Resenha #46 "A Revolução Traída: o que é e para onde vai a URSS" - Leon Trotsky. Ed. Sundermann
Leon Trotsky nasceu no distrito de Oblast na Ucrânia em 1879. Iniciou sua trajetória política como um socialista independente: é no decurso da Revolução que adere ao partido bolchevique de Lênin. Destaca-se como orador e agitador: é eleito presidente do soviet de Petrogrado e lidera o Comitê Militar Revolucionário que viria a concretizar a tomada do Palácio de Inverno, a queda de Kerensky e a tomada do poder pelos bolcheviques.
Uma vez consumada a Revolução de Outubro, Trotsky exerceu as funções de Comissário do Povo para Negócios Estrangeiros (quando foi destacado para negociar com a Alemanha o pacto Brest-Litovski) e Comissário do Povo para os Assuntos Militares (quando viria a organizar e liderar o exército vermelho, instrumento militar decisivo para a sobrevivência da revolução durante a guerra civil (1918-1920).
“A Revolução Traída: o que é e para onde vai a URSS” foi escrita no ano de 1936, quando Trotsky encontrava-se no exílio no México. Vale recordar que, com a morte de Lênin, houve uma re-ordenação das forças internas do partido bolchevique. Já desde os últimos momentos de vida de Lênin, já se esboça tensões políticas acumuladas: em 1924, Trótsky publica “As Lições de Outubro” em que critica Stalin e a direção do Komitern por sua política frente ao levante operário na Alemanha em 1923. As mesmas hesitações daquele campo político, segundo Trotsky, também puderam ser vistas às vésperas da Revolução de Outubro. Outrossim, já naqueles anos, surge, de forma embrionária, a oposição entre duas estratégias para o movimento: a tese de Stálin (que é a personificação da burocracia) do “Socialismo em um só país” e a perspectiva internacionalista da Oposição de Esquerda e de Trotsky.
Em 1927, Trotsky é afastado do partido e, dois anos depois, é expulso da URSS. Poucos foram os personagens na história que foram tão perseguidos e caluniados por uma poderosa máquina burocrática: o trotskysmo é um inimigo declarado da burocracia, que irá caçar Trotsky e seus familiares até conseguir calar sua voz em 1940, com seu assassinato no México.
Foi no exílio que Trotsky produziu a maior parte de sua obra escrita. “A Revolução Traída” é um destes ensaios do tempo fora da URSS: a partir de uma vasta e crítica pesquisa de números oficiais e estimativas acerca da produção industrial, agrícola, da produtividade do trabalho e do nível de desenvolvimento das técnicas de produção, Trotsky elabora uma poderosa síntese histórica, buscando descrever a natureza política do estado soviético e o papel histórico da burocracia.
O Caráter do Estado Operário
Segundo Trotsky, a “ditadura do proletariado é uma ponte entre as sociedades burguesa e socialista. A sua própria essência confere-lhe, pois, um caráter temporário. O Estado que realiza a ditadura tem por tarefa derivada, mas absolutamente primordial, preparar a sua própria abolição”. Ora o que se via então na União Soviética era um movimento contrário: conforme se fortalecia o poder da burocracia, esta se afastava cada vez mais das massas e das organizações de democracia direta. Restaurava-se o direito burguês, com a finalidade de garantir a posse e usufruto de bens por parte da camada privilegiada. O Estado ao invés de agonizar, “torna-se cada vez mais despótico; se os mandatários da classe operária se burocratizam e a burocracia eleva-se acima da sociedade renovada, não é por causas secundárias, como as sobrevivências históricas do passado etc., é em virtude da inflexível necessidade de formar e de conservar uma minoria privilegiada enquanto não é possível assegurar a igualdade real.”
Enquanto já nos anos 1930, a burocracia soviética e seus “amigos do ocidente” como o casal Webb, já alardeavam solenemente o fim da divisão das sociedades em classes e uma realidade socialista na URSS, Trotsky, ancorado especialmente nos níveis de produção e produtividade do trabalho, entende que o Estado Operário, para se encontrar ainda no primeiro estágio do socialismo, precisa encontrar um equilíbrio entre produção e consumo, realidade bastante distinta da URSS. O mesmo podia-se dizer com relação ao nível de desenvolvimento das forças produtivas: naquela conjuntura, inferior aos países capitalistas. Vale ressaltar os inúmeros exemplos de desigualdade social, com o acesso aos bens de consumo e conforto exclusivos aos burocratas, enquanto parcelas significativas do proletariado e do campesinato persistiam em condições sociais análogas ao do tempo dos czares. Aliás, mesmo as relações de Mando, a restauração da hierarquia dentro das forças armadas e da polícia (os três fenômenos discutidos por Trotsky) só faziam com que o Estado Operário se aproximasse mais do passado feudal do que do futuro comunista. Assim, mesmo com a planificação da economia e o monopólio do comércio exterior, Trotsky não caracterizava o Estado Operário, naquele momento, como socialista: tratar-se-ia de um estado operário a meio caminho entre o capitalismo e o socialismo. A vitória do socialismo na URSS dependeria da vitória das revoluções operárias nos países avançados do capitalismo: uma nova revolução socialista na europa criaria a força e confiança para o proletariado e as massas russas avançassem sobre a burocracia, promovendo a necessária Revolução Política. Dois caminhos estavam em aberto para URRS naquela conjuntura: o perigo da restauração capitalista (reação) ou uma nova revolução, de tipo política, que viria a derrotar a burocracia e restabelecer o regime de produção planificada para melhor satisfação das necessidades humanas.
A Burocracia Soviética cumpre, segundo Trotsky, um papel análogo à “reação termidoriana”. O significado da expressão remete a derrubada do setor mais radicalizado da Revolução Francesa (Jacobinos), iniciando-se o período da reação, com a extinção das medidas revolucionárias e perseguições dos antigos líderes. A explicação para a equiparação da burocracia à reação encontra os seus fundamentos na história:
“O Caráter proletário da Revolução de Outubro resulta da situação mundial e de certa relação de forças no interior. Mas, na Rússia, as classes tinham-se formado no seio da barbárie czarista e de um capitalismo atrasado, e não tinham sido preparadas de encomenda para a Revolução socialista. Muito pelo contrário, foi precisamente porque o proletariado russo, em muitos aspectos, ainda atrasado, conseguiu dar o salto em alguns meses sem precedentes na História, de uma monarquia semifeudal para uma ditadura socialista, que a reação foi obrigada, inelutavelmente, a fazer valer os seus direitos no interior das próprias fileiras. Ela cresceu no decurso das ondas que se seguiram”.
Outra razão para o fortalecimento da burocracia deu-se na medida das derrotas do proletariado em nível mundial. Em contraposição à perspectiva do internacionalismo, a burocracia soviética (e sua tese de Socialismo em um só país) ganhava segurança, enquanto a classe operária dos países europeus sofria derrotas históricas: a derrota da insurreição na Alemanha em 1923, Estônia em 1924, a liquidação da greve geral na Inglaterra e a derrota da revolução chinesa em 1927 foram implicando na desilusão crescente das massas na perspectiva da revolução mundial, “permitindo à burocracia soviética elevar-se cada vez mais como alto farol indicando o caminho da salvação”.
Hoje, mais de oito décadas depois de “A Revolução Traída”, esta bela obra de história ainda tem força para formar politicamente e inspirar novas gerações à luta socialista. A defesa intransigente dos princípios marxistas acerca da revolução mundial e de seu sentido igualitarista – em contraponto à conformação de uma burocracia dirigente que viria a ser parte da restauração capitalista – ainda se mantêm bastante atual, quando parcelas da esquerda ainda depositam esperanças em torno de governos da Frente Popular, com deformações análogas ao stalinismo. A crítica radical à burocracia – buscando identificar como e porquê se fortalece – parece-nos ser o que há de mais atual em “A Revolução Traída”.
tranquila e bem escrita. Parabéns.
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