quinta-feira, 7 de abril de 2011

"Felicidade Conjugal" - Lev Tolstoi

Resenha #22 “Felicidade Conjugal” – Lev Tolstoi – Editora 34 – Tradução Boris Schnaidermann



Sobre a obra

Felicidade Conjugal foi lançada em 1859, tratando-se de obra da fase jovem do escritor russo Lev Tolstoi ( 1828-1919). Quando o romance foi escrito, o autor tinha pouco mais de 30 anos. Não se identifica em Felicidade Conjugal algumas idéias relacionadas à moral e política que marcariam sua obra mais reconhecida.

Ainda não se aborda em Felicidade Conjugal questões sociais, não há descrição das profundas desigualdades econômicas dentre as classes sociais da Rússia do séc. XIX. Não há relatos das condições de vida de camponeses e mujiques contrapostas à descrição e à crítica do luxo exacerbado das classes dominantes da Rússia – tanto a aristocracia quanto à burguesia incipiente das cidades – tema que será particularmente analisado no útlimo romance do autor, “Resurreição”.

No que se refere à moral, não há o viés doutrinário do cristianismo, que igualmente é parte do conjunto de idéias que se abrigam sobre o termo "tolstoísmo". Felicidade Conjugal é um romance sucinto, é um relato pessoal das experiências amorosas de Mária Aleksândrovna. O objeto central do texto são os sentimentos da personagem, ou talvez mais exatamente, o desenvolvimento dos sentimentos de afeto e amor da Maria ao longo do seu amadurecimento pessoal e do amadurecimento de sua relação com seu marido Sierguiéi Mikháilitch.

Em um aspecto pudemos, porém, identificar um traço de continuidade entre Felicidade Conjugal e a obra subseqüente de Lev Tolstoi. Trata-se da habilidade com que o autor traduz os sentimentos das personagens, sensações sutis decorrentes dos relacionamentos humanos ou mesmo da percepção humana acerca da natureza. A descrição de nuvens movimentando-se no céu, formando chuvas e posteriormente dissipando-se combina-se no enredo com a trajetória das personagens de forma bastante interessante.

Tolstói foi muito capaz de captar e e comunicar coisas sutis das pessoas e dos ambientes. Exige-se boa capacidade de interpretação do homem e do mundo para conseguir descrever sensações profundas e complexas de forma tão simples. De maneira geral, os textos de Tolstoi são sempre bastante acessíveis. Frases curtas, orações diretas e vocabulário comum oferecem análises e reflexões aprofundadas acerca dos diversos temas decorrentes do amor. No caso de “Felicidade Conjuugal”, do amor burguês.

Sobre a História

Mária Aleksândrovna casa-se ainda muito jovem com Sierguiéi Mikháilitch. Seu amor pelo marido é relatado desde sua infância, quando o afeto então assumia a forma de admiração e respeito análogo ao amor por seu pai. Conforme a jovem amadurece, igualmente seu amor por Mikháilitch vai tomando formas distintas. Apaixonam-se, casam-se e retiram-se para o campo, para uma vida inicialmente feliz. A diferença de idade passa a ser fonte de angústia e inquietações por parte de ambos e o desenvolvimento da felicidade conjugal em diferentes aspectos vai sendo relatada por Maria.

Cumpre ressaltar que o casal possui terras e muitos recursos financeiros. Na gleba do casal moram camponeses trabalhadores, não se sabendo em que condições. Pouca ou nenhuma atenção é dada pelo texto (e por Maria) a qualquer questão que não a relação amorosa do casal. A descrição reiterada dos sentimentos individuais, mesmo se tratando de sentimentos sutis e originais, pode parecer um pouco entediante para certo tipo de leitores.

Possibilidades

Ainda assim, é possível extrair algumas lições de Felicidade Conjugal. O interessante aqui é tentar extrair da história algumas idéias sobre como se fundam as relações de gênero numa sociedade em que co-existem relações capitalistas e pré-capitalistas de produção, desenvolvimento de cidades e ilustração burguesa convivendo com o domínio aristocrático no campo, forte presença religiosa da Igreja Ortodoxa, suntuosidade e opulência em bailes e eventos envolvendo o conjunto da classa dominante russa. Neste tipo de sociedade, não cabia à mulher nenhuma preocupação que não fosse tocar piano, conversar com outras mulheres durante o dia e viver de forma subserviente ao homem, reconhecer-lhe total autoridade sobre si. Mária não só o faz, como parece que o deseja a todo momento. A dominação masculina é parte daquilo que sente e interpreta como "felicidade conjugal" na medida em que seu amor é fruto também de suas expectativas sobre o que é ser mulher naquela sociedade.

O desafio inconcluso de “Felicidade Conjugal” é buscar a compreensão da forma como o amor e a felicidade podem subsistir às relações de opressão e dominação. Mária é feliz e sua felicidade está totalmente comprometida com um mundo radicalmente machista. Hoje isso deve significar, entre outras coisas, repensar o que é o amor e como ele pode projetar novas relações de gênero distintas daquelas das sociedades pré-capitalistas e capitalistas descritas em ‘Felicidade Conjugal’.

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