“Dom Casmurro” – Machado de Assis
Resenha Livro 172 – “Dom Casmurro” – Machado de Assis - Ed. Record Rio de Janeiro São Paulo
Esta obra de Machado de Assis foi publicada no ano de 1899: estamos diante de romance em que o autor já expressa sua plena maturidade literária, observada a partir de transição que remonta às “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881), quando o “Bruxo do Cosme de Velho” inaugura no Brasil o Realismo literário.
As obras mais remotas de Machado de Assis (romances e contos foram a especialidade do autor, que ainda produziu Poesia, Peças de Teatro e Traduções) podem ser enquadradas no estilo romântico, ou mais especificamente no romantismo em sua terceira fase. Aqui o foco centra-se nos cenários urbanos e em temas sociais, sem contudo tecer críticas sociais e de costumes, com otimismo no que tange às relações amorosas, bem como na apologia das relações sociais de tipo burguês resultando num narrativa do tipo eventualmente folhetinesco e um pouco superficial.
A partir de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e nas obras subsequentes, observa-se uma reorientação no estilo e principalmente na abordagem: o idealismo no amor dá espaço ao objetivismo nas análises conjugais revelando a forma como as relações entre os sexos envolvem convenções sociais ocultas, ou no caso específico de “Dom Casmurro”, o ciúmes doentio de Bentinho e a dissimulação de Capitu; o elogio às formas sociais colocadas pelo romantismo é superado por uma crítica mordaz e sarcástica dos costume implicando na crítica social. A objetividade dos escritores realistas é levada a cabo quase como uma obsessão: no caso de Dom Casmurro, o livro é escrito na forma de um caderno de memórias pelo advogado Santiago Bento em sua velhice, como tentativa (não bem sucedida) de reatar as pontas da infância e da velhice.
Terminando velho e só numa grande casa no Engenho Novo no Rio de Janeiro e Casmurro (aquele que é fechado, teimoso, caturra) este foi um apelido dado por vizinhos e apropriado pelo autor para título de sua história. Como dizíamos, o esforço pela objetividade perpassa o objeto do livro de Casmurro e resvala em certas passagens mesmo num efeito cômico. Assim Bentinho relata sua ida ao seminário para se fazer padre, se separando da família e de Capitu:
“Meses depois fui para o Seminário de S. José. Se eu pudesse contar as lágrimas que chorei na véspera e na manhã, somaria mais que todas vertidas desde Adão e Eva. Há nisto alguma exageração; mas é bom ser enfático, uma ou outra vez, para compensar este escrúpulo de exatidão que me aflige. Entretanto, se eu me ativer só à lembrança da sensação, não fico longe da verdade; aos quinze anos, tudo é infinito”.
Por outro lado, os mesmos escrúpulos da exatidão engendra a inevitabilidade da mentira. Dom Casmurro já oferece todas as condições, ao redigir suas memorias, para eventualmente poder não só acertar contas com seu passado mas mesmo revelar alguns de seus vícios; vícios como sua sensação de ojeriza quando da morte de Manduca, um colega menos abastado acometido de Lepra e interesse pessoal do narrador-autor em ir ao enterro unicamente para faltar ao seminário e ver Capitu; ou como no instante em que uma febre da mãe levou Bentinho a pensar que a morte da genitora levaria-o a estar livre do seminário culminando num sentimento de culpa logo em seguida. De qualquer forma, os escrúpulos da exatidão ainda podem abarcar uma intenção mentirosa.
“- Eu só gosto de mamãe (Bentinho)
Não houve cálculo nesta palavra, mas estimei dizê-la por fazer crer que ela era a minha única afeição; desviava as suspeitas de cima de Capitu. Quantas intenções viciosas há assim que embarcam, a meio caminho, numa frase inocente e pura! Chega a fazer suspeitar que a mentira é, muita vez, tão involuntária como a transpiração”.
É provável que não haja exagero na afirmação do professor da UFRJ Carlos Sepúlveda ao dizer que Dom Casmurro ombreia textos de Shakespeare, Dante e Camões. Este livro tem uma força humana excepcional, envolvendo as cogitações da vida de um advogado que vive no Rio de Janeiro do Segundo Reinado, sendo tomado pelo ciúmes e por uma espécie de amor não comedido que não seria suprido posteriormente. Machado de Assis é um autor que desde o ponto de vista da história das ideias da arte expressa a culminância da visão social de mundo burguesa, o que se pode demonstrar mesma na analogia entre o amor e uma obrigação pecuniária, o que de resto, retoma a superação do realismo pelo amor romântico:
“Sucedeu que a minha ausência foi logo temperada pela assiduidade de Capitu. Esta começou a fazer-lhe necessária. Pouco a pouco veio-lhe a persuasão de que a pequena me faria feliz. Então (é o final do ponto anuncia-lo), a esperança de que nosso amor, tornando-me incompatível com o seminário, me levasse a não ficar lá nem por Deus, nem pelo diabo, esta esperança íntima e secreta entrou a invadir o coração de minha mãe. Nesse caso eu romperia o contrato sem que ela tivesse culpa. Ela ficava comigo sem ato propriamente seu. Era como se, confiado a alguém a importância de uma dívida para leva-la ao credor, o portador guardasse o dinheiro e não levasse nada. Na vida comum, o ato de terceiro não desobriga o contratante; mas a vantagem de contratar com o céu é que intenção vale dinheiro”.
Amor, expectativa religiosa e obrigação pecuniário confundem-se tal qual a visão social de mundo da burguesia urbana a qual Machado de Assis e os escritores realistas retratam. Trata-se aqui tanto de um romance muito acima da média (que nos toca pelo seu conteúdo humano) quanto de preciosa fonte histórica.
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