segunda-feira, 1 de junho de 2020

“O Primo Basílio” – Eça de Queirós


“O Primo Basílio” – Eça de Queirós




Resenha Livro -  “O Primo Basílio” – Eça de Queirós – Série Bom Livro – Ed. Ática

“Aquela conversação enervava Luísa; numa tal generalidade do vício parecia-lhe que o seu caso, como um edifício num nevoeiro, perdia o seu relevo cruel, se esbatia; e sentindo-o tão pouco visível quase o julgava já justificado.

Ficaram caladas, vagamente entorpecidas por aquele sentimento de uma forte imoralidade geral, onde as resistências, os orgulhos se amolecem, se enlanguescem, - como os músculos numa estufa fortemente saturada de exalações mornas”

“O Primo Basílio” foi escrito entre Setembro de 1876 e Setembro de 1877. O romance se situa numa primeira fase mais combativa da literatura de Eça de Queiróz. Tratava-se da afirmação da escola literária realista sobre uma tradição romântica em Portugal. Do lado Romântico e árcade, Antônio Feliciano de Castilho (1800-1875) e Almeida Garret (1799-1854). O romantismo literário envolvendo o subjetivismo, o sentimentalismo e o apego às tradições. Do lado do realismo preconizado por Antero de Quental (1842 – 1891) e Teófilo Braga (1843-1924), a objetividade, o racionalismo, o cientificismo e a crítica social.

É importante salientar que o advento do realismo literário em Portugal deu-se de forma distinta da experiência brasileira.

Não existe muita dúvida dentro da crítica especializada que o “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881) de Machado de Assis representou o advento do realismo literário no Brasil. Ocorre que o advento das “Memórias” não foi exatamente uma ruptura radical em face do romantismo literário, mas o desdobramento, ou um movimento em continuidade.

Da chamada 3ª Geração Romântica, os temas urbanos, a descrição de tipos e ambientes burgueses e uma maior adequação da narrativa às questões sociais já estavam de certa forma presentes nas obras da primeira fase de Machado de Assis. Se pensarmos num Joaquim Manoel de Macedo cujo “A Moreninha” efetivamente inaugurou o romance folhetinesco no país, deve-se levar em consideração que o seu “Vítimas Algozes” de 1869 já antecipa em muitos aspectos do realismo literário: tratava-se de uma contundente crítica do instituto da escravidão, ainda que sob o prisma dos interesses dos grandes proprietários que ocasionalmente não levavam em consideração os malefícios, os vícios e a violência mais ou menos dissimulados da escravidão junto aos senhores e seus familiares.

Já em Portugal o advento do realismo literário deu-se não como um desdobramento do romantismo mas nos marcos de um movimento de combate às tradições do passado. Estamos no contexto de meados do século XIX, quando a revolução industrial, o advento das cidades, o fortalecimento da burguesia e a expansão do proletariado provocam mudanças significativas na Europa, incluindo o campo da cultura. Autores como Darwin, Comte, Spencer, Taine e Renan são fontes de influência nas narrativas dos escritores realistas. Seria importante salientar aqui o atraso relativo de Portugal no que diz respeito a países como França e Inglaterra. No campo das ideias este atraso é identificado na literatura realista com um tradicionalismo clerical, com um bacharelismo sem raízes e vínculos com a ciência e o conhecimento, com uma sociedade, no geral, corrompida e supersticiosa.  

No caso de Eça de Queirós, tratava-se de uma verdadeira literatura de combate: no “O Crime do Padre Amaro” uma satírica e avassaladora crítica ao catolicismo português, com seus padres metidos em escândalos sexuais e ainda granjeando, com todo o cinismo do mundo, o respeito e a liderança sobre seus rebanhos. Já no “Primo Basílio” as armas da crítica se voltam não exatamente para o casamento como instituição, mas para o casamento no contexto da sociedade atrasada de Portugal. Numa carta de Eça de Queirós endereçada ao escritor realista Teófilo Braga (12.3.1878), fica esclarecido que o intuito reformador do autor do “O Primo Basílio” não se direciona ao ataque às “instituições universais” como o casamento ou a família, mas à situação especificamente portuguesa:

“Perfeitamente: mas não ataco a família – ataco a família lisboeta – a família lisboeta produto do namoro, reunião desagradável de egoísmos que se contradizem, e mais tarde ou mais cedo centro de bambochata[1]. No Primo Basílio que apresenta, sobretudo, um pequeno quadro doméstico, extremamente familiar a quem conhece bem a burguesia de Lisboa: - a senhora sentimental mal educada, nem espiritual (porque cristianismo já o não tem; sanção moral da justiça, não sabe o que isso é) assada de romance, lírica, sobreexitada no temperamento pela ociosidade (...)”.

A crítica social é voltada em primeiro lugar para o adultério envolvendo não só Luísa, mas os demais personagens secundários, como o Conselheiro Acácio e até Jorge, marido de Luíza. A traição generalizada sinaliza a prática constante da infidelidade conjugal e a falência do casamento; a crítica da ociosidade burguesa, que ainda mantém resquícios de nobreza na sociedade aristocrata portuguesa; a crítica da política e dos cargos estatais expressa no personagem Julião, primeiramente um rancoroso niilista que vê seu trabalho científico não dar frutos pela falta de contatos oficiosos; e posteriormente um Julião resignado e sem resquício de rebeldia após ser agraciado com um cargo medíocre para compensá-lo pela não aprovação no concurso. Todas estas críticas em diferentes sentidos operam pelo lado do humor e da caricatura.

A caricatura tem como característica acentuar alguns aspectos da realidade de modo a poder melhor entende-la, em que pese o risco de se cair para o unilateral e o parcial. No caso de Eça de Queirós, o intento de combate, a crítica radical da sociedade portuguesa, sociedade carola e defasada em relação às novas tendências cientificistas do séc. XIX europeu (darwinismo, determinismo, positivismo) possibilita uma leitura muito mais interessante da realidade daquela sociedade do que o projeto romântico, pautado no idealismo e no sentimentalismo. Em todo o caso, seria em obra mais adiante, como “A Cidade e as Serras” que a literatura de Eça de Queirós tomaria novo caminho, com a sua reconciliação junto à velha Portugal, lançando um olhar não tão irônico e talvez mais compreensivo sobre a sociedade portuguesa.  





[1] Festa marcada por excessos; orgia, pândega, patuscada.

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