quinta-feira, 26 de maio de 2016

“Um Certo Capitão Rodrigo” – Érico Veríssimo

“Um Certo Capitão Rodrigo” – Érico Veríssimo



Resenha Livro 224 – “Um Certo Capitão Rodrigo” – Coleção Folha Grandes Escritores Brasileiros 5

Já foi dito que a literatura é um retrato da sociedade. A assertiva é particularmente correta para este romance neorrealista do escritor gaúcho Érico Veríssimo. O livro compõe o compêndio “O Continente” (1949), faz parte da primeira parte “O Tempo e o Vento”, uma série sobre a história do Rio Grande do Sul.

O autor se serve de sua origem regional para criar uma narrativa que leva o leitor a conhecer a paisagem histórica, personagens, cultura, música, sotaques, enfim todo o passado do Brasil meridional. A figura do gaúcho, nesta narrativa ilustrada particularmente na figura de seu protagonista, o valente Rodrigo Carambá, vai muito além de uma mera caricatura ou da construção de um tipo ideal que vai ressaltando elementos pitorescos ou folclóricos – o escritor vai muito além e busca construir um tipo verdadeiramente humano, conduzindo o leitor a realmente estar em contato com o Brasil meridional do séc. XIX.

Como se sabe o sul do Brasil historicamente foi objeto de importantes conflitos e guerras em função dos limites territoriais. Por muito tempo durante a fase colonial os limites formais eram os do Tratado de Tordesilhas, que logo ficou obsoleto até a assinatura do Tratado de Madrid (1750) que assinalou o princípio do uti possidetis ita possideatis (quem possui de fato, deve possuir de direito), significando que os limites deveriam respeitar uma situação de ocupação do território consolidada. Ainda assim conflitos junto aos castelhanos persistiram – trata-se de região da Bacia do Rio da Prata, localização estratégica para os Espanhóis terem livre acesso às lucrativas minas no Peru.

“Um Certo Capitão Rodrigo” tem seu início no ano de 1828, quando Rodrigo Cambará, um veterano de guerra, desde menino habituado a viver sem residência fixa, se assomando a tropas, insurreições e fazendo de sua vida uma eterna aventura, atinge o povoado de Santa Fé. Trata-se de uma pequena província de 30 poucas casas cuja autoridade pertence à família Amaral, que tem o controle político e de direito da cidade.

“Toda gente tinha achado estranha a maneira como o Cap. Rodrigo Cambará entrara na vida de Santa Fé. Um dia chegou a cavalo, vindo ninguém sabe de onde, com o chapéu de barbicacho puxado para a nuca, a bela cabeça de macho altivamente erguida e aquele seu olhar de gavião que irritava e ao mesmo tempo fascinava as pessoas. Devia andar lá pelo meio da casa dos trinta, montava um alazão, trazia bombachas claras, botas com chinelas de preta e o busto musculoso apertado num dólmã militar azul, com gola vermelha e botões de metal. Tinha um violão a tira colo; sua espada, apresilhada aos arreios, rebrilhava ao sol daquela tarde de outubro de 1828 e o lenço encarnado que trazia ao pescoço esvoaçava no ar como uma bandeira”.


São muitos os traços de personalidade de Rodrigo Cambará: altivo, destemido, gozador, amante da liberdade, da bebida, do jogo e das mulheres. Mas talvez o maior signo de distinção do protagonista seja sua desmedida coragem. Para ficar com apenas um exemplo para ilustrar. Rodrigo Cambará logo nos primeiros dias em Santa Fé apaixona-se por Bibiana que também é disputada por Bento Amaral, herdeiro do todo poderoso mandante da província. Durante um fandango de casamento, após um desentendimento diante da dúvida sobre quem dançaria com a moça, os homens se desentendem e diante da iminente briga, fica arranjado a execução de um duelo entre Cambará e Amaral; um duelo com facas – a cena do duelo tem um tom cinematográfico e é uma das passagens altas do romance. 

Rodrigo consegue dominar o adversário e escrever um “P” em sua testa – “faltou só a perna”, diria depois aos amigos. Bento Amaral em sua covardia levara uma arma e atirara à queima roupa em Rodrigo Cambará que é levado quase morto para casa de seu amigo Juvenal Terra. Aqui constata-se o ponto alto de sua coragem em nossa opinião: Rodrigo está num estado terminal em função da bala e outro amigo, o Padre Lara, deseja confessar Cambará para que este não vá ao inferno. Mesmo mal conseguindo se comunicar, Cambará responde piscando os olhos. Quando o padre solicita que se arrependa dos seus pecados, Rodrigo pisca sinalizando um não. E quando o cura insiste, faz uma figa num verdadeiro escárnio, pontuando não temer as consequências espirituais da morte.

Se a literatura é o retrato da sociedade, a questão política se faz presente mesmo naquele povoado longínquo de Santa Fé. É interessante observar dentre outros a noção que se tinha acerca do governo, aqui nas palavras do personagem Pedro Terra:

“Ao pensar na Corte, Pedro pensou em governo. Para ele governo era uma palavra que significava algo de temível e ao mesmo tempo odioso. Era o governo que cobrava impostos, que recrutava os homens para a guerra, que requisitava gado, mantimentos e às vezes até dinheiro, e que nunca mais se lembrava de pagar tais requisições...Era o governo que fazia as leis – leis que sempre vinham em prejuízo do trabalhador, do agricultor, do pequeno proprietário. Antigamente, quem dizia governo dizia Portugal, e a gente tinha uma certa má vontade para com tudo que fosse português, começando por antipatizar com o jeito de falar dos “galegos”. Mas que se passava agora que o país havia proclamado a independência e possuía o seu imperador? Não tinha mudado nada, nem podia mudar. No fim das contas d. Pedro I era também português. Vivia cercado de políticos e oficiais “galegos”. 

Ali mesmo na Província já se dizia que nas tropas quem mandava eram os oficiais portugueses; murmurava-se que eles estavam conspirando para fazer o Brasil voltar de novo ao domínio de Portugal”.

Certamente, o leitor interessado em história do Brasil será recompensado pela leitura de “Um Certo Capitão Rodrigo”. Há alguns personagens que de certa forma marcam o leitor pela qualidade de sua composição. Podemos citar Macunaíma de Mario de Andrade, Dom Casmurro de Machado de Assis ou Luís da Silva (Angústia) de Graciliano Ramos. Não vemos porque não colocar Rodrigo Cambará neste mesmo patamar.  

quinta-feira, 19 de maio de 2016

“Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que Não Foi” – José Murilo de Carvalho

“Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que Não Foi” – José Murilo de Carvalho



Resenha Livro - 223- “Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que Não Foi” – José Murilo de Carvalho – Ed. Companhia das Letras

“Bestializado” é uma palavra que tem diferentes conotações. O sentido empregado pelo livro remete à ideia de “perplexo”, “atônito” ou “espantado”. Aristides Lobo, propagandista da República, assim se referiu à reação popular quanto aos acontecimentos que culminaram na proclamação da República em 1889. Certamente o povo esteve ausente daquele evento político: a derrocada do Império e a ascensão republicana esteve muito longe de ser o resultado de uma insurreição popular, da pressão de um movimento de massas, mas foi antes aquilo que alguns sociólogos chamam de um caminho pela “via prussiana”, um arranjo político projetado pela elite. Foi um fato político em que teve papel central a abolição da escravatura (1888) e com ela a falta de apoio do partido brasileiro (grandes proprietários fundiários) bem como a crise do regime junto às forças armadas.

Atônito, o povo mal entendia o que acontecia com a mudança de regime e conta-se que alguns confundiram-no com uma mera parada militar. Entra aqui em questão o problema da cidadania, ou seja, a relação/vínculos entre o povo e as instituições políticas desde que a República envolve dentre outras coisas a ideia da soberania popular – uma ideia que era sinceramente defendida por alguma parcela do movimento republicano brasileiro.

O problema da cidadania é tema já recorrente nos trabalhos de José Murilo de Carvalho. Escreveu um livro mais amplo sobre o tema, “A cidadania no Brasil”. Aqui ele faz um recorte temático e escolhe o Rio de Janeiro do período de transição entre o Império e a República para identificar o problema da integração política do povo (ou a falta dela), bem como suas raízes, o que envolve um olhar sobre a sociedade, a política e a cultura daquele contexto. O Rio de Janeiro tem particularidades que eventualmente expressam dificuldades estruturais do Brasil no que se refere à cidadania em geral: desde 1808 com a vinda de D. João XI a cidade é elevada a sede administrativa do reino e na cidade é montada um aparato administrativo com milhares de gestores advindos da corte portuguesa; a cidade ainda tem um peso considerável de estrangeiros, principalmente portugueses que ocupam postos de trabalho na área de comércio e são proprietários de imóveis locatários, causa de rivalidades que, no contexto de embates entre monarquistas e republicanos, resultariam em conflitos, não raro, com mortos. No censo de 1902 estima-se em 26% de população estrangeira no Rio de Janeiro. A ampla maioria de cidadãos era de ex-escravos que vão compor um perfil étnico com lastros importantes na cultura e na religião. Se num primeiro olhar superficial tem-se a impressão de que há um povo despolitizado, eventualmente mesquinho e egoísta, observa-se que da política vai-se para outras formas de organização social, movimentos comunitários, associações de mútuo auxílio, ora de caráter religioso, ora de caráter esportivo. José Murilo de Carvalho remete-nos aqui à Max Webber que dentro de uma tradicional divisão de formas associativas, demonstra o modelo anglo saxão, individualista que resulta em associações e um modelo ibérico (que é o brasileiro) de tipo mais comunitário e coletivista.

“A cidade mantinha suas repúblicas, seus nódulos de participação social, nos bairros, nas associações, nas irmandades, nos grupos étnicos, nas igrejas, nas festas religiosas e profanas e mesmo nos cortiços e maltas de capoeiras. Estruturas comunitárias não se encaixavam no modelo contratual do liberalismo dominante da política. Ironicamente, foi da evolução destas repúblicas, algumas inicialmente discriminadas, se não perseguidas, que se foi construindo a identidade coletiva da cidade. Foi nelas que se aproximaram povo e classe média, foi nelas que se desenhou o rosto real da cidade, longe das preocupações com a imagem que se devia apresentar à Europa. Foi o futebol, o samba e o carnaval que deram ao Rio de Janeiro uma comunidade de sentimentos, por cima e além das grandes diferenças sociais que sobreviveram e ainda sobrevivem.”

Como se sabe, do ponto de vista Institucional a República Velha era marcada pela exclusão eleitoral e pela violência e corrupção durante os pleitos. Estavam excluídos da participação formal da política as mulheres, os menores de 21 anos, os analfabetos, os estrangeiros e os praças. Considerando os abusos e a violências no escrutínio, o comparecimento nas urnas era algo em torno de 5% da população ou menos. Obviamente a participação eleitoral é apenas uma parte do agir politicamente, do ser cidadão – o que se constata é que além das restrições legais, o não comparecimento ao voto dava-se pela constatação por todos da fraude e pelo próprio risco com eventuais incidentes de violência:

“Desde o Império, as eleições na capital eram marcadas pela presença dos capoeiras, contratados pelos candidatos para garantir os resultados. A República combateu os capoeiras, mas o uso de capangas para influenciar o processo eleitoral só fez crescer. Fiel cronista da cidade, Lima Barreto observa em Os Bruzundangas que às vésperas de eleição ela parecia pronta para uma batalha. Conhecidos assassinos desfilavam em carros pelas ruas ao lado dos candidatos”.

Por outro lado, não se pode dizer que a ausência de participação política formal resultara em completa apatia. O que se destaca neste período são também as revoltas populares. Revoltas por motivos econômicos como a Revolta do Vintém em 1879 em decorrência da cobrança de tributo sobre as passagens dos bondes. Condutores foram escorraçados, bondes e trilhos foram destruídos, um verdadeiro motim popular foi deflagrado, sendo necessária ajuda do exército. José Murilo de Carvalho dedica um capítulo inteiro à revolta mais conhecida do período, a Revolta da Vacina. O prefeito nomeado Pereira Passos iniciou uma série de reformas na cidade, com a abertura de avenidas, fechamento de cortiços e a imposição de uma série de normas de higiene com o condão de transformar a cidade, fazer uma reforma modernizadora tal qual Paris – apenas para a abertura da Avenida Central foram recrutados 1800 operários e derrubados 640 prédios. A obrigatoriedade da vacina contra a varíola tendo à frente o Diretor de Serviço de Saúde Oswaldo Cruz era na verdade o desenvolvimento de um projeto de lei que efetivasse o ingresso de agentes públicos nas residências de forma impositiva e aplicasse a vacina – a obrigatoriedade em si já constava de norma jurídica desde os tempos do Império, mas não era cumprida. Enquanto o projeto era discutido, muito descontentamento com os possíveis desdobramentos do projeto foram sendo expressos pela imprensa, em reuniões ou discussões coletivas. Dentre a elite pensante, os positivistas, dentro de sua filosofia política, colocavam em dúvida a eficácia da vacina. E, pior, dentre as classes baixas, foi surgindo rumores de tipo moralista segundo o qual o pai de família enquanto estivesse fora no labor deixaria os agente públicos aplicarem a vacina pelas pernas de suas filhas e esposas de forma lasciva, exibindo suas partes íntimas.

A intransigência do governo e a retórica de setores médios (Lauro Sodré) que insuflavam o movimento que ganhou o apoio de estudantes, operários, capoeiras, o lupem e até setores do exército culminou numa revolta radicalizada com barricadas, destruição de bondes e troca de tiros com a polícia, incluindo mortos.

“Antes do assalto final a Porto Artur, repórteres do “Jornal do Commercio” e “O Paiz” conseguiram visitar a fortaleza, que constava de barricadas ao longo de toda a rua da Harmonia, desde a praça da Harmonia até a esquina com a rua Gamboa. Bondes virados, carroças, calçamento arrancado, árvores derrubados, lampiões destruídos, chão cobertos de latas, garrafas, colchões, um berço de vime. Na barricada principal, do lado direito, na ponta de um bambu, uma bandeira vermelha. Do lado esquerdo, no pano branco, a inscrição, “Porto Artur”. Duas casas de armas da rua Senador Pompeu tinham sido assaltadas e saqueadas. O repórter do “Jornal do Commercio” impressionou-se com “aquela multidão sinistra, de homens descalços, em mangas de camisa, de armas ao ombro uns, de garrucha e navalha à mostra outros”.


Diante da constatação de que houve luta e de que para além da política oficial o povo esteve em busca de formas de colaboração e organização, é de se questionar se os limites da cidadania não se remetem antes às instituições e às ideias que lhe dão sustentação do que ao povo propriamente dito. O liberalismo e o positivismo de nossas elites, que se remeteram às ideias estrangeiras, demonstrou não ter o condão de dar engrenagem às instituições com efetiva soberania popular, mesmo porque este não era o projeto da maior parte da elite dominante. Se o povo assistiu bestializado aos eventos de 1889, chegará o dia em que as elites assistirão bestializadas à tomada de poder pelo povo, à nossa revolução democrático-popular.  

segunda-feira, 16 de maio de 2016

“Evolução Política do Brasil e Outros Estudos” – Caio Prado Júnior

“Evolução Política do Brasil e Outros Estudos” – Caio Prado Júnior 



Resenha Livro - 222- “Evolução Política do Brasil e Outros Estudos” – Caio Prado Júnior -  Ed. Companha das Letras 

Costuma-se dizer que o pai da história ou o fundador desta disciplina foi o grego Heródoto que no século V a.C redigiu uma história das invasões persas na Grécia divididas em 9 volumes. Mesmo antes e depois de Heródoto, muitos foram os cronistas que testemunharam e deixaram sob a forma de documentos históricos valiosas fontes primárias acerca da conjuntura que observaram ou anotaram as reminiscências orais de uma memória que se pôde resguardar em documentos. 

Entretanto, a ideia de Heródoto como o pai da história é só parcialmente verdadeira. A História enquanto uma disciplina autônoma, com suas próprias formas metodológicas, pensada enquanto um campo científico particular, um ofício propriamente dito, é um fenômeno muito mais recente, expressão de fins do século XIX, quando nasce também a sociologia e outras disciplinas do gênero das Ciências Humanas. Pode-se dizer que seu fundador é o alemão Leopold Von Ranke que está inserido dentro do pensamento positivista, tão marcante naquele período e que influenciará decisivamente a metodologia da história dentro de seus primeiros momentos de desenvolvimento. “Die geschichte wie es eigentlich gewesen hat” ou “a história como ela de fato aconteceu”, pontuaria Von Ranke, e aqui a orientação positivista teria como norma retratar o passado se servindo sempre dos documentos oficiais, prioritariamente de fontes oficiosas, bem como dos grandes eventos, dentro de uma expectativa de neutralidade diante do passado. Estamos diante de uma história portanto baseada no inventário de datas e grandes fatos políticos supostamente  baseado numa neutralidade por parte do historiador. Quando Caio Prado Júnior escreveu e publicou sua primeira edição de “Evolução Política do Brasil” este modelo de história positivista ainda era dominante, ao ponto do historiador brasileiro, que inaugurava uma nova historiografia com seu livro, iniciar seu trabalho dizendo não se tratar de um livro de “História do Brasil” mas um ensaio.

Uma segunda questão preliminar importante. Como se sabe, o Brasil foi um país em que o Estado nacional que exsurge com a Independência decorre de conflitos entre o partido brasileiro (grandes proprietários de terras, a elite tradicional), setores democráticos médios e estrangeiros na sua maioria portugueses favoráveis a restauração. Não havia todavia uma unidade nacional, mas um divisão de interesses muito perceptível: as províncias do norte por exemplo foram muito pouco receptivas à independência, havendo resistência com armas, diante de sua maior proximidade com a corte – diferenças do mesmo tipo pode-se falar de Pernambuco e Bahia. A divisão do país em províncias, que remete ao período colonial é uma realidade que perpassa a independência e todo o séc. XIX. Em outras palavras, enquanto na Europa, o sentimento de união e os laços de solidariedade que conformam a nação são anteriores à conformação dos estados nacionais (ver especialmente a Alemanha com sua unificação em 1871), no Brasil ocorre o inverso, com a conformação do estado nacional estando ausente o sentimento de Nação. Será nos anos 1930 com os modernistas que recairá de certa forma esta tarefa de buscar uma identidade nacional. Se no plano das artes, desde a semana de 1922, a questão nacional esteve presente, nas ciências sociais, Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freire mais ou menos no mesmo período também terão cogitações semelhantes: a busca pela identidade nacional envolve o olhar para o nosso passado colonial e cada um destes autores irá, a sua maneira, avançar nas análises do nosso passado. 

"Evolução Política do Brasil” é um estudo sobre a revolução da independência política do Brasil. O Ensaio divide nosso processo histórico em dois momentos decisivos – da descoberta e particularmente a partir de 1530 quando os portugueses efetivamente passam a se ocupar da atividade colonial diante dos riscos de se perder esta vasta porção de terras até então inexploradas para outras nações, daquele período inicial do extrativismo vegetal e da concessão das capitanias hereditárias até 1808, com a vinda de D. João VI e sua corte em fuga de Napoleão, fato político decisivo que colocaria em marcha a Independência com o fim do regime do pacto colonial (exclusividade de comércio com Portugal e abertura dos portos às nações amigas), elevação do Brasil a Reino Unido de Portugal, transferência administrativa de toda coroa portuguesa para o Brasil e as transformações daí decorrentes com a fundação do Banco do Brasil e Casa da Moeda, cancelamento de lei que proibia estabelecimento de indústrias no Brasil, entre outros. 

Como dizíamos, a interpretação original deste livro reside no fato de sair de uma exposição sumária de fatos, datas e grandes eventos e buscar fazer uma interpretação crítica da evolução política do Brasil. Nesse sentido, o historiador se volta para análises da economia, sociedade e instituições políticas do Brasil colonial e suas transformações decorrentes dos choques de partidos diante das agitações políticas particularmente importantes com a independência e no período regencial. 

Uma leitura marxista da independência é possível de ser destacada: 

“Já vimos como a emancipação política do Brasil resultou do desenvolvimento econômico do país, incompatível com o regime de colônia que o peava e que por conseguinte, sob sua pressão, tinha de ceder. Em outras palavras, é a superestrutura política do Brasil Colônia que, já não correspondendo ao estado das forças produtivas e à infraestrutura econômica do país, se rompe, para dar lugar a outras formas mais adequadas às novas condições econômicas e capazes de conter a sua evolução. A repercussão desse fato no terreno político – a revolução da Independência – não é mais que o termo final do processo de diferenciação de interesses nacionais, ligados ao desenvolvimento econômico do país, e por isso mesmo distintos dos da metrópole e contrários a eles.”

Em 1953, as edições posteriores do livro passaram a contar com “Outros Estudos” com ensaios, palestras e prefácios de temas de geografia e história. Há estudos sobre o fator geográfico no desenvolvimento de São Paulo onde se observa como é justamente o aspecto espacial acima de tudo, diante da posição de rios e do relevo das serras, a origem remota da ocupação do território paulista; estudos sobre as fronteiras meridionais do Brasil, com algumas reflexões sobre os limites de fronteira do nosso território ao sul diante da histórica busca da prata no Peru; estudos sobre a imigração em que desde os anos 1940 Caio Prado Júnior já reivindica tanto a necessidade de uma Reforma Agrária quanto da conformação de cooperativas – ambos pendentes pelo poder público até hoje; e artigos mais históricos, como a publicação do periódico “Tamoio” em defesa do ministro José Bonifácio e a vida do aguerrido Cipriano Barata, um baiano formado em medicina em Coimbra que participou ativamente de inúmeras insurreições populares em Pernambuco e Bahia e passou anos a fio na prisão. 

Evolução Política do Brasil é um livro debutante de interpretação materialista da história do Brasil. Deve ser reivindicado e saudado como um ponto de partida da historiografia materialista do brasil, para além da história dos grandes eventos de Leopold Von Ranke.        

quinta-feira, 5 de maio de 2016

“O Tratado de Versalhes” – Jean-Jacqes Becker

“O Tratado de Versalhes” – Jean-Jacqes Becker



Resenha Livro - 221-  “O Tratado de Versalhes” – Jean-Jacqes Becker – Editora Unesp

O Tratado de Versalhes foi o resultado de uma Conferência de Paz que pôs fim à I Guerra Mundial. O Tratado foi assinado em 28 de Junho de 1919 após uma série de reuniões diplomáticas não devendo ser confundido com o acordo de armistício. O pedido de armistício foi feito pela Alemanha diante do flagrante enfraquecimento tanto interno (a fome principalmente), o descontentamento da opinião pública quanto à Guerra, bem como a  constatação pelos generais da impossibilidade de vencer. 

Com o fim da I Guerra um elemento complicador ainda para a questão da paz seria a fuga de Guilherme II que abdica do poder e foge para os países baixos, assumindo o regime alemão o presidente da república  Ebert. Quanto ao pedido de armistício, formulado em 11 de Novembro de 1918, foi ele derivado da famosa política dos 14 pontos de paz proposta pelo presidente Woodrow Wilson dos EUA, proposta ambiciosa ao ter como escopo resolver o problema da paz internacional de forma definitiva. Desta proposta há de se destacar o ponto 14, o embrião da Liga das Nações e posteriormente da ONU, uma sociedade multilateral de nações, uma associação internacional baseada na ideia de direito dos povos à autodeterminação. Àquela altura havia uma certa divisão de opinião quanto à oportunidade do pedido do armistício pela Alemanha. Alguém como LLord Gorge, chefe de governo Inglês, via com reservas o total aniquilamento da Alemanha, especialmente depois de 1917, sob o risco de jogar o país à revolução, criar condições da radicalização política bolchevique. Já a França de Clemenceau parecia ir numa linha mais dura diante da Alemanha (considerada consensualmente pelos vencedores da Guerra como responsável pelo conflito) e muitos consideravam prematuro um armistício antes da entrada de tropas dentro do território Alemão. 

O que é muito comum de se colocar é que o Tratado de Versalhes é um dos responsáveis, ao menos indireto, pela II Guerra Mundial. Ao opor condições tão desonrosas aos vencidos, especificamente à Alemanha, teria gerado uma sensação de humilhação nacional que facilitou a ascensão de manipuladores e demagogos como Hitler, que usou o tratado habilmente como denúncia da necessidade de uma reação alemã. Mas uma pergunta que deveria ser feita aqui pelos historiadores é: dada as condições históricas, esta situação era inevitável? E se olharmos mais retidamente ao Tratado de Versalhes veremos que ele na verdade foi o resultado possível de uma situação bastante tumultuada na Europa que remete a questões que vão muito além do tratado internacional. 

Em 1917 Lênin publica seu famoso trabalho “Imperialismo, fase superior do capitalismo”. Aqui há o entendimento de que o imperialismo é a fase do capitalismo monopolista, dos grandes oligopólios em consórcio com o Estado que em busca de novos mercados partem para a dominação direta e indireta neocolonial. Se o liberalismo clássico remetia ao livre comércio das nações em pé de igualdade (formal) e ao não protecionismo, a fase imperialista subverte estes princípios clássicos, com uma brutal disputa das nações por rotas comerciais e pelo domínio imperialista que envolve o controle de insumos da revolução industrial e riquezas – ouro e diamante (África do Sul), Carvão, Aço, Ferro e posteriormente Petróleo – produtos tropicais como Café (Brasil), Chá (Índia), Banana (América Central) – além é claro do domínio de mercados de consumo e trabalho. Como colocava Lênin aquela conjuntura engendrava um contexto de “crises, guerras e revoluções” – o assassinato do arquiduque 

Francisco Ferdinando, herdeiro do Império Austro Húngaro por um ativista sérvio, ato que evoluiu no sentido do desencadeamento da Guerra foi um mero episódio secundário, algo como um fósforo jogado num material que já estava por si inflamável e que de qualquer forma se faria explodir em algum momento. São sinais disso o conflito entre Japão e Rússia por questões territoriais e disputas nesse sentido no Marrocos, anteriores à primeira guerra. Questões envolvendo nacionalidade e estado nação e domínio extraterritorial/colonial são o pano de fundo para a conformação das alianças. A Alemanha, unificada em 1871, preocupa a Inglaterra, até então soberana nos mares com sua esquadra marítima, com um assombroso crescimento germânico de forças navais – a aliança natural alemã seria com o Império Austro-Húngaro causando um fator de desiquilíbrio às forças incontestes da França e Inglaterra que se unificam. 

O fato é que a vitória da Tríplice Entente (França, Inglaterra e Itália) seguiu-se à noção de que a grande responsável pela Guerra teria o dever de reparar e indenizar os vencedores diante do raciocínio de que a Alemanha fora a responsável (única responsável) pela guerra – uma ficção jurídica e fática  já que de uma certa maneira acabaria sendo a única sobrevivente com o desmembramento do Império Austro Húngaro e o Fim do Império Otomano, ambos no fim da guerra por motivos semelhantes. Em fato inédito nas Relações Internacionais, a Alemanha sequer foi convidada a participar das negociações de Paz – Clemenceu, Wilson e George tinham muitas divergências entre si e não queria expô-la aos alemães de maneira que concluíram o Tratado de Versalhes e enviaram-no à Alemanha sob condição de pequenas modificações para ratificação. 

Mas pode-se falar a título de conclusão que houve um fracasso relativo do Tratado de Versalhes. Ele sequer foi ratificado pelo senado norte americano. Da previsão milionária de indenização prevista a ser paga pela Alemanha em alguns anos, apenas uma fração foi adimplida. Certamente houve um prejuízo territorial aos alemães, especialmente com a devolução de Alsácia Lorena aos Franceses. De outro lado há aspectos positivos do Tratado, especialmente no que se refere à introdução da ideia de estabilização entre as Nações, ainda que aqui, como sabemos, se trate de um conceito jurídico, formal, que pode ser derrubado diante dos interesses mais prementes das crises capitalistas. 

“A Conferência de Paz realizou, de início, um enorme trabalho ao reconstruir literalmente a Europa e ao aplicar – com resultados variados – os novos princípios do direito dos povos à autodeterminação; ela lançou as bases do futuro ao tentar criar um organismo cujo objetivo era estabilizar as relações entre os Estados e as Nações.

O que a Conferência de Paz não podia fazer era apagar os sentimentos originados desse pavoroso conflito, apagar a convicção dos vencedores na responsabilidade dos seus adversários no drama que acabara de acontecer e na necessidade moral em estabelecer sanções e reparações decorrentes dessas responsabilidades. Não podia também apagar a convicção do povo alemão de derrotado, assim como de que as sanções a ele infligidas – condenação moral, território dividido ao meio, reparações em montante excessivo – eram profundamente injustas e inaceitáveis”.

Jean-Jacques Becker é professor emérito de História Contemporânea da Univeridade de Paris X Nanterre e autor de várias obras sobre a Grande Guerra. 


Imagem: LLoyd George (Inglaterra), Orlando (Itália), Clemenceau (França) e Wilson (EUA)

domingo, 1 de maio de 2016

“A Era dos Impérios – 1875 - 1914” – Eric J. Hobsbawm

“A Era dos Impérios – 1875 - 1914” – Eric J. Hobsbawm




Resenha Livro - 420 - “A Era dos Impérios – 1875 - 1917” – Eric J. Hobsbawm – Ed. Paz e Terra

“Nunca antes ou depois os homens e mulheres práticos nutriram expectativas tão elevadas, tão utópicas em relação à vida no planeta: paz universal, cultura universal por meio de um único idioma mundial, ciência que não só tentasse responder, mas que de fato respondesse  às perguntas mais fundamentais sobre o universo, a emancipação da mulher de toda sua história passada, a emancipação de toda a humanidade através da emancipação dos trabalhadores, a liberação sexual, uma sociedade de abundância, um mundo onde cada um colaborasse segundo suas capacidades e recebesse conforme suas necessidades. Não se tratava apenas de sonhos revolucionários. A utopia vinda do progresso estava, sob aspectos fundamentais, embutida no século. Oscar Wilde não estava brincando quando disse que não valia a pena ter um mapa do mundo onde não figurasse a Utopia. Estava falando em nome de Cobden, o do livre comércio, bem como em nome de Fourier, o socialista, no do presidente Grant como no de Marx (que não rejeitou os objetivos utópicos, mas apenas suas estratégias), no de Saint-Simon, cuja utopia do “industrialismo” não pode ser reportada nem ao capitalismo nem ao socialismo, porque afirmava pertencer a ambos. Mas o que as utopias mais características do século XIX tinham de novo era que para elas a história não seria interrompida”. (P. 512).

"A Era dos Impérios (1875-1917)” conclui a trilogia do “longo século XIX” redigida pelo historiador britânico e marxista Eric J. Hobsbawm. Seu ponto de partida é a “Era das Revoluções” correspondente ao período de 1789 a 1848 onde poderíamos falar de uma dupla revolução: a Revolução Francesa de 1789 que correspondeu a tomada do poder político pela burguesia em França, a queda do Antigo Regime através de uma ampla insurreição levada a cabo pelo terceiro estado do qual tomaram parte a esmagadora maioria camponesa, artesãos, pequeno e médios burgueses, uma ainda incipiente classe laboral em contraponto ao poder absolutista que tinha sua base material, dentro das relações de produção feudais. Tratava-se efetivamente de uma dupla revolução pois 1789 era o correspondente político da revolução industrial inglesa já no século XVIII com mudanças nas formas de produção que teriam o condão de alterar a correlação de forças entre as classes e fazer emergir especialmente a partir do século XIX a burguesia como nova classe dominante.

A solução de continuidade da Revolução Francesa foram as guerras napoleônicas que de certa maneira levaram as palavras de ordem do movimento revolucionário Europa adentro. E ainda dentro deste primeiro período marcado por guerras e revoluções, há 1848, um ano de novos levantes que demarcam a consolidação de estados nacionais tardios em Itália e Alemanha, além de fomentar a ideia de Estado Nação que diz respeito ao novo regime político Burguês, cujas fronteiras nacionais demarcam interesses específicos e particulares de respectivas classes: o Estado Moderno, constitucional e liberal demarcava o ponto de chegada para a “Era do Capital” (1848-1875) um momento de expansão econômica e consolidação política, com interessantes repercussões no mundo da cultura, uma cultura burguesa em progresso e otimista quanto ao seu futuro. Tivemos a oportunidade de resenhar este volume (Ver: http://esperandopaulo.blogspot.com.br/2013/03/a-era-do-capital-eric-j-hobsbawm.html)

“A Era dos Impérios” (1875-1917) vem a ser um momento em que a expansão capitalista e burguesa encontra limites geográficos e desdobra-se em imperialismo, com a dominação de territórios da Ásia, África e América Latina. O ideal do livre comércio é substituído pelo protecionismo e colonialismo cultural revelam ideias racistas e no limite até eugenistas – “o fardo do homem branco” que deveria levar a civilização aos rincões do mundo.

“Comparadas a essa diferença, as diferenças entre sociedades pré-históricas como as das ilhas melanésia, e as sofisticadas e urbanizadas sociedades da China, da Índia e do mundo islâmico pareciam insignificantes. Que importava que suas artes fossem admiráveis, que os monumentos de suas culturas ancestrais fossem admiráveis, que os monumentos de suas culturas ancestrais fossem maravilhosos e que suas filosofias (sobretudo religiosas) impressionassem tanto como o cristianismo, e na verdade provavelmente mais que ele, alguns acadêmicos e poetas ocidentais? Basicamente essas sociedades estavam todas igualmente à mercê dos navios que vinham do exterior com carregamento de bens, homens armados e ideias diante das quais ficavam impotentes, e que transformaram seus universos como convinha aos invasores, independente dos sentimentos dos invadidos”.

Lênin identificou e analisou o fenômeno de forma contemporânea ao publicar “Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo” em 1917. A ideia chave do ensaio é que o imperialismo é a expressão do capitalismo em sua fase monopolista, quando a formação de grandes oligopólios que fazem consórcios com estados nacionais e buscam a dominação econômica do tipo neocolonial dos países da periferia do sistema capitalista – o imperialismo envolve a disputa direta por recursos naturais como ouro e diamantes (África do Sul), ou mesmo reservas de carvão, aço, ferro e outros insumos industriais ou produtos tropicais como café e chá. O imperialismo envolve o domínio direto de mercados e para isso a manipulação ou o gerenciamento de governos de seu interesse. Nesse sentido a América Latina, sob o domínio imperialista norte-americano através da justificativa ideológica da Doutrina Monroe, foi palco de intervenções mais ou menos diretas, ainda no século XIX especialmente nos eventos relacionados à independência de Cuba e à construção do Canal do Panamá.

“O cerne da análise leninista (que se baseava abertamente em vários autores da época, tanto marxianos como não marxianos) era de que as raízes econômicas do novo imperialismo residiam numa nova etapa específica de capitalismo que, entre outras coisas, levava à “divisão territorial do mundo entre as grandes potências capitalistas”, configurando um conjunto de colônias formais e informais e de esferas de influência. As rivalidades entre as potências capitalistas que levaram a essa divisão também geraram a Primeira Guerra Mundial. Não precisamos discutir aqui os mecanismos específicos através dos quais o “capitalismo monopolista” levou ao colonialismo – as opiniões divergem a este respeito, mesmo entre os marxistas – ou a ampliação mais recente dessa análise numa “teoria da dependência” de alcance mais geral, no fim do século XX. De uma forma ou de outra, todas partem do princípio de que a expansão econômica ultramarina e a exploração do mundo ultramarino foram cruciais para os países capitalistas”. (Pg.100)

O imperialismo era uma manifestação de um sentido mais geral percebido talvez de maneira mais vibrante no mundo das artes e da cultura de uma ideia de progresso e de otimismo quanto aos recursos da tecnologia. Quando se pensa em um período histórico é importante destacar o que efetivamente ele nos deixou ou mais claramente que tipo de descoberta eventualmente ainda viva nos dias de hoje tal período histórico nos legou. 

E aqui é possível fazer um pequeno inventário sem qualquer critério classificatório. Foi da Era dos Impérios que surgiu a Bicicleta o que facilitou bastante o transporte e o lazer especialmente das mulheres. Na verdade, há um capítulo dedicado a emancipação feminina que, se por um lado, se restringiu a um movimento das mulheres das classes superiores sufragistas, por outro, o que se observava era uma abertura maior ou uma aceitação maior da mulher dentro de postos de trabalho, e mesmo fora de casa, da mulher solteira que vivia de rendimentos  sem o casamento formal nas novas cidades, da mobilidade da mulher fora de ambiente domésticos desde os passeios, do teatro e do cinema que estava sendo inventado, das suas novas roupas, com a maquiagem que até então só era utilizada mesmo pelas profissionais do sexo e do teatro, passando a ser utilizada regularmente, até mesmo a invenção do Sutiã (1910). Foi um momento em que os jogos e os esportes ganharam enorme prestígio com a invenção do futebol, prestigiado pelas classes mais baixas e o golfe prestigiado pela elite, além do tênis. Dentro de casa, surgiu o aspirador de pó e o ferro de passar, mas ao que tudo indica, as casas da burguesia continuavam repletas de empregadas domésticas.

É um tempo que sinalizava otimismo, com descobertas na medicina microbiana e a relatividade questionando o paradigma newtoniano na física. E seu destino foi trágico: o que houve foi uma guerra com cerca de 9 milhões de mortos, algo jamais visto. Dentro dos movimentos socialistas, dentro da II Internacional, a maioria dos partidos capitularam ao patriotismo, e o que se observou é que de fato havia nos países um sentimento de apoio ao respectivo país, dado que é demonstrado pelo número de voluntários, na Inglaterra na centena de milhares (país que não havia convocação obrigatória militar). Com a Guerra e a eclosão concomitante da Revolução Russa de 1917, ficaria evidente a crise do imperialismo e uma luz, uma oportunidade histórica:

“Em 1917, a revolução convulsionara todos os antigos impérios do planeta, das fronteiras da Alemanha aos mares da China. Como a Revolução Mexicana, as agitações egípcias e o movimento nacional indiano mostraram, ela estava começando a corroer os novos impérios formais ou informais do imperialismo. Entretanto, seus resultados ainda não estavam claros em parte alguma, e era fácil subestimar a significação de seu fogo, bruxuleando entre o que Lênin chamou de “material inflamável na política mundial”. Ainda não estava claro que a Revolução Russa produziria um regime comunista – o primeiro da história, e se tornaria o acontecimento central da política mundial do século XX, como a Revolução Francesa fora o acontecimento central da política do século XIX”


Se uma tragédia conclui o longo século XIX é a Revolução Bolchevique de Lênin e seus camaradas que põem em andamento o novo século XX. 

(Imagem: The Passing Regiment 1875)

terça-feira, 19 de abril de 2016

“Capitães de Areia” – Jorge Amado

“Capitães de Areia” – Jorge Amado 



Resenha Livro – 219 - “Capitães de Areia” – Jorge Amado – Ed. Companhia das Letras 

“Capitães de Areia” foi publicado no emblemático ano de 1937, ano de instauração do Estado Novo de Getúlio Vargas. Trata-se de um romance da primeira fase do escritor baiano, de forte viés político social ou de denúncia social, com um claro viés de esquerda, que remonta à história de crianças de ruas abandonadas da Bahia que vivem de pequenos furtos e fraudes para garantir sua sobrevivência. Jorge Amado nasceu em 1912, estudou Direito na Faculdade Nacional de Direito do Rio de Janeiro entre 1931 e 1934 e nestes anos se ligara ao Partido Comunista do Brasil (PCB). Dentre seus romances desta sua primeira fase há de se destacar Jubiatá (1936) e Mar Morto (1936). No contexto de perseguições conflagradas contra os comunistas diante do fracasso do levante levado a cabo por Prestes e seus companheiros em 1935, Jorge Amado é preso e seus livros são queimados em Praça Pública em Salvador – o noticiário da época da conta de 808 exemplares de “Capitães de Areia” incinerados. Posteriormente, Jorge Amado redigiria uma biografia intelectual do dirigente máximo do PCB, Luiz Carlos Prestes, “O Cavaleiro Da Esperança” publicado em Buenos Aires em junho de 1941. Com a democratização do país no governo Dutra, o escritor baiano é eleito deputado federal por São Paulo pelo PCB.

Como pontuado são duas as fases que podemos dividir a obra de Jorge Amado. A primeira baseada no romance social, onde se pontilham a crítica das desigualdades sociais e se apontam alternativas políticas, acompanhadas de um visível sentimento de amor e compaixão pelo povo, pelos hipossuficientes, além de um certo patriotismo que se desenvolve num nível regional com frequentes elogios às belezas naturais, à paisagem, à flora e natureza baiana. A partir de 1954 Jorge Amado afasta-se da militância política e rompe com o PCB em 1956 no fatídico ano das denúncias do XX Congresso do PCUS aos assim conhecidos crimes de Stálin. São destas épocas as obras em que permanecem o elogio aos costumes dos tipos sociais brasileiros e populares bem como a cenário paisagístico deslumbrante do Brasil e especificamente da Bahia: obras inclusive adaptadas para novela e televisão, como Dona Flor e seus Dois Maridos (1969) e Tieta do Agreste (1977).

Como dizíamos, os Capitães de Areia são um grupo de meninos de ruas entre crianças e adolescentes que vivem ocultamente num velho trapiche próximo à beira  do mar e assombram a cidade alta (os ricos) de Salvador promovendo assaltos, furtos, pequenos estelionatos – certamente não são introduzidos apenas como motivo de condescendência na narrativa, como como verdadeiros heróis que possuem entre si um rígido código de conduta moral baseado da lealdade mútua, além das demonstrações de coragem que vão das ações de fugas do reformatório até espetaculares cenas de roubo de uma peça de Ologum de uma Delegacia de Polícia. 

Logo no início do romance, há uma divertida troca de acusações no Jornal da Tarde acerca das responsabilidades quanto à captura dos Capitães de Areia, que já fizeram fama nas redondezas. O Secretário do Chefe de Polícia defende-se das acusações de sua incapacidade em deter as crianças afirmando não ter tido ordem expressas do Juiz de Menores. Numa próxima edição do Jornal, o Juiz de Menores alega que sua função institucional não é a de perseguir os menores mas dar o seu posterior destino, comutar a pena para a casa do reformatório ou mesmo a prisão. O efeito humorístico e crítica das institucional implícita dentre estas cartas – em que o problema e as responsabilidade do abandono das crianças é lançado sob a alçada de diferentes instituições, sem solução concreta, nos remete a algumas considerações sobre o problema da infância e juventude naquele contexto histórico. 

Do ponto de vista legal, o problema do menor abandonado e delinquente esteve positivado desde o Código do Menor do Império de 1830. Posteriormente outras leis, sempre e exclusivamente no âmbito do direito penal, cuidaram do assunto, como o Código Penal Republicano de 1890 e o Código de Menores de 1927, destacando-se a criação da figura do Juizado de Menores. O que há de se destacar aqui é que nunca naquele período a criança fora vista como um sujeito de direito: o direito intervinham num sentido de tutela, pelo direito penal, para cuidar especificamente dos casos de abandono e delinquência. E como se observa desde as descrições do reformatório pelo qual passou Pedro Bala, líder dos Capitães de Areia, os cuidados equivaliam a uma de prisão talvez até pior do que o regime prisional fechado destinado aos adultos dos dias de hoje: castigos corporais frequentes, torturas e confinamentos, além de restrição na oferta de água e bebida, um verdadeiro inferno. 

Seria apenas a partir dos anos 1980 que movimentos sociais, ancorados em tratados internacionais que já avançavam num novo tratamento jurídico sobre as crianças e adolescentes que a realidade jurídica no país faria avanços. Neste Sentido, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA lei 8069/90) representou um grande marco ao regulamentar alguns dispositivos e diretrizes já previstos na Constituição de 1988. A criança definitivamente assume um papel de sujeito de direitos: direito à saúde, educação, ao lazer, opinião e expressão, brincar, participar de esportes e divertir-se. Sendo vedado em seu art. 18 qualquer tratamento desumano, violento, vexatório ou constrangedor à criança e adolescente. 

Sabemos que institutos não mudam a realidade, mas ao inverso, as realidades materiais geralmente provocam (de forma atrasada) alterações institucionais. Basta olhar nas duas das grandes cidades ddo Brasil,  Rio de Janeiro e São Paulo e seus Capitães de Areia continuam lá, crianças morando e dormindo nas ruas. Mas insiste-se que mudanças institucionais coma a aparição dos conselhos tutelares sinalizam algum avanço. 

Quanto ao estilo literário, “Capitães de Areia” não pode ser considerado um romance regionalista stricto senso. Falta-lhe um certo realismo que é substituído por uma descrição ora poética ora imagética da Bahia: vê-se principalmente uma cidade colorida, as docas e os barcos de pescadores de músculos fortes saindo para alto mar, mulheres da vida ou solteiras a beira da janela buscando namoro, uma rua baixa dos pobres e a rua alta dos ricos demarcando bem uma diferenciação geográfica e que se expressa na indiferença e preconceito dos ricos e na violência dos policiais contra grevistas e os capitães de areia. 

Cada personagem revela um destino diferente conforme suas aptidões. Professor lê livros todos os dias sob a luz de vela, ganha alguns trocados pintando desenhos na rua e sonha ser um artista e retratar a vida do grupo em grandes exposições. Pirulito entra em contato com a religião por meio de um padre simples, ex-operário, José Pedro, e em certo momento sua euforia religiosa o sufoca quando se vê dividido: precisa roubar para sobreviver e corresponder às leis do grupo, o que é um pecado e busca então formas “limpas” de vida, como engraxate. Mas a sua dúvida de fundo, que é uma questão universal, é sondar os desígnios de deus: seria ele um pai bondoso que a tudo perdoa, inclusive os Capitães de Areia, meninos perdidos pelo mundo que pecam por falta de alternativa, ou seria Deus a justiça suprema, corroborando a tese do inferno? Pedro Bala, o líder do grupo foi filho de Raimundo, um grevista que morreu durante um combate numa luta operária e ao descobriu o destino de seu pai, Bala passou a cogitar palavras como liberdade e revolução. 

Capitães de Areia é um típico romance de esquerda sem um viés facilmente panfletário. Ganha em importância histórica por suas belas descrições sobre os cenários populares da Bahia, como um retrato histórico de pessoas e ambientes do Brasil e especificamente da Bahia dos anos 1930.    

(Imagem - Jorge Amado - Quirino da Silva 1938) 

quinta-feira, 14 de abril de 2016

“Pequena História da Ditadura Brasileira – 1964 – 1985” – José Paulo Netto

“Pequena História da Ditadura Brasileira – 1964 – 1985” – José Paulo Netto 



Resenha Livro - 218 - “Pequena História da Ditadura Brasileira – 1964 – 1985” – José Paulo Netto – Cortez Editora 


Dentre as diversas vertentes historiográficas, correntes metodológicas voltadas à análise do passado, destacou-se aqui no Brasil uma expressão francesa denominada Escola dos Annales. A explicação mais imediata deve-se ao fato da fundação das Faculdades de Humanidades da Universidade de São Paulo ter sido recepcionada por uma missão francesa que dentro da historiografia teria Ferdinand Breudel como principal expoente. Importa destacar aqui que a Escola dos Annales desenvolveu uma teoria das temporalidades históricas que nos é útil como ponto de partida para reflexão sobre este livro síntese da Ditadura Militar no Brasil de José Paulo Netto. As análises históricas poderiam remeter-se às temporalidades de longa duração, média duração e curta duração que, respectivamente, poderiam ser comparadas ao movimento do mar: a longa duração sendo observada desde as marés e os movimentos mais profundos do oceano, a média duração sendo percebidas desde as ondas do mar e a curta duração podendo ser percebidas como as manifestações dos borbulhos das águas. 

Em termos mais concretos, uma análise de longa duração teria como perspectiva uma visão panorâmica que buscasse os sentidos mais profundos da história, sendo possível aferir uma história global da Idade Média; uma análise de média duração seria uma zona intermediária, uma pouco mais visível do que os fenômenos da longa duração, como as grandes navegações da baixa Idade Média; e a curta duração são as análises mais premente dentro dos nossos cursos de pós graduação que remetem a períodos relativamente curtos da história como recortes temáticos, para um aprofundamento que, se por um lado ganha em densidade e aprofundamento, perdem por outro lado em envergadura e frequentemente desorientam-se quando aos sentidos mais ocultos derivados da longa e média duração. 

Tais reflexões sobre as temporalidades nos fazem pensar sobre o objeto da “Pequena” história de José Paulo Netto. O autor se propõe a relatar 20 anos da vida política do país numa síntese de cerca de 300 páginas o que envolve desde já algumas considerações preliminares. O autor adverte que seu intuito não é apresentar novos achados e descobertas sobre o período mas incidir e desenvolver o assunto para que a memória daquele período amargo, de violações de direitos humanos, assassinatos e “desaparecimentos”, arbítrio institucional com a cassação do habeas corpus, extinção da eleição direta em vários níveis, etc, não seja desapercebido pelas novas gerações. Outrossim,  seu pressuposto teórico metodológico é o marxismo, o que desde já envolve alguns recortes e preocupações particulares. Dentro de um esforço de síntese, uma história de média duração, algumas perguntas específicas são particularmente importantes: quais as razões que levaram a esquerda à derrota no 1º de Abril? Era possível haver uma resistência civil militar aos golpistas ? Qual foi a política da esquerda e em particular do PCB ao longo da ditadura? Qual era a natureza de classe do regime? Qual a influência do desenvolvimento da luta de classes no período, particularmente no período de distensão, em que as greves do ABC de 1978-1980 converteram forçosamente em democratização? 

Dentro das cogitações de José Paulo Netto certamente há aquilo que se pode colocar como uma intervenção dentro do se coloca como “Batalha das Idéias”. Seu livro é uma contribuição para se contrapor a vozes oportunistas ou falsificadoras da verdade. Por exemplo, recentemente a Folha de São Paulo em editorial referiu-se à Ditadura Civil-Militar brasileira como “ditabranda” relativizando não só as mortes e torturas de milhares, mas o afastamento de outros tantos servidores públicos, professores universitários e militares, além da censura e interdição do pensamento no país. Obviamente o mesmo jornal não se referiu ao fato de a  Folha de São Paulo ter fornecido carros da empresa para OBAN (Operação Bandeirantes de São Paulo) caçar opositores do regime na década de 1970. 

Já com 50 anos após o golpe, cinicamente o Jornal o Globo em edição de 1º de setembro de2013 admite que “foi um erro seu apoio ao golpe de 1964, assim como equivocadas foram outras decisões editoriais do período que decorreram desse desacerto original”. Igualmente, faltou a tal auto crítica constar que a Rede Globo de televisão foi toda ela beneficiária de um apoio ao arrepio da lei junto à ditadura. Assim pontua José Paulo:

“Dispondo da concessão de um canal televisivo desde o governo Kubitscheck, Roberto Marinho associou-se em 1962 ao grupo Time Life e pôs no ar a primeira emissão da TV Globo três anos depois. O acordo com o grupo norte americano feria a legislação brasileira e uma Comissão Parlamentar de Inquérito considerou-o ilegal em 1967 – mas, por ordem do executivo federal, a decisão virou letra morta”. 

O contexto inicial que serve de ponto de partida do Autor é o Brasil dos anos 1960. Numa conjuntura em que Jânio é eleito vencendo Marechal Lott (um militar legalista que garantira a vitória da legalidade e a posse de Juscelino Kubitscheck), o excêntrico político da UDN logo viria a sua base de apoio de direita ruir. Rompia a política externa de adesão incondicional aos EUA – dentro do contexto da guerra fria – e causara arrepios aos setores anticomunistas de seu partido ao condecorar Che Guevara com a Grã Cruz da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul. O Brasil daquele período ainda era uma país com ligeira maioria da população agrária e 40% da população analfabeta e excluída do pleito eleitoral. O plano de metas de JK promovera um processo de substituição de importações e desenvolveu industrias de bens duráveis fazendo crescer o nível de emprego nos centros urbanos. Já o governo de Jânio durou apenas 7 meses e foi marcado por medidas inócuas como decretação do fim da briga de galos e do uso de lança perfumes no carnaval. Sua base de apoio mesmo dentro da UDN era instável e o presidente lançou uma manobra arriscada – enquanto o vice presidente João Goulart estava em visita diplomática na China, Jânio renuncia a presidência para espanto da nação. Sua manobra ou expectativa era a de que os setores conservadores da classe dominante não admitiriam Jango na presidência – um estancieiro lançado por Getúlio Vargas com um projeto de reformas democratizantes. Assim, Jânio seria alçado novamente à presidência com maiores poderes para governar. Nada disso aconteceu: 25 de Agosto de 1961 há a renúncia de Jango e a articulação política feita em Brasília busca impedir a posse de Jango, passando a presidência a Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos Deputados. 

Qual era os impeditivos que inviabilizavam a posse de João Goulart? Jango era um rico pecuarista e líder do PTB. Fora ministro do trabalho de Getúlio Vargas (e só por esta razão já galgava o ódio de setores da classe dominantes tradicionalmente golpistas e conservadores) e mantinha históricos compromissos com a classe trabalhadora. 

Após articulação de bastidores obteve-se uma saída de consenso – Goulart assumia a posse em 7 de setembro de 1961 dentro de um regime parlamentarista, ou seja, com os seus poderes mitigados. Ainda assim, mudanças políticas foram feitas em sentido progressista: o novo ministro das relações exteriores San Tiago Dantas votou em assembleia diplomática internacional pela não intervenção em Cuba e em novembro de 1961 foram reestabelecidas as relações diplomáticas com a URSS. Conseguiu-se restaurar o presidencialismo por meio de plebiscito com ampla maioria em 7 de setembro de 1961. 

Alguns cientistas sócias classificam o governo Jango como populista, numa comparação pouco razoável com o regime de Perón da Argentina. O populismo seria muito mais próximo do que Marx identifica como o bonapartismo que é uma regime que se localiza acima das classes – dá para os pobres com uma mão e serve à burguesia com a outra. Jango parece-nos como um democrata consequente que, dentro de um contexto de crise econômica crescente no país, vê como solução a promoção de suas reformas de base como um reajuste necessário sem romper com o capitalismo. Um reformistas que em certa medida se opunha aos interesses daqueles setores que apoiariam o golpe de 1964 – empresários, latifundiários e empresas transnacionais, além do imperialismo. 

Em que pese toda a retórica da época, típica da Guerra Fria,  que Jango anunciava o “comunismo” ou uma “república sindical”, seu programa não tem nada de socialista. O que as reformas que Jango propunham eram uma ampliação dos já restritos limites da democracia, o que por si só horrorizava os setores reacionários, a direita, os militares, os latifundiários e os empresários. 

Uma reflexão importante aqui é sobre os motivos que levaram a esquerda à derrota em 1º de abril de 1964. Em primeiro lugar podemos destacar a confiança na cúpula militar que trairia a democracia: havia a confiança de que as forças armadas manteriam seu compromisso com a legalidade e estava viva na memória a intervenção de Marechal Lott que garantira a posse de JK contra golpistas. Ademais pode-se falar de falta de preparo militar para o exercício da resistência democrática. Há registros de já desde 1961 havia atividades clandestinas pela direita, se preparando belicamente na “luta contra o comunismo” por meio de grupos como Movimento Anticomunista, Cruzada Libertadora Militar Democrática, Grupos de Ação Patriótica e Grupo de Caça aos Comunistas. Latifundiários nordestinos e goianos acumularam arsenais, formaram milícias e instalações de treinamento. Enquanto isso o bloco de apoio às Reformas de Base não se preparou para tais enfreamentos diretos. 

A participação norte-americana já é notória e dispensa maiores comentários. Agentes da CIA estavam no Brasil desde 1961 desenvolvendo atividades de desestabilização do governo e treinamento militar e ideológico aos golpistas. 

A vitória do 1º de Abril e os 20 anos subsequentes significou além das conhecidas atrocidades pessoais na vida de militantes de esquerda, dificuldades enormes na vida das pessoas comuns. O “milagre Econômico” que durou apenas alguns anos pode dar a falsa impressão de que no campo econômico a Ditadura logrou ser eficiente. Entretanto o crescimento econômico não significou distribuição de renda tendo sido famosa a remissão do ministro da Fazenda Delfim Netto: “deixar o bolo crescer e depois dividi-lo”. Mas de maneira geral, a política econômica do governo bastou-se no arrocho salarial, na concentração de renda e na desnacionalização da economia – e foi numa conjuntura de crise econômica e política que foram emergindo as primeiras fissuras, primeiro com as manifestações contra a morte de opositores que reuniram milhares, sob a tutela da Igreja Católica, como a do jornalista Vladimir Herzog; posteriormente com a Emenda Dante de Oliveira que previa eleições Diretas, projeto derrotado no congresso mas que fortalece a oposição institucional e nas ruas; posteriormente com as greves dos metalúrgicos do ABC entre 1978-1980 e daí em diante até a construção da CUT em 1983. Paulatinamente a ditadura vai perdendo sua base de apoio, inclusive de aliados de primeira hora como empresários e políticos da própria ARENA, depois designada PDS. Seu fim formal dá-se com a eleição de Tancredo Neves do PMDB no colégio eleitoral. 

Esta história síntese deve servir como mais um bom material tanto para aqueles que se iniciam nos estudos sobre a ditadura militar como aqueles que desejam conhecer alguns detalhes do período. Tem-se uma visão panorâmica, um pouco diferente de certas tendências historiográficas que se aprofundam em determinados períodos relativamente curtos e perdem a noção do todo. Esta “Pequena História da Ditadura Militar” é como uma viagem que oferece uma leitura do sentido evolutivo da política do ciclo militar, com a seleção dos fatos mais determinantes que envolvem as disputas políticas de cúpula e sua relação com o estado econômico e as pressões sociais desde baixo.