quinta-feira, 10 de outubro de 2024

OS BANDEIRANTES NA OBRA DE PAULO SETÚBAL

 OS BANDEIRANTES NA OBRA DE PAULO SETÚBAL



Resenha Livro – “Os Irmãos Leme”- Paulo Setúbal – Ed. Iba Mendes

Paulo de Oliveira Leite Setúbal (1893/1937) foi advogado, escritor e jornalista. A despeito de ser pouco conhecido hoje em dia, ao seu tempo, nas primeiras décadas do século passado, chegou a ser o escritor mais lido do Brasil.

O sucesso de público dos seus livros diz respeito aos seus “romances históricos” pelos quais o Autor contou a história de nosso país romanceando o passado, tornando a História, uma disciplina das ciências humana, numa expressão da cultura popular. Tornou, neste sentido, muito mais acessível ao povo o conhecimento de nossa história.  

Dentre os seus livros populares, pode-se citar “Marquesa de Santos” (1925) e “O Príncipe Nassau” (1926). Dedicou especial atenção em seu trabalho à história de São Paulo da época colonial. Seus romances sobre o ciclo das bandeiras como o “Ouro de Cuiabá” (1933) e “O Sonho das Esmeraldas” (1935) podem ser relacionados com um esforço geral de valorização da atividade dos paulistas travada no bojo da (derrotada) Revolução Constitucionalista de 1932.

Em “Os Irmãos Leme” (1932) vemos, por outro lado, uma pintura muito pouco lisonjeira do bandeirantismo.

Trata-se de um romance histórico que conta a história dos irmãos Pedro e Lourenço Leme, sertanistas e bandoleiros oriundos do interior paulista, cuja atuação se deu em torno da busca pelos diamantes, do assassinato e da corrupção das autoridades régias, durante as primeiras décadas do século XVII.

O livro é uma adaptação em romance da História de São Paulo certificada através de fontes primárias (cartas, correspondências das autoridades régias, atas e regulamentos da capitania) e dos trabalhos historiográficos de Washington Luís (mau ex-presidente do Brasil e excelente historiador) e principalmente Pedro Taques.

Os irmãos Leme são oriundos de Itu e filhos de Pedro Leme, um valente sertanista que ao seu tempo travou lutas de conquista e manutenção do território da Corte portuguesa; expulsou espanhóis das terras onde hoje se constituiu o Brasil.

“Ora, João Leme e Lourenço Leme haviam herdado, com sangue, a valentia chucra do pai. Eram dois caboclos desabusados. Desabusados e selvagens. Duas onças. Mas a bravura deles não era a nobre, a refulgente bravura dos heróis. Não. "Degenerou o merecimento destes Lemes em extorsões e violências", diz com amargura o linhagista e parente. Sim, que insolentes sertanejos eram aqueles dois irmãos! Que horrendas coisas viviam eles a praticar pelas redondezas de Itú! Desde mocinhos ganharam fama de gente perigosa. Ficaram homens. A fama deles não mudou. Um dia, aventureiros e destemerosos, partiram ambos para as Gerais à cata de ouro. Voltaram com a fama ainda mais negra. Contavam-se, com os cabelos em pé, as proezas que haviam cometido nas Gerais. É verdade que lá tiveram a boa sorte de catar bastante ouro. Enriqueceram. Ricos, já poderosos, com grande séqüito de apaniguados, tornaram eles de novo a Itú. Aí viviam, ao tempo da festa do Penteado, aturdindo a vila com os desregramentos das suas vidas soltas. As gentes da terra fugiam deles como ia peste. Eles eram o terror do povoado.”.

Após assassinaram um potentado local de Itu, além de desonrarem suas filhas, os Lemes são perseguidos pelas autoridades régias, levando-os a se dirigir às minas de Cuiabá em busca do ouro. No trajeto, no meio do mato cerrado, aderem ao bando escravos fugidos, ladrões, homicidas, mulheres desonradas. E índias, que eram as prediletas fontes de perversão sexual dos irmãos Leme.

Em Cuiabá, iniciam um levante que destrona o tenente mor Pascoal Moreira e proclama Fernão Dias (cunhado dos Lemes) como novo regente (1719). Tornam-se ricos através dos métodos da violência, da extorsão, do suborno e da corrupção das autoridades régias. Apesar de serem brutos, não menos selvagens que os bugres que os acompanham nas bandeiras, alçam-se aos mais altos cargos de poder do Brasil colonial. Retornam a São Paulo e são recepcionados pessoalmente pelo governador da província, que lhe concedem cargos de confiança do Rei de Portugal.

O ouro, ao fim e ao cabo, é elemento de corrupção e de luxúria. Aventureiros lançam-se pelos sertões em busca do enriquecimento rápido, em contraponto ao trabalho produtivo baseado na exploração da terra e na indústria, o que terá repercussão na fisionomia social e cultural do Brasil. Os irmãos Leme usam o ouro para corromper as autoridades, granjear postos de poder e ascender socialmente, até haver uma traição palaciana que os levaria à prisão e à morte.

O PAPEL DOS BANDEIRANTES

Uma discussão frequente entre os historiadores é o do papel do indivíduo na História.

Até que ponto a evolução histórica está condicionada à vontade individual de determinadas lideranças e até onde esse desenvolvimento diz respeito a determinadas condições materiais de natureza objetiva? Até que ponto a vontade dos indivíduos alçados ao poder e a sua visão social de mundo efetivamente impactam nas sucessivas etapas da história de um determinado povo?

Obviamente, a resposta em torno dos questionamentos vai depender dos pressupostos teóricos e metodológicos utilizados por cada historiador.

No âmbito do materialismo histórico, ficou conhecida uma passagem do livro “O 18 de Brumário de Luís Bonaparte” de Karl Marx onde se propõe uma resposta à polêmica. Ao tratar do papel do sobrinho de Napoleão e do movimento político geral em torno do golpe de estado de 1851 e a instituição do II Império,  Marx afirma:

“Os homens fazem sua própria história mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos.”.

A história exige da ação humana consciente uma força para a sua transformação. Contudo, o balanço em torno do papel de determinada liderança política diz menos respeito ao conjunto de valores e ideologia dos indivíduos e mais ao resultado prático de sua intervenção à luz de uma dinâmica de natureza objetiva, envolvendo a luta de classes, o nível de desenvolvimento das forças produtivas e o modo de produção correspondente.

Esta longa introdução serve-nos de ponto de partida para se pensar o problema do bandeirantismo paulista de acordo com o romance histórico “Os irmãos Leme” (1932) de Paulo Setúbal (1893/1937).

Ao se julgar a trajetória dos sertanistas João e Lourenço Leme à luz do romance de Paulo Setúbal, a conclusão inevitável é a de que a atividade dos bandeirantes se limitou à violência indiscriminada contra a população, ao assassinato de potentados, à corrupção das autoridades, ao contrabando e falsificação do ouro.  Numa percepção puramente subjetivista da história, teria sido um elemento de desagregação social.

Por outro lado, inobstante o elemento ideológico expresso na vontade dos indivíduos, é certo que o resultado prático do bandeirantismo não foi desagregador mas, pelo contrário, constituiu-se como um dos mais importantes passos na formação do estado nacional brasileiro. Foram, afinal, as bandeiras, seja quando engajadas na captura e escravização dos índios seja na atividade de mineração, foram a principal fonte de expansão do território e de criação de nossa atual fisionomia geográfica, cultural e linguística.

As entradas expandiram as fronteiras da colônia, desafiando os espanhóis, ao ampliar em muito os limites territoriais traçados pelo Tratado de Tordesilhas. Basta ver que já no século XVIII, pelo Tratado de Madrid, houve um exponencial aumento do território onde hoje se situa o Brasil com base no princípio do uti possessis, pelo qual o território pertence àqueles que o ocupam, no caso, justamente os sertanista oriundos de São Paulo.   

Essas entradas podem ser entendidas como uma prolongação da atividade desempenhada pelo espírito aventureiro que lançou os portugueses à sua expansão ultramarina e que acarretou a descoberta da América. Enquanto as grandes navegações redimensionaram as fronteiras do mundo, as entradas e bandeiras criariam as condições para a interiorização da colonização e dariam a fisionomia territorial do que hoje se conhece como Brasil.

Num romance histórico, os bandeirantes surgem-nos como elementos desagregadores e retrógrados. Numa análise histórica de longa duração, cumpriram um papel decisivo e heroico na história do Brasil.

terça-feira, 1 de outubro de 2024

A Literatura de Bruno Seabra

                                                     A Literatura de Bruno Seabra




Resenha Livro – “Paulo” – Bruno Seabra – Ed. Iba Mendes

São poucas as informações disponíveis na internet acerca do escritor, jornalista e poeta paraense Bruno Henrique de Almeida Seabra (1837/1876). 

Apelidado por um crítico como o João do Rio do Pará[1], consta que a última (e possivelmente única) publicação mais ampla do escritor foi a novela “Paulo” (1861), lançada pela Editora Três dentro da  “Coleção: Obras Imortais da Nossa Literatura” no remoto ano de 1972.

Nosso escritor nasceu em 06 de outubro de 1837 a bordo de um barco, em águas paraenses (Tatuoca). Estudou as primeiras letras e o curso preparatório em Belém. Depois, matriculou-se na escola militar no Rio de Janeiro, então capital do Império. Lá publicou textos literários no Jornal Marmota Fluminense, dirigido pelo editor Paula Brito. Publicou folhetins, crônicas e poesias que aguardam há mais de um século a sua devida publicação.   

Todo esse desconhecimento pode dizer respeito à ignorância que grassa o público leitor em torno de obras dos nossos escritores do norte, cujos trabalhos estão fora do eixo tradicional da produção artística do país: sul, sudeste e alguns estados do Nordeste. Para pegarmos um exemplo de outro paraense, poderíamos citar Inglês de Sousa (1853/1918), o verdadeiro pioneiro do naturalismo literário em terras brasileiras.

(Costuma-se identificar o início do naturalismo no Brasil com os romances de Aluísio de Azevedo. Ocorre que que sua primeira obra naturalista que foi “O Mulato” data de 1881, enquanto a produção literária de Inglês de Souza data de 1875! E certamente os “Contos Amazônicos” de Souza superam em qualidade literária outros autores bem mais conhecidos do nosso naturalismo, como é o caso do pífio “A Carne” de Júlio Ribeiro).

Voltando à Bruno Seabra, sua obra consiste basicamente nos livros “As cinzas de um livro” (1859), “Flores e frutas” (1862), “O alforje da boa razão” (1870), e “Paulo” (1861).

Parece ter sido antes um poeta do que um romancista: na sua novela “Paulo”, há um estilo não afetado, natural, mas bastante poético. Passagens da história são literalmente intercaladas de cogitações do narrador que poderiam ser tidas como estrofes de um poema.

Trata-se, em todo o caso, de uma novela trágica, que remete de certa forma ao romantismo já em sua fase intermediária, byronista, que teve como principal expoente outro poeta, o paulista Álvares de Azevedo.

Há no livro de Bruno Seabra os elementos principais daquilo que didaticamente se chama de “segunda fase do romantismo” (1853/1869): o pessimismo, a tendência da fuga da realidade, em particular através do suicídio e da loucura, o saudosismo, a idealização do amor e da morte.

Há, porém, um traço da novela que antecipa as próximas etapas do desenvolvimento da literatura nacional: da história, constam exclusivamente personagens dos extratos mais baixos da sociedade, ao passo que o foco em torno das classes populares seria efetivamente uma conquista que se iniciaria bem depois, a partir de alguns romances naturalistas e que se consagraria, de fato, no modernismo em sua fase regionalista, nos conhecidos livros de Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, Jorge Amado, etc.

Paulo é filho de uma roceira rústica e de um pintor empobrecido. Aprende o ofício  das artes com o pai, mas ao invés de artista, é inicialmente encaminhado à Recife para se formar em Direito. Por falta de recursos financeiros, é obrigado à retornar à sua terra natal.

De vota ao lar, apaixona-se por Emília, a filha de um médico e comendador empobrecido por conta de uma frustrada carreira política. Por não dispor de recursos financeiros, resolve fazer uma viagem até o Rio de Janeiro, onde poderia granjear recursos para o casamento através da venda dos seus quadros. Logo vê o seu objetivo frustrado pelo desinteresse e indiferença do mecenato. Para viver do seu trabalho, o artista teve ser apaniguado por alguém ou, alternativamente, corromper a sua arte e produzir aquilo que público quer ouvir. É o se escuta de um editor para quem o poeta pede proteção:  

“Ainda mais, o povo, o senhor sabe que nós, os negociantes, só com o povo nos havemos; o povo quer rir-se, dar gargalhadas em horas de descanso, distrair-se, enfim, alegremente, e portanto nunca compra livros tristes quando quer ler. O meu amigo parece ter o seu jeito para a coisa, é só mudar de rumo, isto é, em vez de escrever queixas amorosas, escreva aventuras jocosas que façam rir até doer o umbigo, sirva-lhe de modelo este soneto de Bocage”.

Frustrado em seu intento, Paulo decide retornar ao norte. Pouco antes da sua partida, recebe uma carta do Comendador, desculpando-se e desfazendo o trato do casamento. Apareceu um pretendente de Emília com melhores condições financeiras, obrigando o zeloso pai a romper com o trato.

Posteriormente, Paulo descobre que o rompimento do pacto foi feito à revelia e contragosto de Emília que, no dia do casamento, vem a falecer pelo forte abalo sentimental de se ver definitivamente privada do seu verdadeiro amor. A desilusão amorosa se desdobra nos demais personagens da trama na loucura, no suicídio e na morte, ao estilo ultrarromântico da geração byoronista.

E por último, um último traço característico do livro é uma forte correlação entre a prosa e o verso.  Em certas passagens da novela, o romance é literalmente intercalado com a poesia.

O sentimento da saudade de Paulo quando parte de barco para a capital em busca do dinheiro para o casamento é literalmente descrita através de um poema com a forma de prosa:

“Virgem pálida, de olhos elanguescidos, que reclinas as faces sobre a mão tão alva como as penas das garças, e te deixas, à tardinha, ir adormecendo à janela, enquanto os zéfiros vão sorvendo o perfume das tranças de teus cabelos: virgem pálida, que doer é esse que te alenta o coração?

Saudade!

Ancião, que paras à beira do caminho, e arrimando-te ao bastão levantas os olhos ao velho cedro que te fica em frente, e como que o saudando murmuras — bem me lembro! bem me lembro! Que mágico doer é esse e te traspassa até o fundo do coração?

Saudade!

Marinheiro, que ao suspender do ferro, vais soltando esses pesados gemidos, que são como os estribilhos de cantigas tristes as desoras da noite ouvidos; marinheiro, que ao rigor das tempestades e calmarias embruteceste a voz como o semblante, que tristeza é essa que te alinda a fronte? Que voz é essa de entristecer os corações?

Saudade!

Saudade, página de reminiscências íntimas, que a seu tempo se inscreve no coração humano, fadou-te Deus esse mágico doer... Saudade e só saudade era o que restava e o do que se ia alentar o coração do jovem artista.”

A profunda emotividade do livro, sem um exagero romântico que torne a história pouco convincente, revela um artista muito acima da média. Trata-se de uma novela lírica, que se reveste da musicalidade e até metrificação, ao ponto de se poder dizer que é tanto prosa como poesia.



[1] J. Eustáquio de Azevedo. “Antologia Amazônica: poetas paraenses”. 1904. Pesquisa e adaptações ortográficas: Iba Mendes (2019)