terça-feira, 20 de agosto de 2024

“A Carne” – Júlio Ribeiro

 “A Carne” – Júlio Ribeiro




Resenha Livro - “A Carne” – Júlio Ribeiro – Ed. Iba Mendes

“Nós, os escritores naturalistas, submetemos cada fato à observação e à experiência; enquanto que os escritores idealistas admitem influências misteriosas que escapam à análise e permanecem por isso no desconhecido, fora das leis da natureza” (E. Zola – “O Romance Experimental”).

“A Carne” (1988) pode ser considerada a mais representativa obra naturalista da literatura brasileira.

Nem tanto pelos seus méritos literários, mas pelo fato de seu autor buscar levar até às últimas consequências o programa enunciado pelo fundador dessa corrente literária, Émile Zola (1840/1902), para quem a obra foi dedicada no prefácio.

O livro, ao seu tempo, constituiu um sucesso de público e um fracasso perante a crítica especializada.

Houve diversas publicações subsequentes ao lançamento em 1888 e até uma adaptação no cinema no ano de 1970. Por outro lado, suscitou furor e indignação na crítica pelo forte conteúdo sexual do enredo.

Já ao tempo da publicação, despertou uma polêmica na imprensa entre Júlio Ribeiro e o padre José Joaquim de Sena Freitas. Num artigo irônico intitulado “A Carniça”, o padre expressa a sua irritação perante o sensualismo predominante do texto. A protagonista da história, chamada Helena, ou Lenita, desponta como uma intelectual altiva e com fortes pendores aos prazeres sexuais, ao ponto de poder classificá-la como ninfomaníaca, o que obviamente desafiava a moral da época.

O livro foi objeto da mesma indignação de outra obra naturalista da época, qual seja, “Bom-Crioulo” (1895) de Adolpho Caminha, que, pela primeira vez, aborda o tema do relacionamento homossexual, vivenciado na história de dois marinheiros.  

Contudo, a condenação de “A Carne” (1888), num primeiro momento de tom moralista, prossegue na crítica literária subsequente pelo entendimento de que o livro levou a intencionalidade da proposta naturalista a tal limite extremo para se tornar pouco convincente. Somam-se ao juízo negativo de “A Carne” (1988) desde o marxista Nelson Werneck Sodré, até Álvaro Lins, José Veríssimo e Lúcia Miguel-Pereira. As críticas se relacionam à ideia de que o naturalismo seria uma moda passageira e muito mal assimilada em território brasileiro. Para melhor compreendê-la, faz necessário tecer alguns comentários sobre o que foi o naturalismo literário e como ele foi assimilado no mais conhecido livro de Júlio Ribeiro.

O que foi o naturalismo?

O ponto de partida do naturalismo literário deu-se na França em meados do século XIX. Está inserido no contexto histórico de afirmação do liberalismo e do iluminismo desde a Revolução Francesa de 1789 e a 1ª e 2ª Revoluções Industriais. A reestruturação da sociedade pela superação do antigo regime e a ascensão da burguesia como classe social dominante foi acompanhada pela expansão das cidades e pelo desenvolvimento dos meios de produção.

As novas indústrias do aço, do petróleo e da eletricidade engendraram um otimismo em torno da investigação científica. O racionalismo do século XVIII que serviu de base intelectual ao iluminismo é levado até às últimas consequências através das novas teorias cientificistas do século subsequente: o darwinismo social e sua teoria da evolução das espécies; a teoria da hereditariedade de Mandel; o positivismo de Augusto Comte, que afirma que o mais elevado estágio de evolução da humanidade se dá em torno justamente da afirmação do método científico.

Na literatura, o naturalismo propõe um rompimento com a tradição romântica. Em certo sentido, pode ser considerado como uma radicalização do realismo literário, que já buscava traçar uma literatura baseada na objetividade e na superação do idealismo e subjetivismo românticos. A diferença é que a objetividade naturalista é alçada à condição de ciência. Nas palavras do pai fundador do naturalismo, “fica bem entendido que todas as vezes que uma verdade é fixada pelos cientistas, os escritores devem abandonar imediatamente sua hipótese para adotar essa verdade”. (“Romance Experimental”).

 

Ou seja, o escritor precisa considerar as leis e os preceitos científicos antes de elaborar o enredo, que deve se adequar aos ditames da ciência.  Neste passo, o sujeito não é protagonista de sua própria história mas um figurante e resultado das ações do meio social e das determinações de sua natureza.

A Carne

O enredo se passa no ano de 1887 numa fazendo do interior paulista. Com a morte do doutor Lopes Matoso, sua filha Helena, então uma jovem de 22 anos, resolve mudar-se para a casa de um amigo de família, o coronel Barbosa.

A protagonista Lenita, desde a infância, destacou-se por uma formação intelectual acima da média. “Leitura, escrita, gramática, aritmética, álgebra, geometria, geografia, história, francês, espanhol, natação, equitação, ginástica, música, tudo isso Lopes Matoso exercitou a filha porque em tudo era perito: com ela leu os clássicos portuguesas, os autores estrangeiros de melhor nota, e tudo quanto a havia de mais seleto na literatura do tempo”.

A formação intelectual incomum da jovem já constitui um elemento do naturalismo. O seu interesse pela ciência irá fazê-la se aproximar do filho do coronel, ele também um cientista, mas misantropo, com 40 anos de idade, casado com mulher que conheceu numa viagem na Europa.  Ambos irão travar uma amizade pelo afeto comum pela ciência, que oportunamente irá se desdobrar numa relação afetiva irregular, dada a vigência do casamento do filho do coronel.

O relacionamento entre Lenita e Manual Barbosa (esse é o nome do filho do coronel) é estimulado pelas circunstâncias do meio, ao melhor estilo naturalista e a sua ideia de determinismo. A luxúria da natureza estimula o pendor sexual da protagonista. O cheiro doce do açúcar na moagem de cana e a natureza exuberante da fazenda estimulam a protagonista a satisfazer os desejos da carne. A primavera é relacionada à sexualidade:

“No espelho calmo do lago refletia-se a vegetação luxuriante que o emoldurava (...) tudo isso se confundia em uma massa matizada, em uma orgia de verdura, em um deboche de cores que excedia, que fatigava a imaginação. (...) Um misto de perfume suavíssimo de cheiro áspero de raízes e de seiva, que relaxava os nervos, que adormecia o cérebro”.

Além da natureza, os estímulos sociais igualmente condicionam o comportamento de Lenita e o desenvolvimento de sua sexualidade. Desperta a sua atenção, em dado momento, um casal de escravos que se evade na mata para o sexo, o que ocorre em paralelo ao ato sexual presenciado pela protagonista envolvendo um boi e uma vaca. Num determinado momento, estimula o seu sadismo (de conteúdo sexual) ao presenciar o castigo de um escravo que tentara fugir da fazenda por meio de “açoites de bacalhau”, espécie de chicote feito de couro cru retorcido, que variavam em número, conforme a gravidade da falta cometida.

A luxúria de Lenita altera a ordem comum em que o macho persegue a fêmea; na história, é Lenita quem irá voluntariamente se entregar aos braços de Manuel Barbosa. Essa situação inusitada certamente despertou o furor negativo em torno do livro, inobstante uma leitura mais atual do romance autorize uma reflexão acerca da condição feminina e a sua evolução ao longo da história mais recente.

O término do enredo é trágico: Lenita descobre a traição de Manuel Barbosa ao tempo que constata estar gravida. Abandona a fazenda para se casar com um pretendente que havia rejeitado pouco tempo antes. É o meio que encontra para escapar da inapelável condenação social de uma mulher cuja gravidez se deu fora do casamento. Já Manual Barbosa, ao descobrir o abandono de Lenita, suicida-se com veneno. Sua morte, certamente a passagem mais interessante da obra, ocorre lentamente, com a consciência superveniente do arrependimento, quando, semi-morto, percebe o desespero de seus pais.

Os personagens são reféns de suas pulsações orgânicas. Não podem se furtar aos próprios instintos. Essa realidade, confrontada com as normas sociais, engendra a tragédia e sugere a interpretação de que o escritor, mesmo mantendo a equidistância do artista naturalista, não deixou de considerar negativa e trágica a subversão da moral pela carne.  

Não se trata portanto de uma literatura engajada em torno de mudanças sociais. Sua proposta, dentro da perspectiva naturalista, é a descrição objetiva dos fatos, tal qual a do cientista que observa fenômenos no laboratório.

Bibliografia:

DIOGO, Sarah Maria Forte. “De Parto Monstruoso a Sucesso de Público: análise da recepção crítica de A Carne de Júlio Ribeiro”. Universidade Federal de Uberlândia.

sexta-feira, 9 de agosto de 2024

“Claro Enigma” – Carlos Drummond de Andrade

 "Claro Enigma” – Carlos Drummond de Andrade



Resenha Livro - “Claro Enigma” – Carlos Drummond de Andrade – Ed. Record

Quando Carlos Drummond de Andrade publicou “Claro Enigma” (1951) já havia percorrido uma longa trajetória como poeta.

Seu primeiro trabalho publicado, chamado “Alguma Poesia” (1930), foi lançado vinte anos antes; e, considerando-se que esse primeiro livro consistiu numa compilação de versos já publicados na imprensa, pode-se dizer que transcorreram quase três décadas de experiência e maturação até o livro que nos ocupamos de resenhar.

Poderíamos dizer que “Claro Enigma” (1951) é um livro de maturidade do poeta de Itabira.

Não no sentido de que as obras anteriores sejam reconhecidas como trabalhos de menor qualidade, livros de juventude, frutos de uma percepção ingênua da realidade. Mas por expressar uma ruptura com o experimentalismo típico do movimento modernista de suas primeiras obras e, especialmente, com o desencanto da política e do horizonte ideológico socialista, prenunciado na obra que o consagrou com o maior poeta brasileiro, “A Rosa do Povo” (1945).

Por marcar uma ruptura em relação às obras anteriores, faz-se necessário recapitular o itinerário do escritor para melhor caracterizar o “Claro Enigma”. (1951).

O primeiro livro de poesias publicado por Carlos Drummond de Andrade foi lançado quando o escritor tinha vinte oito anos de idade, o que nos autoriza dizer que o poeta iniciou sua trajetória de forma relativamente tardia.

Em “Alguma Poesia” (1930) vê-se uma forte influência do movimento da Semana de 1922. Há aqui a recusa de todo tipo de idealização, a aversão a todo o tipo de retórica, o humor e a ironia que despontam como formas de crítica social, o jogo de palavras que sugere experimentações linguísticas, tais quais aquelas que aparecem em “Macunaíma” (1928) de Mário de Andrade, por sinal, amigo e incentivador de primeira hora do poeta mineiro.

Em “A Rosa do Povo” (1945) escrito apenas seis anos antes de “Claro Enigma” (1951), o horizonte modernista sofre a influência da conjuntura política do pós-guerra. A derrota do Nazi-fascismo e a democratização do país com o fim da Era Vargas criam as condições para um alinhamento de diversos intelectuais ao socialismo, o que significava, àquele momento, ao Partido Comunista Brasileiro.

Já na Constituinte de 1946, o PCB elegeu nada menos do que 14 deputados, um deles o escritor baiano Jorge Amado. Outro escritor modernista que aderiu ao partido, após algum tempo de prisão durante o estado novo, foi Graciliano Ramos. E o próprio Carlos Drummond de Andrade, ao tempo de “A Rosa do Povo”, também se aproximou do Partido Comunista. No mesmo ano de 1945, o poeta deixa a chefia de gabinete de Gustavo Campanema, interventor em MG, e, a convite de Luís Carlos Prestes, figura como co-editor do diário comunista “Tribuna Popular”.

Não seria difícil de supor que a sensibilidade do poeta logo iria entrar em choque direto com o dogmatismo do PCB que, desde a sua fundação em 1922, atuou como uma sucursal do partido soviético presidido por Joseph Stálin.  

Em pouco tempo abandonou a “Tribuna Popular”. E, nas obras subsequentes ao “A Rosa do Povo” (1945), vai se notando um desencantamento que também refletia as circunstâncias histórias daquela conjuntura: aos poucos, o otimismo em torno da vitória da democracia do pós guerra vai sendo desconstituído pela Guerra Fria e o recrudescimento das hostilidades entre EUA e URSS.

Com a morte de Stálin, seu sucessor Nikita Kruschev, no XX Congresso do PC (1956), apresenta um relatório denunciando seu antecessor, o que levaria diversos grupos políticos a romperem com a orientação soviética. O desencanto de alguns, como Carlos Marighella, levaram à ruptura pela esquerda, com a defesa da revolução armada, sob o impacto e influência da guerrilha cubana. E, no caso de Drummond, a nova conjuntura o conduzirá a um novo estilo de poesia.

Nas obras anteriores, os poemas revelam o desejo de formular respostas, enquanto em “Claro Enigma” o que se busca é a formulação de perguntas. Nos seus poemas de antes imperava a liberdade formal e a oralidade. Já em “Claro Enigma” o autor retoma a preocupação com a metrificação do poema e elabora sonetos.

A nova orientação em torno de uma poesia mais formal se revela na dedicatória que o escritor faz a Américo Facó, um estudioso da língua portuguesa, para quem Drummond encaminhou os poemas para análise, antes da publicação.

E, no que toca aos propósitos da obra, ainda na introdução, o poeta cita uma frase de Paul Valéry que diz “os acontecimentos me aborrecem”.

A frase de abertura já denota uma mudança de orientação.

Em “A Rosa do Povo” e obras anteriores, a poesia gira em torno do imediato, faz descrições de acontecimentos que sugerem uma sucessão de imagens que remetem às cenas de cinema:

“Uma flor nasceu na rua!

Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.

Uma flor ainda desbotada

ilude a polícia, rompe o asfalto.

Façam completo silêncio, paralisem os negócios,

garanto que uma flor nasceu (“A Flor e a Náusea”)

 

Stop.

A vida parou

ou foi o automóvel? (“Cota zero”)

 

Em “Claro Enigma”, os acontecimentos são substituídos pela contemplação, sem a imediata preocupação (política) do agir:

“Passarei a vida entoando uma flor, pois não sei cantar

Nem a guerra, nem o amor cruel, nem os ódios organizados,

E olho para os pés dos homens, e cismo.

Escultura de ar,  minhas mãos

Te modelam nua e abstrata

Para o homem que não serei.” (Contemplação no banco).

 

Nos poemas de maturidade há a aceitação dos limites da expressão poética por conta da não tangibilidade da realidade. Os versos fazem remissão ao sonho embaralhado com a realidade. Há a predominância da incredulidade, da melancolia e do niilismo.

A natureza metafísica da poesia se revela numa conversa do poeta com o fantasma no poema “Perguntas”:

“Numa incerta hora fria

Perguntei ao fantasma

Que força nos prendia,

Ele a mim, que presumo

Estar livre de tudo

Eu a ele, gasoso,

Todavia palpável

Na sombra que projeta

Sobre meu ser inteiro: (...)”.  

 

Não seria exato, contudo, dizer que a poesia de “Rosa do Povo” é engajada e politicamente comprometida e a poesia de “Claro Enigma” seria uma ruptura total com os escritos anteriores.  

A complexidade e as nuanças da poesia de Drummond não autorizam nem remotamente uma percepção assim tão esquemática. E o escritor, em todo o caso, jamais poderia ser considerado como um panfletário de esquerda.  Há ainda elementos de continuidade que informam todas as fases do escritor.

Em todo o trabalho do poeta mineiro verifica-se uma profunda e comovedora sensibilidade, seja ao formular perguntas filosóficas ou descrever acontecimentos. Essa sensibilidade possibilita criar um forte laço de intimidade com o leitor. As emoções do poeta são deflagradas pela experiência diante dos sentimentos do mundo, nome que dá título a uma das suas obras.  A ironia e o humor também perpassam as diversas fases do escritor. E, na construção da arte, a poesia, de fato, nasce dos sentimentos, ela está por isso viva dentro do poeta, nem sempre se torna visível, mas ainda assim inunda a sua alma.  Como diz um poema de seu primeiro livro:

Poema

Gastei uma hora pensando em um verso

que a pena não quer escrever.

No entanto ele está cá dentro

inquieto, vivo.

Ele está cá dentro

e não quer sair.

Mas a poesia deste momento

inunda minha vida inteira. (“Poesia”).

sábado, 3 de agosto de 2024

“Dona Guidinha do Poço” – Manuel de Oliveira Paiva

“Dona Guidinha do Poço” – Manuel de Oliveira Paiva 



Resenha Livro - “Dona Guidinha do Poço” – Manuel de Oliveira Paiva – Ed. Iba Mendes

“Dona Guidinha do Poço é uma obra prima da arte regional. Sem as pretensões universalistas de muitos livros dos grandes centros, esse romance encanta pela maneira como focaliza os traços arcaicos do mundo interiorano. Manuel de Oliveira Paiva acreditava que retratar a própria terra basta para atribuir dignidade ao trabalho literário.”. (TEIXEIRA, Ivan. “A modernidade de Dona Guidinha”. Prefácio.).

Manuel de Oliveira Paiva é um exemplo de escritor que, pela morte precoce, não pôde dar vazão e desenvolver ao máximo o seu talento literário. Tratou-se de uma promissora carreira literária, interrompida antes do tempo pela morte por tuberculose, quando o escritor tinha trinta e um anos de idade.

Nessa curta carreira, lançou apenas dois livros.

O primeiro romance chama-se “A afilhada” (1889) e se passa no ambiente urbano de Fortaleza, cidade natal do escritor.  

 E “Dona Guidinha do Poço” (1890), a sua obra prima, que retrata um crime conjugal real, ocorrido no sertão do Ceará.

Escreveu ainda contos e crônicas jornalistas. Participou dos movimentos em prol da República e da abolição da escravatura. Desenvolveu uma literatura de tipo social e, na imprensa, defendia o naturalismo literário, então uma novidade, como a via que artistas como ele deviam trilhar.  

Manuel de Oliveira Paiva veio de família humilde. Seu pai era um artesão, responsável por projetar igreja e edifícios  na cidade de Fortaleza. Pertencia a um setor social remediado, uma nova classe média citadina, num momento em que ainda emergia a capital do Ceará. Alfabetizou-se num seminário religioso, onde ficou apenas por um ano. Consta ter sido expulso por se recusar a denunciar um colega infrator das regras do claustro.

Aos quinze anos, mudou-se para o Rio de Janeiro a fim de se matricular na Escola Militar. Isso foi no ano de 1877, poucos anos após o término da Guerra do Paraguai (1864/1870), momento em que as forças armadas se municiavam das ideias abolicionistas e republicanas que ensejariam as grandes transformações do país de 1888 e 1889.

A guerra fortaleceu o exército como instituição autônoma e independente, e marcou o início do fim da monarquia. A participação de negros egressos do cativeiro nas forças armadas tem relação direta com o sentimento abolicionista. O Brasil indenizou proprietários que libertaram escravos para fins de luta na guerra, com a condição de que os libertos se alistassem imediatamente. Em áreas próximas ao conflito, os escravos aproveitaram para escapar e alguns escravos fugitivos se ofereceram para o exército. Havia o fato de negros, pardos e brancos lutarem ombro a ombro contra o inimigo comum. Juntos, todos esses efeitos ajudaram a ruir a instituição da escravidão. É certo que o influxo destas novas ideias republicanas e abolicionistas na escola militar impressionou o jovem escritor, influenciando o seu trabalho como jornalista e escritor.  A sua origem social humilde também deve ser relacionada com o seu ponto de vista político e literário.  

O romance “Dona Guidinha” foi encontrado no espólio de Oliveira Paiva, após a sua morte, e foi publicado por amigos, de forma incompleta, na imprensa cearense em 1890. Passaram-se sessenta anos até o livro ser “descoberto” pela crítica literária Lúcia Miguel Pereira no ano de 1952. Foi pela primeira vez publicado de forma integral e desde então passou a pertencer ao rol das grandes obras literárias brasileiras.   

Ou seja, até meados do século passado, o nosso escritor era apenas conhecido em seu Estado natal, onde efetivamente ocupou uma posição de destaque em torno do “Clube Literário”, movimento intelectual por ele fundado. Também colaborou num jornal local chamado “O Libertador”, escrevendo contos e crônicas. Foi talvez o mais talentoso escritor de um pequeno grupo de pensadores e artistas daquela província distante do centro cultural do Império, com reduzido número de leitores, motivo pelo qual passou a maior parte do tempo apenas conhecido no Ceará.

O seu mais importante romance se baseia numa tragédia real envolvendo uma rica fazendeira de Quixeramobim, chamada Maria Francisca de Paula Lessa, cúmplice do assassino de seu marido.

Na história, a protagonista, Dona Guidinha, é uma matrona que preside os trabalhos de uma fazenda chamada Poço da Moita no sertão cearense. Foi a rica herdeira de um capitão mor, que lhe deixou como espólio, além das terras, muitas peças de ouro, prata e cobre.

Dona Guidinha se revela como uma sertaneja de gênio forte, ciosa e centralizadora do seu poder. Não teve filhos, nem foi namoradeira, quando jovem, denotando uma certa altivez masculina no espírito. É respeitada pelos escravos e agregados, além de ter influência política junto ao partido conservador. Casa-se com o major Joaquim Damião de Barros (Quimquim), um homem cujo gênio se opõe por completo ao da sua mulher. Por ser de origem pobre, dependia do nome e da riqueza da Dona Guidinha, se submetendo ao poder irresistível da sua mulher. Não tinha a força espiritual da mulher e hesita diante da matriarca do Poço da Moita.

   A situação familiar se altera após a chegada à Fazenda de Secundino, um sobrinho de Joaquim que fugira do Recife, por ter sido acusado como mandante de crime de homicídio. Acolhido no Poço da Moita, desperta a paixão de Dona Guidinha e com ela vive um romance ilícito.  O caso extraconjugal aos poucos vai despertando a atenção dos moradores, até ao ponto do escândalo.

O major desconfia do caso, após escutar rumores e insinuações de moradores. Chega a pensar em se matar, mas o seu espírito recalcitrante o impede de levar adiante a resolução extrema. Em diligência à capital, entra em contato com o o bispo, com a finalidade de validar o seu divórcio. Estamos em meados do século XIX, momento em que a separação conjugal era uma medida mais do que excepcional; em regra, a traição era resolvida com o assassinato da consorte, alternativa inalcançável ao espírito fraco de Quimquim.

A matriarca descobre os intentos do seu marido e, como vingança, contrata um matador, que sorrateiramente mata o major. A morte sub-reptícia, através de uma facada nas costas, remete à violência dos cangaceiros.

A tragédia se encerra com a prisão de Dona Guidinha e o colapso da fazenda do Poço da Moita.

O romance regionalista, ao tempo de “Dona Guidinha do Poço”, não era exatamente uma novidade. Dele já havia se ocupado José de Alencar, outro cearense, por exemplo. Contudo, é certo que o autor de Iracema retratou a realidade através dos livros que leu, ao passo que Oliveira Paiva retrata o sertão cearense de acordo com aquilo que viu, escutou e experimentou.  Neste passo, estaria menos próximo de Alencar e mais próximo de Franklin Távora, que polemizava com José Alencar justamente pela exigência de se conhecer e experimentar a vida que pretende retratar na literatura.

A arte de Manuel de Oliveira Paiva, neste sentido, é telúrica.

Sua descrição da terra tem um tom lírico, é uma poesia que vem da terra, e dessa forma, ele já prenuncia o modernismo regionalista, do qual foram expoentes Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, Jorge Amado e, particularmente, o mais telúrico deles: José Lins do Rego.

O seu sertão não é apenas um rol de descrições geográficas; é antes parte de uma paisagem que projeta o estado de espírito dos personagens. Aquele mundo de retirantes, escravos, fazendeiros, bispos e bacharéis se misturam com o cenário de aridez, as pastagens do gado, as pequenas vilas e cidades. Dentro da proposta naturalista, o sertão e o sertanejo foram um quadro único, são indivisíveis.