sexta-feira, 15 de maio de 2015

“Memórias Póstumas de Brás Cubas” – Machado de Assis

“Memórias Póstumas de Brás Cubas” – Machado de Assis



Resenha Livro  171- “Memórias Póstumas de Brás Cubas” – Machado de Assis – Ed. Elevação 

Se Machado de Assis é comumente lembrado como maior escritor de romances de origem brasileira, seria com o seu “Memórias Póstumas de Brás Cuba” (1881) que o autor abriria uma nova etapa em sua produção, sendo as memórias o ponto de partida e inaugural da fase realista da literatura nacional. 

Há de se somar à grandeza do livro algumas preliminares referentes à própria trajetória de vida do autor. Joaquim Maria Machado de Assis nasceu no Rio de Janeiro no Morro do Livramento (região suburbana) no ano de 1839. Era filho de José Machado de Assis (um operário) e Leopoldina Machado de Assis (uma lavandeira), esta última tendo falecido quando o escritor ainda era criança. Desde pequeno demonstrou interesse pelo estudo de  línguas e de forma autodidata aprendeu francês, alemão e inglês, o que se revela nas citações literárias. 

Sua iniciação nas letras deu-se desde baixo como tipógrafo do periódico “Marmota Fluminense”. Obteve proteção de seu dono, Francisco de Paula Brito e ainda aos 16 anos começou a publicar alguns poemas no jornal. Seu primeiro livro de poesias, denominado Crisálidas, seria publicado em 1864. Não há aqui ainda a expressão incomum de um autor que posteriormente seria consagrado na literatura nacional. A poesia e o teatro não são os gêneros literários de especialidade de Machado de Assis. O autor viria a se destacar nos contos e nos romances, em geral publicados da imprensa fluminense. 

O primeiro romance data de 1872 e denomina-se Ressurreição. Corresponde ao que os críticos classificam como obra da 1ª fase ou de juventude de Machado, romances vinculados ao romantismo de terceira geração (condoreirismo). Trata-se de uma fase intermediária entre o romantismo e o realismo propriamente dito, com autores preocupados em descrever a realidade social, além de abordar temas de crítica social como o abolicionismo (daí serem também chamados de geração condoreira, uma ave que vê desde cima, tem uma percepção mais ampla). A diferença é que com o realismo a ruptura com o idealismo romântico é mais profundo engendrando especificamente em Machado de Assis numa perspectiva radicalmente irônica e mordaz, bastante distinta do gosto dos antigos romances românticos lidos preferencialmente pelo público feminino tal qual as novelas dos dias de hoje. Daí o impacto revolucionário de Memórias Póstumas de Brás Cubas. 
Um Defunto Autor

Para alcançar esta finalidade de descrever a sociedade tal qual ela é, desmascarar as convenções sociais, os jogos de interesse, o egoísmo humano como elemento premente das interações sociais, o autor só poderia mesmo fazê-lo na condição de defunto. Brás Cubas narra a história desde “o outro mundo” o que o possibilita lançar um olhar sobre sua vida na terra sem qualquer tipo de preocupação quanto aos julgamentos, os olhares “judiciosos” da crítica – e não se pense que ele não estende sua pena da sinceridade radical dos outros a si próprio, mas, muito pelo contrário, começa a demonstrar os sentimentos que na aparência são grandes mas, na intimidade, medíocres a partir de suas experiências pessoas, quando são melhor observados. 

“Talvez espante o leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha mediocridade; advirta que a franqueza é a principal virtude de um defunto. Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar  os ragões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz à consciência; e o melhor da obrigação é quando, à força de embarcar os outros, embaça-se um homem a si mesmo, porque em tal caso poupa-se o vexame, que é uma sensação penosa, e a hipocrisia, que é um vício hediondo. Mas na morte, que diferença! Que desabafo! Que liberdade! (...) Senhores vivos, não há nada tão incomensurável como o desdém dos finados”.

Tal passagem ganha relevo na narrativa por revelar a estratégia narrativa que na prática culminou no ponto de partida do realismo brasileiro: a posição insólita do narrador permitiu-lhe um ponto de vista inédito sobre a sociedade urbana burguesa carioca de fins do século XIX. A tendência passa do subjetivismo romântico à objetividade, chegando posteriormente com o naturalismo a tangenciar a literatura com as tendências cientificistas que se expressavam no determinismo.   Ainda quanto ao realismo, o amor passa a ser fonte de convenção social e formalidades ou aparências, enquanto no romantismo engendrava a felicidade perpétua. Finalmente, as análises psicológicas das personagens ganham maior importância em detrimento de uma certa superficialidade que marcava mesmo os primeiros romances de Machado de Assis. 

Dentre as rupturas com o passado romântico, certamente a questão do amor e da felicidade conjugal nos parece ser a mais importante. Brás Cubas teve um passado frívolo, se envolveu com mulheres, não casou, não constituiu família e nem por isso sofreu em demasia. Ao fim da vida encontrou um pequeno saldo quanto a tudo isso: não teve filhos a pôr num mundo de misérias, o que é dito num tom em parte em galhofa em parte com alguma seriedade, considerando a mediocridade de sua própria vida. A maior prova porém de que, na morte, Brás Cubas não acreditou no amor foi seu relato de rompimento com Virgília, um relacionamento extraconjugal que mais parece ao leitor remeter a um relacionamento amoroso do personagem em vida. Ao fim e ao cabo, poucas horas após rompimento da relação, Brás Cubas parece indiferente pela partida da amada à província distante junto ao marido em caráter definitivo: 

“Não a vi partir; mas à hora marcada senti alguma coisa que não era dor e não era prazer, uma coisa mista, alívio e saudade, tudo misturado em iguais doses. Não se irrite o leitor com essa confissão. Eu bem sei que, para titilar-lhe os nervos da fantasia, devia padecer um grande desespero, derrubar algumas lágrimas, e não almoçar. Seria romanesco; mas não seria biográfico. A realidade pura é que eu almocei, como nos demais dias, acudindo ao coração com as lembrança da minha aventura, e ao estômago com os acepipes de M. Prudhon” .

Muitas outras passagens são dignas de nota nestas memórias. Os delírios da morte de Brás Cubas (que ineditamente não tem uma morte “triste”  ou “melancólica” dentro de sua percepção pessoal, ao contrário do que senso comum imagina da morte); passagens de reflexão sobre a condição do negro e a escravidão, quando Cubas reencontra o negro Prudêncio apunhalando um escravo seu (engendrando reflexões sobre o tema e desmentindo desde já certa opinião de que a questão do negro escravo foi indiferente ao escritor Machado de Assis); a ideia do Emplasto e a ironia desta ideia fixa tê-lo levado à morte, bem como tantas outras passagens do livro. 

De uma forma geral, pode-se dizer que Machado de Assis e seu realismo sinalizam um período posterior das ideias da burguesia no Brasil, passando de seu momento heroico ao seu momento de consolidação, eventualmente se expressando pela arte à frente de seu tempo, o que aliás é comum no caso das manifestações artísticas. O traço do realismo é a burguesia enquanto classe dominante a se olhar no espelho, com seus vícios e virtudes, passado seu momento heroico e revolucionário, decorrente do romantismo – temos ciência que a burguesia brasileira propriamente não passou por momento revolucionário, mas importou modelos de tal monta da Europa. 

Machado de Assis parece-nos parte desta tradição. Ainda que tenha nascido no subúrbio, conseguiu ascender socialmente apesar de ser mulato (diante de uma sociedade rigorosamente racista) diante do reconhecimento da sua obra. Foi fundador e dono da cadeira nº 1 da Academia Brasileira de Letras e é reconhecido não por poucos como o maior escritor brasileiro de todos os tempos.  

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