terça-feira, 27 de dezembro de 2022

“História do Brasil – Volume I” – Robert Southey

 “História do Brasil – Volume I” – Robert Southey




 

Resenha Livro - “História do Brasil – Volume I” – Robert Southey – Edições do Senado Federal – Volume 133-A.

 

Robert Southey (1774 – 1943) foi historiador e poeta inglês, ligado ao movimento literário romântico britânico.

 

Entre 1810 e 1819 o escritor lançou a sua “História do Brasil” em três volumes, que contêm cerca de 2000 páginas e que tratam dos primeiros contatos dos colonizadores na costa do Brasil (Séc. XV) até a chegada da Família Real Portuguesa à América, no ano de 1808.

 

Trata-se do primeiro livro de História do Brasil escrito de acordo com formas e técnicas modernas de pesquisa, ou seja, conforme análise de documentação primária, cartas e crônicas de viagem, obtidas especialmente entre 1800 e 1801, quando Southy esteve viajando em Portugal.

 

Para se ter uma ideia do pioneirismo do escritor britânico e sua importância para a cultura nacional, basta dizer que a obra de Varnhagen, considerada quase consensualmente como o ponto de partida da historiografia brasileira, data de 1854, quando do lançamento de “História Geral do Brasil”. Quase cinco décadas após o lançamento da História do Brasil de Southey, portanto.

 

A importância da intervenção britânica no desenvolvimento da história do Brasil ao longo do século XIX explica em certa medida o interesse dos ingleses no estudo da evolução histórica brasileira, nossa trajetória, nossas instituições políticas e nossa estrutura econômica. Foi no contexto das Guerras Napoleônicas que uma esquadra militar britânica viabilizou a transferência da sede do Império Português para o Rio de Janeiro. O fim do exclusivismo comercial, com a abertura dos portos no ano de 1808, favoreceu particularmente a Inglaterra, que passou a ser a principal credora e fiadora dos negócios portugueses (e brasileiros) até a nossa independência em 1822. E após a independência política, pouca dúvida há sobre a dependência econômica brasileira em relação aos ingleses, bem como a intervenção britânica em torno de questões internas brasileiras, como as medidas para compelir o fim do tráfico de escravos, com objeto de viabilizar um mercado de consumo para produtos britânicos. É neste contexto de maior participação inglesa nas questões brasileiras que surge a obra em análise.

 

Para escrever a sua história, Southey contava com um acervo de 14.000 livros e documentos relacionados à Portugal, Espanha e a América luso-hispânica. Sua pretensão seria, na verdade, compor uma grande História de Portugal, envolvendo volumes específicos tratando das colônias em Ásia, África e América. Nunca chegou a concluir a tarefa, mas legou aos brasileiros a sua primeira História escrita de acordo com métodos de pesquisa modernos.

 

De sua própria obra, diz o historiador:

 

“Seria faltar à sinceridade que vos devo, esconder que minha obra, daqui a longos tempos, se encontrará entre as que não são destinadas a perecer; que me assegurará ser lembrado em outros países que não o meu; que será lida no coração da América do Sul e transmitirá aos brasileiros, quando eles se tiverem tornado uma nação poderosa, muito da sua história que de outra forma teria desaparecido ficando para eles o que é para a Europa a obra de Heródoto”.

 

Não deixa de ser curioso ler uma história rica de detalhes acerca das condições de vida dos primeiros colonizadores, confrontados com tribos indígenas antropofágicas, suas guerras e suas alianças militares, seus hábitos alimentares e suas crenças religiosas, tendo em vista se tratar de um escritor que nunca colocou os seus pés no Brasil.

 

Em todo o caso, pelo fato de pioneiramente ter tido acesso a uma série de fontes primárias,  como as crônicas dos escrivãos das primeiras expedições da América, Southey, um historiador romântico, nos apresenta uma história profundamente realista. Ou, ao menos, mais realista do que muitos livros escritos por pesquisadores contemporâneos, que, sob o pretexto de se “criticar” tais fontes primárias como parte de uma história “oficial”, criam em contrapartida uma história ideológica, cheia de maniqueísmos, baseada em preconceitos que dizem ser a civilização brasileira o fruto do estupro e da violência pura e simples de brancos contra pretos e índios.

 

Ao se confrontar estas narrativas mais recentes com os documentos primários, cartas e crônicas do século XV e XVI, verificamos se tratar o empreendimento colonial de situação muito mais complexa e contraditória do que a mera dominação de um povo pelo outro. A superioridade militar dos europeus pelo uso da pólvora não raro era suplantada pelo conhecimento geográfico e melhor adaptação dos índios às condições locais, incluindo alimentação, clima e recursos da natureza para subsistência e cuidados com saúde. Houve igualmente momentos em que conflitos foram substituídos por alianças, sem prejuízo do desenvolvimento de um comércio que era promovido mesmo em tempos de guerra.  Não se tratou, obviamente, de um “genocídio indígena” perpetrado por europeus imbuídos de má fé, mas de um longo processo histórico de assimilação, diálogo e conflito, tendo como eixo a intervenção de elementos mediadores das duas civilizações representados na figuras de degredados e náufragos que se alinhavam às tribos locais e delas aprendia a língua e o costume para posterior auxílio dos colonizadores. Foi de particular destaque no empreendimento colonial não o genocídio mas a  miscigenação e a conformação de um novo povo mameluco, que andava descalço, falava tupi, dormia em redes e se configurada como ponto de partido daquilo que hoje se entende como povo brasileiro.

 

OS PRIMEIROS CONTATOS

 

“1502 - Belo era o país e abundante de quanto podia desejar o coração humano: a brilhante plumagem das aves deleitava os olhos dos europeus; exalavam as árvores inexprimíveis fragrâncias, destilando todas as virtudes destas plantas, nada impediria o homem de gozar de vigorosa saúde até à extrema velhice. Se o paraíso terrestre existe em algum lugar, não podia ser longe dali”

 

O ponto de partida desta História do Brasil dá-se através da descrição dos primeiros contatos da costa do Brasil na expedição de Yanez Pizon, que já acompanhara Colombo na sua primeira viagem à América, como Comandante e Capitão. Desta viagem chegaram-nos os relatos das primeiras entrevistas de europeus com os indígenas, na região de Cabrália, ao sul do estado da Bahia.

 

À meia légua da praia, os viajantes europeus puderam observar cerca de vinte indígenas que se haviam reunidos armados de arco e flecha, apercebidos para a defesa, mas sem intenção de procederem como inimigos, salvo vendo-se em perigo.

 

Efetuou-se amigável troca de presentes: os europeus ofereceram uma carapuça vermelha, um capuz de linho e um chapéu preto recebendo a seu turno dois adornos de cabeça feitos de pena, e um enorme fio de continhas, que pareciam pérolas de inferior qualidade. Os europeus, por acharem que estavam nas índias do oriente, tentaram se comunicar de acordo com a língua daquelas paragens, razão pela qual não foram compreendidos.

 

 

Desde os fins do século XIV, os portugueses lançavam-se do expediente de remeter degredados para a costa da África, Ásia e, posteriormente, América, com a finalidade de viabilizar o empreendimento colonial. Lançados à praia, estes degredados, quando tinham a sorte de sobreviver, aprendiam a língua dos nativos e conheciam a geografia local, servindo posteriormente como guias em favor de futuras embarcações.

 

Decisivo foi a intervenção destes pioneiros: não seria possível à Martim Afonso de Souza viabilizar a fundação da colônia de São Vicente sem os auxílios de João Ramalho, um degredado português que em terras paulistas casou-se com a filha do chefe indígena Tibiriçá e tornou-se ele próprio uma das lideranças tupis. Dos muitos filhos mestiços de João Ramalho e a índia Bartira conformou-se as primeiras populações do futuro Estado de São Paulo.

 

Papel semelhante foi desempenhado na Bahia pelo Caramuru ou Diogo Álvares Correia. Consta que era um náufrago de embarcação francesa que se envolveu com tribos tupinambás ao ponto de se tornar um chefe indígena, tal qual João Ramalho. Conhecedor dos costumes, da língua e da geografia local, facilitou o contato entre os primeiros missionários e colonizadores europeus e os povos indígenas da Bahia.

 

“O primeiro, que na Bahia se estabeleceu, foi Diogo Álvares, natural de Vianna, mancebo e fidalgo, que com o espírito empreendedor, que então caracterizava os seus conterrâneos, embarcara, buscando fortuna em terras estrangeiras. Naufragara ele nos baixos do banco da Bahia, que os naturais chamam Mairagiqui. Parte da gente se perdera, e o resto só escapara àquela morte, para sofrer outra, mais horrível: os selvagens os comeram. Viu Diogo que outra esperança não lhe restava se salvar a vida, senão tornando-se para estes selvagens o mais útil que pudesse. Trabalhou pois em salvar coisas do casco naufragado, e com elas lhes granjeou as boas graças. Entre outros objetos teve a felicidade de trazer para a terra alguns barris de pólvora e um mosquete, que ele na primeira ocasião que teve, pôs em estado de servir, depois que seus senhores voltaram à aldeia, e um dia, que se lhe ofereceu favorável oportunidade, na presença deles matou uma ave. Mulheres e crianças clamariam: Caramuru, Caramuru! que seria dizer homem de fogo (...)”.  

 

Por óbvio, as tribos indígenas variavam entre alguma hospitalidade e a mais decidida oposição violenta ao empreendimento colonial europeu. A conquista do novo território encontrava a oposição de tribos ciosas de manter íntegro o seu território e suas fontes de subsistência, especialmente quando os europeus demandavam por abastecimento de água e alimentos, se não por meio do escambo, por intermédio da violência e destruição.

 

A antropofagia é tema reiterado nos documentos, variando a forma como era praticada de tribo para tribo. Quando da chegada dos Jesuítas, junto com o primeiro governador geral o Brasil Thomé de Souza (1549), puderam os missionários apurarem que os índios não se opunham tanto a mudar suas convicções religiosas pagãs tanto quanto os hábitos de comer gente. Em geral, a antropofagia era associada a rituais festivos, associados à guerra entre as tribos e era promovida dentro de um espírito de vingança:

 

“Tinham os selvagens aprendido a olhar a carne humana como a mais preciosa das iguarias. Por mais delicioso porém que se reputassem estes banquetes, o maior sabor vinha-lhes sempre da vingança satisfeita; era este sentimento, e o pundonor a ele ligado, que os jesuítas acharam mais difícil de extirpar. Da vingança tinham os indígenas brasileiros feito sua paixão predominante, exercendo-a pelo mais mesquinho motivo, para com os que davam pasti e força a uma propensão já por si assaz forte. Comiam o réptil que os molestava, não brincando, como o macaco, mas confessadamente pelo gosto de vingança. Se um dava uma topada em uma pedra, enfurecia-se contra ela, e mordia-lhe como um cão; se uma seta o vinha ferir, arrancava-a e trocava-lhe a haste”.

 

Outros aspectos da vida dos índios são mencionados de forma pormenorizada no livro: os hábitos alimentares predominando a mandioca dentre os índios da américa portuguesa e o milho dentro os da américa espanhola; a divisão sexual do trabalho e o papel das mulheres, em geral relacionados ao cultivo da terra e cuidados domésticos enquanto a caça, a pesca e a guerra eram atividades masculinas; os mitos e as crenças religiosas, que eram muito frequentemente relacionadas a superstições que justificavam práticas bárbaras, como o assassinato de parentes de caciques e pessoas importantes, sob o entendimento de que estes entes fariam companhia ao falecido na dimensão dos mortos.

 

Neste primeiro Volume da História do Brasil, Robert Southey trata dos primeiros contatos dos europeus com a costa brasileira até a expulsão dos holandeses de Pernambuco em meados do Século XVII.

 

Trataremos numa próxima resenha dos demais volumes da obra do historiador britânico.

segunda-feira, 28 de novembro de 2022

“Viagem ao Céu” – Monteiro Lobato

 “Viagem ao Céu” – Monteiro Lobato




 

Resenha Livro - “Viagem ao Céu” – Monteiro Lobato – Ed. Biblioteca Azul

 

José Bento Renato Monteiro Lobato desde criança desenvolveu a atividade literária. Nascido na cidade de Taubaté/SP em 18 de abril de 1882, ainda na escola se dedicava a escrever histórias e criar jornais.

 

É provável que seu trabalho mais conhecido do público tenha sido o da literatura infantil, a criação da Turma do Sítio do Pica Pau Amarelo, da boneca Emília, dos primos Narizinho e Pedrinho, do Visconde de Sabugosa, do porquinho Marquês de Rabicó, da Dona Benta e da Tia Nastácia.

 

Além da literatura infantil, Monteiro Lobato produziu artigos, críticas literárias, crônicas e um único romance, denominado o “Presidente Negro”, publicado em 1926.

 

Também teve participação pessoal em movimentos políticos nacionalistas, em especial na defesa na nacionalização do Petróleo – neste caso foi pioneiro, tendo sido preso em março de 1941 durante o Estado Novo por ter enviado carta a Getúlio Vargas e ao general Góis Monteiro, chamando atenção para  “displicência do sr. Presidente da República, em face da questão do petróleo no Brasil, permitindo que o Conselho Nacional do Petróleo retarde a criação da grande indústria petroleira em nosso país, para servir, única e exclusivamente, os interesses do truste Standard-Royal Dutch”.

  

A literatura lobatiana dedicada ao público infantil surge após o escritor de Taubaté já ter sido consagrado como crítico de arte, jornalista e autor de livros para o público adulto. Seu primeiro livro de contos, denominado Urupês (1918), foi ao mesmo tempo bem recebido pela crítica e por um público extenso: foi um sucesso de vendas. Certamente, este escritor foi dos poucos que souberam articular beleza estética na sua descrição do interior paulista e do caipira e uma simplicidade de linguagem que fizeram de seus livros também conhecidos do grande público.

 

“Viagem ao céu” foi publicado no ano de 1933, logo após o lançamento de “Reinações de Narizinho” (1932), havendo uma continuidade entre as histórias perceptível através do personagem Visconde de Sabugosa.


Efetivamente, o sábio morrera no livro anterior, dele restando um toco que Emília cuidadosamente guardou em sua canastrinha. Desta vez, Tia Nastácia inova, ao refazer o Visconde com sabugo de milho vermelho. Por causa da cor ruiva do novo personagem, as crianças passam a chamá-lo de Doutor Livingstone, que foi um explorador britânico que se embrenhou pelo interior da África no século XIX.

 

A Viagem ao Céu se passa no mês de abril, quando o clima agradável da fazenda faz com que as crianças instituam o mês das “férias do lagarto”:

 

“Já que o mês de abril é o mais agradável de todos, escolheram-no para o grande ‘repouso anual’ – o mês inteiro sem fazer nada, parados, cochichando como lagarto ao sol! Sem fazer nada é um modo de dizer, pois que eles ficavam fazendo uma coisa agradabilíssima: vivendo! Só isso. Gozando o prazer de viver”.

 

Este clima de “férias de lagarto” se torna o momento perfeito para contemplar as estrelas e os planetas do céu, vistos com nitidez nas noites de ócio na Fazenda do Pica Pau Amarelo.

 

Após ouvir as explicações de Dona Benta sobre o nome e a origem das constelações estelares e sistemas planetários, as crianças se mobilizam para elas próprias se dirigirem ao espaço e conhecer estrelas, planetas e cometas pessoalmente.

 

Para isso, servem-se do pó de pirlimpimpim.

 

Bastava uma simples aspirada naquela poeira mágica para num instante se deslocarem para os cantos mais remotos do universo.

 

Da aventura participa até Tia Nastácia, que fora ludibriada pelas crianças, ao aspirar o pó de pirlimpimpim pensando se tratar de rapé. Assustada após sua viagem à Lua, resmunga os seus credos e faz o “pelo sinal” a todo instante.   

 

Da viagem participa também o Burro Falante, personagem que destoa por completo daquilo que se costuma pensar sobre burros. Chama as pessoas pelo nome completo, usa palavras difíceis, fala com gravidade e de maneira sentenciosa, ou seja, com a mesma solenidade com que o juiz profere uma sentença. Por isso é apelidado de Conselheiro pelas crianças.

 

Integram, por fim, a aventura a boneca Emília, sempre disposta a gazetear, dando frequentes sinais de bravura, como no Planeta Marte, onde se dispõe a observar de perto os marcianos e os seus “crocotós”; Pedrinho, que lidera o  grupo por ter ouvido com atenção as lições de astronomia de sua avó; Narizinho e o Visconde, convertido a Doutor Livingston.

 

O primeiro destino do grupo é a Lua, ou aquilo que as crianças convencionam chamar de Lua, após uma votação dos viajantes para se decidir aonde o pó mágico primeiro os havia levado.

 

Lá se deparam com São Jorge e o seu Dragão. O santo, que viveu em Capadócia nos tempos de Diocesano, é convocado pelo Rei da Líbia a salvar sua filha das garras do animal feroz. Posteriormente, é convertido ao cristianismo e por isso é morto e transformado em santo. Desde a sua morte, vive na Lua acompanhado do Dragão já velhinho e inofensivo, mas nem por isso menos assustador aos olhos de Tia Nastácia.

 

Da Lua, as crianças viajam para Marte onde conhece os marcianos, pequenos seres que são incapazes de ver, mas captam a realidade através de uma anteninha.

 

Extraterrestres mais evoluídos, os viajantes conhecerão no Planeta Saturno:

 

“- Mas continue. Como são os habitantes de Saturno?

- Ninguém sabe ao certo, mas os homens da ciência imaginam. Acham que devem ser criaturas tão diferentes de nós que nem podemos compreendê-las. Uns seres gelatinosos, transparentes, adiantadíssimos, com órgãos diferentes. Devem alimentar-se de fluidos e não de coisas líquidas ou sólidas, como nós. E terão muitos mais órgãos dos sentidos do que nós. Nós não passamos de coitadinhos. Só temos cinco sentidos. Cinco, imagine que pobreza! Eles lá devem ter dez, vinte, cem... Para saber as coisas, nós precisamos estudar. Eles vibram no ar “órgão da ciência” e já ficam sabendo”

 

As reinações (palavra que significa bagunça) das crianças chamam atenção dos mais renomados astrônomos do mundo, que se surpreendem vendo de seus telescópios um burro viajar na calda de um cometa, um sabugo de milho vermelho girando como um satélite ao redor da Lua e manchas nos anéis de Saturno deixadas pelas crianças, após lá brincarem de escorregar.

 

Os sábios montam uma comitiva ao Sítio de Dona Benta para indicar que as perturbações do sistema planetário decorrem das estripulias de dois meninos, uma boneca, um burro e um sabugo de cartola, todos pairando no éter do espaço.

 

Após o retorno das crianças ao Sítio, o confronto entre o mundo da imaginação das crianças e o mundo da realidade dos adultos se vê instaurado: o chefe da comissão de cientista não acredita na história contada pelas crianças, gerando a revolta da boneca Emília, que diz:

 

- Estou vendo que os senhores marmanjos não acreditam em nossa história. Estamos pagos. Nós também não acreditamos nas suas “hipóteses” muito sem jeito...

 

Os astrônomos não esperavam por aquela resposta, de modo que abriram de novo as bocas. Uma boneca que falava quem nem gente e sabia o que era hipótese! Maior assombro era impossível. Mas em vez de apenas assombrar-se, só sem mais nada, o maioral caiu na asneira de sorrir de novo, com superioridade ariana e de dizer, como que ofendido:

 

- Bravos! Com que então não acredita em nossas hipóteses? Muito bem. E que vem a ser hipótese, senhora bonequinha impertinente?

Emília pôs as mãos na cintura.

 

- Hipótese são as petas que os senhores nos pregam quando não sabem a verdadeira explicação duma coisa e querem esconder a ignorância, está ouvindo, seu cara de coruja? Pouco se me dá que os senhores acreditem ou não que estivemos ou não estivemos na Via Láctea. Estivemos e acabou-se. E estivemos também em Marte e Saturno, e até brincamos de escorregar naqueles anéis. E na Lua conversamos com um santo muito bom, que ouvia tudo quanto dizíamos sem esses sorrisos que estamos vendo nessas reverendíssimas caras cheias de crocotós dos ruins...”

 

Esta clivagem entre o mundo da realidade e da fantasia é representativo de toda a literatura infantil de Monteiro Lobato. A forma lúdica com que as crianças encaram o mundo é frequentemente tratada pelos adultos como algo sem importância, especialmente para aqueles que já se esqueceram das suas próprias fantasias infantis. Em se tratando do fantástico, há o acréscimo de que, na opinião do escritor de Taubaté, este mundo da fantasia não deixa de ser realidade, já que efetivamente existe na imaginação de milhões e milhões de crianças.

segunda-feira, 14 de novembro de 2022

O Picapau Amarelo – Monteiro Lobato

 O Picapau Amarelo – Monteiro Lobato




 

Resenha Livro - O Picapau Amarelo – Monteiro Lobato – Ed. Biblioteca Azul.

 

“O Sítio de Dona Beta foi se tornando famoso tanto no Mundo da Verdade como no chamado Mundo de Mentira. O Mundo de Mentira, ou Mundo da Fábula, é como a gente grande costuma chamar a terra e as coisas do País das Maravilhas, lá onde moram os anões e os gigantes, as fadas e os sacis, os piratas como o Capitão Gancho e os anjinhos como Flor das Alturas. Mas o Mundo da Fábula não é realmente nenhum mundo de mentira, pois o que existe na imaginação de milhões e milhões de crianças é tão real como as páginas deste livro. O que se dá é que as crianças logo se transformam em gente grande e fingem não mais acreditar no que acreditavam”.  

 

José Bento Renato Monteiro Lobato desde criança desenvolveu a atividade literária. Nascido na cidade de Taubaté/SP em 18 de abril de 1882, ainda na escola se dedicava a escrever histórias e criar jornais.

 

É provável que seu trabalho mais conhecido do público tenha sido o da literatura infantil, a criação da Turma do Sítio do Pica Pau Amarelo, da boneca Emília, dos primos Narizinho e Pedrinho, do Visconde de Sabugosa, do porquinho Marquês de Rabicó, da Dona Benta e da Tia Nastácia.

 

Além da literatura infantil, Monteiro Lobato produziu artigos, críticas literárias, crônicas e um único romance, denominado o “Presidente Negro”, publicado em 1926.

 

Também teve participação pessoal em movimentos políticos nacionalistas, em especial na defesa na nacionalização do Petróleo – neste caso foi pioneiro, tendo sido preso em março de 1941 durante o Estado Novo por ter enviado carta a Getúlio Vargas e ao general Góis Monteiro, chamando atenção para  “displicência do sr. Presidente da República, em face da questão do petróleo no Brasil, permitindo que o Conselho Nacional do Petróleo retarde a criação da grande indústria petroleira em nosso país, para servir, única e exclusivamente, os interesses do truste Standard-Royal Dutch”.

 

A literatura lobatiana dedicada ao público infantil surge após o escritor de Taubaté já ter sido consagrado como crítico de arte, jornalista e autor de livros para o público adulto. Seu primeiro livro de contos, denominado Urupês (1918), foi ao mesmo tempo bem recebido pela crítica e por um público extenso: foi um sucesso de vendas. Certamente, este escritor foi dos poucos que souberam articular beleza estética na sua descrição do interior paulista e do caipira e uma simplicidade de linguagem que fizeram de seus livros também conhecidos do grande público.

 

O Picapau Amarelo foi publicado no ano de 1939, tendo como subtítulo “O Sítio de Dona Benta, um mundo de verdade de mentira”.

 

Certo dia, Dona Benta recebe uma carta do Pequeno Polegar, que lhe diz da intenção dos habitantes do Mundo da Fábula de se mudarem para o Sítio do Picapau Amarelo.

 

Do Mundo das Maravilhas vêm os personagens que universalmente marcam o imaginário infantil: Peter Pan e o Capitão Gancho; Branca de Neve e os Sete Anões; a Gata Borralheira; Aladim e a famosa Alice do País das Maravilhas. Ao grupo se juntam outros personagens que expressam o aspecto didático e educativo dos livros infantis de Monteiro Lobato. Da mudança participam Dom Quixote, e seu escuteiro Sancho, e personagens da mitologia grega: a Medusa com os seus cabelos de cobra; os Centauros, meio homens e meios cavalos; as sereias; os sátiros pés de bode e as ninfas.

 

E como recepcionar todas estas pessoas no Sítio?

 

Dona Benta decide comprar as fazendas de seus vizinhos, não sem antes contar com a esperteza de Emília que, junto com o Visconde de Sabugosa, ludibriam os proprietários gananciosos (que queriam vender os terrenos a preços exorbitantes) dizendo que Dona Benta faria a maior criação de feras, com duzentos rinocerontes ferocíssimos, cento e cinquenta tigres de bengala, conquanto todos sabem que animais caseiros como burros, bois e cavalos, têm verdadeiro horror pelas grandes feras. O medo da desvalorização dos terrenos faz os vizinhos gananciosos deixarem de querer vender suas propriedades a preços injustos.

 

Para não transformar o Sítio do Pica Pau Amarelo num verdadeiro hospício, fica combinado que as terras das fábulas ficariam nestes terrenos recém adquiridos, com a divisão entre os lotes com cercas de seis fios de arame farpado e uma porteira com cadeado, cuja chave ficaria aos cuidados do sapiente Visconde de Sabugosa. E, de resto, Quindim, o rinoceronte, ficaria responsável por fazer a guarda do Sítio, indo e voltando em torno da linha divisória, fazendo guarda com o seu ameaçador chifre.

 

Esta oposição entre o mundo real e o mundo da fantasia, como é de se esperar, é logo rompida. A todo momento, ocorre, “causos” no mundo da Fantasia que exigem a atuação de Pedrinho, Emília e sua turma.

 

A começar por Dom Quixote, que de tanto procurar moinhos de vento, esquece de trazer uma casa e pede hospedagem no sítio. Sancho, seu escudeiro e conhecido pelo amor pela comida, vai se deliciando com os bolos e frangos de Tia Nastácia e acaba com os mantimentos da dispensa: gula igual ao do escudeiro, só a do porquinho Marquês de Rabicó.

 

“Nesse momento Tia Nastácia entrou com a bandeja de café com mistura – bolinhos, torradas, pipocas. Dom Quixote tomou três xicaras de café, comeu doze bolinhos, seis torradas e uma peneirada de pipocas. Estava verdadeiramente faminto, o coitado. Aquilo fez-lhe bem, porque logo em seguida cruzou as pernas, abriu os braços e, com as mãos seguradas nos punhos da rede, disse, correndo os olhos pela varanda:

- Não há dúvida, não há dúvida. A vidinha aqui é bem boa...”

 

O desfazimento da linha demarcatória entre o mundo da realidade e o mundo da fantasia, na história infantil, é representativo do mundo imaginativo e lúdico das crianças. E, além disso, possibilita encanto de  adultos que teimam em continuar acreditando no mundo imaginário ou ao menos se sensibilizam com suas lembranças de criança.

 

Logo no início do livro, Lobato chama atenção para o fato de que os crescidos também têm as suas “fantasias”. Enquanto dizem para as crianças que o mundo de fábulas não existe e que só acreditam no que é possível de se ver com os olhos, ao mesmo tempo acreditam em abstrações como “Justiça”, “Civilização” e “Bondade”. Por que não, então, também não acreditar em sereias, em cavalos voadores, em sacis pererês e personagens como Branca de Neve e os Sete Anões?

 

As fantasias do mundo real e do mundo fantástico, de início cindidas pela linha demarcatória, pelo cadeado com chaves sob os cuidados do Sábio Visconde e com o policiamento de Quindim, vão se fundindo numa unidade, em que as aventuras e histórias de crianças, princesas e entes mitológicos comovem crianças e adultos.

sábado, 12 de novembro de 2022

“Oscarina” – Marques Rebelo

 “Oscarina” – Marques Rebelo




 

Resenha Livro - “Oscarina” – Marques Rebelo – Ed. José Olympio

 

“Na ficção de Marques Rebelo cumpre-se uma promessa que o Modernismo de 22 apenas começara a realizar: a da prosa urbana moderna. Com a diferença notável de que o escritor carioca não rompeu os liames com a tradição do nosso melhor realismo citadino. A sua obra insere-se, pelos temas e por alguns traços de estilo, na linha de Manuel Antônio de Almeida (de quem escreveu uma viva biografia), de Machado de Assis e Lima Barreto. Com eles, o autor de Oscarina aprendeu a manejar os processos difíceis do distanciamento, o que lhe permitirá contar os seus casos da infância e do cotidiano com uma objetividade tal que a ironia e a pena difusas não o arrastariam ao transbordo romântico.” (BOSI, Alfredo.)

 

Marques Rebelo (1907/1973) é o pseudônimo do escritor carioca Eddy Dias da Cruz. Nasceu no bairro de Vila Isabel, no subúrbio do Rio de Janeiro, mudando-se ainda criança para Barbacena/MG, onde fez o curso primário.

 

Terminado o preparatório, matriculou-se na Faculdade de Medicina no Rio de Janeiro, sem, contudo, concluir o curso, partindo para o trabalho no comércio.

 

Os seus romances e contos mais importantes foram escritos entre 1930/1940, tendo sido eleito, em 1964, para a Academia Brasileira de Letras.

 

“Oscarina” é o seu primeiro livro, publicado no ano de 1931 e saudado positivamente pela crítica.

 

Trata-se de um livro de contos, cuja maior ênfase é a da descrição do mundo suburbano do Rio do Janeiro do início do século XX: da realidade de donas de casa, trabalhadores de empregos modestos, pequenos funcionários públicos, professoras, estudantes, moças solteiras atrás de casamento, crianças brincando na rua. Ainda que seja visível a modernização da cidade com seus bondes, jornais e comércio, o Rio de Janeiro, e especialmente o subúrbio, ainda tinhas aspectos rurais, parecidos com as cidades do interior. A revolução industrial e o frenesi imobiliário atacaram diretamente a orla das praias e a região central, mas só lentamente foram alterando a fisionomia da zona dos morros. Consta que Rebelo fora um nostálgico deste Rio de Janeiro ainda não fulminado pela modernidade, da qual ele retrata conforme suas lembranças da infância.

 

Ainda que tenha tido contato com modernistas de São Paulo e Minas Gerais, Rebelo parecer seguir uma trilha à parte do movimento de 1922. Há, antes, uma linha de continuidade de nosso autor e escritores como Manuel Antônio de Almeida, Machado de Assis e Lima Barreto. Poder-se-ia, todavia, situá-lo como escritor mais próximo da chamada Geração de 1930 da 2ª Fase do Modernismo Brasileiro. De uma certa forma, as descrições que Graciliano Ramos fazia dos elementos médios citadinos de Alagoas ou que Jorge Amado fazia do povo baiano  é parecida com as histórias do subúrbio carioca de Marques Rebelo. Ambas superam uma descrição estereotipada dos tipos populares da cidade.

 

No caso específico de Rabelo, os personagens são tratados de forma intimista, ainda que com uma certa objetividade e equidistância, segundo as quais o nosso escritor poderia ser caracterizado como um neorealista.

 

A reprodução da linguagem popular e a clareza da exposição se combinam com sondagens psicológicas dos personagens, cujos retratos já remetem à superação da forma com que a literatura do século XIX tratava os tipos do povo. Dentro da nova perspectiva modernista, o povo é retratado captando-se suas complexidades e contradições, nem sempre estando adaptados ao meio social em que estão inseridos. Há, aqui, uma superação da forma como os escritores naturalista tratavam os elementos oriundos do povo, qual seja, de uma forma ainda superficial, previsível,   às vezes caricatural e eventualmente pouco distinguindo as pessoais (e suas individualidades) e o meio social. Em livros como “O Cortiço” de Aluísio de Azevedo, as personagens do subúrbio parecem formar uma unidade. Já no Rio de Janeiro de Rabelo, se verifica certamente uma harmonia entre as personagens e o meio carioca, com o acréscimo de retratar as cogitações íntimas de personagens, que aparecem mais humanos, ao se revelar  mais nitidamente suas contradições. E, por esta razão, é uma literatura mais realista.

 

 

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

A DRAMATURGIA DE DIAS GOMES

 A DRAMATURGIA DE DIAS GOMES




 

“Em primeiro lugar, devemos levar em conta o caráter de ato político-social inerente a toda representação teatral. A convocação de um grupo de pessoas para assistir a outro grupo de pessoas na recriação de um aspecto da vida humana, do tema apresentado, leva o autor a uma tomada de posição. Mesmo quando ele não tem consciência disso. Claro que podemos generalizar, em qualquer arte o artista escolhe o seu tema. E, no mundo de hoje, escolher é participar. Toda escolha importa em tomar um partido, mesmo quando se pretende uma posição neutra, abstratamente fora dos problemas em jogo, já que o apoliticismo é uma forma de participação pela omissão, pois favorece o mais forte, ajudando a manter o status quo. Toda arte é, portanto, política. A diferença é que, no teatro, esse ato político é praticado diante do publico. Essa a característica essencial da função dramática: ela acontece. É presente, não passado. Ao contrário da pintura, da escultura, da literatura, ou mesmo do cinema, que já aconteceram quando são oferecidos ao público, o teatro possibilita a este testemunhar não a obra realizada, mas em realização” (Dias Gomes). 

 

Uma característica marcante da literatura do escritor baiano Dias Gomes é a denúncia política e social. A sua obra mais consagrada pelo público e pela crítica certamente foi “O Pagador de Promessas” (1962), que relata a história de Zé do Burro que, para cumprir sua promessa religiosa, entra em confronto com os poderes constituídos, incluindo a Igreja, mas não se limitando a ela, e granjeia a simpatia e apoio dos setores populares igualmente oprimida pela polícia e desprezada pelo bispo: uma multidão ao final da peça carrega o caixão de Zé do Burro tal qual empunhassem uma bandeira de luta!

 

A denúncia social não envolve, aqui, uma literatura meramente panfletária, e, por isso, superficial. Personagens como “Zé do Burro” ou o político pilantra “Odorico” (O “Bem-Amado” da novela) dizem respeito a personagens tratados conforme suas complexidades, sem maniqueísmos. Certamente esta análise psicológica é mais apurada no personagem Zé do Burro, uma expressão de uma consciência política embrionária do trabalhador rural brasileiro, que vacila entre cumprir o seu dever religioso e aceitar os desmandos dos poderes constituídos – Estado, polícia, igreja e imprensa.

 

Já o político Odorico remete antes a uma caricatura, a expressão patética (triste e engraçada ao mesmo tempo) do típico político do interior do Brasil que grassa no país desde a República Velha até os dias de hoje: sem princípios, buscam o poder sem considerações acerca de projeto ou horizonte político que não seja os interesses do seu clã. Ou, nas palavras de Odorico: “Em política os finalmentes justificam os não obstantes.”. Ainda que o prefeito de Sucupira seja uma espécie de caricatura, ainda assim não se trata de uma literatura puramente panfletária: nesta peça o efeito predominante é o cômico, com inclusive passagens que engendram alguma compaixão ao vilão, sem prejuízo da mencionada crítica social e política.

 

O “Bem Amado” foi escrito em 1962, mas só teve a sua estreia nos palcos no ano de 1969, no teatro Santa Isabel, no Recife. Em 1972 foi transmitida a adaptação em novela desta peça – consta, inclusive, que “O Bem Amado” foi a primeira telenovela transmitida a cores no Brasil.

 

A história, como mencionado, trata da vida política de Sucupira, cidade litorânea do interior da Bahia, onde o Prefeito Odorico, então candidato, prometia construir um cemitério na cidade, evitando que os moradores tivessem que andar léguas e léguas carregando os defuntos para o cemitério do povoado mais próximo.

 

ODORICO – Mas eu vou fazer. Os que votaram em mim para vereador sabem que cumpro o que prometo. Prometi acabar com o futebol no largo da igreja e acabei. Prometi acabar com o namorismo e o sem-vergonhismo atrás do forte e acabei. Agora prometo acabar com a humilhação para a nossa cidade, que é ter que pedir a outro município licença para enterrar lá quem morre aqui. E vou cumprir.

 

Após ganhar as eleições, o prefeito promete inaugurar o Cemitério em grande evento patrocinado pelo município assim que um cidadão falecesse. Ocorre que, por azar, na cidade ninguém morre durante um, dois anos, fazendo com que o prefeito aspirasse a morte de qualquer um para garantir o seu prestígio.

 

Alfredo de Freitas Dias Gomes, mais conhecido como Dias Gomes, foi romancista, contista e teatrólogo. Teve uma participação decisiva nas novelas e histórias transmitidas pelo rádio o nas telenovelas. O escritor baiano foi eleito para a Cadeira 21 da Academia Brasileira de Letras em 1991. Faleceu em 1999, em um acidente de trânsito em São Paulo, aos 76 anos de idade.

 

 

Bibliografia:

 

“O Bem Amado” – Dias Gomes – Ed. Betrand Brasil – 2021

 

“As Primícias” - Dias Gomes – Ed. Betrand Brasil – 2022


"O Pagador de Promessas" - Dias Gomes - Ed. Betrand Brasil - 2021

terça-feira, 18 de outubro de 2022

“A Descoberta da América Pelos Turcos” – Jorge Amado

 “A Descoberta da América Pelos Turcos” – Jorge Amado


 

Resenha Livro - “A Descoberta da América Pelos Turcos” – Jorge Amado – Ed. Record.

 

“A referência à descoberta da América vai por conta das comemorações atuais, onipresentes: hoje em dia não pode o pacato cidadão dar o menor passo, soltar o menor peido sem que lhe tombe sobre a cabeça o Quinto Centenário. Da Descoberta, como dizem os descendentes dos impávidos que descobriram o outro lado do mar, da Conquista exclamam os descendentes dos índios massacrados, dos negros escravizados, das culturas arrasadas à passagem de mercenários e missionários conduzindo a Cruz de Cristo e a pia batismal”.

 

Este pequeno romance (ou “romancinho” como o chamava Jorge Amado) foi escrito entre julho e outubro de 1991. A publicação partiu de um diretor de agência de relações públicas de uma estatal italiana que decidira comemorar o Quinto Centenário da Descoberta da América publicando um livro com três histórias de autoria de escritores do continente americano: um de língua inglesa, com o norte americano Norman Mailer; um de língua espanhola, com o mexicano Carlos Fuentes; e um de língua portuguesa, de autoria do escritor baiano.

 

O projeto consistia na edição do livro em quatro idiomas: italiano, inglês, espanhol e português, totalizando trezentos mil exemplares que seriam distribuídos gratuitamente aos viajantes das diversas companhias aéreas, entre abril e setembro de 1992, ano do Quinto Centenário, em todos os vôos entre a Itália e as três Américas.

 

É possível dividir a obra de Jorge Amado em duas grandes fases.

 

Os seus romances dos anos 1930/40 têm um caráter político partidário, expressando os tipos populares da Bahia em sua oposição às elites econômicas e aos poderes constituídos. É representativa desta fase o romance “Capitães de Areia” (1937), que retrata a vida de crianças moradoras de rua da cidade de Salvador, que sobrevivem de pequenos furtos e assaltos,  vivem em um trapiche na região portuária e experimentam logo cedo às vicissitudes da vida adulta, a descoberta da sexualidade, o embate com as forças policiais, a doença e a morte.

 

Jorge Amado aproximou-se da militância esquerdista no ano de 1932, por influência de Rachel de Queiroz e após ter contato com o grupo modernista da Bahia, denominado “Academia dos Rebeldes”, do qual fizeram parte o poeta Sosígenes Costa e o historiador Édson Carneiro, autor de uma das principais obras sobre o Quilombo dos Palmares. Por conta de sua literatura de protesto social, envolve-se na oposição ao Estado Novo, sendo preso no ano de 1942. Foi eleito deputado constituinte pelo PCB em 1946, até a proscrição do partido pelo governo Dutra, quando resolve exilar-se.

 

A segunda fase das obras de Jorge Amado perde o conteúdo proletário para, em troca, tratar dos costumes e da vida social da Bahia – da literatura ideológica passa ao pitoresco e ao regionalismo em obras como “Gabriela, Cravo e Canela” e “Dona Flor e Seus Dois Maridos”.

 

A “Descoberta da América Pelos Turcos” se situa claramente neste segundo conjunto de obras. O livro aborda a vinda de imigrantes tidos como “turcos” (na verdade árabes, sírios e libaneses) na região do sul da Bahia, quando se iniciava o ciclo do cacau, no início do século XX:

 

“Coronéis e jagunços em armas se matavam na disputa da terra, a melhor do mundo para a agricultura do cacau. Vindos de distintas plagas, sertanejos, sergipanos, judeus, turcos – dizia-se  turcos, eram árabes, sírios e libaneses -, todos eles brasileiros”.

 

Ibrahim Jafet, um turco dono de um bazar, após o falecimento de sua esposa Sálua, vê-se obrigado a arranjar alguém que conduzisse os negócios, até então presididos por sua mulher. Sua filha Adma, particularmente feia e antipática, assume a empresa da família, além de implicar insistentemente com Jafet, que, ao invés de trabalhar, prefere dedicar seu tempo no jogo de gamão, na pesca, no botequim e na casa de prostituição.

 

Dada a beligerância de Adma, Ibrahim Jafet se engaja em encontrar um marido para sua filha.

 

Pensava-se (com razão) que a rispidez da solteirona decorria da falta de um homem e da insatisfação sexual. A história, assim, gira em torno dos esforços dos turcos em angariarem um marido à Adma, possibilitando, assim, a paz a tranquilidade familiar:

 

“E por que não? Adma era parada dura, indigesta. Enfrentá-la exigia decisão, coragem  estômago de camelo. Alto, seco de corpo, musculoso, lanzudo, Adib assemelhava—se a um dromedário. A juventude e a cobiça, faziam-no capaz de mastigar palha e achar gostoso, de enfrentar solteirona velhusca e avinagrada, arrombar-lhe os tampos com deleite, levá-la ao desvario, à beatitude, à paz com a vida. Bem fodida, Adma deixaria de aporrinhar a humanidade.”.

 

O “romancinho” é representativo do Brasil, ao abarcar dentro da nacionalidade além de pretos, brancos e multados, os imigrantes, representados pelos turcos, que, aqui, logo assimilam hábitos típicos da região. Entre bares e casas de prostituição, entre o jogo e o ócio, entre o trabalho do comércio e nas fazendas de cacau, a história do povo de Itabuna (terra natal de Jorge Amado) é igualmente representativa de todo o Brasil. Dentro da perspectiva do modernismo, o regional remete ao universal e descreve a nação, de modo que a vida dos moradores do sul da Bahia diz respeito à hospitalidade geral com que o estrangeiro é assimilado ao Brasil e à facilidade com que o elemento exógeno abraça a cultura e os hábitos dos nacionais.

domingo, 16 de outubro de 2022

“HISTÓRIA DE UM PESCADOR” – INGLÊS DE SOUSA

 “HISTÓRIA DE UM PESCADOR” – INGLÊS DE SOUSA


 

Resenha Livro -  “História de Um Pescador” (Cenas da Vida do Amazonas) – Inglês de Sousa – Ed. UFPA

 

“A natureza toda tinha porém esse aspecto triste e sombrio que desperta a simpatia nas almas dominadas por uma grande dor. A vegetação luxuriante, grandiosa, mas monótona e triste do Amazonas, tinha um aspecto desolador.

 

As águas do rio corriam tranquilas e de quando em quando boiavam os botos com um ruído surdo.

 

O rumor cadenciado do remo redondo do pescador batendo contra as bordas da montaria não destruía o contristador silêncio que o cercava, antes contribuía para aumentá-lo.

 

Tudo em redor de José lhe agravava a imensa tristeza”

 

“História de um Pescador” é o segundo livro publicado pelo escritor paraense Herculano Marcos Inglês de Souza.

 

O romance data de 1896 e foi escrito quando o escritor cursava o último ano do curso de Direito da Faculdade do Largo de São Francisco em São Paulo. O livro foi lançado na forma de folhetim, tendo sido publicado no Jornal Tribuna Liberal.

 

Talvez por ser pouco conhecido do público e até mesmo da crítica, poucos sabem que Inglês de Souza é o verdadeiro precursor do naturalismo literário no Brasil.

 

O movimento naturalista consiste num desdobramento e numa espécie de radicalização do objetivismo e impessoalismo que marca o realismo literário. Diferencia-se deste último movimento já que a análise psicológica dos personagens e os seus destinos são, no naturalismo, condicionados pelo meio social e por caracteres hereditários. Enquanto no realismo ainda se cogita de algum livre arbítrio, as personagens descritas pelos romances naturalistas têm o seu destino condicionado pelo meio social e pelos caracteres raciais, em consonância com as teorias cientificistas típicas do fim do século XIX. Ademais, há no naturalismo uma pretensão da descrição de pessoas e enredos de maneira parecida com que o cientista descreve fenômenos da natureza.

 

Costuma-se identificar o início do naturalismo no Brasil com os romances de Aluísio de Azevedo. O escritor maranhense produziu obras mais experimentais dentro do naturalismo (Casa de Pensão, O Cortiço, O Mulato) e obras mais convencionais como a comédia Filomena Borges e O Coruja: foi efetivamente um dos primeiros escritores brasileiros que sobreviveu das suas publicações, motivo pelo qual transitou entre diversos estilos e escolas literárias. Ocorre que que sua primeira obra naturalista que foi “O Mulato” data de 1881, enquanto a produção literária de Inglês de Souza data de 1875!

 

Nascido em Óbidos no Pará em 1853, aos 14 anos Inglês de Souza é internado no Colégio Perseverança no Rio de Janeiro. No ano de 1872, matricula-se no curso de Direito de Recife, tendo completado a graduação em São Paulo.

 

Ainda que tenha passado a maior parte da vida na região sudeste do Brasil, os livros de Inglês de Souza primam por uma descrição rica em detalhes das condições sociais e culturais do caboclo do norte – também chamado de tapuio. A minúcia com que relata histórias de pescadores e trabalhadores em regime de escravidão por dívidas, a exuberante natureza amazônica, a melancolia do caboclo, os requintes de crueldade dos latifundiários e a opressão das forças políticas que presidem as instituições decorreu de histórias que escutou de seu pai, que foi juiz municipal de Óbidos e de um tio paterno, que fora professor de filosofia do Liceu de Manaus.

 

“História de um Pescador” relata a trajetória do tapuio José, filho de um pescador chamado Anselmo, que morreu afogado enquanto trabalhava para Capitão Fabrício, o latifundiário que dominava e oprimia a população do Igarapé do Alenquer, no norte do Pará.

 

Quando criança, José por brincadeira ateou fogo na fazenda do coronal Fabrício que, furioso, o obrigou a se matricular num seminário em Óbidos. Lá ficou José durante quatro anos, vivendo uma vida melancólica, já que inexistente em seu espírito a vocação do estudo e da religião. Quatro anos após ter sido internado, ao saber da morte do pai, José foge do seminário, retorna para o Igarapé do Alenquer, onde o Capitão Fabrício o admite em sua fazenda e o obriga a trabalhar para quitar as dívidas do pai.

 

O regime de exploração do trabalho dos tapuios na Amazônia se dava pela escravidão dos negros e pela escravidão por dívidas dos tapuios. Muitos agregados trabalhavam a vida toda para quitar os débitos junto aos coronéis, que além de proprietários das terras comandavam o comércio da região e forneciam mercadorias em troca dos serviços. O latifundiário ainda se servia da Guarda Nacional e da ameaça do recrutamento, para manipular e oprimir esta população mais simples: aqueles que manifestavam algum sinal de rebeldia eram prontamente recrutados para a Guarda Nacional, causa de terror do homem simples, que se viam obrigados a abandonar família e filhos.

 

O estilo naturalista da obra, com sua obsessão em descrever personagens e fatos de forma objetiva, cria as condições para que o leitor conheça em detalhes os aspectos da vida do caboclo da Amazônia.

 

Da leitura da obra, se conhece as condições de miséria dos tapuios:

 

“Em casa eles só faziam as despesas indispensáveis. Em lugar de café bebiam o chá feito de folhas de uns cafeeiros abandonados das terras do capitão. Por alimento o pirarucu seco, e quando este recurso dos pobres faltava, comiam papagaios e macacos que José caçava.

 

Farinha nem sempre a tinham, e supriam o uso dela com bananas verdes assadas na brasa. Dias havia em que nada mais tendo alimentavam-se do vinho de cacau puro e simples.”.

 

José se apaixona por uma bela rapariga chamada Joaninha, com quem ajusta o casamento. Contudo, Capitão Fabrício interessa-se pela mulher, e arregimenta capangas que a sequestram, para satisfação da luxúria do latifundiário. O final trágico da história já indica uma literatura que se diferencia das tramas convencionais que se situam nos marcos do romantismo, que se caracterizam pelo “final feliz”, ou pela prevalência do “bem contra o mal”. Dentro da ótica naturalista, prevalece o determinismo social, a força dos brancos sobre os tapuios e a tragédia social.

 

A despeito do pioneirismo e da riqueza artística das “Cenas da vida do Amazonas”, a obra de Inglês de Souza ainda aguarda publicações por intermédio de grandes editoras. As últimas publicações dos livros do escritor foram promovidas dentro da “Coleção Amazônida” pela Universidade Federal do Pará.