quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

“Recordações do Escrivão Isaías Caminha” – Lima Barreto

“Recordações do Escrivão Isaías Caminha” – Lima Barreto



Resenha Livro - “Recordações do Escrivão Isaías Caminha” – Lima Barreto – Editora Brasiliense – São Paulo – 1961

“Verifiquei que até ao curso secundário as minhas manifestações, quaisquer, de inteligência e trabalho, de desejos e ambições, tinham sido recebidas senão com aplauso ou aprovação, ao menos como cousa justa e do meu direito; e que daí por diante, desde que me dispus a tomar na vida o lugar que parecia ser de meu dever ocupar, não sei que hostilidade encontrei, não sei que estúpida má vontade me veio ao encontro, que me fui abatendo, decaindo de mim mesmo, sentindo fugir-me toda aquela soma de ideias e crenças que me alentaram na adolescência e puerícia.

Cri-me fora de minha sociedade, fora do agrupamento a que tacitamente eu concedia alguma cousa e que em troca me dava também alguma cousa” ISAÍAS CAMINHA
                
É recorrente a opinião segundo a qual este (que é o primeiro romance publicado por Lima Barreto) ser uma espécie de memória de conteúdo autobiográfico. É necessário desde aqui fazer algumas ressalvas. Em que pese alguns traços autobiográficos, a obra não deveria ser interpretada como uma expressão de recalque que prenuncia a marginalidade do escritor.

Primeiro, é certo que todos os trabalhos de Lima Barreto possuem algo de autobiográfico: o problema do racismo, sentido na pele pelo escritor, é tema central em “Clara dos Anjos”; e a sátira acerca da miséria intelectual de doutores, bacharéis e políticos é tema corrente desde o “Triste Fim de Policarpo Quaresma” à obra póstuma “Bruzundanga”.

Segundo, em termos literais há diferenças entre Isaías Caminha e Lima Barreto: o primeiro é proveniente do interior e o segundo advém do Rio de Janeiro – a descoberta do Rio de Janeiro evolverá as mudanças espirituais de Isaías; o primeiro granjeia os dons da inteligência de um pai erudito e leitor de livros de história enquanto o pai de Lima Barreto foi ao que consta um simples madeireiro português casado com uma professora de primeiras letras; Isaías ao cabo da história junta-se com uma mulher e consta que Lima Barreto não constituiu família e mal foi visto com  mulheres durante a vida; e, mais importante, Isaías de certa forma capitula junto àquela sociedade baseada na mediocridade intelectual ao se associar ao chefe de jornal e abandonar seus sonhos e seu orgulho, coisa distinta de Lima Barreto, que propugna um ideal artístico e literário que o move no sentido de uma narrativa de sátira, de uma arte panfletária e de insurgência.

Outrossim, o próprio Lima Barreto em carta discorre sobre a finalidade da presente obra: “(Pretendi) mostrar um rapaz nas condições do Isaías, com todas as disposições, pode falhar, não em virtude de suas qualidades intrínsecas, mas batido, esmagado, prensado pelo preconceito”. “Se lá pus certas figuras e o jornal, foi para escandalizar e provocar atenção para a minha brochura. Não sei se o processo é decente, mas foi aquele que me surgiu para lutar contra a indiferença, a má vontade dos nossos mandarins literários”.

Muito se pôde descobrir acerca da vida do escritor Lima Barreto, especialmente por pesquisadores que levaram a cabo um trabalho de publicação de obras inéditas após a morte do escritor. Consta que um grande volume de documentos, cartas e papeis estavam encostados/abandonados num imóvel de familiares do artista e só em meados do séc. XX pesquisadores tiveram contato com este material (recuperaram cerca de 70% dos papeis segundo Francisco de Assis Barbosa). Promoveram a maior repaginação editorial da obra de Lima Barreto até então. Tal empreendimento foi feito duas gerações após a morte do escritor, pela editora Brasiliense, então dirigida pelo historiador e comunista Caio Prado Jr., contando com apoio técnico de Antônio Houaiss e M. Cavalcanti Proença.

Como se sabe, o escritor fluminense e sua obra estão situados no 1900 literários e ficaram marcados pelo signo da inadequação junto ao círculos literários oficiais.  Até aquele período não se cogita falar em escritor como um “ofício”, algo muito mais recente na história, espécie de conquista tardia do modernismo em sua 2ª Fase. Os “escritores” em geral em 1900 ou antes exercem outras profissões. Bernardo Guimarães, o romântico autor de “Escrava Isaura”, é magistrado. José de Alencar é deputado federal pelo Ceará. Joaquim Manuel de Macedo foi além de escritor, médico, político e professor. Em geral havia até escritores e poetas de ofício, mas tal carreira estava associada ao periodismo, e o jornalismo igualmente era uma profissão meio boêmia, sem grandes foros de respeitabilidade, ao menos em face de um pequeno grupo de escritores consagrados e, claro, da elite política do país.

Esta inadequação envolvendo Lima Barreto e seu tempo se revela no problema das publicações. “Recordações do Escrivão Isaías Caminha” foi publicado em sua parte inicial por uma revista editada pelo próprio Lima Barreto (Floreal) em 1907. “Clara dos Anjos” é livro concluído em 1922 e só publicado em 1948. “Cemitério dos Vivos” foi redigido entre 1919-20 e só lançado em 1956. E sua obra mais conhecida, o “O Triste Fim de Policarpo Quaresma” foi publicado em 1917 bancado com recursos do escritor. Sabe-se que Lima Barreto tentou duas vezes sem sucesso um reconhecido lugar na Academia Brasileira de Letras.

Importa ponderar as razões pelas quais Lima Barreto não obteve reconhecimento literário no seu tempo. O problema do racismo e a origem suburbana– que é um dos aspectos impeditivos da apreciação da imaginação, do estilo, do valor estético e da inteligência numa sociedade que em termos de próprio Lima Barreto apenas se valoriza “Diplomados”, donde grassa a mediocridade do bacharelismo, da prevalência da forma sobre o conteúdo, de um jornalismo de favores ou “canalha” na atual acepção de José Arbex Jr.  – é parte da explicação. Todavia poderíamos propor como uma reflexão (ainda que reiterada e um pouco batida pela crítica) do problema de Machado de Assis, ele também advindo do subúrbio, que inicia sua carreira literária como tipógrafo de jornal, e mulato, todavia, diferentemente de Lima Barreto, galgando apreciação literária e reconhecimento daquele pequeno círculo de “doutores”.

Certamente há diferenças quanto ao brilho literário de ambos os autores: e, ademais, Machado de Assis fundou o realismo literário dentro da literatura brasileira, criando uma relativa inovação formal. Todavia, parece-nos que o que mais contribuiu para a marginalidade de Lima Barreto, diante de uma sociedade ainda pouco condescendente com literatos sem seu respectivo diploma de bacharel e sua respectivas boas indicações (a lembrar que o próprio Machado de Assis iniciou sua carreira como protegido por Manuel Antônio de Almeida) foi o veio satírico dos romances, crônicas e narrativas. Lima Barreto teria poucas chances de adentrar a um seleto clube de aristocratas escritores ao eleger uma narrativa de combate em face de instituições como os jornais, os críticos literários, os deputados, os militares e até mesmo os ativistas revolucionários (que são ridicularizados como massa de manobra do jornal O GLOBO em, “Recordações”).  Lima Barreto literalmente “atira para todos os lados”.  O escritor é nos termos de seus críticos um “revoltado em conflito permanente com o meio em que vivia” e ao que parece sua sátira vai se tornando cada vez mais ácida conforme seu amor pelo país não vai sendo correspondido. Mantém todavia seu orgulho e em suas palestras em Mirassol ao final da vida parece eleger a “arte” como uma espécie de refúgio ou quase religião para dar vazão  às frustrações que igualmente levaram-no ao abuso do álcool, às passagens de depressão, às internações no manicômio e a uma morte prematura.

Filosofia e Literatura

Em 1897 Lima Barreto ingressou na escola Politécnica onde teve contatos com o positivismo de Texeira Mendes. Mais importante que o positivismo foi o despertar para a leitura de demais obras filosóficas – consta que leu Descartes, Kant e Spencer. Do primeiro retiraria um princípio que levaria para sua produção literária, o princípio da dúvida. Princípio  que se extrai na percepção crítica com que observou o Brasil da República Velha. Este é o ponto alto de sua literatura e neste movimento ele merece uma nova classificação, distinta de um certo guarda chuva de “pré-modernismo” com que se costuma embalá-lo.

O signo da ousadia formal e a conformação da identidade nacional exigiram do movimento modernista um olhar crítico sobre o passado: como um movimento revolucionário, fizeram uma espécie de tábua rasa a partir da qual criaram algo de novo. Senão vejamos qual é a base filosófica da obra de Lima Barreto nas suas palavras:

“A Dúvida metódica, senão sistemática, a tábua-rasa preliminar, para se chegar à certeza”. “O romancista é de alguma forma um descobridor – diria certa feita – e o melhor tratado de estética, nesse sentido, ainda é o Discurso do Método, de Descartes”.

“As Recordações do Escrivão Isaías Caminha” é a história do embotamento de uma inteligência viva advinda da “tristeza, da compreensão e da desigualdade do nível mental do seio familiar”. Circunstâncias específicas fizeram com que o pequeno Isaías adquirisse um gosto vasto pelos estudos e leituras. Desde o interior de onde nutria sonhos de engrandecer ainda mais o conhecimento parte para o RJ e nutre expectativas patéticas envolvendo as instituições do Brasil, o parlamento, os jornais e os jornalistas, os políticos, os artistas e mesmo a própria cidade. Em pouco tempo enfrenta a dura realidade, do preconceito de cor, da opressão decorrente de uma vida de privações financeiras, observa a mediocridade intelectual dos pasquins e jornais, a má vontade e corrupção de agentes públicos, o pouco caso das mulheres,  frustrações que vão gradualmente embotando a inteligência de Isaías que vai se submetendo, quedando-lhe o orgulho (não sem lamentar), como se de tanto levar chicotadas fosse uma vela que se apagasse. Ao final é chamado de tonto pelo diretor R. L. por ter perdido uma oportunidade de se aproveitar de mulher italiana que o solicitava em seus aposentos para fins sexuais – um fim trágico cômico ao escrivão que retornaria ao interior.

Uma boa crítica literária não se passa apenas com elogios – um texto para apologia é próximo do inútil e fora da tradição crítica. A parte alta deste romance/memória são as descrições vivas de um período histórico do Brasil: o Rio de Janeiro da República Velha, as relações pouco escrupulosas entre políticos e jornalistas, estes últimos não primando pela imparcialidade, sempre escrevendo em troca de cargos públicos, prestígio e  dinheiro,  e de uma maneira geral uma sociedade corrompida e atravessada por vícios, donde jornalistas, poetas e literatos se assemelham a prostitutas, ganhando relevo a personagem Viscondessa de V. , metade meretriz, metade poetiza.

Interessante que insurreições ocorrem. Mas o sujeito operário tem presença residual. A ausência deste protagonista faz das explosões atividades desorganizadas e espontâneas num momento de incipiente urbanização e de nascimento do proletariado no Brasil: são movimentos sem organização e direção. O PCB seria fundado em 1922. Uma greve geral (1917) ocorrera no país com presença marcante do movimento anarquista e chegou a parar São Paulo por 30 dias. Observar que os insurgentes respondiam os policiais “à bala” no romance de Lima Barreto:

“Na Rua do Ouvidor armava-se barricadas, cobria-se o pavimento de rolhas para impedir as cargas de cavalaria. As forças eram recebidas à bala e respondiam. Plinio de Andrade, com quem há muito não me encontrava, veio a morrer num desses combates. Da sacada do jornal eu pude ver os amotinados. Havia a poeira de garotos e moleques; havia o vagabundo, o desordeiro profissional, o pequeno burguês, empregado, caixeiro e estudante; havia emissários de políticos descontentes. Todos se misturavam, afrontavam as balas, unidos pela mesma irritação e pelo mesmo ódio à polícia, onde uns viam seu inimigo natural e outros o Estado, que não dava a felicidade e a abundância”

O estilo literário de Lima Barreto é coloquial, baseado em períodos curtos e que remete à linguagem do jornalista. Mas há alguns erros de construção que sugerem falta de revisão, repetição de palavras, vírgulas, etc. Foi o provável pretexto para ataques de inimigos que se sentiram afetados com a literatura satírica da Lima Barreto – seria o mesmo um mal escritor? Aqui o estilo não tem o brilho de um Machado de Assis mas surge como detalhe que está muito longe de desmerecer a obra.

Lima Barreto quebra no meio uma tradição literária secular que se baseava num certo ufanismo e que criou as condições para a crítica social do modernismo. É um escritor plenamente moderno, ainda que anterior à Semana de 22. Fez de certo ponto na Literatura o que Paulo Prado e seu “Retrato do Brasil” fizera para a historiografia do Brasil. Paulo Prado contrariou o senso comum (para quem o brasileiro é um povo carnavalesco) e, em um ensaio histórico poderoso, concluiu que o brasileiro é um povo triste. Seu livro não foi bem aceito mas abria uma crítica e um precedente para os modernistas da historiografia. E que triste fim é o de Lima Barreto, confirmando a tristeza brasileira de Paulo Prado.  

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

“O Noviço” – Martins Pena

“O Noviço” – Martins Pena



Resenha livro – “O Noviço / O Judas em Sábado de Aleluia” – Martins Pena – Editora Ática

Resenha Livro – “O Noviço / O Juiz de Paz na Roça” – Martins Pena – Editora Sol Objetivo

“Se se perdessem todas as leis, escritos, memórias da história brasileira dos primeiros cinquenta anos desde século XIX e nos ficassem somente as comédias de (Martins) Pena, era possível reconstruir por elas a fisionomia moral desta época”. Sílvio Romero (1851 – 1914) – Crítico Literário
         
O enunciado acerca da obra deste precursor da dramaturgia no Brasil não esgota as novidades e a importância geral das peças acerca dos costumes da corte ou mesmo do interior do Brasil das primeiras décadas do século XIX.

Martins Pena se sobressai de fato como introdutor do teatro de costumes no Brasil e ao fazê-lo retratou a sociedade de seu tempo ensejando um importante interesse histórico: desde as relações sociais e conjugais, até os abusos do poder dos juízes de paz, da corrupção com a falsificação de moedas[1], até o paternalismo envolvendo funcionários públicos,  muitos dos impasses de outrora continuam. 

O que há de se constatar é uma certa atualidade, como veremos, em muitas das passagens das peças, e aqui reside um ponto que parece dizer tanto à perspicácia do artista que retrata o seu tempo quanto ao contexto histórico especial que perpassa um processo histórico de longa duração desde 1808 com a vinda da Família Real portuguesa e a instalação da sede da corte no Rio de Janeiro[2], a elevação do Brasil a condição de Reino Unido de Portugal Brasil e Algaveres em 1815, a Revolução do Porto em 1820 com objetivos de aniquilar com o Antigo Regime, restituir/reestabelecer Portugal no interior do Império português o que foi interpretado por deputados brasileiros como um movimento no sentido de reecolonização do Brasil, dando impulso ao movimento de independência, que teria prosseguimento com o dia do Fico em 9 de Janeiro de 1822, o 7 de Setembro (cujo significado concreto é de pouca relevância tendo sido o grito do Ipiranga sequer repercutido nos jornais da época com uma única exceção[3]), até a aclamação de D. Pedro como Imperador.

Este panorama deve nos orientar no sentido de que o contexto em que Martins Pena escreveu suas peças é um momento decisivo para o país, fase da independência, da consolidação inicial da nacionalidade, mas de um país ainda eivado pela escravidão, pelo patrimonialismo, pela corrupção que engessa o serviço público, pelo compadrio, pela força do poder local associada ao modelo jurídico institucional português do Antigo Regime. E no “privado” pelas relações conjugais eivadas por interesses pecuniários, algo se não distinto dos dias de hoje, diferente na forma, havendo na comédia de costumes, sempre uma orientação moralista que em “O Noviço” revela o crime da bigamia, a condenação um tanto velada da viúva que não se ressente do falecido e busca um novo amante (por quem acaba enganada) e um cruel destino da jovem namoradeira (Maricota) em contraponto ao modelo de jovem “recatada e do lar” (Chiquinha) – peça “O Judas em Sábado de Aleluia”.

O que queremos indicar aqui é que ao retratar os costumes de uma conjuntura histórica que dizia respeito à fase do advento da nacionalidade, ou talvez, em face do peso ou fardo do nosso passado ou herança de vícios com a nação em nascimento, Martins Pena acabou se tornando algo profético ou atual. Assim diz um de seus personagens que “as leis criminais fizeram-se para os pobres” (fala então Ambrósio em “O Noviço”) ou práticas de corrupção em entes públicos como o suborno para a não convocação à Guarda Nacional (“O Judas em Sábado de Aleluia”) ou a arbitrariedade judicial (“O Juiz de Paz na Roça”). Todos revelam uma atualidade incrível das peças.

Autor e Obras

Luís Carlos Martins Pena nasceu no Rio de Janeiro em 05.01.1815. Ficou órfão de pai quando tinha um ano e de mãe quando tinha 10 anos, tendo sido educado pelo tio materno. Embora não tivesse vocação para o comércio, foi obrigado a estudar contabilidade e leis de comércio de 1832 e 1835. Tal fato pode sugerir algo de auto-biográfico quanto ao personagem central Carlos, do Noviço, garoto matreiro e apaixonado pela prima, porém internado num convento por um tio mal intencionado que intentava desfazer o casamento para, com os votos de pobreza do sobrinho, tirar de vista um herdeiro da herança da rica cônjuge e tia do noviço. Carlos descobre os movimentos sinuosos e mal intencionados do tio, bem como revela a sua não inclinação pela vida monástica, foge do convento e causa enorme tribulias junto aos frades:

“CARLOS- E que culpa tenho eu, se tenho a cabeça esquentada? Para que querem violentar minhas inclinações? Não nasci para frade, não tenho jeito nenhum para estar horas inteiras no coro a rezar com os braços encruzados. Não me vai o jejuar: tenho, pelo menos três vezes ao dia uma fome de todos os diabos. Militares é o que quisera ser; para aí chama-se a inclinação. Bordoadas, espadeiradas, rusgas é que me regalam; esse é o meu gênio. Gosto de teatro, e de lá ninguém vai ao teatro, à exceção de Frei Maurício, que frequenta a plateia de casaca e cabeleira, para esconder a coroa”.

No limite um Padre Mestre dos Noviços e outros figurantes da igreja vivenciaram momentos cômicos, de rebuliço e confusão em função das brejeirices do Noviço mais rebelde do convento – a maior delas quando se veste de mulher e envia suas vestes à pobre Rosa, causando um “tumulto público”. Fora os risos, a Igreja e a religião não são objeto de crítica: dentre as falas, fica-se claro que é a ganância de Ambrósio e a inocência de Florência (sua segunda mulher) que é uma viúva rica e se deixa seduzir pelo oportunista, os responsáveis por fazer com que Carlos, jovem sem qualquer inclinação para a vida no monastério, para lá seja enviado. Diferente portando das ponderações de “O Seminarista” (1872) de Bernardo de Guimarães, uma tragédia romântica cujo mote é justamente os efeitos deletérios da falta de inclinação e a vida forçada no seminário.

Todavia, é importante ressaltar: o teatro de costumes se desenvolve em Martins Pena a partir de uma narrativa moralista, com uma intencionalidade clara de instrumentalizar a arte como forma de educar ou intervir na sociedade. Certamente estamos aqui nos albores da narrativa nacional e não se observa uma sondagem das cogitações psicológicas/internas das personagens, de suas contradições com uma depuração que as inovações do realismo literário a partir de Machado de Assis e especificamente Eça de Queirós desde Portugal (que em sua fase realista, também assinalava um sentido reformador) alcançaram. Aqui se observa ainda um tom moralista e maniqueísta que se adéqua formalmente a um teatro de estilo de comédia, voltado a entreter, arte acessível a um público em sua maioria iletrado, e como não poderia deixar de ser, dadas as circunstâncias históricas, com certa superficialidade na tintura dos traços psicológicos. Nesta forma que combina um discurso moral e o gracejo, cada personagem agrega características pontuais, uns são bons, outros são maus, uns são fortes, outros são fracos, uns são honestos, outros são desonestos – a contradição e a complexidade do indivíduo no teatro, encontraríamos muito depois, podendo suscitar 1940 com “Vestido de Noiva” de Nelson Rodrigues e 1950 com o “Pagador de Promessas” de Dias Gomes.
Infelizmente atual

“O Juiz de Paz na Roça” foi a primeira peça escrita por Martins Pena – redigida em 1837 e encenada no teatro São Pedro em 10.08.1839. Desde o ponto de vista histórico, retrata a vida difícil dos lavradores (pequenos proprietários, categoria comumente negligenciada pela historiadores) no interior do Brasil. Costumam viver em pequenas propriedades como é o caso de Manuel João, têm pouca monta de capital e de escravos e naquela conjuntura de leis restritivas de abolição do tráfico[4], encontram enormes dificuldades de subsistência – na história falta carne seca para família e para o escravo só sobra laranja com farinha. A história retrata o recrutamento de ofício pelo Juiz de Paz de cidadãos como Manuel João para a Guarda Nacional.

Certamente dentre as críticas atuais que perpassam a obra do “O Juiz de Paz na Roça”, nenhuma delas parece cair melhor do que a arbitrariedade do poder jurisdicional, ainda que aqui se deva evitar o anacronismo – ler desejos pessoais ou aspectos do presente do passado conferindo um erro de cronologia. Os Juízes Togados de hoje eram distintos do modelo dos juízes de paz, em geral juízes leigos em direito (fato aliás reiterado na peça com efeitos cômicos), com ampla jurisdição (poderíamos dizer competência mais propriamente, tratando de assuntos judiciais, administrativos, eleitorais e de polícia) e, importante, eram juízes eleitos, ainda que por um reduzido eleitorado proprietário. O Juiz de Paz mais do que tudo era parte de uma articulação do Poder Local que remete a uma estrutura de poder do Antigo Regime que, num Império Continental como o Português que envolvia possessões em África e Ásia, dependia de relações bastante específicas de imbricação de poder baseadas na concessão de honras e mercês, na ampliação do poder local em troca da obediência ao Poder Régio – uma mútua relação de dependência, legitimação e concessão de poder. De outro modo não é de se estranhar que uma herança com relação aos abusos de poder, especificamente envolvendo magistrados, não tenham vínculos com esta conformação tradicional de poder local, desnudada de forma irônica e engraçada na figura de um Juiz Glutão que concilia duas partes que litigam em torno de um Porco propondo que o suíno seja remetido ao....Juiz, preferencialmente cozinhado com ervilhas. Vejamos:

“JUIZ – Não posso deferir por estar muito atravancado com um roçado; portanto, requeira ao suplente, que é meu compadre Pantaleão.
MANUEL ANDRÉ – Mas, Sr. Juiz, ele também está ocupado com uma plantação.
JUIZ- Você Replica? Olhe que o mando para cadeia.
MANUEL ANDRE – Vossa Senhoria não pode prender-me à toa; a Constituição não manda.
JUIZ- A Constituição! Está Bem! Eu, o Juiz de Paz, hei por bem derrogar a Constituição! Sr. Escrivão, tome termo que a Constituição está derrogada, e mande-me prender este homem.
MANUEL ANDRÉ – Isto é uma injustiça!
JUIZ – Ainda Fala? Suspendo-lhe as garantias...”

Está em curso a operação Lava Jato que em termos jurídicos já tem levado à sociedade propostas como a relativização da vedação do uso de provas ilícitas no processo e efetivou a repercussão em rede nacional de interceptação telefônica resguardada por segredo de justiça que de acordo com o art. 10 da lei 9296 deveria levar o Juiz Sérgio Moro a ter cometido crime pela supracitada lei com pena de reclusão de 2 a 4 anos e multa[5]. A operação Lava Jato é a peça jurídica central do golpe de estado que está em curso no Brasil com ativa participação do poder judiciário. Não se trata do mesmo poder judiciário dos poderes provinciais baseados no poder local do Brasil dos primeiros anos do séc. XIX – mas a mesma arbitrariedade ridicularizada por Martins Pena está amplamente divulgada na internet nas audiências da Lava Jato dirigidas pelo Juiz Sérgio Moro, neste momento, um dos principais inimigos da esquerda, dos democratas e dos patriotas do país. Que o humor deixe de ser combatido pelas “minorias” da esquerda pós moderna (feministas, LGBTS, etc.) e volte a ser uma nova e potente ferramenta para desmascarar pequenos déspotas como o Juiz da Operação Lava Jato. Novas peças aos moldes de Martins Pena são necessárias.
  
   




[1] Fato histórico que ocorreu após a fundação do Banco do Brasil nos anos seguintes à independência.  
[2] A própria vinda da corte ao Rio de Janeiro promoveu importantes mudanças na cidade e no país, com o desenvolvimento do mercado interno com o crescimento urbano, a fundação da imprensa régia, fundação da Academia Real Militar, do Museu Real, do Jardim Botânico, Missão de Artistas e de Naturalistas e criação da Casa da Agricultura na Bahia. E particularmente ao que nos interessa, a construção do Real Teatro São João inaugurado em 1813 com a ópera O Juramento dos Numes.
[3] Trata-se do jornal fluminense "O Espelho", datado de 20 de setembro
[4] O Brasil assina um Tratado de Cessação do Tráfico de escravos Brasil-Inglaterra (1826), mas além de resistência quanto à vigência da norma no país, o Brasil é negligente na aplicação da lei, em que pese importantes pressões britânicas – longe de ser humanitária, a cessão do tráfico para Inglaterra era parte de um projeto que envolvia uma nova orientação de regime de trabalho assalariado em seus domínios, que tivesse condão de criar um mercado consumidor para seus produtos em face de suas distintas etapas da Revolução Industrial. Depois de pressão, apreensão de navios e ameaças diplomáticas, a abolição definitiva no Brasil ocorre em 1850.  
[5] Art. 10. Constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei.
Pena: reclusão, de dois a quatro anos, e multa.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

“O Brasil Imperial (Volume I – 1808 – 1831)” – Keila Grinsberg e Ricardo Salles (org.)

“O Brasil Imperial  (Volume I – 1808 – 1831)” – Keila Grinsberg e Ricardo Salles (org.)




Resenha Livro - “O Brasil Imperial  (Volume I – 1808 – 1831)” – Keila Grinsberg e Ricardo Salles (org.) – Ed. Civilização Brasileira

José Bonifácio e o Tráfico de Escravos (1823)
“Estamos totalmente convencidos da inadequação do tráfico de escravos (...) mas devo frisar candidamente que a abolição não pode ser imediata, e eu explicarei as duas principais considerações que nos levam a essa determinação. Uma é de ordem econômica e a outra é de ordem política. A primeira se baseia na absoluta necessidade de tomarmos medidas para garantir um aumento da população branca antes da abolição, para que as lavouras do país continuem produzindo. (....) A segunda consideração diz respeito à conveniência política (....) poderíamos enfrentar a crise e a oposição daqueles que se dedicam ao tráfico, mas não podemos, sem um grau de risco que nenhum homem em sã consciência possa pensar em correr, tentar no presente momento uma medida que iria indispor a totalidade da população do interior (...) Se a abolição viesse para eles antes que estivessem preparados, todo o país entraria em convulsão, de uma ponta a outra, e não há como calcular as consequências para o governo ou para o próprio país”.
                
A publicação desta Coleção do Brasil Imperial deve ser saudada como mais uma iniciativa que intenta aproximar o público comum de trabalhos de pesquisa que costumam estar adstritos às publicações ou revistas especializados, especialmente no âmbito de programas de pós graduação das Universidades Públicas do País. Esta coleção dirigida por Keila Grinberg e Ricardo Salles[1] ou a Coleção Brasil Colonial[2] organizada por João Fragoso e Maria Fátima Gouvêa se assemelham ao reunir pesquisadores de universidade de todo país que perquiram temas tradicionais ou candentes a partir das mais recentes descobertas da historiografia.

E trata-se aqui de um exercício notável de diálogo entre a academia e o público leigo: sabe-se que as pesquisas em nível de pós graduação primam pela especialização ou às vezes por certa ultra especialização[3], que podem ganhar em profundidade, mas perder em envergadura, impossibilitando aferir os sentidos da história. Nesse aspecto, os artigos publicados ao grande público são contextualizados. E mais: revelam como as pesquisas e os debates mais recentes da historiografia colocam por terra muitas de algumas noções consolidadas (às vezes em livros didáticos), seja por novas fontes e documentos disponíveis, seja criticando interpretações anacrônicas, estas, por sinal, bastante recorrentes no período do presente volume.

O 1808 demarca a vinda da Família Real Portuguesa e 07 de Abril de 1831 data da abdicação de D. Pedro. Alguns eventos da história, segundo alguns historiadores, podem ser analisados por uma ótica de longa duração. É o caso da nossa Independência em face de Portugal – celebrizada formalmente ao 7 de Setembro quando D. Pedro dá o grito de Ipiranga.

Antes de se reduzir a independência a um fato cronológico, hoje se discute a independência como um processo de dimensões revolucionárias e como projeção histórica de longa duração, perdurando para alguns desde a vinda de D. João, até a Aclamação de D. Pedro e para outros, processo que se concluí com a abdicação.

De qualquer forma, alguns cuidados são essenciais quando se discute o problema da independência: ao se analisar as fontes, já no séc. XIX, com as tendências republicanas em voga, história é passada por um filtro que tende a desmerecer o período em questão: a imagem de um rei glutão e submisso (D. João VI) e uma não melhor opinião acerca da família real criaram narrativas muito enviesadas do processo em curso; outro desacerto é o do anacronismo, o erro de cronologia na análise da independência do Brasil, que envolve tomar o marco da independência política como o do nascimento, após longa gestação da nação brasileira. O que havia eram várias possibilidades em jogo, bastando lembrar (1) A questão Cisplatina que estava em aberto. A Província Cisplatina (atual Uruguai) ao tempo da Independência pertencia ao Brasil. No tempo de D. Pedro I há um conflito no Rio da Prata que daria a Independência ao Uruguai; (ii) Confederação do Equador, movimento de caráter republicano e separatista, também revela a contingência da independência e possíveis desdobramentos.   

O fato é que a independência brasileira foi um processo bem sucedido desde o ponto de vista da conservação dos interesses gerais das elites econômicas e políticas desde o Brasil  - com a vinda da família real em 1808, mudanças importantes ocorreram, como a abertura dos portos ao comércio com os países amigos, pondo fim ao exclusivismo comercial, favorecendo em primeiro lugar os comerciantes e de maneira geral os proprietários de capital. A própria vinda da corte ao Rio de Janeiro promoveu importantes mudanças na cidade e no país, com o desenvolvimento do mercado interno com o crescimento urbano, a fundação da imprensa régia, fundação da Academia Real Militar, do Museu Real, do Jardim Botânico, Missão de Artistas e de Naturalistas, criação da Casa da Agricultura na Bahia e a elevação do Brasil a categoria Reino Unido de Portugal Brasil e Algaveres em 1815, um reconhecimento formal do fim da condição colonial brasileira.

A convocação das cortes de Lisboa ocorre 30 de maio de 1820. As cortes propõem o fim do Antigo Regime, a elaboração de nova constituição e o reestabelecimento de Portugal  no interior do Império Luso Português. No Brasil houve uma relativa margem de participação (para os moldes da época) para eleição das Cortes de Lisboa. Excluídos do voto: pobres, escravos, serventes domésticos, gente sem ocupação fixa e mulheres. Com direito de voto: grandes proprietários, caixeiros, artesãos, lavradores, rendeiros, foreiros, empregados públicos. Dentre os historiadores desta coleção parece não haver opinião unívoca quanto a real intenção recolonizadora das cortes – mas esta foi a forma como o entenderam os deputados brasileiros em Portugal. De volta ao Brasil consolida-se sentimento de que há pretensão de Portugal em reverter estatuto do Brasil num sentido de recolonização.

A decisão de D. Pedro não ceder às pressões das cortes naquele que ficou conhecido como o dia do Fico (9 de janeiro de 1822) precederia a data oficial da Revolução da Independência. A solução monárquica indica uma alternativa das elites para se evitar a guerra civil – vozes como a de Frei Caneca já propugnavam as ideias da revolução francesa e da independência americana provavelmente desde 1817. E numa rápida comparação com os resultados em face da América Espanhola, tais temores não eram infundados: do Brasil, 18 Capitanias Gerais da Colônia existentes em 1820 formaram um país (Excluindo a República da Cisplatina). Da América Espanhola, 4 vice Reinados e 4 Capitanias gerais dão origem  a 17 países.

Como mencionado no início da resenha, José Bonifácio manifesta medo da abolição do tráfico de escravos. Há o temor tanto dos efeitos do fim do tráfico quanto da abolição e o medo da insurreição africana: uma constante – a maior rebelião no séc. XIX foi a dos malês na Bahia.

O Brasil assina um Tratado de Cessação do Tráfico de escravos Brasil-Inglaterra (1826), mas além de resistência quanto à vigência da norma no país, o Brasil é negligente na aplicação da lei, em que pese importantes pressões britânicas – longe de ser humanitária, a cessão do tráfico para Inglaterra era parte de um projeto que envolvia uma nova orientação de regime de trabalho assalariado em seus domínios, que tivesse condão de criar um mercado consumidor para seus produtos em face de suas distintas etapas da Revolução Industrial. Depois de pressão, apreensão de navios e ameaças diplomáticas, a abolição definitiva no Brasil ocorre em 1850.  

A partir de 1830 o aumento no custo do escravo com tratados e leis de combate ao tráfico repercute nos custos de produção e no aumento do valor das mercadorias – há mesmo o encarecimento e o afunilamento das alforrias e detecta-se maiores movimentos de rebelião de escravos no Brasil. Importante rebelião atingiu a família de grande Deputado - Rebelião de Carrancas (ver abaixo). Além do temido Levante em São Domingos (Haiti), houve levante de escravos em Guadalupe (1793), Curaçao (1795) e Santa Lucia (1795).

O estudo do período Joanino e do primeiro Reinado tem importante significado pela abrangência de temas e pelo ponto de partido que 1808/1831 envolve para a história do Brasil – o início da nacionalidade. Esta coleção trata desde discussões tradicionais, como a emancipação política, a vinda da corte em 1808 e a Revolução dos Portos, até questões novas, que carecem de maiores pesquisas, como a política indigenista no séc. XIX, as rebeliões escravas do período e a Igreja no Brasil e sua relação com os poderes seculares e com Roma nos primeiros anos do séc. XIX.

Ademais, é com a Independência que surge pela primeira vez o problema da nação, certamente de modo distinto que a questão é tratada pelos modernistas de 1930. O Brasil naquele período ainda é um mosaico de províncias, não havendo uma unidade cultural ou identidade brasileira que precedesse a constituição do estado, tal qual ocorre nos países europeus de unificação nacional tardia como Itália e Alemanha. Mas já há algo relacionado ao brasileiro, que diz respeito jus soli e às fronteiras nacionais. A missão artística desde o Rio de Janeiro inicia trabalhos de retrato de paisagens e costumes, enquanto espaços como o Jardim Botânico ou mesmo o início da imprensa régio também ensejam os primeiros passos de um país-nação. Trata-se portando o 1808-1831 de momento decisivo da história nacional: o fim formal da colônia e o início de longo caminho na consolidação do que se entende por Brasil e brasileiro.


VISTA DO RIO DE JANEIRO - THOMAS ENDER - pintor austríaco - Brasil Joanino - Séc. XIX

Revolta de Carrancas - MG - 1833 - Fazenda Campo Alegre - Propriedade do Barão de Alfenas - Deputado Gabriel Francisco Junqueira (Curato de São Thomé das Letras freguesia de Carrancas)
"No dia 13 de maio de 1833, o filho do deputado Junqueira, que tomava conta da propriedade, foi surpreendido e morto a pauladas por alguns escravos, liderados pelo africano Ventura Mina, enquanto fazia ronda na fazenda. Outros cativos da roça juntaram-se a Ventura e dirigiram-se à sede da propriedade. Percebendo-a guarnecida, rumaram para a Fazenda Bela Cruz. Com a adesão de escravos locais, cercaram e assassinaram todos os familiares do proprietário que lá se encontravam, no total de oito pessoas.
(....)
Depois de batidos, os sobreviventes (insurrectos) foram rapidamente julgados: 16 foram enforcados pelo crime de insurreição escrava, previsto no art. 107 do Código Criminal; seis sofreram penas de açoite e ferros de dois anos de galé". GINSBERG, K. BORGES, M. SALLES, R. "Rebeliões escravas antes da extinção do tráfico".

O Grito do Ipiranga - Pedro Américo - 1888 - "Na realidade, quando o príncipe regente proclamou - se é que o fez - o célebre Grito do Ipiranga, em 7 de setembro, que hoje se comemora como data nacional do Brasil, para a maioria dos contemporâneos a separação, ainda que parcial, já estava consumada. Esse episódio, aliás, não teve significado especial, não sendo sequer noticiado pela imprensa da época, exceto por breve comentário do jornal fluminense "O Espelho", datado de 20 de setembro. Tornava-se necessário oficializá-la, com a aclamação de d. Pedro como imperador constitucional do Brasil, ocorrida em 12 de Outubro, e a coroação, de 1º de dezembro - eventos, que iriam buscar estabelecer, em sentidos diferentes, os fundamentos do novo império". NEVES, Lúcia M. Bastos. "Estado e Política na Independência".





[1] Ambos Doutores em Historia Social pela UFF e Professores da UNIRIO.
[3] O que não deixa de implicar, tal recorte, numa opção teórico metodológica. 

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

“Manifesto do Partido Comunista” – Karl Marx e Friedrich Engels

“Manifesto do Partido Comunista” – Karl Marx e Friedrich Engels



Resenha Livro - “Manifesto do Partido Comunista” – Karl Marx e Friedrich Engels – Ed. Martim Claret
                
“Os Princípios Comunistas de modo algum se apoiam em ideias ou princípios inventados, ou descobertos por este ou aquele reformador do mundo.
                
Eles são apenas a expressão geral das relações reais de uma luta de classes  existente, de um movimento histórico que ocorre diante de nossos olhos”. (p. 126)
                
As poucas linhas supracitadas por um lado revelam um dos vários aspectos a partir dos quais este “Manifesto” revela um caráter profético e por outro lado ilustra a especificidade do texto em face de todas as demais produções teóricas, jornalísticas e partidárias de Marx e Engels.

No que tange ao profético, constata-se que o Manifesto foi redigido em 1847 e publicado em 1848, pouco antes da derrota do levante operário parisiense de Junho de 1848: a história do manifesto, como veremos, reverbera os avanços e recuos do movimento operário. Sua disseminação em dado contexto, espaço e lugar é um barômetro das condições de organização da classe operária, observando-se maior repercussão do panfleto nas jornadas de 1871 com um novo levante desde a Comuna de Paris, ou ao um novo contexto de conformação de partidos operários. Um modelo partidário de um tipo diferente dos modelos associativos de meados do séc. XIX que até provocou a mudança do título nas edições posteriores.  

Quanto à especificidade do “Manifesto Do Partido Comunista”, deve-se aqui confrontar o texto com uma proposta de leitura científica da obra de Marx.

Durante muito tempo na história, pareceu ter sido comum uma leitura das obras de Marx sem a preocupação em face de algo que parece ser até trivial: cotejar cada produção, cada obra, cada artigo, com o momento correspondente da biografia intelectual do autor, de molde a situar as diferentes nuances teórico-metodológicas correspondentes a diferentes estágios de uma vida intelectual em evolução. Parte-se do pressuposto de que Marx não nasceu marxista e de que as grandes descobertas teóricas e contribuições para a intervenções práticas devem ser devidamente dosadas, consoante diferentes estágios, etapas de desenvolvimento intelectual: desde quando estudante de Direito de Bonn, até sua transferência à Universidade de Berlin donde Marx tem contato e se associa aos jovens hegelianos de esquerda, passando aos seus estudos de filosofia grega doutorando-se em Demócrito e Epicuro, passando pela sua atividade jornalística, já desde uma posição política progressista, até o contato junto ao movimento operário desde Paris, incrementado após os encontros junto a Engels (então já autor do “A Situação da Classe Trabalhadora da Inglaterra”), passando pela atividade política clandestina, os mais de dez anos dedicado aos estudos de economia política em Londres resultando nos trabalhos do “Capital”, cujas descobertas, L. Althusser equipara em relevância à contribuição de Galileu para a física e à contribuição dos gregos para a matemática.

Seria apenas em meados do séc. XX particularmente a partir de Galvano Della Vope e principalmente de Louis Althusser que se passaria de uma “leitura de orelha” das obras de Marx para uma proposta de interpretação científica do conjunto da produção do velho mouro: a conclusão a que chega Althusser, com algumas retificações ao longo da vida, é que não há uma solução de continuidade, mas antes um “corte epistemológico” dentre obras de juventude de Marx (Questão Judaica de 1843, Crítica da Filosofia do Direito de Hegel de 1844, Manuscritos Econômico Filosóficos de 1844); um momento de corte (que em termos históricos é de longa duração e se situaria com a publicação de 1846 de "A "Ideologia Alemã", implicando o rompimento com a tradição do idealismo e galgando os conceitos do materialismo histórico para o repertório conceitual de Marx); um momento de maturação que se estende por obras que envolvem o “18 de Brumário” (1852) e “Contribuição à Crítica da Economia Política” (1859) até o momento de plena maturidade advindo do V. I de O Capital (1867), obra que Marx dedica mais de 10 anos para sua consecução e que possui as categorias teórico-metodológicas ausentes na fase juvenil e em fase de desenvolvimento na de maturação.

Os marxistas contrários ao ponto de vista Althusseriano, em geral, buscam encontrar respaldo entre uma solução de continuidade dentre as obras de “juventude” e “maturidade”. Parece-nos que em um aspecto tais autores buscam fundamentar seu raciocínio com acerto: através do legado hegeliano em Marx que se faz presente através da dialética (recolocada desde uma orientação materialista) e que torna possível inclusive a consecução de uma análise também histórica do “Capital”, particularmente, do capítulo “Da Assim Chamada Acumulação Primitiva”, passagens não de “teoria pura” (como diz Althusser), mas da história em suas múltiplas determinações dialéticas. Lênin fez ele próprio um estudo filosófico de Hegel para afirmar que aquele que quer dominar o marxismo necessariamente precisa entender a filosofia hegeliana – e se por um lado o cotejo entre a biografia intelectual, a avaliação da densidade teórica das obras e uma proposta de interpretação científica consoante os pressupostos da própria evolução intelectual de Marx em Althusser sejam pertinentes, algumas chaves explicativas permanecem em aberto.

“O Manifesto Comunista”, um livro considerado de “maturação”, não deve ser em primeiro lugar interpretado como uma obra teórica ou conceitual, mas uma intervenção política partidária de intervenção na realidade.

A Liga Comunista, então na clandestinidade, realiza um congresso em Londres (1847) e publica o seu programa, redigido por Marx e Engels[1]. A Liga fora uma associação inicialmente alemã que posteriormente se propõe a ser um grupo internacional (Associação Operária Internacional). Ocorre que a história do Manifesto e de sua recepção/difusão parece refletir a história do movimento operário. Seu lançamento está relacionado com a derrota dos trabalhadores parisienses em Junho de 1848: inicialmente o texto é pouco divulgado em face da derrota. Nos lugares onde há Ascenso do movimento operário como a Polônia da década de 90 do séc.XIX há sinais de circulação e ampliação do circulo de leitura do documento, ocorrendo também o inverso: nos momentos de refluxo e derrota suspende-se a circulação do Manifesto.

Por outro lado, sabe-se que em 1848 Marx ainda não perfaz um estudo sistemático da “Crítica da Economia Política”. Parece haver questões conceituais silentes no texto, como o problema da mercadoria, negligenciado em detrimento da propriedade privada. O Manifesto dá centralidade à propriedade privada – que é a expressão jurídica do capital – sem fazer menção ao problema da mercadoria (tema do 1º Capítulo do Volume  I do Capital). A expropriação da propriedade privada é a primeira medida programática do programa partidário, não se colocando em questão de forma mais detida a socialização dos meios de produção desde as fábricas, a extração de mais valor e sua interdição dentro de um projeto societário alternativo e outras temáticas cujo arsenal conceitual decorreriam da crítica da economia política, algo determinado posteriormente no pensamento de Marx.  

Todavia, a leitura do livro possui passagens já de uma avançada compreensão acerca da Luta de Classes e sua universalidade na história desde sociedades pré-capitalistas; a transitoriedade da sociabilidade burguesa que naquele contexto tanto luta contra resquícios do feudalismo e da velha sociedade do Antigo Regime (para a qual conta com o apoio do proletariado) quanto já encontra embates diretos contra o proletariado – predominando em nível mundial a segunda tendência. E em dois aspectos, do Manifesto aparece o brilhantismo de uma capacidade intelectual capaz de fazer prognósticos mais de 160 depois bastante atuais:

(1)    As Crises Capitalistas: no passado as relações feudais de produção entram em contradição com as forças produtivas desenvolvidas pelo comércio e pela indústria, potencializando o advento de crises a partir das quais irrompem as novas sociedades sob o jugo da burguesia, com os novos arranjos institucionais. Marx identifica nas crises capitalistas que envolvem a superprodução que coexiste junto à miséria de uma ampla maioria um sinal de uma nova contradição, situando um aurora de uma nova sociabilidade comunista. As modernas indústrias concentram o proletariado como um exército e a burguesia cria seu próprio coveiro:

“Hoje assistimos a um processo parecido. As relações burguesas de produção e de circulação, as relações burguesas de propriedade, a moderna sociedade burguesa, que conjurou meios de produção e de circulação tão poderosos assemelha-se ao feiticeiro que não consegue mais dominar as forças infernais que evocou. Há décadas, a história da indústria e do comércio é somente a história da revolta das modernas forças produtivas contra modernas relações de produção, contra relações de propriedade que são as condições de existência da burguesia e de seu domínio”.   

(2)    Aquilo que hoje chamamos de globalização já é previsto plenamente por Marx, com detalhes, num momento em que o Capitalismo e a Burguesia ainda se debatem em Europa na constituição de Estados Nacionais, quando  é parte inclusive do próprio programa partidário a conformação de uma frente partidário junto ao “terceiro estado” em face do Antigo Regime em países atrasados. Por outro lado, dentre o eixo programático, bandeiras como “Imposto Progressivo”, “Centralização do Crédito” ou “Aumento das Fábricas Nacionais”, longe de se reduzirem ao programa comunista, seriam parte programática perfeitamente cogitadas pelos capitalistas, particularmente em contexto de acirramento de lutas de classes, como forma de contenção da revolução.  

Se o Manifesto é a expressão (consciente e madura) de um movimento real, a conclusão dentro do contexto da globalização pós URSS é a de que o movimento operário foi levado a uma derrota parcial. Todavia, a leitura do livro deve trazer sensações opostas ao pessimismo  àqueles que ainda reivindicam o horizonte comunista tantos anos depois. Trata-se da esperança depositada por Marx ao proletariado como coveiro da burguesia e sujeito protagonista da mudança no sentido da sociedade não mais cingida em classes sociais: a única classe social na história capaz de emancipar toda a humanidade. Em especial considerando o proletariado de 1847, submetido a jornadas de mais de 10 horas, habitando locais de moradia e trabalho insalubres, sem acesso aos bens culturais e comparado pelos pares liberais “a animais de carga”. São estes sujeitos que Marx deposita todas as esperanças para o Futuro, violando os ceticismo de muitos da esquerda de hoje que negligenciam a centralidade da classe que vive do trabalho. Alguns dizem “Adeus Trabalho” e proclamam um novo sujeito dentre um rastro de minorias e movimentos dispersos (mulheres, homossexuais, verdes), não unificados numa luta em torno da origem comum da exploração: o modo de produção capitalista. Eis a grande mensagem do Manifesto: o princípio da esperança em torno da centralidade e do protagonismo da classe trabalhadora. 





[1] Ou mais exatamente, o segundo reconhece ter sido o manifesto predominantemente redigido por Marx em Prefácio da Obra. 

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

“Coleção O Brasil Colonial 2” (1580-1720) – João Fragoso e Maria de Fátima Gouvêa

“Coleção O Brasil Colonial 2” (1580-1720) – João Fragoso e Maria de Fátima Gouvêa



Resenha Livro - “Coleção O Brasil Colonial 2” (1580-1720) – João Fragoso e Maria de Fátima Gouvêa – Ed. Civilização Brasileira


Visão Social de Mundo Dos Conquistadores Portugueses
“Da Mesma Forma, os conquistadores da América eram portadores de uma obediência amorosa dada pela disciplina social do catolicismo e sabiam que suas atividades econômicas eram do âmbito de suas famílias; sabiam que os escravos era servos civis ou ao menos servos que deviam ser cristianizados. Estes conquistadores vieram de um mundo cristão onde a vida era entendida como um fado/destino, com uma tênue fronteira com a morte. Na verdade, fosse no reino, na Madeira e depois na América, os mortos, por meio dos seus sistemas de herança na forma de morgadio[1] e obrigações testamentárias que engoliam parte da riqueza social, condicionavam parte da dinâmica social dos vivos”.  FRAGOSO, J. KRAUSE, T. 
         
Este é o II Volume da “Coleção Brasil Colonial” cujos organizadores são os historiadores João Fragoso (UFRJ) e Maria de Fátima Gouvês, falecida em 2009 e ex docente da UFF.

Trata-se de um ambicioso projeto de perquirir mais de três séculos da História do Brasil (consoante a periodização específica proposta pelo trabalho) referente ao tempo a que a historiografia designou como Brasil Colonial, tradicionalmente desde a chamada “descoberta” das terras de Santa Cruz em 1500 até a emancipação política em face de Portugal em 7 de Setembro de 1822.

O trabalho envolve artigos de historiadores de Universidades de Brasil e Europa e suscita as mais recentes linhas de pesquisa, envolvendo na maioria dos casos o re pensar de certas verdades e sensos comuns acerca da própria construção simbólica e ideológica que informa diversas passagens do Brasil Colônia. E mais. Como se sabe, as pesquisas no seio de cursos de pós graduação e particularmente na área de ciências humanas são marcados pela característica da especialização ou ultra especialização: estudar-se-á “O Capitão João Pereira e a parda Maria Sampaio: notas sobre hierarquias rurais costumeis no Rio de Janeiro, séc. XVIIII”[2] ou “O Conselho Ultramarino e a disputa pela condução da guerra no Atlântico e no Índico (1643-1661)”[3]. Observa-se a especialização, no ambiente da pesquisa na história, através de um recorte temporal bastante acentuado e uma temática delimitada. Se por um lado a pesquisa especializada ganha em profundidade, com uma atenção mais detida em documento/fontes primárias específicos, o que é profundo também é perda em envergadura: falta uma visão de conjunto frequentemente que situe as descobertas mais pontuais dentro do sentido da história.

Desde aí temos mais uma importância de grande relevo a este “Brasil Colonial”: é uma das poucas iniciativas de trazer a pesquisa acadêmica para o grande público, o que por si irá exigir dos historiadores o exercício da contextualização, a imbricação da profundidade de suas pesquisas rotineiras com um trabalho historiográfico de envergadura de reflexão mais geral, que há algum tempo ficou a cargo dos ensaístas, hoje fora de moda, desde Paulo Prado e seu “Retrato do Brasil” até a tríada Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior e Gilberto Fryeire, autores de importantes sínteses do período supracitado.  

Tivemos a oportunidade de resenhar o primeiro volume desta coleção[4]. Desde lá observamos como o aproveitamento das mais recentes pesquisas historiográficas irão repercutir em diversas noções já arraigadas acerca do processo de conquista da América Portuguesa, a começar por certa concepção que associa à chegada de Cabral em 1500 e mesmo  a expansão ultramarina portuguesa, num sentido anacrônico, a uma atividade associada ao homem do renascimento, como se as mudanças engendradas pelos achados corroborassem e também fossem fruto de uma nova percepção social de mundo Moderno.

Em sentido oposto, a periodização do Brasil Colonial 1 tem como partida 1443, devendo-se antes, por meio dos mesmos documentos, a começar pela carta de Pero Vaz e de suas insistentes menções de missionar o gentio, associar aquela expansão ao período medieval.  A tomada de Celta em 1415 foi segundo alguns historiadores o primeiro passo para a expansão colonial. A navegação oceânica no Atlântico norte conduz os navios portugueses à ilha da madeira em 1419, treze anos antes da execução de Joana D’arc. Em função de um certo peso dado às funções sócio econômicas da atividade colonial, costumou-se negligenciar o estratégico papel da Igreja e das missões. Controverso diante de uma coroa portuguesa baseada no sistema do Antigo Regime católico. E em sentido inverso, nos aldeamentos jesuítas, seria um anacronismo acreditar haver um adocicado tratamento ao gentio, como já retratado em filme[5]. Dentre os índios, havia uma política dos índios inimigos, reduzidos à escravidão pela “guerra justa”[6]. Os índios amigos moravam nos aldeamentos e eram submetidos à religião. Eram obrigados ao trabalho. Os recalcitrantes (que praticavam a poligamia, a antropofagia, que bebiam o cauim alcóolico, etc.) poderiam ser submetidos aos castigos corporais no pelourinho. As fugas dos aldeamentos eram constantes. E em sentido inverso, as Ordens Religiosas exerceram papel extra ecumênico (com exceção dos franciscanos que faziam voto de pobreza). Jesuítas, beneditinos e carmelitas igualmente participam da economia colonial com estipêndios, propriedades rurais e urbanas. Dentre eles, os Beneditinos granjeiam fama de bons administradores e no séc. XVII possuem 11 Engenhos por todo o Brasil.

O Volume 2 tem início em 1580, data da chamada União Ibérica, período em que o reino de Portugal e Castela se unificam, mais em prejuízo do primeiro, que se submete ao rei espanhol Felipe II.

Importa-nos perquirir algumas repercussões da União Ibérica junto ao Brasil, que durará até 1640, quando da restauração da dinastia Bragança de Portugal.

A União Ibérica implicou o modelo castelhano de conquista territorial implantado no Brasil, significando uma interiorização da conquista no norte: conquista da Paraíba (1584); Rio Grande do Norte (1599); Ceará (1612); Maranhão (1615) e Pará (1614).  

A União levou para Portugal os inimigos de Espanha – França, Inglaterra e Holanda – há uma série de ataques corsários na costa da América portuguesa e o mais significativo deles é a invasão Holandesa (1630-1654).

Posteriormente, com a guerra de restauração e fim da União, Portugal se alia à Inglaterra, contra França e Espanha, com repercussões no Brasil, dentre elas a disputa da Colônia de Sacramento e algumas tréguas diplomáticas junto aos Holandeses.

Outro aspecto diz respeito às relações dentre as elites políticas de Portugal e Castela (Habsburgo) – a União deu-se da mesma forma que consolidou-se a União de Aragão 100 anos antes – foram conservadas as leis, principais instituições e o sistema monetário, o que garantiu alguma estabilidade política.

Outros temas tratados pelos artigos é a economia da Cana de Açúcar – que se desenvolve com melhores condições no nordeste, com solo de massapê, vantagens climáticas, além de ser mais apreciado que seu concorrente caribenho (holandeses produzem açúcar mascavo e menos apreciado no mercado mundial); as Invasões Holandesas, que devem ser estudas com um olhar atento particularmente no que diz respeito às jornadas de resistência, seja pelos mais de 10 anos de luta de duração; seja pela formação de milícias negras e indígenas na condução desta guerra de expulsão; seja em particular pela iniciativa dos nativos pernambucanos na expulsão batava (que se processa a partir de 1643-4 com a crise do setor do açúcar e o endividamento dos Senhores de Engenho em face dos mercadores holandeses), levando-se em consideração que os nacionais levaram a cabo o conflito a despeito das vacilações dos portugueses – O Padre Antônio Vieira era da posição de que Portugal devia capitular.

Lênin dizia em artigo de maio de 1913 para o Pravda[7]: “A questão nacional requer um equacionamento claro e uma clara solução por parte de todos os operários conscientes”.

Ao mesmo tempo, quando dizia sobre a “análise concreta da situação concreta” falava tanto da especificidade e da não generalização, quanto também de se suscitar o problema da questão nacional.

Parte destes esforços um estudo mais aprofundado da história do Brasil, incluindo do Brasil Colonial. Não parece coincidência que este foi também o movimento do comunista Caio Prado Jr. que ambicionou escrever uma História da “Formação do Brasil Contemporâneo” e apenas conseguiu concluir o primeiro volume sobre o Brasil Colonial. Ao falar sobre o sentido da nossa colonização[8] procurava suscitar problemas objetivos do presente. Este é o tipo de história que os marxistas devem buscar para se informar e também produzir trabalhos, preferencialmente para além da academia.

Nobilitação Indígena 
Séc. XVI - Arariboia - batizado como Martim Afonso de Souza - Lutou pela expulsão dos franceses no Rio de Janeiro na expedição de Mem de Sá. Recebeu do Rei D. Sebastião o prestigioso hábito da Ordem de Cristo - recebe patente de Capitão mor de sua aldeia e sesmaria de duas léguas de terra. Os privilégios e mercês são formas de reconhecimento de lealdade junto ao rei: os conquistadores almejam títulos e rendas; o rei depende de leais vassalos para manter as possessões territoriais. Houve número reduzido de índios/pretos efetivados com cavaleiros de Ordem e houve prática de ludibriar com hábitos falsos (dados por governadores e não pelo rei), concessão de fantasias/roupas ou bens alternativos como medalhas, símbolos de hábitos costurados em lapelas (que eram re significados pelo gentio). Em uma sociedade estamental como a do Antigo Regime português, os bens materiais e simbólicos raramente eram franqueados aos súditos de "sangue impuro", inclinados a hábitos controversos.



Frans Post (1612-80) - Artista que integrou missão de artistas e naturalistas de Maurício Nassau (1637-1644) durante Invasão Holandesa. Retrato de um Engenho de Açúcar.



[1] Regime jurídico sucessório em que os bens do morto são inalienáveis, indivisíveis e não suscetíveis a partilhas, concentrando patrimônio em determinada linhagem, com repercussões na economia política, inclusive do Brasil Colonial. Historiadores atestam que a pobreza do solo em Portugal e o morgadio são fatores que influíram ao movimento de colonos às possessões ultramarinas portuguesas. Outrossim, as Casas de Misericórdia e de Órfãos, no Brasil Colonial, por lidarem com bens pecuniários testamentários, seriam importantes fontes de crédito para atividade econômica: foram credores de senhores de Engenho e demais proprietários.
[2] RIBEIRO, Marta. ALMEIDA Carla. Obra Cit.
[3] BARROS, Edval de Souza
[5] “A Missão” dirigido por Roland Joffé com participação do ator Robert De Niro
[6] “Guerra Justa” é conceito que advêm das jornadas de luta pela reconquista territorial portuguesa em face dos Mouros, mais um elemento que traduz como os albores da colonização diz respeito ao contexto medieval.
[7] “A Classe Operária e a Questão Nacional” https://www.marxists.org/portugues/lenin/1913/05/10.htm
[8] “O sentido da colonização” volta-se ao atendimento dos interesses comerciais portugueses e é com base neste comércio – já antes explorado pelos lusitanos nas índias – que se conformará toda estrutura social, política, administrativa, etc. A colônia nada mais é, nesta perspectiva, do que uma empresa comercial destinada exclusivamente à grande exportação. Como um “resquício” deste passado colonial, enxerga-se a ausência de preocupação pela metrópole em desenvolver internamente sua colônia