram as prediletas fontes de
perversão sexual dos irmãos Leme.
Em Cuiabá, iniciam um levante que destrona
o tenente mor Pascoal Moreira e proclama Fernão Dias (cunhado dos Lemes) como
novo regente (1719). Tornam-se ricos através dos métodos da violência, da extorsão,
do suborno e da corrupção das autoridades régias. Apesar de serem brutos, não
menos selvagens que os bugres que os acompanham nas bandeiras, alçam-se aos
mais altos cargos de poder do Brasil colonial. Retornam a São Paulo e são
recepcionados pessoalmente pelo governador da província, que lhe concedem
cargos de confiança do Rei de Portugal.
O ouro, ao fim e ao cabo, é elemento
de corrupção e de luxúria. Aventureiros lançam-se pelos sertões em busca do
enriquecimento rápido, em contraponto ao trabalho produtivo baseado na
exploração da terra e na indústria, o que terá repercussão na fisionomia social
e cultural do Brasil. Os irmãos Leme usam o ouro para corromper as autoridades,
granjear postos de poder e ascender socialmente, até haver uma traição
palaciana que os levaria à prisão e à morte.
O PAPEL DOS BANDEIRANTES
Uma discussão frequente entre os historiadores
é o do papel do indivíduo na História.
Até que ponto a evolução histórica
está condicionada à vontade individual de determinadas lideranças e até onde
esse desenvolvimento diz respeito a determinadas condições materiais de
natureza objetiva? Até que ponto a vontade dos indivíduos alçados ao poder e a
sua visão social de mundo efetivamente impactam nas sucessivas etapas da
história de um determinado povo?
Obviamente, a resposta em torno dos
questionamentos vai depender dos pressupostos teóricos e metodológicos
utilizados por cada historiador.
No âmbito do materialismo histórico, ficou
conhecida uma passagem do livro “O 18 de Brumário de Luís Bonaparte” de Karl
Marx onde se propõe uma resposta à polêmica. Ao tratar do papel do sobrinho de Napoleão
e do movimento político geral em torno do golpe de estado de 1851 e a
instituição do II Império, Marx afirma:
“Os homens fazem sua própria história mas não a fazem como querem; não a
fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam
diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as
gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos.”.
A história exige da ação humana
consciente uma força para a sua transformação. Contudo, o balanço em torno do
papel de determinada liderança política diz menos respeito ao conjunto de
valores e ideologia dos indivíduos e mais ao resultado prático de sua intervenção
à luz de uma dinâmica de natureza objetiva, envolvendo a luta de classes, o
nível de desenvolvimento das forças produtivas e o modo de produção
correspondente.
Esta longa introdução serve-nos de
ponto de partida para se pensar o problema do bandeirantismo paulista de acordo
com o romance histórico “Os irmãos Leme” (1932) de Paulo Setúbal (1893/1937).
Ao se julgar a trajetória dos
sertanistas João e Lourenço Leme à luz do romance de Paulo Setúbal, a conclusão
inevitável é a de que a atividade dos bandeirantes se limitou à violência
indiscriminada contra a população, ao assassinato de potentados, à corrupção
das autoridades, ao contrabando e falsificação do ouro. Numa percepção puramente subjetivista da
história, teria sido um elemento de desagregação social.
Por outro lado, inobstante o elemento
ideológico expresso na vontade dos indivíduos, é certo que o resultado prático
do bandeirantismo não foi desagregador mas, pelo contrário, constituiu-se como
um dos mais importantes passos na formação do estado nacional brasileiro. Foram,
afinal, as bandeiras, seja quando engajadas na captura e escravização dos
índios seja na atividade de mineração, foram a principal fonte de expansão do
território e de criação de nossa atual fisionomia geográfica, cultural e
linguística.
As entradas expandiram as fronteiras
da colônia, desafiando os espanhóis, ao ampliar em muito os limites
territoriais traçados pelo Tratado de Tordesilhas. Basta ver que já no século XVIII,
pelo Tratado de Madrid, houve um exponencial aumento do território onde hoje se
situa o Brasil com base no princípio do uti possessis, pelo qual o território pertence
àqueles que o ocupam, no caso, justamente os sertanista oriundos de São Paulo.
Essas entradas podem ser entendidas
como uma prolongação da atividade desempenhada pelo espírito aventureiro que
lançou os portugueses à sua expansão ultramarina e que acarretou a descoberta
da América. Enquanto as grandes navegações redimensionaram as fronteiras do
mundo, as entradas e bandeiras criariam as condições para a interiorização da
colonização e dariam a fisionomia territorial do que hoje se conhece como
Brasil.
Num romance histórico, os
bandeirantes surgem-nos como elementos desagregadores e retrógrados. Numa
análise histórica de longa duração, cumpriram um papel decisivo e heroico na
história do Brasil.
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