segunda-feira, 22 de maio de 2017

“O Caso Lula” – Vários Autores

“O Caso Lula” – Vários Autores



Resenha Livro – “O Caso Lula: A Luta Pela Afirmação dos Direitos Fundamentais no Brasil” – Cristiano Zanin Martins, Valeska Teixeira Zanin Martins, Rafael Valim (Org.)  - Editorial Astrea – ContraCorrente

“Uma crítica à jurisprudência burguesa, do ponto de vista do socialismo científico, deve tomar como modelo a crítica à economia política burguesa, como o fez Marx. Para isso ela deve, antes de tudo, adentrar no território inimigo, ou seja, não deve deixar de lado as generalizações e as abstrações que foram trabalhadas pelos juristas burgueses e que se originaram de uma necessidade de sua própria época e de sua própria classe, mas, ao expor a análise dessas categorias abstratas, revelar seu verdadeiro significado, em outras palavras, demonstrar as condições históricas da forma jurídica.” PASHUKANIS, Evguiéni B. “Teoria Geral do Direito e Marxismo”. Boitempo Ed. Pg. 80.
                
No momento em que escrevemos esta Resenha a Operação Lava Jato segue o seu curso e o momento político do Brasil está numa situação de indefinição e expectativa: se há algo que se pode extrair das revelações do furo de reportagem da Rede Globo de Televisão acerca de delação de empresários da JBS envolvendo gravemente o presidente Temer é que a notícia da última quarta feira (17.05.2017) foi uma intervenção orquestrada junto ao poder  judiciário e especificamente à Operação Lava Jato, responsável pela investigação. Foi assim também com relação à revelação da interceptação telefônica envolvendo Lula e Dilma, ao atropelo da lei, em conluio com a mídia, em particular com a Rede Globo, revelando uma relação de cumplicidade entre promotores, Juizes e mídia no sentido de subverter mesmo a ordem legal para incriminar o ex-presidente e impedir àquele momento uma eventual nomeação de Lula à Casa Civil.
                
Que o poder Judiciário se soma aos demais poderes como parte integrante do Estado, sendo de uma forma geral aparato repressivo-ideológico a serviço da classe dominante não deveria ser uma surpresa àqueles que compartilham a “visão social de mundo” ou o pressuposto teórico-metodológico marxista, marxista-leninista ou remotamente crítico. O problema é que especificamente o problema do direito e do judiciário, em face da crise brasileira, vem se acentuando de tal maneira que, parece-nos, a militância que se dedica a lutar e educar o povo e os trabalhadores para os grandes embates envolvendo a nova etapa da luta de classes que esxurge com a tomada do poder pelos golpistas[1] precisa ela mesma de uma nova educação.

Este livro é um importante instrumento de esclarecimento acerca do processo judicial envolvendo o ex-presidente Lula e as arbitrariedades promovidas pela operação Lava Jato. Foram convidados diversos juristas da área de Direito Constitucional, Direito Processual Penal e Direitos Humanos para dar detalhamentos acerca do problema jurídico envolvendo a defesa de Lula.

Lula é digno de críticas pela esquerda em face de governos que deixaram a desejar num sentido de ruptura anticapitalista: foi um governo reformista quase sem reformas, em que pese algumas medidas democráticas paliativas que num país como o Brasil estão longe de serem insignificante com as políticas de redução da miséria, a começar pelo Bolsa Família.

Mais do que isso, e independente de suas qualidades ou defeitos pessoais, Lula é produto de uma importante etapa de reorganização do movimento operário e greves dos últimos 3 anos da década de 1970 que criou as bases para um ascensão de diversos movimentos populares que fez esmorecer a ditadura militar e deu condão para um processo contraditório de redemocratização: por um lado através de leis como a de anistia em que houve o esquecimento das torturas e bestialidades praticadas pelos torturadores – lei considerada constitucional recentemente pelo STF; e por outro a consecução de uma constituição relativamente garantista, que incorpora uma série de direitos, por exemplo o das crianças, do meio ambiente e o da função social da propriedade, e que só poderia ser resultado de um momento em que os movimentos sociais, pastorais, movimentos do campo e partidos de esquerda estavam em reais condições de intervir na cena política.

Lula é o principal dirigente do PT e é uma peça estratégica do tabuleiro político – um líder popular que na atual situação pode canalizar um programa numa orientação diametralmente contrária à agenda de medidas de devastação da economia nacional, retirada de direitos sociais e privatizações. As arbitrariedades jurídicas que Lula sofre revelam algo: o aspecto jurídico aqui apenas denuncia algo. Como a passagem supracitada do grande jurista soviético, este “algo” não pode ser buscado na norma jurídica mas numa análise materialista, na análise da história que situa a Operação Lava Jato em primeiro lugar como um instrumento central da operação golpista que está em curso[2].

Infelizmente, mesmo setores da esquerda estão presas em seus sensos comuns e a demagogia da luta contra a corrupção faz vítima nas fileiras do movimento popular: não seria de se estranhar que “movimentos de massa” como os da Ucrânia ou os que presentemente infestam a Venezuela, patrocinados por provocadores a soldo do imperialismo, arrastassem bem intencionados lutadores[3]. Daí ser necessário alguns esclarecimentos básicos, mesmo jurídicos.

A Operação Lava Jato tem como inspiração a Operação Mãos Limpas (década de 1990) de Itália. Seu procedimento na Europa foi em muito semelhante ao que acontece no Brasil: criações de “forças tarefas” com mobilização aparatosa e midiática o que em si fere de morte a presunção da inocência; uma perspectiva de eliminação pelo descrédito de toda a classe política através das denúncias de corrupção; e a popularidade do Procurador Di Pietro e Juiz Giovanni Falconni. Desde a Itália, aliás, o Brasil importa institutos jurídicos como o da delação premiada, além da prisão cautelar com a finalidade da delação e a execração pública mancomunada com a mídia. O resultado na Itália da operação Mãos Limpas foi um vácuo dentro da classe política criando condições para a ascensão do semi- fascista  Sílvio Berlusconi em 1992. Não há notícias de que a corrupção tenha diminuído na Itália desde então: apenas de que ela tenha se tornado mais sofisticada e difícil de se combater. A Itália continua sendo um dos países onde se detecta na população maior sentimento de impunidade em face deste tipo de crime.

O grande problema da Corrupção é que este tem sido utilizado como carro mote para o recrudescimento do aparato repressivo-ideológico do estado que implicará num endurecimento do regime político como um todo: é o que vem sendo ora proposto ora aplicado na prática como a relativização da proibição do uso de provas ilícitas o que permitiria o uso de grampos ilegais como forma de obtenção de prova atropelando a lei, ou mesmo a obtenção de uma confissão por meios de coação ou tortura, como em tempos sombrios de ditadura; violação do princípio do juiz natural com a ilícita prorrogação da competência do processo de Lula para Curitiba e mesmo do princípio primário da imparcialidade judiciária, quando até em entrevistas para imprensa, o Juiz Moro, fora dos autos, vem demonstrando qual é o seu lado na lide.

Aliás, de tão parcial a posição do Judiciário, restou claro o apoio ao ex-presidente no último dia 10.05.2017 com um ato com 50 mil pessoas  em frente ao 4º Tribunal Regional Federal de Curitiba. Estamos aqui diante de um momento importante: desde os rudimentos mais elementares do marxismo, sabemos que a função ideológica mais primária dos tribunais é zelar ao menos nas aparências pela imparcialidade. Quando se escancara a parcialidade do Tribunal ao ponto de uma manifestação angariar milhares, além de transformar Curitiba num palco de manifestação militar, com praças desfilando, denota-se que há um desajuste, uma crise.

Todavia, a esquerda precisa avançar, e avançar aqui significa entender que “a luta pela afirmação dos direitos fundamentais no Brasil” não é um problema jurídico. Os autores suscitam a Lei Processual Penal e criticam o modelo em que o Juiz que conduz a investigação seja o mesmo que julgue. Fala-se mesmo em Processo Penal do Espetáculo (Guy Deborad) diante das conhecidas relações promíscuas entre mídia e poder, podendo se suscitar a abusiva condução coercitiva de Lula (sem nenhum amparo legal, desde que nunca se recusou ao comparecimento perante o juízo do 4ª TRF) transmitida em todos os telejornais com o fito de desmoralizar o adversário político. Suscita-se mesmo a tese do jurista Carl Schmitt de Estado de Exceção quando numa inusitada decisão sobre eventual punição disciplinar envolvendo o Juiz Sérgio Moro e a sua ilícita revelação das interceptação telefônica, absolve-se o magistrado pois o desembargadores entenderam que a Operação Lava Jato é uma “exceção” e não se enquadra no procedimento comum – e de acordo com o jurista alemão, com alguma razão, quem decide o que é a exceção, detém o poder[4].

Todavia, a tradição marxista avançou bastante nos conhecimentos sobre o fenômeno jurídico e hoje mais do que nunca, precisamos estudar com mais afinco e profundidade o direito: são juízes e promotores que estão conduzindo junto às frações subordinadas ao imperialismo o atual rumo da história brasileira e do golpe de estado no país. Para além de duas divisas – por um lado o reformismo e o socialismo jurídico que irá buscar soluções no sistema jurídico através de reformas, o que surge na maioria dos artigos, e por outro lado, pela simples negativa com a ideia da representação em fetiche do estado como uma ideologia – é tempo de se voltar ao velho Marx e Pashukanis, dois autores que deram uma concretude ao direito, situando-o não dentro de uma velha escolástica de “estrutura” e “superestrutura”, mas no próprio DNA do capitalismo.

O Direito é um fenômeno especificamente capitalista. A forma jurídica deriva da forma mercantil. A compra e venda da força de trabalho esteve lastreada pelo liame jurídico dos contratos e de seu pressuposto, pessoas dotadas de uma capacidade jurídica que referimos como Subjetividade Jurídica. Foi necessário que rompessem com relação de dependência e domínio pessoal que marca o modo de produção escravista e feudal e se conformassem no mercado como sujeitos de direitos aptos a livre negociarem a força de trabalho como mercadoria para sua compra e venda.  

A existência do Direito é sistema de uma sociabilidade voltada à acumulação lastreada em exploração do trabalho assalariado e atravessado por contradições de classe.

Em Pashukanis, o Direito não é só ideologia e fetiche, portanto, mas também é um fenômeno real.

Diria o grande jurista soviético que do mesmo modo que a riqueza da sociedade capitalista assume a forma de uma enorme coleção de mercadorias, também a sociedade se apresenta como uma cadeia ininterrupta de relações jurídicas.

Para além da contraposição estrutura e superestrutura, o direito é dialeticamente considerado forma do processo real de troca – o direito está no plano da troca, ou em termos marxianos, é parte da sociedade civil. 

A especificidade da relação jurídica gira em torno da relação social engendrada entre proprietários de mercadorias. A crítica à jurisprudência burguesa do ponto de vista do socialismo científico deve tomar como modelo a à crítica da economia política burguesa.

Nestes termos, há algumas consequências: a luta pelo fim do capitalismo é a luta pelo fim do direito; não há espaço para ilusões acerca de promoção de justiça ou combate de corrupção através do direito burguês, a não ser num âmbito limitado, contraditório e que deve estar em primeiro lugar livre de ilusões jurídicas. O direito não é o terreno dos trabalhadores e do povo: deve ser utilizado como um instrumento de defesa, no âmbito da tática e no limite como forma para revelar as suas próprias contradições quanto ao seu particular e específico caráter ideológico.

Ganhar a disputa ideológica acerca da corrupção será uma árdua batalha de entendimento do que é o Estado e do que é o Direito. De outro modo, sempre ter em mente que não se trata de uma discussão moral mas de um problema de base, ou do que Althusser chama de determinação. 

Ademais, a curta experiência da Comuna de Paris nos trás sim algumas lições que nos servem como referência mesmo para enfrentar por fora do âmbito da moral o debate sobre corrupção: naquela revolução, cada representante do povo recebe a remuneração média de um trabalhador, nenhum centavo a mais; controle popular sobre os mandatos e revogabilidade a qualquer instante dos cargos eletivos; eletividade do cargo de juízes; fim do trabalho noturno; separação da religião do estado e fim do ensino religioso. O sistema igualitário com uma perspectiva de fim de sociedade cingida em classes sociais. 

Foram apenas 72 dias e esta curta experiência é um lapso que dá conta da originalidade de uma nova forma de fazer política para além das fronteiras do direito burguês e seu corolário, a sociedade pautada pela produção de mercadoria e pela lei da acumulação.   






[1] Setores lastreados por afinidades junto ao imperialismo que no presente momento identificamos mas ainda não sabemos dosar com precisão. Cerca de 25% do PIB brasileiro está vinculado à moeda internacional. É um bom ponto de partida para se perceber a origem de uma base de deslocamento da burguesia que irá romper com o governo Dilma e assumir um posicionamento mais radicalmente associado aos interesses externos.  
[2] Muito errado portanto o pensamento de que o Golpe de Estado se exauriu com a retirada de Dilma R. da presidência. Mais do que isto, a palavra de ordem que deve unificar a frente única (que não é um programa político) é a luta contra o golpe, pela anulação de todas medidas tomadas pelos usurpadores golpistas e pela restituição do mandato. Só este pode ser o sentido de “Fora Temer!”.
[3] No Brasil CST/PSOL e PSTU sempre apoiam o imperialismo e seus agentes provocadores. Quem leva esta político ao extremo é o grupelho universitário MNN.
[4] LEI Nº 9.296, DE 24 DE JULHO DE 1996. Art. 10. Constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei.
Pena: reclusão, de dois a quatro anos, e multa.

domingo, 30 de abril de 2017

“A Revolução Brasileira / A Questão Agrária no Brasil” – Caio Prado Jr.

“A Revolução Brasileira / A Questão Agrária no Brasil” – Caio Prado Jr.



Resenha Livro - “A Revolução Brasileira / A Questão Agrária no Brasil” – Caio Prado Jr. – Companhia das Letras

“Uma revolução agrária, antifeudal, anti-imperialista...Que não se tratava de nada disso, verificou-se amargamente quando uma simples passeata militar bastou para deitar por terra a aventura e dispersar sem mais esforços os iludidos pseudorrevolucionários. Mas enquanto a aventura durou, foi a ilusão alimentada por grosseiros erros de interpretação teórica da realidade brasileira – a sua parte honesta e sincera, sem dúvida, porque interesses personalistas também tiveram aí o seu papel – a prosseguirem em sua desacertada ação política. Ação essa que, por não contar com diretrizes justas, não foi capaz de despertar e mobilizar, senão em proporções mínimas e largamente insuficientes, as verdadeiras forças e os impulsos revolucionários. E que por isso se perdeu em estéril agitação”.  Ob. Cit. 1966. Caio Prado Jr.
                                
A passagem supramencionada de certa maneira dá uma síntese da orientação de “Revolução Brasileira”, escrito em 1966, dois anos após o golpe militar que derrubou João Goulart.  Tratava-se de uma derrota política que envolvia uma frente de forças políticas de esquerda, dentre elas a UNE, movimentos campesinos, sindicatos e o PCB, partido no qual Caio Prado Jr. filiou-se em 1931, mantendo gradualmente uma postura de críticas, particularmente em face de suas reservas no âmbito da teoria, da interpretação dos sentidos históricos do país e do significado da revolução brasileira.

 Em Caio Prado Jr. já a partir de seus livros de História do Brasil, “Evolução Política do Brasil”, pioneiro dentro de uma proposta de análise materialista de nosso passado (enquanto predominava na historiografia diversas matizes de história descritiva) e “Formação do Brasil Contemporâneo”[1]  o historiador consagrará novas bases para se pensar o Brasil, basicamente a partir de uma forte dependência de seu passado colonial, ganhando força a ideia de “Sentido da Colonização”.

“O Sentido da Colonização”  diz respeito à conformação do Brasil colonial voltando-se ao atendimento dos interesses comerciais portugueses e europeus, uma reiteração que informará a história do país até o presente em suas bases institucionais,  de sociedade e economia. É com base neste exclusivismo comercial, dependência econômica e conformação de uma propriedade fundiária altamente concentrada – já antes explorado pelos lusitanos nas índias – que se conformará toda estrutura social, política, administrativa do país. Fatos que servem como chave explicativa para o atraso do país, particularmente quanto a ausência de arranjo nacional envolvendo o conjunto de sua população ao acesso de bens de consumo e criação de mercado interno.

O conceito de Sentido da Colonização surge na Revolução Brasileira ao demarcar os aspectos de reiteração do atraso que dizem respeito à conformação da estrutura fundiária baseada na atividade agroexportadora de alguns produtos primários, na alta disponibilidade de terras e mão de obras a baixíssimos custos reproduzindo práticas e costumes que no limite advém da combinação do capitalismo comercial e da escravidão. O que está pendente é a conformação de um projeto nacional – desarticulação interna – de conformação de um mercado interno, que exigirá grandes reformas, com a reforma agrária em destaque, e a valorização geral da força de trabalho ensejando um mercado consumidor e o desenvolvimento tecnológico associado à valorização da mão de obra:

“É assim que se há de abordar a realidade brasileira atual, o que leva a considerá-la como situação transitória entre, de um lado, o passado colonial e o momento em que o Brasil ingressa na história como área geográfica ocupada e colonizada com o objetivo precípuo de extrair dessa área produtos destinados ao abastecimento do comércio e mercado europeus, e doutro lado o futuro, já hoje bem próximo, em que essa mesma área e povoamento, afinal nacionalmente estruturados, comportarão uma organização e sistema econômico voltado essencial e fundamentalmente para a satisfação das necessidades dessa mesma população que a ocupa, e  capazes de assegurar a essa população um nível e plano de existência consentâneos com os padrões de civilização e cultura de que participamos” (Pg. 82).     

 Esta herança do passado é algo implícito tanto na “Revolução  Brasileira” quanto em  “Questão Agrária”. O empreendimento comercial português levado a cabo a partir do sistema plantation, a produção monocultora destinada ao mercado externo e o desafio da criação de um projeto de nação derivado daquela herança colocava em primeiro plano o problema do campo, inclusive dentro da estratégia revolucionária.

A colônia nada mais foi do que uma empresa comercial destinada exclusivamente à grande exportação. Como um “resquício” deste passado colonial, enxerga-se a ausência de preocupação pela metrópole em desenvolver internamente sua colônia, com sua solução de continuidade com a presente dominação imperialista.

Hoje os historiadores do período colonial fazem algumas ponderações com tal noção de “Sentido da Colonização”: o elemento do povoamento, que não passou em todo caso desapercebido por Caio Prado Jr., e especialmente o interesse da comunhão religiosa estiveram articulados dentro de uma estrutura político-jurídica do tipo do “Antigo Regime” dentro e fora da colônia– e não se deve perder de vista que a atividade das grandes navegações esteve antes associada a uma visão social de mundo de um Europeu egresso do mundo medieval, inclusive de membros de uma comunidade cristã engajados na  luta contra os “infiéis” (judeus, mouros, etc) do que propriamente de capitalistas com uma cosmovisão do tipo renascentista/racionalista/etc – a própria noção de “guerra justa” em face dos índios ameríndios foi uma apropriação do conceito de guerras medievais, para não mencionar na presença tardia da Inquisição em terras da América Portuguesa. O Elemento indígena e as missões tiveram um papel estratégico, inclusive no domínio econômico – os beneditinos fizeram fama particular como bons administradores pecuniários no Brasil, para não se citar feitos de indígenas ou negros (Henrique Dias) que receberam graças e mercês reais pelo seu engajamento na luta contra estrangeiros[2].  

Seja como for, o importante é que a chave explicativa caiopradiana para a explicação da Formação do Brasil Contemporâneo (o que envolveria um projeto de superação do atraso colonial) deveria levar à Revolução Brasileira.

 Antes de Caio Prado Jr. as formulações do marxismo do Brasil a partir de nomes como Nelson Werneck Sodré ou Astrogildo Pereira têm graves limites diante daquilo que Leandro Konder bem pontuou como “Derrota da Dialética”. Estamos diante das primeiras décadas da recepção das ideias de Marx e marxismos no Brasil. Havia então certa  reprodução dogmática daquele repertório conceitual, como se a realidade tivesse de ser amoldada  aos pressupostos teórico metodológicos dos clássicos ou mesmo reproduzidas a partir de análises de outros países, fatos que  prejudicavam bastante o resultado das interpretações e consequentemente a prática das organizações (especialmente o PCB) no país.

A novidade com Caio Prado Jr. já a partir de suas obras de História Colonial é aplicação do marxismo como um método para interpretar e agir e não como um conjunto de fórmulas com valor universal – daí conclusões como a da negação do feudalismo no Brasil; a ênfase de que no Brasil não há como em Ásia uma “Burguesia Nacional” em oposição a uma “Burguesia Compradora” ligada ao imperialismo, mas a associação subordinada da burguesia brasileira ao imperialismo, explicando a capitulação e as derrotas da esquerda, como as de 1964; sua concepção de “Revolução” aplicada ao Brasil sem qualquer pressuposto socialista, ou coloridos do tipo, e uma ideia original de “Reforma Agrária”, bem como das reivindicações dos trabalhadores no campo.

Sempre a determinação das modificações e reformas constituídas pela Revolução Brasileira – nunca pela dedução a priori de esquemas teóricos. A Revolução Brasileira não é uma fatalidade histórica, mas os fatos constituídos de premissas da realidade objetiva.
A Revolução Brasileira não envolve teses originais/novas. O livro todavia tira o autor da marginalidade diante do contexto histórico. É um escrito que deve situado sob o signo da derrota de 1964 mas também sob o impacto da vitória da Revolução Cubana de 1959. Por que fomos derrotados aqui e a esquerda saiu vitoriosa na pequena ilha de Cuba?

Desde Cuba, Caio Prado Jr. já enuncia que o Movimento 26 de Julho que derruba Batista não tinha colorações socialistas: o socialismo é uma resultante prática e original do desenvolvimento objetivo de Revolução Cubana e não um apriorismo como o procedimento teórico de nossos formuladores que procediam vendo na revolução Brasileira as mesmas “etapas” de revoluções envolvendo países de outros contextos históricos.

Ao que tudo indica, a obra Revolução Brasileira realmente teve grande repercussão. Caio Prado recebe o prêmio de União Brasileira dos Escritores de 1966 e Prêmio Juca Pato.
E há interfaces importantes aqui entre o intelectual do PCB que rompe com partido e outro dirigente que se notabilizou não tanto pela originalidade das ideias mas pela vontade, pelo ímpeto, audácia e pela ação, Carlos Marighella.

Pois é exatamente em 1966 (ano do lançamento da “Revolução Brasileira”) que Carlos Marighella rompe com o Partido Comunista Brasileiro. E este rompimento é fruto de uma viagem de alguns anos antes a Cuba que convenceu o dirigente baiano sobre as possibilidades de se adequar num país de dimensões continentais como o Brasil a viabilidade da tática das guerrilhas em confronto com a posição do PCB: resistir à ditadura militar sem se socorrer às armas.
Todavia,  na carta de desligamento ao PCB de Carlos Marighella há um ponto em comum entre o dirigente da ALN e  Caio Prado Jr.: a denúncia do reboquismo dos comunistas a uma burguesia vacilante representada por Goulart.

Marighella parece ser mais radical e levanta que o reboquismo é falso nem tanto por considerações teóricas (aparente contradição entre frações de burguesias distintas) mas pela vacilação dos setores burgueses que não reagiriam com força militar ao golpe de estado.  A estes pontos Marighella acrescenta como causas que levam à derrota os comunistas em 1964 uma confiança equivocada no dispositivo militar geral diante de uma não compreensão marxista do que significa as forças armadas nos quadros do estado burguês; finalmente, ilusões de classe que levaram o partido (PCB) a deformações importantes, como o apoio eleitoral a líderes burgueses como Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e populista direitista Adhemar de Barros – Caio Prado Júnior por sua vez ataca as alianças feitas com JK, um governo entreguista pro imperialista quanto a sua política econômica e Marechal Lott por declarações  anti comunistas.  

Mas se no diagnóstico há pontos em comuns, nos prognósticos parece haver duas saídas colocadas. Caio Prado Jr. entende que a derrota das esquerdas em 1964 envolvem uma incompreensão geral do problema Brasileiro, decorrente de uma má aplicação do método materialista dialético, o que o leva a redigir uma polêmica suscitando pontos essenciais de um programa de esquerda, desde o problema das alianças (o que seria uma burguesia nacional? Ela existe no Brasil tal qual existe na China? O proletariado deve se aliar com uma burguesia nacional em caso positivo? Por que é falso dizer que há feudalismo no campo no Brasil?); qual é a aspiração dos trabalhadores? E neste ponto Caio Prado entendia fulcral a aferição da busca da aspiração real dos trabalhadores do campo (e não “camponeses”) que à época somavam 50% da população; além da própria caracterização sumária da sociedade, da política e da economia do país.   

Se para o primeiro (Caio), os dilemas da esquerda são teóricos, para Marighella, estamos diante de um problema prático. A lição extraída da Revolução Cubana envolve a crença na viabilidade da atividade revolucionária através da tática das guerrilhas. Seu mini manual do guerrilheiro urbano é um livro sem muitas considerações políticas, voltado literalmente às ações diretas, construções de bombas, agitação e propaganda.

O problema do Campo e o Feudalismo

Um dos pontos mais reiterados no trabalho de Caio Prado Jr. é sobre o problema de se caracterizar o campo brasileiro como feudal. Uma das exigências, no programa tradicional da revolução seria suprir os resquícios feudais e semi-feudais do país. Não se trata apenas de um problema de terminologia. Ao enquadrar mal o problema, as organizações de esquerda não dialogam com o povo trabalhador do campo: apostam que os “camponeses” lutam para se desvencilhar das relações pessoais como as da corveia europeia e como se lutassem pela terra, como se houvesse uma relação do tipo milenar entre os trabalhadores do campo do Brasil do mesmo tipo do camponês mujique russo ou chinês. Caio Prado Jr. não era um tipo de intelectual de biblioteca. Além de um pesquisador bastante cuidadoso, fazia diversas viagens de carro pelo interior do país – conhecia como poucos os rincões do Brasil e a situação particular e a geografia brasileira, particularmente a geografia rural[3].

Demonstra com dados convincentes que no Brasil nunca houve resquício de feudalismo. Teríamos que falar de classe aristocrática que domina através de regime jurídico pessoal os camponeses. Haveria apropriação do subproduto através de privilégio assegurados pelo regime social e político vigente. Por exemplo através da prestação da “Corvéia” que não se confunde com o regime de Parceria que no Brasil é residual e se encontra no cultivo do algodão em São Paulo. No Brasil não há propriamente camponeses mas empregados, e a maior parcela é de assalariado – mais uma impropriedade da tese do feudalismo. Isso não afasta práticas de subordinação pessoal como retenção por atividade; o “barracão”; sanções e punições corporais. Ocorre que não se trata de resquícios “feudais” mas resquícios da escravidão.

A Questão Agrária mais uma vez diz respeito àquela reiteração do passado que informa os sentidos de nossa colonização: o êxito da empresa rural envolveu o latifúndio, a disponibilidade abundante de terras e de mão de obras extremamente barata; mão de obra abundante desde a escravidão, fato que não se transforma com a abolição implicando a miserabilidade dos trabalhadores do campo e exigindo políticas de sindicalização e lutas por direitos sociais – e não propriamente por terras.
A luta a ser efetivada pelas esquerdas no Campo deve ser no sentido da sindicalização dos trabalhadores rurais e pela extensão de todos os direitos trabalhistas celetistas aos trabalhadores rurais. Caio Prado Jr. propõe inclusive a criação de uma interessante Justiça do Trabalho Rural. E se pensar que a atual Reforma da Aposentadoria do governo golpista Temer retira a aposentadoria dos trabalhadores Rurais e mesmo a lei que regulamenta a criação de varas especializadas agrárias desde 1988 permanecem letra morta em alguns estados do Brasil, observa-se como a Questão Agrária em Caio Prado Jr., 50 anos depois, permanecem infelizmente atual e mesmo pendente.  

O grande dilema de fundo da Questão Agrária no Brasil para Caio Prado Júnior envolve portanto a Grande exploração agromercantil e concentração da propriedade fundiária que é causa, condição e efeito daquela economia. Todos estes elementos convivem com a pendência da Reforma Agrária. Não qualquer reforma, mas uma que faça da terra um benefício das massas que nela trabalham e não  um mero negócio,  enfrentando o problema da concentração fundiária, sem utopias, como implantar cooperativismo economicamente inviáveis – e aqui Caio Prado cita experiências cubanas como as Fazendas Estatais cubanas.

Não estamos de acordo que o agronegócio superou ou tornou datada as questões agrárias suscitadas por Caio Prado Jr (Chico de Oliveira). Houve pelo menos duas mudanças de fundo desde os anos 1960 quando os artigos foram escritos para 2017. Primeiro o êxodo rural massivo. Em meados do século XX metade da população brasileira residia no campo. Outro aspecto é a inovação tecnológica que não implica melhora nas condições de trabalha como se observa na conjugação do agronegócio e as condições de trabalho dos canaviais paulista.

O agronegócio da Soja, as tradicionais culturas do cacau na Bahia ou do café ainda envolvem mobilização de mão de obra que exigem proteção. O moderno e o atraso re colocam questões novas, mas não resolvem um problema que se posterga há décadas: a reforma agrária em face de um país que ainda reitera aspectos de seu antigo estatuto colonial, a começar pela concentração fundiária e pela grave espoliação do trabalhador camponês. A lição da “Revolução Brasileira”, para além de debates pontuais remete a como às dificuldades teóricas da esquerda conduziram-na à derrota de 1964, à incompreensão das demandas dos próprios trabalhadores e a um errado enquadramento da situação política, econômica e social do país.

“Há mais, contudo, pois uma reforma dessa natureza e profundidade, que significaria uma transformação completa da estrutura e organização dos principais setores da nossa economia agrária, não é possível realizar-se senão como resultante de um amplo movimento social reivindicatório. Sem uma base social dessa ordem, não se pode esperar, a não ser em fantasia longinquamente afastada da vida real e concreta, a efetivação da reforma de tamanho vulto e alcance econômico e social. Seria naturalmente ingenuidade pura imaginar que um simples texto legal estabelecendo a reorganização de nossas principais atividades agrárias e dando-lhes estrutura e funcionamento da produção completamente distinto e originais, tivesse a virtude, somente por si e sem o amparo, impulso e instrumento de poderosas e ativas forças sociais, de determinar tais consequências”. (PG. 410)          






[2] Foi o caso de Felipe Camarão - Líder Indígena proveniente de aldeia missionária da capitania do Rio Grande (RN) que se destacou nas lutas pela expulsão dos Holandeses. Como ele houve Tibiraçá da Capitania de São Paulo de Piratininga, amigo de João Ramalho. Camarão não foi o único índio que obteve no período colonial condecoração régia.
[3] Além de diversas viagens internacionais, inclusive uma retratada em livro pela URSS.  

terça-feira, 14 de março de 2017

“Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá” – Lima Barreto

“Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá” – Lima Barreto



Resenha Livro - “Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá” – Lima Barreto – Ed. Brasiliense São Paulo 1956

“ ‘Iria subir, iria remontar os ares, transmontar cordilheiras, alçar-se longe do solo, viver algum tempo quase fora da fatalidade da terra, inebriar-se de azul e de sonhos celestes, nas altas camadas rarefeitas...

A experiência seria de manhã e, à noite toda, não dormiu como se, no dia seguinte, fosse se encontrar com o amor que sonhou e, para realizá-lo agora, tinha aguardado muitos anos de angústia e de esperança.

Veio a aurora e ele a viu, pela primeira vez, com um interessado olhar de paixão e encantamento. Deu a última demão, acionou manivelas, fez funcionar o motor, tomou o lugar próprio...Esperou...A máquina não subiu’.

Eis o que havia na folha amarelecida de almaço encontrada por mim, no ano passado, entre os papeis que Gonzaga de Sá me deixou.

Não compreendi imediatamente a significação dessa fantasia; mas referindo a este e aquele aspecto de sua vida entendi bem que ele queria dizer que o Acaso, mais do que qualquer Deus, é capaz de perturbar os mais sábios planos que tenhamos traçado e zombar da nossa ciência e da nossa vontade. E o Acaso não tem predileções”.

*

A passagem supracitada sugere alguns traços mais peculiares deste pouco conhecido romance (em termos de biografia) do misantropo Gonzaga de Sá, comparado por alguns críticos ao Conselheiro Aires de Machado de Assis.

Gonzaga de Sá é personagem que antes de tudo dignifica os baixos estratos sociais e singulariza uma narrativa cujas láureas não se destinam a chefes de estado, heróis de guerra e/ou aos donos do poder, como é o habitual, mas ao simples amanuense de uma certa repartição denominada “secretaria dos cultos”.  Esta é uma das grandes inovações literárias do escritor Lima Barreto: uma nova centralidade ou mesmo dignidade a personagens do subúrbio, desde o funcionário público com baixos estipêndios até a paisagem privilegiada de novos horizontes da cidade carioca para além da Rua do Ouvidor, dos Teatros de Gala e do Parque Botânico: o próprio Gonzaga mostra-se o conhecedor incomum da cidade e de sua história, igualmente deslocando aquele foco mesmo no que tange aos ambientes e paisagens, desde os bondes, até os subúrbios: na periferia da cidade, contempla-se os transeuntes trabalhadores, mulheres de vida fácil estrangeiras e as feições de pequeno burgueses, contemplando-se um universo popular e de certa forma antecedendo os romances regionalistas do modernismo em sua segunda fase.

É assim em “Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá”  em que o narrador Augusto Machado elege um amanuense como alguém digno de ser biografado: um personagem com cogitações filosóficas e uma certa empatia pelos fracos ao ponto de sugerir que seria melhor que morressem de molde a suprimir a dor em face da sociedade que engendra todo tipo de opressão e injustiças – uma empatia relativa, já que a compaixão pela dor é interpretada também por suposta “burrice” dos mais humildes em acatar sua situação e particularmente os abusos dos ricos e poderosos da República Velha; é assim também nos contos ora em “O único assassinato de Cazuza” em que o protagonista é um “derrotado pela vida”; ora em outro conto  em que o foco narrativo se dá pela mulher casada antes obediente ao pai e agora obediente ao marido; e de maneira geral, ao subúrbio em detrimento das zonas nobres da cidade do Rio de Janeiro.

Seria possível admitir que a literatura nacional de uma certa forma já iniciara a contemplar os marginalizados a partir da literatura do tipo naturalista, a se lembrar do “Cortiço” de Aluísio Azevedo ou mesmo ainda no século XIX a abordar o que hoje se fala em minoria, quando se referimos ao amor homossexual em “O Bom Crioulo” do escritor cearense Adolfo Caminha, para citar dois exemplos. Mas há entre estes escritores e Lima Barretos pelo menos duas diferenças substanciais: (i) na literatura do tipo naturalista, o procedimento literário torna os objetos da narrativa como “O Cortiço” ou “O Mulato” (e o problema racial na provinciana maranhão do séc. XIX) a serem descritos com a objetividade e temperos do mesmo procedimento das ciências naturais. Isto implica transformar o cortiço e particularmente toda sorte de suas personagens antes em objeto do que em agentes, em sujeitos e protagonistas de sua própria história. Em Lima Barreto, em outro contexto literário, o do 1900’s literário, um eventual Cortiço seria menos um mosaico de forças regidas por impulsos deterministas do meio social, e mais um subúrbio com figuras concretas, personagens uti sininguli, dotados de especificidades e humanidade particular; (ii) em conexão com (i), Lima Barreto não estava motivado por um conjunto bastante específico de pensadores que informam a literatura naturalista, como o positivismo que engendra a ideia de que o conhecimento poderia ser deduzido de preceitos científicos; o darwinismo, o evolucionismo e o determinismo social, havendo pouco espaço para o livre arbítrio dentre os personagens. O comportamento humano estaria condicionado pelos fatores hereditários, pelos fatores do ambiente físico e social.

Sabe-se que quando estudou sem concluir a escola Politécnica Lima Barreto teve contato com a filosofia positivista. Este contato serviu antes para aguçar no jovem leitor/escritor um interesse precoce por um estudo autodidata de filosofia. Consta que Lima Barreto leu Comte, Spencer, Kant e em “Gonzaga de Sá” vemos citações de Dostoievsky, Tolstói, Rousseau e Schopenhauer. Segundo o biógrafo Francisco de Assis Barbosa, foi entretanto Descartes e sua filosofia ancorada no princípio da dúvida a que mais motivou Lima Barreto – se por um lado sua literatura se destaca por descortinar o fundo da alma do povo carioca, por outro foi através da crítica avassaladora de quase todos os aspectos da vida social do Brasil da Velha República que Lima Barreto se torna provavelmente o mais importante intérprete do país dos 1900 literários. Caiu-lhe bem um espírito crítico que adveio em termos filosóficos de uma tendência ao ceticismo e à crítica.

O interessante é que os dois aspectos – a centralidade do subúrbio e dos tipos populares e a cerrada crítica social em face dos diplomados com conhecimento rasteiro; dos tipos medíocres que granjeiam projeção social e literária com base em bajulação e nepotismo; e do racismo que grassa a vida social inviabilizando a ascensão de vivas inteligências que se embotam no mar de imbecilidade reinante, tal qual Isaías Caminha – estes dois polos estão no que podemos colocar já como o ponto de partida da produção literária de Lima Barreto. “Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá” foi iniciado antes de seu livro de estreia e no entanto foi apenas o 4º livro publicado por Lima Barreto. O autor preferiu lançar de início o “Recordações do Escrivão Isaías Caminhas” (1909) e em carta a Gonzaga Duque revela que optava aparecer com “escândalo”: certamente era o caso desta espécie de memória amarga de um mulato que busca ascender socialmente no Rio de Janeiro e lá se depara com todo o tipo de vícios, pessoais e institucionais, que engendram, desde a crítica, uma narrativa insurgente em face do Brasil daquele contexto. Desde a crítica se constata as promíscuas relações entre os jornais e os poderes, a mediocridade do mundo dito “letrado”, o baixo nível (num sentido literal) dos políticos, a ser retratado em tom de galhofa até sessão parlamentar em que quando muito um deputado presta atenção nas pernas de uma bela moça em detrimento do discurso de seu colega. As críticas se estendem desde os críticos literários que são ignorantes quanto à arte e bajulam em troca de interesses pessoais até o racismo vivenciado na pele do protagonista nos primeiros momentos em que pisa no RJ – passagens que sugerem teor autobiográfico da história.  

Como iniciamos, “Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá” nas palavras de Lima Barreto é uma narrativa “cerebrina”, com passagens de filosofia a partir das cogitações de Sá e diálogo entre o narrador e seu biografado. Mas ainda se trata de um momento de maturação do processo criativo de Lima Barreto: não tem a mesma força imaginativa de um país que é a caricatura do Brasil, “Bruzundangas”; parece ser uma história um pouco sem vida, bucólica, não à altura de “Policarpo Quaresma” e “Clara dos Anjos” em que o leitor é atraído também em razão do enredo vivo e dinâmico. Estamos diante dos primeiros escritos de Lima Barreto e aqui temos contato com uma personagem que nos leva a conhecer algo sobre concepções de filosofia que em Lima Barreto tem um tom ora de pessimismo ora amargura, mas que nem por isso se extrapola no desespero. Antes toma um sentido oposto, uma espécie de humor triste que lembra algumas passagens do velho Machado de Assis.

“É verdade que sempre o conheci triste; mas de uma tristeza, por assim dizer, filosófica, geral, essa tristeza de sentir profundamente a mesquinhez da nossa condição humana, em luta sempre com o imenso dos nossos desmarcados sonhos e desejos. Porém, agora, a sua tristeza era mais atual, mais terra-a-terra. Dir-se-ia que a presença do Aleixo Manuel, o afilhado, tinha levantado do fundo da pessoa do meu amigo lembranças dolorosas que sepultara para sempre; lembranças essas que eram o seu segredo e das quais nunca me falou e não encontrei o mínimo indício para descobri-las nos papeis que ele me legou, por testamento, juntamente com uma centena de livros. Lembro-me, ao escrever estas linhas, que um dia ele me dissera:

- Já tiveste algum amor?

- Nunca.

- Olha que falo de amor! Hein?

- Compreendo.


- É preciso tê-lo.... Tenho te dito sempre que os antigos afirmavam que Vênus é uma deusa vingativa... Não perdoa e tu sofrerás se não lhe prestares culto...”.

segunda-feira, 6 de março de 2017

“O Pequeno Príncipe” – Antoine de Saint-Exupéry

“O Pequeno Príncipe” – Antoine de Saint-Exupéry

(Imagem ilustrativa. Resenha feita a partir do texto original de Saint-Exupéry. Tradução Bruno A. Matangrano - USP)

Resenha livro - “O Pequeno Príncipe” – Antoine de Saint-Exupéry – Ed. Pé da Letra

“Levantei o balde até os seus lábios. Ele bebeu, com os olhos fechados. Era doce como uma festa. Aquela água era bem mais do que um alimento. Ela havia nascido da caminhada sob as estrelas, do canto da roldana, do esforço de meus braços. Era boa para o coração, como um presente. Quando eu era menininho, a luz da árvore de Natal, a música da missa da meia- noite, a doçura dos sorrisos davam todo encanto do presente de Natal que eu ganhava.

- Os Homens de sua terra cultivam cinco mil rosas em um mesmo jardim .... – disse o pequeno príncipe – E eles não acham o que estão procurando.

- Eles não encontram – respondi.

- E, no entanto, o que procuram poderia ser encontrado em uma única rosa ou em um pouco d’água”.

Há diferentes interfaces entre a literatura e a infância. Podemos falar sobre uma literatura acerca da infância e temos como uma boa referência aqui o “Capitães de Areia” (1937) obra de uma primeira fase mais politizada e engajada de Jorge Amado. O enredo trata de um grupo de meninos que vivem num trapiche à beira mar no Salvador dos primeiros anos do séc. XX, retratando as graves desigualdades sociais da cidade alta (os ricos) e baixa (os pobres): os “Capitães” são crianças que vivem de pequenos roubos, furtos e bem articulados e executados planos de ilícitas engambelações, sendo todavia erigidos à condição de heróis em face de uma sociedade pouco atenta para uma explícita e cruel contradição envolvendo crianças morando nas ruas, tendo de buscar a cada dia seu sustento através do crime, sem lar e família. Por outro lado, crianças usufruindo da liberdade plena das ruas, de uma vida externa ao poder familiar e driblando os encalços da polícia. Há de se constatar como esta vida peculiar abre uma certa situação de ambiguidade quanto à condição infantil daquele grupo: de certa maneira os Capitães de Areia têm sua infância roubada e as exigências da vida fazem com que um personagem como o “Gato” atine com a vaidade e busque nos colos de um amor conjugal uma provável ausência de carinhos maternos; o personagem “Sem-Pernas” é deficiente físico, é humilhado por policiais numa delegacia e desenvolve algumas tendências de isolamento, de amargura, ressentimento, ódio e tristeza que não parecem coadunar com as cogitações e sentimentos de um menino; e Pedro Bala, líder do grupo, ao entrar em contato com histórias de seu pai que nunca conheceu e que fora liderança sindical seria ele mesmo no futuro um dirigente político.

Todavia, o que há de traço distintivo da infância? Há uma espécie de percepção do mundo associada ao encanto e fantasia, eventualmente com as coisas mais triviais: e a infância dos Capitães de Areia não se revela de toda roubada quando se observa os efeitos que um singelo carrossel itinerante ainda produz no grupo. A ambiguidade de crianças que derrubam negrinhas na praia para o ato sexual e brincam e se encantam com os efeitos de luzes e som de um velho carrossel se revela aqui.

Dentre as interfaces entre literatura e infância, predomina certamente a literatura destinada ao público infantil. E aqui é possível fazer uma diferenciação.  Há a literatura infantil que teria um interesse mais exclusivo ao público infantil: desde os gibis da Turma da Mônica até as histórias do Sítio do Pica Pau Amarelo de Monteiro Lobato, ou se quisermos extrapolar para outros meios, poderíamos citar os desenhos animados que encantam predominantemente as crianças, de Tom e Jerry à Pica Pau. Não se trata aqui de tripudiar todos estes exemplos: se os gibis de autoria de Maurício de Souza ficaram na memória de muitos, é porque souberam dialogar junto ao público infantil o que envolve uma capacidade de vencer uma certa tendência de dispersão das crianças, fruto de uma mente comumente imaginativa e inquieta.

Todavia há a literatura infantil que poderíamos classificar como uma espécie particular: são histórias que possuem vivo interesse também para adultos. Histórias aparentemente destinadas para crianças mas que costumam oferecer enunciados pedagógicos, adágios morais ou reflexões filosóficas que por um lado marcam num primeiro momento o leitor infanto-juvenil e posteriormente possibilitam novas possibilidades de interpretação ao leitor adulto, às “pessoas grandes” nos termos do presente livro. É exemplo da segunda espécie este “Pequeno Príncipe” do francês Saint-Exupéry, um livro notável pelas qualidades literárias em que se conjuga a simplicidade da narrativa e uma riqueza de temas que vão do amor (personificado tanto numa rosa quanto na ideia da criação de laços dentro de uma feliz opção de tradução de “domesticar” contendo a ideia de “criar vínculos”), da solidão, do valor do trabalho e da diligência (que criou “uma urgência” para o narrador abordar o tema do Baobá), da morte e até mesmo de Deus e das opções religiosas.

Sobre a Obra

O enredo é contado na forma de um realismo mágico, com palavras simples e acessíveis, conforme a proposta da obra - dedicada ao público infantil. Um Aviador que antes havia sido desencorajado a desenhar revela desde o início a ideia de oposição entre o universo adulto e infantil:  ao longo da narrativa afere-se que o os conselhos das pessoas grandes implicaram ao narrador no abandono da criança  que poderia viver dentro de si, para o posterior reencontro deste universo infantil através da aparição do pequeno príncipe em sua vida.

O Aviador cai no deserto do Saara. Com o avião quebrado, sem água e sem recursos para sobreviver, o adulto teme a morte, até a aparição mágica do protagonista que sucessivamente vai descrevendo sua vida no planeta asteroide B612, os cuidados diários com a planta daninha ressaltando o valor do trabalho e os perigos da preguiça, suas viagens sucessivas em diversos planetas, cada qual associado a vícios particulares de pessoas adultas como a vaidade, a culpa e o vício, ou a compulsão pela posse: o sentido do amor personificado na figura da flor e na domesticação proposta pela raposa, passagens prenhes de sentidos os mais diversos e que só ressaltam os méritos literários e aquele segundo aspecto ressaltado: o fato do livro ter vivo interesse aos adultos.

Parece-nos que a flor e a domesticação são dois problemas-chave para se desvendar o universo deste pequeno livro - pouco mais de 100 páginas.

Propomos a interpretação segundo a qual a flor invoca o amor conjugal: quando o pequeno príncipe faz menção ao tema pela primeira vez ao aviador e este, pouco atento à conversa e preocupado em ajustar seus equipamentos, provoca pela primeira vez o choro no pequeno príncipe. É como se os adultos não se importassem com a relevância do problema tão central quanto o do amor. Em sua aparição, a flor é orgulhosa e se recusa a chorar na frente do pequeno príncipe; ela forja uma gripe pois deseja que o herói construa uma proteção especial para ela - a presença feminina e um contrato social segundo o qual cabe ao parceiro masculino um papel de proteção; o pequeno príncipe percebe, todavia, a manipulação e em razão da flor o protagonista deixa o seu planeta, mantendo por ela, todavia, fidelidade.

“Assim, o pequeno príncipe, apesar da boa vontade de seu amor, logo passou a duvidar da flor. Levara a sério palavras sem importância, e tornou-se muito infeliz.

- Eu não deveria tê-la escutado- confidenciou-me um dia – Nunca se deve escutar as flores. Deve-se apenas olhá-las e cheirá-las. A minha perfumava meu planeta, mas eu não conseguia mais me alegrar com isso. Aquela histórias de garras que tanto me aborreceu deveria ter me comovido....”

Como se vê é uma passagem que sugere o tema da frustração amorosa, sugerindo como a história infantil, aqui, trabalha o problema da resiliência, pincelando não apenas o que é cândido e puro, mas o que é real e concreto, as frustrações e tristezas que as crianças se depararão na vida futura. E o livro segue e evolui com problemas ainda mais delicados como a morte e o sentido da vida, o mistério do que há para além das estrelas, possibilitando tanto risadas quanto o choro.

Seja como for, parece-nos que o “Pequeno Príncipe” também oferece uma importante lição aos adultos e que se expressa como uma expectativa final do aviador na passagem final da narrativa. O encontro entre os dois personagens (aviador e pequeno príncipe) envolve a possibilidade e a pertinência de manter dentro do aviador dali em diante uma viva criança dentro de si ao olhar o céu à noite. Isto envolve estar atento às passagens dos planetas do Rei, donde a solidão se associa ao vício da soberba. Ao Planeta do vaidoso, donde o ego precisa ser domesticado e não dominador. Pelo Planeta do alcoólatra, donde se expõe os riscos da culpa e do vício. E a lição da criança que poderia ser mantida viva dentro do adulto, em termos genéricos, envolvendo desde a noção de ver a vida com encanto – como o pequeno príncipe observa todas as noites as estrelas – até “não levar a vida tão a sério”, “desenvolver a habilidade de rir de si próprio”, “aprender que na vida o importante não é vencer, mas ser feliz”.

À guisa de conclusão, deixamos uma passagem que perfeitamente poderia ser trabalhada numa aula de filosofia para alunos do ensino fundamental ou médio. Parece-nos que o “Pequeno Príncipe” poderia ser melhor aproveitado no mínimo como fonte de reflexão em detrimento de outras leituras que se tornam obrigatórias nos bancos escolares exclusivamente em razão das provas dos vestibulares – livros este sim de “adulto” ou “pessoas grandes” que criam o risco de afastar os menores do interesse pela leitura. Sobre o excerto, sugerimos uma interpretação associada à ideia da religião e de deus, envolvendo uma lição geral de tolerância (deus está calado em face das distintas narrativas religiosas):

“- As pessoas não têm as mesmas estrelas. Para uns, que viajam, as estrelas são guias. Para outros, que são sábios, são problemas. Para meu empresário, elas eram ouro. Mas todas aquelas estrelas se calam.”
     


quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

“Recordações do Escrivão Isaías Caminha” – Lima Barreto

“Recordações do Escrivão Isaías Caminha” – Lima Barreto



Resenha Livro - “Recordações do Escrivão Isaías Caminha” – Lima Barreto – Editora Brasiliense – São Paulo – 1961

“Verifiquei que até ao curso secundário as minhas manifestações, quaisquer, de inteligência e trabalho, de desejos e ambições, tinham sido recebidas senão com aplauso ou aprovação, ao menos como cousa justa e do meu direito; e que daí por diante, desde que me dispus a tomar na vida o lugar que parecia ser de meu dever ocupar, não sei que hostilidade encontrei, não sei que estúpida má vontade me veio ao encontro, que me fui abatendo, decaindo de mim mesmo, sentindo fugir-me toda aquela soma de ideias e crenças que me alentaram na adolescência e puerícia.

Cri-me fora de minha sociedade, fora do agrupamento a que tacitamente eu concedia alguma cousa e que em troca me dava também alguma cousa” ISAÍAS CAMINHA
                
É recorrente a opinião segundo a qual este (que é o primeiro romance publicado por Lima Barreto) ser uma espécie de memória de conteúdo autobiográfico. É necessário desde aqui fazer algumas ressalvas. Em que pese alguns traços autobiográficos, a obra não deveria ser interpretada como uma expressão de recalque que prenuncia a marginalidade do escritor.

Primeiro, é certo que todos os trabalhos de Lima Barreto possuem algo de autobiográfico: o problema do racismo, sentido na pele pelo escritor, é tema central em “Clara dos Anjos”; e a sátira acerca da miséria intelectual de doutores, bacharéis e políticos é tema corrente desde o “Triste Fim de Policarpo Quaresma” à obra póstuma “Bruzundanga”.

Segundo, em termos literais há diferenças entre Isaías Caminha e Lima Barreto: o primeiro é proveniente do interior e o segundo advém do Rio de Janeiro – a descoberta do Rio de Janeiro evolverá as mudanças espirituais de Isaías; o primeiro granjeia os dons da inteligência de um pai erudito e leitor de livros de história enquanto o pai de Lima Barreto foi ao que consta um simples madeireiro português casado com uma professora de primeiras letras; Isaías ao cabo da história junta-se com uma mulher e consta que Lima Barreto não constituiu família e mal foi visto com  mulheres durante a vida; e, mais importante, Isaías de certa forma capitula junto àquela sociedade baseada na mediocridade intelectual ao se associar ao chefe de jornal e abandonar seus sonhos e seu orgulho, coisa distinta de Lima Barreto, que propugna um ideal artístico e literário que o move no sentido de uma narrativa de sátira, de uma arte panfletária e de insurgência.

Outrossim, o próprio Lima Barreto em carta discorre sobre a finalidade da presente obra: “(Pretendi) mostrar um rapaz nas condições do Isaías, com todas as disposições, pode falhar, não em virtude de suas qualidades intrínsecas, mas batido, esmagado, prensado pelo preconceito”. “Se lá pus certas figuras e o jornal, foi para escandalizar e provocar atenção para a minha brochura. Não sei se o processo é decente, mas foi aquele que me surgiu para lutar contra a indiferença, a má vontade dos nossos mandarins literários”.

Muito se pôde descobrir acerca da vida do escritor Lima Barreto, especialmente por pesquisadores que levaram a cabo um trabalho de publicação de obras inéditas após a morte do escritor. Consta que um grande volume de documentos, cartas e papeis estavam encostados/abandonados num imóvel de familiares do artista e só em meados do séc. XX pesquisadores tiveram contato com este material (recuperaram cerca de 70% dos papeis segundo Francisco de Assis Barbosa). Promoveram a maior repaginação editorial da obra de Lima Barreto até então. Tal empreendimento foi feito duas gerações após a morte do escritor, pela editora Brasiliense, então dirigida pelo historiador e comunista Caio Prado Jr., contando com apoio técnico de Antônio Houaiss e M. Cavalcanti Proença.

Como se sabe, o escritor fluminense e sua obra estão situados no 1900 literários e ficaram marcados pelo signo da inadequação junto ao círculos literários oficiais.  Até aquele período não se cogita falar em escritor como um “ofício”, algo muito mais recente na história, espécie de conquista tardia do modernismo em sua 2ª Fase. Os “escritores” em geral em 1900 ou antes exercem outras profissões. Bernardo Guimarães, o romântico autor de “Escrava Isaura”, é magistrado. José de Alencar é deputado federal pelo Ceará. Joaquim Manuel de Macedo foi além de escritor, médico, político e professor. Em geral havia até escritores e poetas de ofício, mas tal carreira estava associada ao periodismo, e o jornalismo igualmente era uma profissão meio boêmia, sem grandes foros de respeitabilidade, ao menos em face de um pequeno grupo de escritores consagrados e, claro, da elite política do país.

Esta inadequação envolvendo Lima Barreto e seu tempo se revela no problema das publicações. “Recordações do Escrivão Isaías Caminha” foi publicado em sua parte inicial por uma revista editada pelo próprio Lima Barreto (Floreal) em 1907. “Clara dos Anjos” é livro concluído em 1922 e só publicado em 1948. “Cemitério dos Vivos” foi redigido entre 1919-20 e só lançado em 1956. E sua obra mais conhecida, o “O Triste Fim de Policarpo Quaresma” foi publicado em 1917 bancado com recursos do escritor. Sabe-se que Lima Barreto tentou duas vezes sem sucesso um reconhecido lugar na Academia Brasileira de Letras.

Importa ponderar as razões pelas quais Lima Barreto não obteve reconhecimento literário no seu tempo. O problema do racismo e a origem suburbana– que é um dos aspectos impeditivos da apreciação da imaginação, do estilo, do valor estético e da inteligência numa sociedade que em termos de próprio Lima Barreto apenas se valoriza “Diplomados”, donde grassa a mediocridade do bacharelismo, da prevalência da forma sobre o conteúdo, de um jornalismo de favores ou “canalha” na atual acepção de José Arbex Jr.  – é parte da explicação. Todavia poderíamos propor como uma reflexão (ainda que reiterada e um pouco batida pela crítica) do problema de Machado de Assis, ele também advindo do subúrbio, que inicia sua carreira literária como tipógrafo de jornal, e mulato, todavia, diferentemente de Lima Barreto, galgando apreciação literária e reconhecimento daquele pequeno círculo de “doutores”.

Certamente há diferenças quanto ao brilho literário de ambos os autores: e, ademais, Machado de Assis fundou o realismo literário dentro da literatura brasileira, criando uma relativa inovação formal. Todavia, parece-nos que o que mais contribuiu para a marginalidade de Lima Barreto, diante de uma sociedade ainda pouco condescendente com literatos sem seu respectivo diploma de bacharel e sua respectivas boas indicações (a lembrar que o próprio Machado de Assis iniciou sua carreira como protegido por Manuel Antônio de Almeida) foi o veio satírico dos romances, crônicas e narrativas. Lima Barreto teria poucas chances de adentrar a um seleto clube de aristocratas escritores ao eleger uma narrativa de combate em face de instituições como os jornais, os críticos literários, os deputados, os militares e até mesmo os ativistas revolucionários (que são ridicularizados como massa de manobra do jornal O GLOBO em, “Recordações”).  Lima Barreto literalmente “atira para todos os lados”.  O escritor é nos termos de seus críticos um “revoltado em conflito permanente com o meio em que vivia” e ao que parece sua sátira vai se tornando cada vez mais ácida conforme seu amor pelo país não vai sendo correspondido. Mantém todavia seu orgulho e em suas palestras em Mirassol ao final da vida parece eleger a “arte” como uma espécie de refúgio ou quase religião para dar vazão  às frustrações que igualmente levaram-no ao abuso do álcool, às passagens de depressão, às internações no manicômio e a uma morte prematura.

Filosofia e Literatura

Em 1897 Lima Barreto ingressou na escola Politécnica onde teve contatos com o positivismo de Texeira Mendes. Mais importante que o positivismo foi o despertar para a leitura de demais obras filosóficas – consta que leu Descartes, Kant e Spencer. Do primeiro retiraria um princípio que levaria para sua produção literária, o princípio da dúvida. Princípio  que se extrai na percepção crítica com que observou o Brasil da República Velha. Este é o ponto alto de sua literatura e neste movimento ele merece uma nova classificação, distinta de um certo guarda chuva de “pré-modernismo” com que se costuma embalá-lo.

O signo da ousadia formal e a conformação da identidade nacional exigiram do movimento modernista um olhar crítico sobre o passado: como um movimento revolucionário, fizeram uma espécie de tábua rasa a partir da qual criaram algo de novo. Senão vejamos qual é a base filosófica da obra de Lima Barreto nas suas palavras:

“A Dúvida metódica, senão sistemática, a tábua-rasa preliminar, para se chegar à certeza”. “O romancista é de alguma forma um descobridor – diria certa feita – e o melhor tratado de estética, nesse sentido, ainda é o Discurso do Método, de Descartes”.

“As Recordações do Escrivão Isaías Caminha” é a história do embotamento de uma inteligência viva advinda da “tristeza, da compreensão e da desigualdade do nível mental do seio familiar”. Circunstâncias específicas fizeram com que o pequeno Isaías adquirisse um gosto vasto pelos estudos e leituras. Desde o interior de onde nutria sonhos de engrandecer ainda mais o conhecimento parte para o RJ e nutre expectativas patéticas envolvendo as instituições do Brasil, o parlamento, os jornais e os jornalistas, os políticos, os artistas e mesmo a própria cidade. Em pouco tempo enfrenta a dura realidade, do preconceito de cor, da opressão decorrente de uma vida de privações financeiras, observa a mediocridade intelectual dos pasquins e jornais, a má vontade e corrupção de agentes públicos, o pouco caso das mulheres,  frustrações que vão gradualmente embotando a inteligência de Isaías que vai se submetendo, quedando-lhe o orgulho (não sem lamentar), como se de tanto levar chicotadas fosse uma vela que se apagasse. Ao final é chamado de tonto pelo diretor R. L. por ter perdido uma oportunidade de se aproveitar de mulher italiana que o solicitava em seus aposentos para fins sexuais – um fim trágico cômico ao escrivão que retornaria ao interior.

Uma boa crítica literária não se passa apenas com elogios – um texto para apologia é próximo do inútil e fora da tradição crítica. A parte alta deste romance/memória são as descrições vivas de um período histórico do Brasil: o Rio de Janeiro da República Velha, as relações pouco escrupulosas entre políticos e jornalistas, estes últimos não primando pela imparcialidade, sempre escrevendo em troca de cargos públicos, prestígio e  dinheiro,  e de uma maneira geral uma sociedade corrompida e atravessada por vícios, donde jornalistas, poetas e literatos se assemelham a prostitutas, ganhando relevo a personagem Viscondessa de V. , metade meretriz, metade poetiza.

Interessante que insurreições ocorrem. Mas o sujeito operário tem presença residual. A ausência deste protagonista faz das explosões atividades desorganizadas e espontâneas num momento de incipiente urbanização e de nascimento do proletariado no Brasil: são movimentos sem organização e direção. O PCB seria fundado em 1922. Uma greve geral (1917) ocorrera no país com presença marcante do movimento anarquista e chegou a parar São Paulo por 30 dias. Observar que os insurgentes respondiam os policiais “à bala” no romance de Lima Barreto:

“Na Rua do Ouvidor armava-se barricadas, cobria-se o pavimento de rolhas para impedir as cargas de cavalaria. As forças eram recebidas à bala e respondiam. Plinio de Andrade, com quem há muito não me encontrava, veio a morrer num desses combates. Da sacada do jornal eu pude ver os amotinados. Havia a poeira de garotos e moleques; havia o vagabundo, o desordeiro profissional, o pequeno burguês, empregado, caixeiro e estudante; havia emissários de políticos descontentes. Todos se misturavam, afrontavam as balas, unidos pela mesma irritação e pelo mesmo ódio à polícia, onde uns viam seu inimigo natural e outros o Estado, que não dava a felicidade e a abundância”

O estilo literário de Lima Barreto é coloquial, baseado em períodos curtos e que remete à linguagem do jornalista. Mas há alguns erros de construção que sugerem falta de revisão, repetição de palavras, vírgulas, etc. Foi o provável pretexto para ataques de inimigos que se sentiram afetados com a literatura satírica da Lima Barreto – seria o mesmo um mal escritor? Aqui o estilo não tem o brilho de um Machado de Assis mas surge como detalhe que está muito longe de desmerecer a obra.

Lima Barreto quebra no meio uma tradição literária secular que se baseava num certo ufanismo e que criou as condições para a crítica social do modernismo. É um escritor plenamente moderno, ainda que anterior à Semana de 22. Fez de certo ponto na Literatura o que Paulo Prado e seu “Retrato do Brasil” fizera para a historiografia do Brasil. Paulo Prado contrariou o senso comum (para quem o brasileiro é um povo carnavalesco) e, em um ensaio histórico poderoso, concluiu que o brasileiro é um povo triste. Seu livro não foi bem aceito mas abria uma crítica e um precedente para os modernistas da historiografia. E que triste fim é o de Lima Barreto, confirmando a tristeza brasileira de Paulo Prado.