domingo, 21 de outubro de 2018

“A Construção Nacional – 1830-1889” – José Murilo de Carvalho (Coordenação).


“A Construção Nacional – 1830-1889” – José Murilo de Carvalho (Coordenação).




Resenha Livro – “História do Brasil Nação: a Construção Nacional – 1830 – 1889 - Volume 2” – Vários Autores – Ed. Objetiva

“O período considerado nesse capítulo, do ponto de vista econômico, político, social e cultural, representa o momento consolidador de vários e decisivos aspectos da nacionalidade, seja na afirmação de algumas de suas características fundamentais, seja na abertura de oportunidades, ou mesmo pelos impasses que explicitou e que têm marcado o país até os dias atuais.

Entre o 7 de Abril de 1831[1] e o 15 de novembro de 1889, da abdicação de D. Pedro I à República, o Brasil experimentou transformações, modernizou suas instituições políticas, sua estrutura econômica, suas relações sociais, sem que tenham sido superadas certas mazelas e contradições que, permanentemente atualizadas, têm confirmado o apego à desigualdade, à exclusão e à marginalização sociais, que estão na base de impasses históricos que o Brasil tem reiterado”.

Quais são os elementos que especificam a nação brasileira e a distinguem em sua evolução história face aos demais países? Como se deu tal evolução face às demais repúblicas sul-americanas? Repúblicas que assistiram à consolidação da emancipação política das nações através de processos de amplas guerras e fragmentação político-territorial, num processo distinto da experiência brasileira. 

Quais são as raízes históricas que explicam o Brasil do presente e que revelam as reiterações históricas que explicam por que as mudanças sociais em terras brasilienses frequentemente se deem através de vias conservadoras, como foi particularmente o caso da gradual abolição do tráfico e do trabalho escravo?

O problema da nacionalidade brasileira e os traços distintivos que circunscrevem o Brasil foram questões que surgiram a partir do processo revolucionário de longa duração envolvendo a emancipação política brasileira (1822) – as diversas mudanças no país decorrentes da transferência da corte portuguesa ao Brasil (1808), a abertura dos portos que colocou fim ao exclusivismo comercial que informa o sistema colonial (1808), e a revolução constitucionalista do Porto (1820) que criou graves animosidades entre brasileiros e portugueses, criando, estes entre outros fatores, as condições objetivas e subjetivas para a emancipação política. Não poderiam resultar numa nação consolidada, com consciência de si e clareza de suas peculiaridades. Pelo contrário, na Independência sequer o mapa territorial brasileiro era certo: àquela época o atual território do Uruguai pertencia ao Brasil e o Acre pertencia à Bolívia. As províncias tinham cada uma um sentimento de pertencimento que colocou em risco mais de uma vez a unidade territorial do país.

Neste 2º Volume da coleção “História do Brasil Nação” estamos diante de um período que envolverá importantes agitações políticas, especialmente durante o período da regência, com movimentos separatistas e autonomistas como a Confederação do Equador, até uma temida revolta de escravos na Bahia, a revolta dos malês, que envolveu parcela de escravos de origem muçulmana e tinha entre os seus objetivos a libertação dos escravos daquela origem do cativeiro. Podemos citar ainda a Sabinada e Balaiada como exemplos de revoltas que contaram com o apoio popular, além da revolta Farroupilha no Rio Grande do Sul. Com a antecipação da maioridade de D. Pedro II em 1840, assistiremos a uma segunda etapa de relativa estabilidade política que apenas será revertida com o fim da Guerra do Paraguai, mais de 30 anos após o início do II Reinado, com a crise militar, a crise do sistema de mão de obra escravo (este extinto de forma gradual, porém ao final sem as pleiteadas indenizações dos proprietários a partir de iniciativa da princesa Isabel movida por sentimentos cristãos), além da crise instaurada pela maçonaria e Igreja no país – sem o apoio do exército, da Igreja e dos proprietários, o Império sucumbiu ao golpe militar que instaurou a republico num evento que o povo assistiu bestializado, sem entender do que se tratava, muitos pensando tratar-se de um desfile militar.

Trata-se de qualquer forma de um período decisivo em face das mudanças econômicas – com destaque para a expansão do café a partir dos anos 1830, a vinda dos imigrantes e a consolidação de uma força de trabalho baseada no trabalho livre, além do desenvolvimento das ferrovias e da iluminação das cidades a gás, da criação do Instituto Histórico Geográfico e das primeiras universidades do país, as escolas de direito de São Paulo e Recife. O peso da influência de ideias e filosofias francesas, alemãs e norte-americanas a disputar a hegemonia e o peso da tradição cultural portuguesa de até então. Período em que se assiste aos primeiros lances de um nativismo poético e artístico, como o indianismo da primeira fase do romantismo em Gonçalves Dias e José de Alencar e o naturalismo/realismo de Machado de Assis e Aluísio de Azevedo que servirão de importantes e fieis retratos  de tipos populares, predominantemente urbanos, além das figuras burguesas que já seriam retratadas desde o nosso primeiro romance conhecido, “A Moreninha” de Joaquim Manoel de Macedo, um sucesso já em sua época.  

Estudar a história do Brasil, conhecendo os aspectos decisivos que atribuem sentido à nossa evolução histórica, é passo fundamental para uma aproximação acerca do Brasil de hoje, bem como para responder dilemas que são reiterados em nossa história: a exclusão dos mais pobres e a grave desigualdade reforça a tese de que as grandes transformações sociais, quando não feitas com base em movimentos de ruptura com a ordem constituída, frequentemente são concretizados em mudanças promovidas com o fito de garantir a ordem de coisas colocadas, a hegemonia social das classes dominantes. A renitência com que o país lidou com o tráfico, postergando leis que já vedavam o comércio de humanos desde 1831 até 1850, bem como a lei de terras de 1850 que tem claro intuito de dificultar o acesso dos não remediados à terra diz muito acerca desta tendência da história brasileira seguir a chamada via prussiana, da conciliação que permite a unidade sob a direção das classes proprietárias que dirigem virtualmente a colônia e concretamente o país após a emancipação. O caminho a ser trilhado no sentido da Revolução Brasileira envolverá a resolução de contradições que estão na essência do período da "Construção Nacional" como a grave exclusão política de uma massa de escravos e trabalhadores livres pobres, a reiteração do sentido geral da economia agroexportadora voltada para o exterior e o desenvolvimento insuficiente de um mercado interno bem como de bases institucionais para a reprodução do modo de produção capitalista e consolidação da hegemonia da burguesia, na condição indiscutível de classe dominante desde a onda de revoluções de 1848.   







[1] Dom. Pedro I abdica em nome de seu filho D. Pedro II.

domingo, 23 de setembro de 2018

“A Guerra Guaranítica” – Tau Golin


“A Guerra Guaranítica” – Tau Golin



Resenha Livro – “A Guerra Guaranítica: o levante indígena que desafiou Portugal e Espanha” – Ed. Terceiro Nome – Coleção Brasil Rebelde

É bastante usual escutar-se certo senso comum segundo o qual o povo brasileiro é pacífico, conciliador, cordial, não se rebelando face às injustiças que grassam toda a evolução histórica do país. Esta mesma história revela que o senso comum, operando como uma ideologia[1], desconsidera revoltas e rebeliões que remetem pelo menos desde o início da colonização.

O Quilombo dos Palmares ainda no séc. XVII foi um exemplo de organização que em si desafiou os poderes constituídos em Brasil e Lisboa. O Quilombo não tinha um programa político definido nem fazia propaganda política seja pelo fim do tráfico de escravos seja pelo fim da própria escravidão. 

Mas um núcleo populacional situado no interior do atual estado de Alagoas (Serra da Barriga) bem como seu rápido crescimento tornando-se o maior quilombo de então provocou o medo de que o movimento se alastrasse, para não dizer os efetivos prejuízos causados aos proprietários da região que perdiam sua mão de obra para o quilombo. Seu final foi a completa destruição e morte do refúgio de negros, índios ou até brancos que por diferentes razões rompiam com a sociedade colonial e buscavam uma outra alternativa societária, por sinal, bastante influenciada pela cultura Banto.  

As Guerras Guaraníticas (1753/1755) também foram um movimento que, como Palmares, abria uma polarização entre os poderes constituídos e setores oprimidos da população. Todavia, tratou-se de um movimento muito diferente de Palmares, coincidindo, no entanto, com o mesmo fim trágico.

Como se sabe, desde o início da colonização durante séculos a região meridional do país foi objeto de guerras e disputas territoriais envolvendo as coroas portuguesa e espanhola. No início da colonização, o tratado que deveria delimitar as fronteiras corresponderia ainda ao defasado Tratado de Tordesilhas de 1494 que estabelecia uma linha divisória ao norte no atual estado do Pará (Belém) e ao sul pela cidade de Laguna. O tratado não impediu que bandeirantes paulistas e mineiros avançassem sobre os domínios espanhóis na caça de índios e promovendo o comércio. O domínio da região da bacia do rio prata que abrange os atuais estados do Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai e era estratégico – por este roteiro passavam  traficantes de mercadorias que comerciavam sem pagar os impostos relativos à coroa espanhola.

O ponto de partida das Guerras Guaraníticas foi todavia o Tratado de Madrid (1750). Numa conjuntura em que as animosidades entre espanhóis e portugueses foram reduzidas com o casamento do rei espanhol com uma filha dos Bragança, Portugal e Espanha determinaram neste tratado a entrega pelos espanhóis dos “Sete Povos das Missões[2] enquanto o Império Luso Brasileiro em permuta entregaria a Colônia do Sacramento onde até então cinco guerras envolvendo as duas coroas tiveram lugar.

O Tratado de Madrid também previa uma expedição local conduzida pelas duas coroas para se definir os contornos das fronteiras do meridiano. O critério geral adotado pelo Tratado de Madrid foi o do uti possidetis – a posse e a fixação em determinado lugar confeririam o domínio definitivo do território.
A região das sete missões, conforme o pactuado pelas coroas, deveria ser liberada do domínio dos índios sob a condução dos padres jesuítas. A organização política local dava-se através da liderança não tanto dos padres como se costuma supor mas dos caciques indígenas, a maioria de origem guarani, e que mantinham, através de relações familiares, um domínio envolvendo dezenas de milhares de pessoas – estima-se só na região de Sete Povos 30 mil indígenas.

Ante o ultimato das tropas portuguesas e espanholas quanto à exigência dos índios abandonaram suas terras, as lideranças caciques se dividiram. Alguns setores buscavam negociar e protelavam o ataque sobre as missões – no limite ganhavam tempo para se preparar militarmente. Alguns setores mais radicalizados afirmavam que a terra em que habitavam fora concedida por Deus e só ele poderia tirá-los de lá. Com o avanço das tropas, o principal dirigente militar Sepé Tiaraju defendia uma guerra de movimento em campos abertos, evitando sempre um embate final e frontal – os índios atacavam também em poucos bandos através de estratégias de guerrilha, como a tática de deixar nos campos vacas e cavalos a serem apropriados pelo elemento estrangeiro e depois o ataque aos soldados que caíam na armadilha.

Em que pese as enormes dificuldades operacionais de mobilizar um exército com cavalaria para adentrar um terreno fechado, encharcado pelas chuvas, por enchentes e pelo frio, a campanha luso-espanhola saiu vitoriosa – os índios que lá habitavam também chamados de missioneiros se dispersaram pelo território que em que hoje se situa o Rio Grande do Sul. Foram reduzidos pela força e obrigados de certa forma a se inserir na sociedade colonial em condições de decadência. Ainda assim aqueles índios guaranis deixariam importantes influências que marcam a cultura e os costumes gaúchos.

“É notável que o cotidiano contemporâneo rio-grandense sustente-se ainda na herança indígena. Expressões identitárias icônicas, como assado/churrasco (a espetada de carne tribal), o mate/chimarrão e dezenas de alimentos constitutivos da “comida caseira” vêm do universo nativo”.  (Pg. 168).

O fato é que a violência do aparato repressivo do estado, no Brasil, resultou em novas tragédias que são parecidas com as Guerras Guaraníticas. Cada reintegração de posse de lutadores sem terra e sem teto experimentam ainda hoje a intransigência da classe dominante com as formas mais simples e embrionárias de resistência como a luta pela terra e pela moradia – direitos democráticos elementares. Sete Missões ou Canudos em fins do séc. XIX tiveram o mesmo fim trágico que o bairro do pinheirinho em São José dos Campos quando a polícia militar sob a direção do governo estadual do PSDB expulsou milhares de famílias de um bairro consolidado para atender aos interesses econômicos da especulação imobiliária .

Sepe Tiaraju por sua vez teve um fim tão trágico quanto zumbi[3]. Encontrado após ter levado uma queda de cavalo, foi levado até as autoridades espanholas, quando teve seu corpo queimado por pólvora. Levou um tiro de misericórdia e teve sua cabeça arrancada. Se há uma lição ao longo destas tragédias é a de que a história do povo brasileiro envolve a presença de movimentos e lideranças que, a seu modo, se insurgiram contra a ordem estabelecida – a segunda lição é que a ausência de uma organização político-militar bem como o relativo isolamento de movimentos revolucionários inviabilizaram por ora uma transformação revolucionária no país, com a derrota política de uma classe dominante que secularmente serviu-se da violência sem escrúpulos contra os setores oprimidos da população.

Igreja de São Miguel das Missões


[1] Ideologia no sentido em que falam o marxismo, qual seja, um conjunto de ideias que beneficiam a classe dominante mas que se revelam como se fossem de interesse universal.
[2] Este é o nome que se deu ao conjunto de sete aldeamentos indígenas fundados pelos Jesuítas espanhóis na Região do "Rio Grande de São Pedro", atual Rio Grande do Sul
[3] Na verdade há duas versões na historiografia acerca da morte de Zumbi. A primeira: após constatar a derrota definitiva da resistência, Zumbi teria se matado jogando-se de um morro. A segunda, mais convincente, diz que o líder morreu em combate.  

sexta-feira, 21 de setembro de 2018

“Crise Colonial e Independência (1808-1830)" – Alberto da Costa e Silva (Cordenação)


“Crise Colonial e Independência (1808-1830)" – Alberto da Costa e Silva (Cordenação)



Resenha Livro - “Crise Colonial e Independência (1808-1830) – Alberto da Costa e Silva (Cordenação) – Ed. Objetiva

“Foi nesse cenário econômico que, em rápidos movimentos, ocorreram as grandes transformações do capitalismo e a criação do Estado nacional brasileiro. No ponto inicial do séc. XIX, a onda burguesa era percebida na colônia como notícia distante, assunto apenas de debate entre pessoas cultas, preocupação que não fazia parte do cotidiano econômico. De um dia para outro, em 1808, com o desembarque da corte de D. João, que fugia de Napoleão Bonaparte, a onda chega e ganha forma física instantânea. Ela muda não apenas a percepção do cenário como a situação da economia real e, especificamente, o quadro institucional da economia. A existência de um Estado soberano de fato molda o período de permanência da corte. Nele, “Brasil” deixa de ser uma utopia nacional e passa a ser uma ideia dotada de conteúdo real, mesmo sem independência formal”.  (Pg.169)
                
A História como disciplina específica, com seus pressupostos teórico-metodológicos e objetos de investigação delimitados, é relativamente recente. Certamente, pelo menos desde Heródoto (485-425 a.C) houve cronistas e todo o tipo de homem de letras que legaram valiosos relatos sobre o passado. Mas é apenas no fim do séc. XIX com Leopold Von Ranke e aqui no Brasil com Francisco Adolfo Varnhagen  que a história ganha contornos de uma disciplina específica, separada da filosofia, da sociologia e da política. 

Podemos falar aqui de uma historiografia positivista, cujo foco dá-se em torno do que hoje chamaríamos de história político-administrativa, com a pretensão, todavia, de ser um relato imparcial, através da narrativa sequencial dos grandes eventos e datas que nem sempre correspondem à relevância percebida pelos contemporâneos que presenciaram dado evento[1].   

Hoje o positivismo historiográfico está superado. A partir do movimento modernista da historiografia nos anos de 1930 com as contribuições de Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Paulo Prado e Gilberto Freyre, observou-se um movimento de aproximação da História e das Ciências Sociais. A influência da missão francesa vinculada à escola dos Annales quando da criação da primeira faculdade de história em São Paulo também contaram para o avanço nas pesquisas, em particular no que tange à história da cultura e à história das ideias.

Todavia, a História enquanto disciplina de ensino superior tem frequentemente suas pesquisas circunscritas a temas extremamente específicos afastando a produção acadêmica de um público leitor não especializado. A título de exemplo, estuda-se em nível de pós-graduação temas de pouca abrangência, como “a alimentação da população citadina da capitania de São Vicente no séc. XVI” ou “o envio das ordens carmelitas à América Portuguesa em 1580”. São estudos que por um lado ganham em profundidade, mas por outro perdem em envergadura, frequentemente com um tratamento exaustivo sobre o objeto de pesquisa sem uma contextualização que ao menos conduza a leitura de não profissionais.

Daí a importância de trabalhos como o desta coleção “História do Brasil Nação: 1808-2010”. Neste primeiro volume temos ensaios de um período extremamente dinâmico, e em dado momento revolucionário, que envolve a fuga da corte portuguesa e sua instalação no Brasil (1808), a abertura dos portos rompendo com o exclusivismo comercial da era colonial (1810), a elevação do Brasil à condição de Reino Unido de Portugal e Algavres (1818) e, destaque, a revolução constitucionalista do Porto em 1820, para suscitarmos alguns eventos importantes.

Pode-se dizer que a vinda da família real no Brasil foi antes uma retirada militar: tropas napoleônicas já avançavam sobre o território português quando o monarca D. João VI, sob pressão da Inglaterra, transfere a sede do Império Português ao Rio de Janeiro. Os relatos descrevem uma situação dantesca com pessoas buscando embarcar submersas na água bem como a separação de famílias em meio à conturbada retirada.

Salvador fora a sede do Brasil Colônia até 1763 e quando a corte desembarcou no Brasil encontrou no Rio de Janeiro uma vila modesta, com uma forte presença de escravos e sem condições imediatas para a instalação não só da dinastia Bragança, mas de um séquito de nobres que acompanharam a família real. Muito foi feito num curto espaço de tempo de modo a concretizar a cidade do Rio de Janeiro como a capital de um Império intercontinental. Criou-se o Banco do Brasil, o Jardim Botânico e a Imprensa Régia. Uma missão de artistas franceses, modistas e escritores serviu aos desígnios de uma elite, tanto brasileira quanto portuguesa, que buscava requintar-se através da moda europeia, ou mais especificamente, francesa. Foi criado o Real Teatro de São João (1813), bem como foi incentivada a vinda de artistas plásticos e cientistas que buscavam pesquisar a fauna e flora brasileiras.

Os ensaios deste trabalho abordarão aspectos da sociedade, cultura, política e economia através de uma narrativa panorâmica, pontuando as mais recentes descobertas da historiografia acerca daquele período de crise e desagregação do sistema colonial, da consolidação de uma nova nação (ainda que ausente um sentimento de identidade nacional que só seria consolidado muito tempo depois com o modernismo).

Todavia, enquanto os autores lançam luzes sobre diferentes aspectos daquela conjuntura histórica, fica a cargo do leitor uma reflexão posterior, que envolve o sentido geral do movimento histórico naquele período e explique a singularidade da emancipação brasileira num processo conservador em que o desenvolvimento comercial e do próprio capitalismo no país[2] irão conviver com a escravidão e com um regime político que em diversos aspectos não se difere do antigo Antigo Regime, transplantado para terras americanas.

A coroa teve de lutar contra tendências desagregadoras externas e internas. A Revolução Constitucionalista do Porto de 1820 buscava romper com o absolutismo e criar em Portugal uma Monarquia Constitucional com o retorno de D. João VI ao continente europeu, o que efetivamente ocorreu. No âmbito interno, criou-se um clima em que se via o movimento do Porto como partidário da re-colonização do Brasil, algo já impensável em face das transformações sócio-econômicas por aqui operadas desde 1808  - há uma polarização entre brasileiros e portugueses que impulsiona a emancipação. Internamente, há a revolução pernambucana de 1817, de caráter federalista, autonomista e republicano. Há a Confederação do Equador de 1824 com nítido caráter separatista e republicano. E houve as guerras de independência, frequentemente olvidadas, precedidas da adesão espontânea de algumas províncias às cortes de Lisboa em claro desafio ao poder central localizado no Rio de Janeiro.

Estamos assim diante de um período histórico singular que opõe ideias derivadas da Revolução Americana (17776) e da Revolução Francesa (1789) e a centralização política que informa o absolutismo. O liberalismo econômico, nas palavras de um historiador, um grande mal entendido no Brasil,  apareceu no país de forma contraditória, coexistiu com o tráfico de escravos até 1850 e a escravidão até 1889, bem como conciliou com o regime monárquico absolutista. Aliás, após a abertura dos portos brasileiros às nações amigas, nunca houve um número tão alto de escravos ingressando no país – tratava-se, para além das culturas do açúcar e do tabaco, efetivamente do negócio mais rendoso do período, num comércio dominado principalmente por portugueses.  Considerando que em 1823 apenas 9% da população morava em cidades e em algumas das cidades mais de 50% da população era de escravos, percebe-se como seria difícil constituir um mercado interno que consolidasse uma economia capitalista.

O processo histórico contraditório de rupturas e continuidades criou uma base pouco sólida para a dinastia Bragança – a opulência real, as festas civis/religiosas e os rendimentos devidos aos nobres que para cá imigraram foram arcados com impostos sobre a produção agrícola. Em troca, tanto D.  João quanto D. Pedro conferiam títulos de nobreza a centenas de brasileiros de modo indiscriminado e, importante, perpetuando práticas já obsoletas em países da Europa que passavam por sua experiência histórica das revoluções burguesas.

Em que pese este trabalho não ter a pretensão de oferecer novas interpretações sobre a crise colonial e a independência, o livro, pelo seu aspecto didático sem comprometer a fidelidade junto às fontes históricas, é uma boa iniciativa no sentido de fazer com que os estudos da história venham além dos trabalhos especializados, eventualmente acessíveis apenas ao historiador de ofício.   
       

Joaquim Cândido Guillobel - "Fiel retrato do interior de uma casa brasileira. (1814-1816)




[1] Poderíamos suscitar como exemplo o 7 de Setembro de 1822 com o Grito do Ipiranga, fato noticiado por um único jornal em sua época, não correspondendo, ao contrário do que se sugere, em um marco de ruptura mas a consolidação de movimento em direção à independência que os historiadores costumam rotular como processo de longa duração.
[2] Bem como a inserção do Brasil nas relações internacionais face ao desenvolvimento geral do capitalismo no mundo.

domingo, 26 de agosto de 2018

“Um Outro Olhar Sobre Stálin” – Ludo Martens


“Um Outro Olhar Sobre Stálin” – Ludo Martens

 Resenha livro – “Um outro olhar sobre Stálin” – Ludo Martens - Para a História do Socialismo Documentos



O escritor alagoano Graciliano Ramos certa feita bem observou: “nenhum homem é mais odiado pela burguesia do que Stálin. E com razão”. De fato, se houve um dirigente da esquerda revolucionária mais atacado e caluniado pelos meios de comunicação do imperialismo mundial, bem como pelos fascistas ao seu tempo, foi Stálin. E isto não é gratuito.

Em sentido contrário ao que se é aprendido frequentemente na escola e em filmes de hollywood, não foram os americanos com seu dia D que impediram o nazismo de triunfar. A guerra àquela altura já estava definida desde a batalha de Stalingrado, Kursk e a heroica resistência do povo soviético face ao cerco de Leningrado. O exército vermelho destruiu militarmente o nazismo e esta verdade deve ser levada em consideração com todas as suas implicações, bem como suscitando razões do êxito soviético.  Já os americanos, num momento em que os rumos da Guerra já estavam decididos, mataram 500 000 civis com a Bomba Atômica numa manobra para intimidar a URSS e o movimento comunista internacional.

Aqui aparece o interesse deste livro de Ludo Martens. Não se trata de biografia de Stálin, mas de uma análise objetiva calcada em vasto repositório de fontes que demonstram muito bem como somos muito mal informados acerca do que ocorreu na União Soviética e os fatos que se passaram no período de Stálin em particular.

No que tange à II Guerra, não haveria vitória em primeiro lugar sem a assombrosa industrialização que criou as condições para o desenvolvimento de um país extremamente atrasado, com uma maioria esmagadora de camponeses vivendo em condições medievais,  utilizando arados de madeiras e fortemente influenciados pela igreja com suas mistificações. Milhares de camponeses foram para a cidade e tornaram-se proletários e um forte estímulo no nível da cultura também fez avançar a consciência do povo - o engajamento na construção do socialismo. Não haveria vitória na II Guerra se não tivesse ocorrido igualmente importantes depurações dentro do partido e em particular no exército. As vésperas da guerra desbaratou-se a operação Tuckachév de inspiração bonapartista – dentro de URSS dos anos 30 havia atividade clandestina de todo o tipo de oportunistas que buscavam minar por dentro o primeiro país soviético. Se não houvesse depuração, o estrondoso número de 23 milhões de russos mortos na II Guerra Mundial seria maior.

O assassinato de Kirov em 1934 ou mesmo antes com a tentativa de morte de Lênin demonstram como havia uma intensa atividade clandestina buscando galgar posições para liquidar o regime soviético.

Talvez, a forma como se conta a história da Revolução Russa, muito inspirada nas narrativas anticomunistas, revisionistas e trotskystas, seria a de que a revolução correspondesse a uma data em outubro de 1917. Como se a revolução não fosse um processo histórico que perdura-se em encarniçada luta de classes em longa duração. Uma narrativa como se a revolução trinfou e uma suposta contra-revolução burocrático dirigida por Stálin engendrara um “estado operário deformado” desvirtua a realidade dos fatos. 

Para muitos militantes de esquerda, formados num ambiente onde ainda predomina os pontos de vista trotskystas e revisionistas, Stálin seria um ditador e um burocrata e de certa forma uma ruptura com a orientação leninista. Trótsky, aquele que aderiu ao menchevismo em 1903 e só aderiria ao bolchevismo em agosto de 1917; aquele que polemizou a vida inteira com Lênin nas questões mais essenciais como o problema a questão dos sindicatos (uma escola de comunismo em Lênin), sobre a I Guerra (enquanto Lênin dentro do espírito internacionalista proclama a guerra contra a guerra, Trótsky vacila achando oportuna a vitória militar do czar), sobre o socialismo num só país (que como veremos nada tem a ver com o nacionalismo e foi a tese defendida por Lênin).

Um novo olhar para o que foi a história da União Soviética nada mais é do que a constatação de que Stálin soube bem dirigir o partido num contexto que passa despercebido/desconhecido, com sabotadores de todo o tipo, com grandes proprietários especulando e com isso levando a fome às cidades, à infiltração de anticomunistas dentro do partido e até na direção, atuando no sentido de perseguir os mais capazes e mais valentes militantes, à destruição deliberada de Khulags de máquinas e animais para sabotar a coletivização da terra; uma situação de guerra de classes perdurou na URSS ao longo da segunda e terceira década do século passado fazendo com que alguns socialistas humanistas se chocassem com a “violência stalinista”.

Esta contextualização é importante para entender as razões da “unanimidade” de fascistas,  liberais, sociais democratas e trotskistas em caluniar Stálin. A vitória da revolução de Outubro despertou o ódio de todas as potências imperialistas que desde o início declararam guerra ao país dos soviets. Após a guerra perdura-se uma guerra civil numa frente ampla envolvendo a burguesia expropriada da Rússia, os grandes proprietários, militares do antigo regime e a intervenção de nada menos que 14 países diferentes operando em solo Russo. Além de consolidar a tomada do poder os bolcheviques tiveram que criar um exército desde o zero. As tropas do general branco Denekin e Kolchak, este último uma rara espécie de Hitler russo, estiveram perto de esmagar a revolução transformando a Rússia numa comuna de paris.

Este livro de Ludo Martens, nesse sentido, não pretende ser uma biografia de Stálin, mas a refutação das principais críticas que ouvimos sobre Stálin. Um trabalho altamente documentado que demonstra como foi montada uma verdadeira operação de guerra ideológica pelo imperialismo (e ao seu tempo o fascismo) contra a URSS[1].

As chamas depurações (1938/9) na verdade mostraram a sua justeza com o término da II Guerra. Quando os nazistas tomaram territórios soviéticos, a primeira coisa que faziam eram identificar as lideranças locais do movimento comunista e levá-los, com familiares, para morte nos campos de concentração: quantos colaboracionistas nazis, brancos, partidários do tzarismo, sociais revolucionários e kulags não prestariam ajuda a Hitler com o intuito de varrer os comunistas do poder. Criminosos políticos  foram devidamente afastados naquela conjuntura em que o país se preparava para uma guerra em proporção jamais vista. As fontes que são suscitadas em livros anticomunistas falam em 9 milhões de mortos na depuração. Após a abertura de arquivos nos anos 80, pesquisas de historiadores orçam em centenas de milhares de mortos – uma minoria por execução e uma maioria por problemas de saúde relacionadas a dificuldades de abastecimento as quais atingiam toda população. E mais, a primeira depuração foi entendida como exagerada e em 6 meses Stálin estabelece mudança de diretriz.

Todos os mitos que escutamos sobre Stálin bem como a história da revolução russa precisam cair por terra. É preciso entender que o nascimento do socialismo na Rússia foi um evento cuja violência é proporcional à reação não só das classes sociais proprietárias derrotadas, mas do imperialismo mundial: a URSS constitui uma ameaça de novas revoluções de outubros e a URSS sob Stálin que transformou um país donde camponeses aravam a terra com arado de madeira na segunda maior potência mundial, que colocou centenas de milhares de pessoas em escolas, institutos e universidades, que em 13 anos desenvolveu a indústria num ritmo jamais visto até então, que coletivizou a terra e destruiu politicamente a última classe social exploradora do país, os kulags, um país poderoso e influente que reivindicava o socialismo foi uma ameaça real ao sistema de exploração capitalista. A existência da URSS e a vitória do exército vermelho sobre o nazismo contagiou os trabalhadores por todo o mundo, colocando o capitalismo nos países centrais em grave risco[2] – da mesma forma ocorre com os países da periferia que se mobilizam contra o neocolonialismo, com apoio da URSS.

Outros mitos envolvem o aspecto burocrático da direção stalinista, quando Stálin combateu da forma mais reiterada os desvios, o relaxamento e acomodamento de dirigentes e suscitava as bases a controlarem a direção. A noção leninista de que o exército deve ter comissários políticos, estabelecendo uma relação coerente entre princípios e estratégias políticas e atividade militar foi aplicada a risca por Stálin.  Trótsky por sinal tinha posição diferente de Lênin e Stálin até aqui: a rejeição da direção ideológica e política do exército pelo partido. O chamado “culto à personalidade” também não tem qualquer embasamento face aos documentos de pessoas que conviveram com Stálin. Quando Kaganovich, um bolchevique que se manteve fiel às ideias revolucionárias, emendou em texto uma passagem com a expressão marxista-leninismo-stalinismo,  foi imediatamente repelido por Stalin.  Stálin não aceitou a redação de um livro sobre sua infância identificando que a publicação era toda ela laudatória, inverídica e impertinente. A grande verdade é que Stálin foi marxista-leninista, e, se quisermos, um leninista ortodoxo. É da velha guarda bolchevique e seu espírito rebelde remonta ao tempo do seminário quando lia Marx escondido sob a capa de uma bíblia. Expulso do seminário, iniciou atividade de luta direta com a autocracia:

“Stálin tinha 26 anos, quando pela primeira vez se encontrou com Lênin, na Finlândia. Foi em Dezembro de 1905, por ocasião da conferência bolchevique. Entre 1905 e 1908, o Cáucaso é o palco de uma intensa atividade revolucionária. Durante esse período, a polícia registra 1150 “atos terroristas”. Stálin desempenha aqui um grande papel. Em 1907-1908, dirige com Ordjonikídze e Vorochílov secretário do Sindicato do Petróleo, uma luta legal de grande envergadura dos 50 mil trabalhadores da indústria petrolífera em Baku. Obtêm o direito de eleger representantes dos trabalhadores, que se reúnem em conferência para discutir uma convenção coletiva de trabalho. Lênin saudou esta luta travada num momento em que a maior parte das células revolucionárias na Rússia havia cessado toda a atividade”.

A oposição Stálin e Trótsky, com a adesão de boa parte da esquerda junto ao segundo, explica muito das nossas debilidades. Só um idiota acredita que o socialismo em um só país de que falou não só Stálin mas também Lênin nada tem a haver com o internacionalismo. Trata-se de garantir a existência de uma trincheira abatido o inimigo, e desde esta trincheira avançar (e não recuar). A verdade é que Trósky até meados de 1930 não acreditava que uma país atrasado como a Rússia poderia avançar rumo ao socialismo (crença compartilhada por Bukharin) – apenas a vitória da revolução em países avançados poderia salvar a Rússia. Se este espírito de derrotismo e de renúncia à luta de classes encarniçada que se seguia da revolução à guerra civil prevalecesse, não se teriam criado as condições para uma resistência heroica do povo soviético face ao imperialismo e à guerra – Lênin e Stálin orientavam o partido e o povo a avançar, a engajar-se no trabalho e construir o socialismo, bem como defendê-lo em todos os níveis. A URSS foi uma trincheira do socialismo em nível mundial e isto explica a fúria dos capitalistas internacionais face a Stálin. O derrotismo de Trótsky mostrou-se errado na prática. Trótsky foi um oportunista, criou divisões e facções internas no partido, desenvolveu atividade clandestina e antipartidária em período que abrande as mais duras lutas de classe. Trótsky teve a ousadia de sugerir que a derrota da URSS face aos nazis poderia ser algo de bom pois criaria as condições para a revolução “antiburocrática” contra o stalinismo.

Por isso em todo mundo são os marxistas-leninistas os que lutam, não se desmoralizam e são aqueles que a burguesia e os capitalistas mais temem e odeiam. Trata-se o marxismo-leninismo não de uma narrativa, nem de uma visão social do mundo, nem de uma “moral” como fala o menchevique Trótsky, mas de uma ciência com seus pressupostos teórico metodológicos que quando bem assimilados fazem com que cada um sinta a mais plena convicção da justeza desta orientação política, firmeza e intransigência na ação.   
  




[1] Stálin propôs à Inglaterra e França uma aliança anti-hitler, mas a proposta foi rejeitada. Logo os comunistas se aperceberam de que a expectativa dos anglo-saxões era a de que Hitler atacaria a Rússia e destruiria o socialismo como lhes convinha. O pacto de não agressão foi nada menos que uma trégua de dois país que sabiam caminhar para o conflito. O pacto foi assinado entre a URSS e Alemanha e em termos militares foi decisivo – junto com a vitória na guerra da Finlândia pelo Exército Vermelho – para preparar a URSS para guerra.
[2] Aqui reside a origem do Estado de Bem Estar Social: benefícios aos trabalhadores para que não ocorram novas Revoluções de Outubro.

segunda-feira, 25 de junho de 2018


“Três Vezes Zumbi” – Jean França e Ricardo Ferreira



Resenha Livro – Três Vezes Zumbi: a construção de um herói brasileiro – Jean M. C. França e Ricardo A. Ferreira - Editora Três Estrelas

“Nenhuma categoria social lutou de forma veemente e consequente contra a escravidão que a dos próprios escravos. Nem por terem fracassado em seus esforços deixaram de condicionar em grau considerável o processo histórico brasileiro, em quase todos os seus aspectos mais importantes. No dia em que forem resgatadas da grande face oculta brasileira  - face mais ampla e importante que a visível e oficial – as revoltas escravas projetarão luz sobre um sem número de contradições históricas que de outro modo sempre permanecerão incompreensíveis. Na história das revoltas brasileiras, a de Palmares ocupa lugar ímpar. Não foi apenas a primeira, mas a de maior envergadura”. Décio Freitas in “Palmares: a Guerra dos Escravos”.

                
Este ensaio dos professores da UNESP Jean França e Ricado Ferreira não se propõe a ser mais uma biografia do Líder Zumbi ou um relato histórico do Quilombo dos Palmares. A proposta do trabalho é fazer uma síntese das diversas leituras e interpretações daquela insurreição e seu líder na história. Aqui reside o que há de mais interessante no ensaio: desde os cronistas, viajantes estrangeiros e homens de estado do Brasil colônia até as leituras mais contemporâneas daqueles eventos elaborando uma noção de resistência, de luta contra o elemento opressor Branco diante da barbárie da escravidão, até a construção do ícone de movimento negro, Zumbi.
                
Os autores identificam três grandes ondas que expressam diferentes noções acerca de Palmares. São diferentes visões sociais de mundo e contextos históricos que também vão se revelando conforme se observa como o Brasil colonial, o Brasil egresso da independência política em 1822 e as renovações dos estudos que se destacam a partir de Nina Rodrigues em fins do XIX e especialmente Edson Carneiro já em meados do século XX; como em cada período surgiu formas muito distintas envolvendo a figura de Zumbi e Palmares.

No período colonial a insurreição de Palmares era entendida como uma ameaça constituída à ordem vigente que se fundava no poderio quase incontrastável dos latifundiários. Sociedade construída à sombra da monocultura do açúcar, algodão e tabaco, sob a base do trabalho escravo. Como se sabe o Brasil colonial reduzia seu número de letrados a uma ínfima minoria: bacharéis e homens do estado que expressam o ponto de vista daquelas elites agrárias. Há paralelamente o relato dos jesuítas: os religiosos a princípio não se opõem a escravidão dos negros mas pretendem reformas no trato entre o senhor e seu escravo no sentido de sua adequação aos preceitos religiosos cristãos. Acerca da percepção dos colonos sobre a insurreição na Serra da Barriga:

“Ao longo dos Seiscentos e Setescentos, o quilombo despertou grande interesse e mereceu atenção de muitos letrados do período, holandeses e portugueses”. Pg.  149

O Palmares reconstruído por aqueles homens brancos e eventualmente ligados à administração da coroa se voltam aos contornos militares e administrativos do conflito.

“São extensas descrições da geografia da região, da configuração e disposição dos mocambos, estimativas sobre a população, notas sobre suas capacidades militares e, sobretudo, relatos de batalhas movidas contra os revoltosos”. Pg. 149

No séc. XIX com eventos bastante dinâmicos que envolvem a transferência da corte para o Brasil em 1808 e a nossa emancipação política ulterior, parece reduzir o interesse dos letrados de então pelos acontecimentos em Palmares. Quando se encontra menções, o grande Quilombo de Alagoas se mostra como um foco de barbárie, um empecilho ao desenvolvimento da civilização brasileira, nação que se constrói e identidade que deveria se forjar menos no negro e mais no elemento branco e indígena[1]. Certa literatura ufanista por outro lado ressalta os feitos do paulista Domingos Jorge Velho, bandeirante que alcançou a aniquilação de Palmares e foi erigido à condição de herói nacional.

Este mesmo Domingos Jorge Velho seria retratado na 3ª onda de interpretação não como um herói, mas como um cruel vilão, na verdade, um particular que à custa da destruição de palmares exige datas das terras então conquistas – alguém movido portando pela ambição de riquezas.  

Astrogildo Pereira, então secretário-geral do PC, lança as bases para uma primeira interpretação mais materialista do fenômeno histórico enxergando no quilombo manifestação de luta de classes, local de resistência em face dos poderes constituídos. Para os marxistas, Zumbi surge como um ícone dos oprimidos e com os movimentos identitários em fins dos anos 1980 como um símbolo da consciência negra[2]. Outro destaque dado pela mais recente historiografia revela o caráter multi-étnico de Palmares. Estudos arqueológicos que estão em curso revelam a presença de cerâmica  indígena, e mais de um historiador diz haverem no Quilombo não só negros, mas índios, mestiços e até brancos.

Uma questão a ser formulada aqui é: quais das distintas versões se aproximam da verdade, do que de fato ocorreu em Palmares e quem foi seu líder. Os documentos são bastante contraditórios nesse sentido. Para alguns, Zumbi é uma espécie de patente político militar e não um indivíduo em específico. Outros dizem que Zumbi advém da cultura Banto e tem caráter de divindade. Outros ao contrário dizem Zumbi significar diabo. Mais recentemente a historiografia passou a se referir de um lado a Ganga Zumba, primeiro “rei” de Palmares, e que, ao fazer um acordo e ser morto pelos combatentes oficiais, abriria espaço para o verdadeiro Zumbi, aquele que se recusou a capitular até a morte. Algumas versões dizem que, ao constatar a derrota militar, Zumbi se suicida jogando-se de um penhasco. Outros combatentes também se suicidam revelando preferir a morte à vida no cativeiro, sujeito a castigos que vão do pelourinho até a amputação de braços e pernas. Outros relatos dizem que Zumbi pelejou até a morte, com honradez.

Os autores em seu prefácio sinalizam para certa concepção equivocada de intangibilidade da verdade na história. Não estamos com isso endossando o ponto de vista Positivista, que de fato pretendia uma história definitiva, a verdade vista através dos documentos (fontes primárias), ou nas palavras do pai fundador da historiografia positivista Von Ranke, “Die Geschichte wie es eigentlich gewesen hat” – a história como de fato aconteceu. As diferentes versões da história evoluíram ao lado das inovações no campo político e teórico- metodológico da disciplina História. É possível contar a história da Palmares sob diversos enfoques e vieses políticos, mas é a confrontação crítica dos documentos por meio do materialismo histórico o meio de se aproxima mais da verdade[3] da história. Negar a verdade pode simplesmente significar que os relatos dos jesuítas e cronistas dos séculos XVII e XVIII são tão verdadeiros quanto às pesquisas arqueológicas em curso na Serra da Barriga - são verdadeiros parcialmente na medida em que revelam à reação das autoridades e da sociedade colonial à rebelião. Para usar uma bela ilustração de Michel Löwy, se a verdade científica das ciências exatas e da natureza não se equiparam às das ciências sociais, pode  pensar-se num mirante com diferentes andares em que cada narrativa terá um campo de visão mais ou menos vasto, bem como mais ou menos próximo do que ocorreu no principal quilombo das Américas Espanhola[4] e Portuguesa. O que os autores chamam de narrativa esquerdista nada mais fez do que elaborar uma história materialista, chamando atenção para, não “o risco” de Palmares para país sob o jugo da escravidão, mas como iniciativa pioneira de resistência do setor mais oprimido daquela sociedade. 

A direita ainda mantém os seus heróis como os Bandeirantes e homens de estado que nomeiam rus e avenidas das cidades brasileiras. A esquerda aliada aos setores explorados e oprimidos deve se permitir a eleger os seus heróis, papel legítimo atribuído ao Quilombo dos Palmares e especialmente a Zumbi.  




[1] A maior expressão do “nacionalismo” indianista é José de Alencar.
[2] Nesse sentido, o 20 de Novembro, dia da consciência negra ocorre na provável data da morte de Zumbi em 1695.
[3] Sem com isso “torturar” os documentos para que eles digam o que se tem como pressuposto teórico, o que foi o caso de nossos primeiros marxistas pouco familiarizados na doutrina de Marx.
[4] A título de exemplo, o Quilombo de Saramaka no Suriname.

quinta-feira, 21 de junho de 2018

“Raízes do Brasil” – Sérgio Buarque de Holanda


“Raízes do Brasil” – Sérgio Buarque de Holanda



Resenha Livro - “Raízes do Brasil” – Sérgio Buarque de Holanda – Companhia das Letras - 26ª Edição

“Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade — daremos ao mundo o “homem cordial” . A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. Seria engano supor que essas virtudes possam significar “ boas maneiras” , civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante. Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo — ela pode exprimir-se em mandamentos e em sentenças. Entre os japoneses, onde, como se sabe, a polidez envolve os aspectos mais ordinários do convívio social, chega a ponto de confundir-se, por vezes, com a reverência religiosa. Já houve quem notasse este fato significativo, de que as formas exteriores de veneração à divindade, no cerimonial xintoísta, não diferem essencialmente das maneiras sociais de demonstrar respeito. Nenhum povo está mais distante dessa noção ritualista da vida do que o brasileiro” Holanda. S. B. Pg 146-7
                
Sabe-se que o primeiro cronista da nossa a história foi o Frei Vicente do Salvador, franciscano da Bahia. Seu “História do Brasil” data de 1627. Assim como ele, outros cronistas e viajantes deixaram relatos valiosos sobre o nosso passado colonial, nossa herança rural, patriarcal cuja opulência e hábitos de fidalguia herdados da tradição ibérica conviviam candidamente com o trabalho servil. Todavia àquela altura não se pode cogitar de uma História enquanto disciplina ou fonte de conhecimento autônomo, com seus próprios pressupostos teórico-metodológicos. A História, bem como a Sociologia e demais ciências humanas irão ter seus contornos e sentido de especialização só no séc. XIX com o alemão Von Ranke e aqui no Brasil com o fundador da historiografia brasileira propriamente dita, Varnhagen.

Pode-se aqui falar de uma primeira geração de historiadores positivistas cuja história acerca das coisas brasileiras não raro cae num certo ufanismo: uma história dos grandes eventos e das personalidades dos estadistas e demais notáveis. Influenciados pelo naturalismo francês, alguns destes pioneiros da nossa historiografia como um Euclides da Cunha ou um Capistrano de Abreu interpretam o Brasil influenciados pelas noções de raça, pelo determinismo geográfico, com certo protagonista do elemento Português – em seu Capítulos da História Colonial, Capistrano embaralha o índio com elementos paisagísticos, quase como um elemento irrelevante e acidental da nossa trajetória – quando se sabe que o índio, em especial os tupis da região litorâneo, jogaram um papel estratégico no desbravamento do interior, ou mesmo antes associando-se aos portugueses na exploração do Pau Brasil, além de miscigenação profunda envolvendo os mamelucos de modo que na São Paulo colonial os habitantes, incluindo os colonizadores, falam a língua tupi, inclusive no recinto doméstico.

Se a Semana da Arte Moderna de 1922 criou as condições para a edificação de uma arte genuinamente nacional, não só quanto à temática – considerando o “nacionalismo” dos românticos indianistas – mas quanto à forma, ao estilo e mesmo aos propósitos, anos depois a revolução de 1930 colocaria em marcha mudanças estruturais, com o desenvolvimento associado à intervenção decisiva do Estado na economia e na sociedade. Uma revolução modernista na historiografia brasileira ocorreria na década de 1930, com o advento de “Casa Grande e Senzala” (1933) de G. Freire, “Evolução Política do Brasil” (1933) de Caio Prado Júnior e este “Raízes do Brasil”[1] (1936) de Sérgio Buarque de Holanda.

Trata-se de um momento em que a História se aproxima das Ciências Sociais. Cada qual parte de pressupostos teóricos bastante distintos mas movimentam-se no mesmo sentido de busca da especificidade Brasileira. Num país donde o Estado antecedeu a Nação, cumpria a este grupo de intelectuais forjar uma identidade nacional ou buscar as especificidades do Brasileiro sempre a partir da reflexão acerca do nosso passado, de nossa herança colonial. “Raízes do Brasil” é um notável ensaio que traça as linhas gerais da psicologia brasileira, da cultura e da história das nossas ideias. 

Para Sérgio Buarque o que há de mais essencial no povo brasileiro envolve por um lado nossas raízes ibéricas e por outro nossa herança rural, expresso no pessoalismo que se contrapõe à impessoalidade do Estado e da lei, o desleixo com que o colono aqui tratou a agricultura reproduzindo na lavoura de cana o métodos arcaicos dos índios sem o uso de arados, a nossa cordialidade que envolve não exatamente bondade, mas um sentimentalismo intimista que informa inclusive as relações comerciais para o espanto de viajantes estrangeiros no país. Nada mais avesso ao trabalho repetitivo, cotidiano, a longo prazo, em contraponto ao espírito de aventura que busca grandes fortunas no menor intervalo de tempo.

Ao contrário da tradicional historiografia positivista ou naturalista que interpreta o homem a partir das influências do meio, Sérgio Buarque segue uma orientação culturalista. Apropriação da dialética tratando de explicar nosso país a partir de oposições como cidade x campo, família x estado, aventureiro x trabalhador.

Vejamos algumas passagens que revelam a propósito a orientação webberiana do nosso autor:

“É compreensível, assim, que jamais se tenha naturalizado entre gente hispânica a moderna religião do trabalho e o apreço à atividade utilitária. Uma digna ociosidade sempre pareceu mais excelente, e até mais nobilitante, a um bom português, ou a um espanhol, do que a luta insana pelo pão de cada dia. O que ambos admiram como ideal é uma vida de grande senhor, exclusiva de qualquer esforço, de qualquer preocupação. E assim, enquanto povos protestantes preconizam e exaltam o esforço manual, as nações ibéricas colocam-se ainda largamente no ponto de vista da Antigüidade clássica. O que entre elas predomina é a concepção antiga de que o ócio importa mais que o negócio e de que a atividade produtora é, em si, menos valiosa que a contemplação e o amor”. Pg. 38

“Se semelhantes característicos predominaram com notável constância entre os povos ibéricos, não vale isso dizer que provenham de alguma inelutável fatalidade biológica ou que, como as estrelas do céu, pudessem subsistir à margem e à distância das condições de vida terrena. Sabemos que, em determinadas fases de sua história, os povos da península deram provas de singular vitalidade, de surpreendente capacidade de adaptação a novas formas de existência. Que especialmente em fins do século xv puderam mesmo adiantar se aos demais Estados europeus, formando unidades políticas e econômicas de expressão moderna. Mas não terá sido o próprio bom êxito dessa transformação súbita, e talvez prematura, uma das razões da obstinada persistência, entre eles, de hábitos de vida tradicionais, que explicam em parte sua originalidade?”. Pg. 36

De uma certa maneira a incapacidade do português de desenvolver a colônia a partir de uma orientação bem delimitada e estratégica ao invés do furor, da anarquia, do retirar o máximo da terra com o menor dos esforços tem definitivamente explicações que envolvem a questão da cultura. Em Portugal como se sabe o feudalismo não deitou raízes profundas. Uma burguesia mercantil granjeou ascensão social e o independência nacional portuguesa foi consolidado já no séc. XIV com a Revolução de Avis, antes de qualquer outro país europeu. Por suposto, tal burguesia estava muito longe de se assemelhar aos seus pares franceses da Revolução de 1789 que constitui o Estado controlado pela lei e condições ótimas para o desenvolvimento do capitalismo – a burguesia mercantil portuguesa aspira não ao acúmulo de riquezas, mas à fidalguia, despreza o trabalho, em especial o trabalho manual, em detrimento da busca de títulos de nobreza, consoante a visão social de mundo medieval. O gosto pelo discurso rebarbativo, o bacharelismo e o desprezo pelo trabalho manual causou estranheza ao pintor francês Auguste F. Biard que nos trouxe belos quadros retratando o Brasil do séc. XIX. Aquela influencia de cultura de fidalguia observou o pintor quando foi orientado a contratar um escravo para carregar seus instrumentos de trabalho, sendo mal visto pelos brasileiros quando pintava e carregava seus instrumentos por conta própria.

Todavia, uma análise restrita ao problema cultural se por um lado nos oferece retratos preciosos do passado, ainda possui limites nas questões mais fundamentais: por que o brasileiro é cordial? Por que da confusão entre o público e o privado que revela nosso patrimonialismo. Qual a base que engendra a nossa aversão natural à burocracia que remete a impessoalidade, à norma jurídica abstrata que contrasta com as vicissitudes da realidade – este último fato relacionado com a forma deturpada com que o liberalismo grassou entre nós. Ausente em Sérgio Buarque de Holanda uma análise mais materialista da história capaz de conferir-lhe sentidos que ultrapassem uma interpretação pessoal, ainda que muito bem feita. Ainda assim, além da riqueza de informações, este notável livro de história oferece interpretações pertinentes e de certa forma se soma ao marxista Caio Prado Júnior quando propugna uma revolução que dissipe nossas raízes ibéricas – até então, a respostas dadas pelos homens ilustrados deu-se em torno de sistemas em geral teleológicos e com suposta vocação de aplicabilidade universal, como o nosso positivismo, muito em voga em fins do XIX. Uma colônia agro-exportadora de poucos produtos suscetíveis às variações do mercado europeu, sob o predomínio dos Senhores de Engenho e dos Barões de Café e sob a base do modo de produção escravagista. De opinião semelhante ao de Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de Holanda:

“Se, conforme opinião sustentada em capítulo anterior, não foi a rigor uma civilização agrícola o que os portugueses instauraram no Brasil, foi, sem dúvida, uma civilização de raízes rurais. É efetivamente nas propriedades rústicas que toda a vida da colônia se concentra durante os séculos iniciais da ocupação européia: as cidades são virtualmente, se não de fato, simples dependências delas. Com pouco exagero pode dizer-se que tal situação não se modificou essencialmente até à Abolição. 1888 representa o marco divisório entre duas épocas; em nossa evolução nacional, essa data assume significado singular e incomparável”. Pg. 73


[1] Outra edição modificada de “Raízes do Brasil” foi publicada em 1947.