terça-feira, 19 de abril de 2016

“Capitães de Areia” – Jorge Amado

“Capitães de Areia” – Jorge Amado 



Resenha Livro – 219 - “Capitães de Areia” – Jorge Amado – Ed. Companhia das Letras 

“Capitães de Areia” foi publicado no emblemático ano de 1937, ano de instauração do Estado Novo de Getúlio Vargas. Trata-se de um romance da primeira fase do escritor baiano, de forte viés político social ou de denúncia social, com um claro viés de esquerda, que remonta à história de crianças de ruas abandonadas da Bahia que vivem de pequenos furtos e fraudes para garantir sua sobrevivência. Jorge Amado nasceu em 1912, estudou Direito na Faculdade Nacional de Direito do Rio de Janeiro entre 1931 e 1934 e nestes anos se ligara ao Partido Comunista do Brasil (PCB). Dentre seus romances desta sua primeira fase há de se destacar Jubiatá (1936) e Mar Morto (1936). No contexto de perseguições conflagradas contra os comunistas diante do fracasso do levante levado a cabo por Prestes e seus companheiros em 1935, Jorge Amado é preso e seus livros são queimados em Praça Pública em Salvador – o noticiário da época da conta de 808 exemplares de “Capitães de Areia” incinerados. Posteriormente, Jorge Amado redigiria uma biografia intelectual do dirigente máximo do PCB, Luiz Carlos Prestes, “O Cavaleiro Da Esperança” publicado em Buenos Aires em junho de 1941. Com a democratização do país no governo Dutra, o escritor baiano é eleito deputado federal por São Paulo pelo PCB.

Como pontuado são duas as fases que podemos dividir a obra de Jorge Amado. A primeira baseada no romance social, onde se pontilham a crítica das desigualdades sociais e se apontam alternativas políticas, acompanhadas de um visível sentimento de amor e compaixão pelo povo, pelos hipossuficientes, além de um certo patriotismo que se desenvolve num nível regional com frequentes elogios às belezas naturais, à paisagem, à flora e natureza baiana. A partir de 1954 Jorge Amado afasta-se da militância política e rompe com o PCB em 1956 no fatídico ano das denúncias do XX Congresso do PCUS aos assim conhecidos crimes de Stálin. São destas épocas as obras em que permanecem o elogio aos costumes dos tipos sociais brasileiros e populares bem como a cenário paisagístico deslumbrante do Brasil e especificamente da Bahia: obras inclusive adaptadas para novela e televisão, como Dona Flor e seus Dois Maridos (1969) e Tieta do Agreste (1977).

Como dizíamos, os Capitães de Areia são um grupo de meninos de ruas entre crianças e adolescentes que vivem ocultamente num velho trapiche próximo à beira  do mar e assombram a cidade alta (os ricos) de Salvador promovendo assaltos, furtos, pequenos estelionatos – certamente não são introduzidos apenas como motivo de condescendência na narrativa, como como verdadeiros heróis que possuem entre si um rígido código de conduta moral baseado da lealdade mútua, além das demonstrações de coragem que vão das ações de fugas do reformatório até espetaculares cenas de roubo de uma peça de Ologum de uma Delegacia de Polícia. 

Logo no início do romance, há uma divertida troca de acusações no Jornal da Tarde acerca das responsabilidades quanto à captura dos Capitães de Areia, que já fizeram fama nas redondezas. O Secretário do Chefe de Polícia defende-se das acusações de sua incapacidade em deter as crianças afirmando não ter tido ordem expressas do Juiz de Menores. Numa próxima edição do Jornal, o Juiz de Menores alega que sua função institucional não é a de perseguir os menores mas dar o seu posterior destino, comutar a pena para a casa do reformatório ou mesmo a prisão. O efeito humorístico e crítica das institucional implícita dentre estas cartas – em que o problema e as responsabilidade do abandono das crianças é lançado sob a alçada de diferentes instituições, sem solução concreta, nos remete a algumas considerações sobre o problema da infância e juventude naquele contexto histórico. 

Do ponto de vista legal, o problema do menor abandonado e delinquente esteve positivado desde o Código do Menor do Império de 1830. Posteriormente outras leis, sempre e exclusivamente no âmbito do direito penal, cuidaram do assunto, como o Código Penal Republicano de 1890 e o Código de Menores de 1927, destacando-se a criação da figura do Juizado de Menores. O que há de se destacar aqui é que nunca naquele período a criança fora vista como um sujeito de direito: o direito intervinham num sentido de tutela, pelo direito penal, para cuidar especificamente dos casos de abandono e delinquência. E como se observa desde as descrições do reformatório pelo qual passou Pedro Bala, líder dos Capitães de Areia, os cuidados equivaliam a uma de prisão talvez até pior do que o regime prisional fechado destinado aos adultos dos dias de hoje: castigos corporais frequentes, torturas e confinamentos, além de restrição na oferta de água e bebida, um verdadeiro inferno. 

Seria apenas a partir dos anos 1980 que movimentos sociais, ancorados em tratados internacionais que já avançavam num novo tratamento jurídico sobre as crianças e adolescentes que a realidade jurídica no país faria avanços. Neste Sentido, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA lei 8069/90) representou um grande marco ao regulamentar alguns dispositivos e diretrizes já previstos na Constituição de 1988. A criança definitivamente assume um papel de sujeito de direitos: direito à saúde, educação, ao lazer, opinião e expressão, brincar, participar de esportes e divertir-se. Sendo vedado em seu art. 18 qualquer tratamento desumano, violento, vexatório ou constrangedor à criança e adolescente. 

Sabemos que institutos não mudam a realidade, mas ao inverso, as realidades materiais geralmente provocam (de forma atrasada) alterações institucionais. Basta olhar nas duas das grandes cidades ddo Brasil,  Rio de Janeiro e São Paulo e seus Capitães de Areia continuam lá, crianças morando e dormindo nas ruas. Mas insiste-se que mudanças institucionais coma a aparição dos conselhos tutelares sinalizam algum avanço. 

Quanto ao estilo literário, “Capitães de Areia” não pode ser considerado um romance regionalista stricto senso. Falta-lhe um certo realismo que é substituído por uma descrição ora poética ora imagética da Bahia: vê-se principalmente uma cidade colorida, as docas e os barcos de pescadores de músculos fortes saindo para alto mar, mulheres da vida ou solteiras a beira da janela buscando namoro, uma rua baixa dos pobres e a rua alta dos ricos demarcando bem uma diferenciação geográfica e que se expressa na indiferença e preconceito dos ricos e na violência dos policiais contra grevistas e os capitães de areia. 

Cada personagem revela um destino diferente conforme suas aptidões. Professor lê livros todos os dias sob a luz de vela, ganha alguns trocados pintando desenhos na rua e sonha ser um artista e retratar a vida do grupo em grandes exposições. Pirulito entra em contato com a religião por meio de um padre simples, ex-operário, José Pedro, e em certo momento sua euforia religiosa o sufoca quando se vê dividido: precisa roubar para sobreviver e corresponder às leis do grupo, o que é um pecado e busca então formas “limpas” de vida, como engraxate. Mas a sua dúvida de fundo, que é uma questão universal, é sondar os desígnios de deus: seria ele um pai bondoso que a tudo perdoa, inclusive os Capitães de Areia, meninos perdidos pelo mundo que pecam por falta de alternativa, ou seria Deus a justiça suprema, corroborando a tese do inferno? Pedro Bala, o líder do grupo foi filho de Raimundo, um grevista que morreu durante um combate numa luta operária e ao descobriu o destino de seu pai, Bala passou a cogitar palavras como liberdade e revolução. 

Capitães de Areia é um típico romance de esquerda sem um viés facilmente panfletário. Ganha em importância histórica por suas belas descrições sobre os cenários populares da Bahia, como um retrato histórico de pessoas e ambientes do Brasil e especificamente da Bahia dos anos 1930.    

(Imagem - Jorge Amado - Quirino da Silva 1938) 

quinta-feira, 14 de abril de 2016

“Pequena História da Ditadura Brasileira – 1964 – 1985” – José Paulo Netto

“Pequena História da Ditadura Brasileira – 1964 – 1985” – José Paulo Netto 



Resenha Livro - 218 - “Pequena História da Ditadura Brasileira – 1964 – 1985” – José Paulo Netto – Cortez Editora 


Dentre as diversas vertentes historiográficas, correntes metodológicas voltadas à análise do passado, destacou-se aqui no Brasil uma expressão francesa denominada Escola dos Annales. A explicação mais imediata deve-se ao fato da fundação das Faculdades de Humanidades da Universidade de São Paulo ter sido recepcionada por uma missão francesa que dentro da historiografia teria Ferdinand Breudel como principal expoente. Importa destacar aqui que a Escola dos Annales desenvolveu uma teoria das temporalidades históricas que nos é útil como ponto de partida para reflexão sobre este livro síntese da Ditadura Militar no Brasil de José Paulo Netto. As análises históricas poderiam remeter-se às temporalidades de longa duração, média duração e curta duração que, respectivamente, poderiam ser comparadas ao movimento do mar: a longa duração sendo observada desde as marés e os movimentos mais profundos do oceano, a média duração sendo percebidas desde as ondas do mar e a curta duração podendo ser percebidas como as manifestações dos borbulhos das águas. 

Em termos mais concretos, uma análise de longa duração teria como perspectiva uma visão panorâmica que buscasse os sentidos mais profundos da história, sendo possível aferir uma história global da Idade Média; uma análise de média duração seria uma zona intermediária, uma pouco mais visível do que os fenômenos da longa duração, como as grandes navegações da baixa Idade Média; e a curta duração são as análises mais premente dentro dos nossos cursos de pós graduação que remetem a períodos relativamente curtos da história como recortes temáticos, para um aprofundamento que, se por um lado ganha em densidade e aprofundamento, perdem por outro lado em envergadura e frequentemente desorientam-se quando aos sentidos mais ocultos derivados da longa e média duração. 

Tais reflexões sobre as temporalidades nos fazem pensar sobre o objeto da “Pequena” história de José Paulo Netto. O autor se propõe a relatar 20 anos da vida política do país numa síntese de cerca de 300 páginas o que envolve desde já algumas considerações preliminares. O autor adverte que seu intuito não é apresentar novos achados e descobertas sobre o período mas incidir e desenvolver o assunto para que a memória daquele período amargo, de violações de direitos humanos, assassinatos e “desaparecimentos”, arbítrio institucional com a cassação do habeas corpus, extinção da eleição direta em vários níveis, etc, não seja desapercebido pelas novas gerações. Outrossim,  seu pressuposto teórico metodológico é o marxismo, o que desde já envolve alguns recortes e preocupações particulares. Dentro de um esforço de síntese, uma história de média duração, algumas perguntas específicas são particularmente importantes: quais as razões que levaram a esquerda à derrota no 1º de Abril? Era possível haver uma resistência civil militar aos golpistas ? Qual foi a política da esquerda e em particular do PCB ao longo da ditadura? Qual era a natureza de classe do regime? Qual a influência do desenvolvimento da luta de classes no período, particularmente no período de distensão, em que as greves do ABC de 1978-1980 converteram forçosamente em democratização? 

Dentro das cogitações de José Paulo Netto certamente há aquilo que se pode colocar como uma intervenção dentro do se coloca como “Batalha das Idéias”. Seu livro é uma contribuição para se contrapor a vozes oportunistas ou falsificadoras da verdade. Por exemplo, recentemente a Folha de São Paulo em editorial referiu-se à Ditadura Civil-Militar brasileira como “ditabranda” relativizando não só as mortes e torturas de milhares, mas o afastamento de outros tantos servidores públicos, professores universitários e militares, além da censura e interdição do pensamento no país. Obviamente o mesmo jornal não se referiu ao fato de a  Folha de São Paulo ter fornecido carros da empresa para OBAN (Operação Bandeirantes de São Paulo) caçar opositores do regime na década de 1970. 

Já com 50 anos após o golpe, cinicamente o Jornal o Globo em edição de 1º de setembro de2013 admite que “foi um erro seu apoio ao golpe de 1964, assim como equivocadas foram outras decisões editoriais do período que decorreram desse desacerto original”. Igualmente, faltou a tal auto crítica constar que a Rede Globo de televisão foi toda ela beneficiária de um apoio ao arrepio da lei junto à ditadura. Assim pontua José Paulo:

“Dispondo da concessão de um canal televisivo desde o governo Kubitscheck, Roberto Marinho associou-se em 1962 ao grupo Time Life e pôs no ar a primeira emissão da TV Globo três anos depois. O acordo com o grupo norte americano feria a legislação brasileira e uma Comissão Parlamentar de Inquérito considerou-o ilegal em 1967 – mas, por ordem do executivo federal, a decisão virou letra morta”. 

O contexto inicial que serve de ponto de partida do Autor é o Brasil dos anos 1960. Numa conjuntura em que Jânio é eleito vencendo Marechal Lott (um militar legalista que garantira a vitória da legalidade e a posse de Juscelino Kubitscheck), o excêntrico político da UDN logo viria a sua base de apoio de direita ruir. Rompia a política externa de adesão incondicional aos EUA – dentro do contexto da guerra fria – e causara arrepios aos setores anticomunistas de seu partido ao condecorar Che Guevara com a Grã Cruz da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul. O Brasil daquele período ainda era uma país com ligeira maioria da população agrária e 40% da população analfabeta e excluída do pleito eleitoral. O plano de metas de JK promovera um processo de substituição de importações e desenvolveu industrias de bens duráveis fazendo crescer o nível de emprego nos centros urbanos. Já o governo de Jânio durou apenas 7 meses e foi marcado por medidas inócuas como decretação do fim da briga de galos e do uso de lança perfumes no carnaval. Sua base de apoio mesmo dentro da UDN era instável e o presidente lançou uma manobra arriscada – enquanto o vice presidente João Goulart estava em visita diplomática na China, Jânio renuncia a presidência para espanto da nação. Sua manobra ou expectativa era a de que os setores conservadores da classe dominante não admitiriam Jango na presidência – um estancieiro lançado por Getúlio Vargas com um projeto de reformas democratizantes. Assim, Jânio seria alçado novamente à presidência com maiores poderes para governar. Nada disso aconteceu: 25 de Agosto de 1961 há a renúncia de Jango e a articulação política feita em Brasília busca impedir a posse de Jango, passando a presidência a Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos Deputados. 

Qual era os impeditivos que inviabilizavam a posse de João Goulart? Jango era um rico pecuarista e líder do PTB. Fora ministro do trabalho de Getúlio Vargas (e só por esta razão já galgava o ódio de setores da classe dominantes tradicionalmente golpistas e conservadores) e mantinha históricos compromissos com a classe trabalhadora. 

Após articulação de bastidores obteve-se uma saída de consenso – Goulart assumia a posse em 7 de setembro de 1961 dentro de um regime parlamentarista, ou seja, com os seus poderes mitigados. Ainda assim, mudanças políticas foram feitas em sentido progressista: o novo ministro das relações exteriores San Tiago Dantas votou em assembleia diplomática internacional pela não intervenção em Cuba e em novembro de 1961 foram reestabelecidas as relações diplomáticas com a URSS. Conseguiu-se restaurar o presidencialismo por meio de plebiscito com ampla maioria em 7 de setembro de 1961. 

Alguns cientistas sócias classificam o governo Jango como populista, numa comparação pouco razoável com o regime de Perón da Argentina. O populismo seria muito mais próximo do que Marx identifica como o bonapartismo que é uma regime que se localiza acima das classes – dá para os pobres com uma mão e serve à burguesia com a outra. Jango parece-nos como um democrata consequente que, dentro de um contexto de crise econômica crescente no país, vê como solução a promoção de suas reformas de base como um reajuste necessário sem romper com o capitalismo. Um reformistas que em certa medida se opunha aos interesses daqueles setores que apoiariam o golpe de 1964 – empresários, latifundiários e empresas transnacionais, além do imperialismo. 

Em que pese toda a retórica da época, típica da Guerra Fria,  que Jango anunciava o “comunismo” ou uma “república sindical”, seu programa não tem nada de socialista. O que as reformas que Jango propunham eram uma ampliação dos já restritos limites da democracia, o que por si só horrorizava os setores reacionários, a direita, os militares, os latifundiários e os empresários. 

Uma reflexão importante aqui é sobre os motivos que levaram a esquerda à derrota em 1º de abril de 1964. Em primeiro lugar podemos destacar a confiança na cúpula militar que trairia a democracia: havia a confiança de que as forças armadas manteriam seu compromisso com a legalidade e estava viva na memória a intervenção de Marechal Lott que garantira a posse de JK contra golpistas. Ademais pode-se falar de falta de preparo militar para o exercício da resistência democrática. Há registros de já desde 1961 havia atividades clandestinas pela direita, se preparando belicamente na “luta contra o comunismo” por meio de grupos como Movimento Anticomunista, Cruzada Libertadora Militar Democrática, Grupos de Ação Patriótica e Grupo de Caça aos Comunistas. Latifundiários nordestinos e goianos acumularam arsenais, formaram milícias e instalações de treinamento. Enquanto isso o bloco de apoio às Reformas de Base não se preparou para tais enfreamentos diretos. 

A participação norte-americana já é notória e dispensa maiores comentários. Agentes da CIA estavam no Brasil desde 1961 desenvolvendo atividades de desestabilização do governo e treinamento militar e ideológico aos golpistas. 

A vitória do 1º de Abril e os 20 anos subsequentes significou além das conhecidas atrocidades pessoais na vida de militantes de esquerda, dificuldades enormes na vida das pessoas comuns. O “milagre Econômico” que durou apenas alguns anos pode dar a falsa impressão de que no campo econômico a Ditadura logrou ser eficiente. Entretanto o crescimento econômico não significou distribuição de renda tendo sido famosa a remissão do ministro da Fazenda Delfim Netto: “deixar o bolo crescer e depois dividi-lo”. Mas de maneira geral, a política econômica do governo bastou-se no arrocho salarial, na concentração de renda e na desnacionalização da economia – e foi numa conjuntura de crise econômica e política que foram emergindo as primeiras fissuras, primeiro com as manifestações contra a morte de opositores que reuniram milhares, sob a tutela da Igreja Católica, como a do jornalista Vladimir Herzog; posteriormente com a Emenda Dante de Oliveira que previa eleições Diretas, projeto derrotado no congresso mas que fortalece a oposição institucional e nas ruas; posteriormente com as greves dos metalúrgicos do ABC entre 1978-1980 e daí em diante até a construção da CUT em 1983. Paulatinamente a ditadura vai perdendo sua base de apoio, inclusive de aliados de primeira hora como empresários e políticos da própria ARENA, depois designada PDS. Seu fim formal dá-se com a eleição de Tancredo Neves do PMDB no colégio eleitoral. 

Esta história síntese deve servir como mais um bom material tanto para aqueles que se iniciam nos estudos sobre a ditadura militar como aqueles que desejam conhecer alguns detalhes do período. Tem-se uma visão panorâmica, um pouco diferente de certas tendências historiográficas que se aprofundam em determinados períodos relativamente curtos e perdem a noção do todo. Esta “Pequena História da Ditadura Militar” é como uma viagem que oferece uma leitura do sentido evolutivo da política do ciclo militar, com a seleção dos fatos mais determinantes que envolvem as disputas políticas de cúpula e sua relação com o estado econômico e as pressões sociais desde baixo.    

quinta-feira, 7 de abril de 2016

“São Paulo – Uma Longa História” – Ana Maria de Almeida Camargo (Org.)

“São Paulo – Uma Longa História” – Ana Maria de Almeida Camargo (Org.) 



Resenha Livro - 217 - “São Paulo – Uma Longa História” – Ana Maria de Almeida Camargo (Org.) – CIEE e Academia Paulista de História 
Este livro reúne uma série de artigos sobre a história da cidade de São Paulo. É resultado de um curso gratuito e aberto a todo público sobre o mesmo tema promovido pelo CIEE e pela Academia Paulista de História no ano de 2002. A justificativa (bastante razoável) de seus patrocinadores são duas: a ausência do tema da História de São Paulo nos currículos do ensino médio do estado o que se demonstra igualmente na não observância de questões do conteúdo nos exames de vestibular para as três universidades estaduais paulistas; e a falta mesmo de pesquisas e estudos especializados sobre tal pauta em nível superior, ao menos com a mesma preocupação com que se verifica em outros estados da federação. Os artigos publicados são todos de historiadores pós-graduados da USP: “Colonos e Jesuítas no Planalto” de Rafael Ruiz; “São Paulo e a Independência” de Cecília Helena de Salles de Oliveira; “A Cidade Que Mais Cresce No Mundo” de Maria Izilda S. de Matos”; “A Imagem Paulista” de André Toral; “São Paulo, 1932” de Vavy Pacheco Borges, “A Academia de Direito e a Vida Cultural de São Paulo” de Ana Luiza Martins; “Trilhos e Trens” de Antônio Soukef Júnior; “Música Popular na Cidade de São Paulo no Início do Século XX” de José Geraldo Vinci Moraes; “Cronistas de uma São Paulo Fora dos Trilhos” de Elias Thomé Saliba; e “Paisagem Urbana e História” de Solange Ferraz de Lima.

O fato de hoje São Paulo ser uma megalópole de mais 11 milhões de habitantes pode gerar algumas ilusões: daí a importância da história e da memória para dar uma noção de perspectiva. O fato é que desde de a fundação da Vila de São Vicente em 1554 até meados do século XIX a cidade de São Paulo praticamente não mudou sua paisagem de uma província prosaica, com a maior parcela de seu território pertencendo à área rural: o território rural e as chácaras correspondiam a maior parte do território sendo a parcela urbana um apêndice até o início da urbanização nas três últimas décadas do século XIX. Durante todo este longo período de séculos as casas eram feitas de taipa, não havia qualquer planejamento urbano, as mulheres lavavam suas roupas às margens do rio Tamanduateí e a província principalmente nos séculos XVI e XVII era regrada, segundo o historiador Rafael Ruiz, muito mais pelos usos e costumes do que pela norma jurídica.

O início do povoamento da Província não foi planejado pela coroa portuguesa, mas antes foi um espontâneo povoamento derivado de um aldeamento de indígenas e algumas chácaras, ainda no século XVI. Naquele logradouro construiu-se um colégio de padres que posteriormente seria transferido para a região litorânea com a intensão de lá criar uma redução, aumentar o povoamento e proteger o local de incursões estrangeiras. Assim arremata Rafael Ruiz:

“A estratégia jesuítica também se adaptou a esta reorientação. Os colégios deveriam localizar-se na costa: Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro, com um contingente completo de aproximadamente trezentos e cinquenta religiosos. Todos os outros núcleos – Espírito Santo, São Paulo e aldeias – seriam terras de missões, dependentes dos colégios. Dessa forma, o Colégio de Piratininga, bem como a própria vila, passariam a ser vistos de outra forma pela Companhia de Jesus, servindo de moradia para poucos possível, para cuidar da catequese dos índios. Assim começaram a se formar os aldeamentos de Pinheiros, Barueri, Carapicuíba, Guarulhos, Embu, Itaquaquecetuba, Itapecerica, São José, Peruíbe, Queluz e Itanhaém”. 

É bastante contraditória a intervenção dos jesuítas junto aos indígenas ao se cogitar o tipo de vínculo formado entre os europeus religiosos e o índio. Costuma-se imaginar a catequese e a ação missionária como uma atividade beneficente e ainda hoje nos vitrais da Igreja da Santa Cecília há imagens de missionários protegendo os índios – além de garantindo sua salvação extraterrena. Ocorre que as ações jesuíticas não se limitavam à conversão religiosa. Em 1610 com a visita do Padre Lima, há uma redefinição do que se entende por pobreza e questões temporais, justificando para o atendimento das questões espirituais que o missionário também aferisse renda com criação de gado, galinha para uso próprio e para venda por meio de trabalho escravo de negro, admitindo-se até mesmo criação de engenhos. Quanto aos Índios, estes para alguns jesuítas deveria ser convertidos à força. Ademais, esta conversão não era meramente religiosa, mas era uma espécie de uma educação conforme o modo de vida do europeu:

“Os Jesuítas, de maneira  ostensiva, introduziram nas aldeias uma separação até então desconhecida: a separação entre o meu e o teu, o público e o privado, o eclesiástico e o civil, num mundo em que estas distinções conceituais só podiam ser lidas e interpretadas como ingratidão, independência ou prepotência”. (RUIZ)

A expulsão dos jesuítas da Capitania de São Vicente deu-se em 1640. Nesse meio termo, o povoamento da cidade vai se dando pela sua localização como entreposto para excursões ao interior do Brasil dentro do contexto do ciclo da mineração. Paulatinamente foram surgindo inovações que iriam remodelar a cidade. O surgimento da Academia de Direito em 11 de Agosto de 1827, ainda quando São Paulo era uma província pacata – e dentre os debates parlamentares para a criação da escola, o fato de São Paulo ser uma cidade isolada e longe de divertimentos foi um dos critérios que viabilizaram sua construção na cidade.

O desenvolvimento do Café, proveniente da Etiópia, que certamente será o produto que colocará São Paulo na vanguarda política e econômica do país, desde o Vale do Paraíba e com ele o desenvolvimento dos trilhos e do trem criando uma rede de comunicação basicamente voltada ao escoamento do produto e finalmente o início da industrialização desde o capital acumulado com a economia do café e o incentivo das imigrações por volta de 1890. Entre fins do século XIX e início do século XX todos estes elementos corroborariam para transformações significativas na cidade – da província pacata de meados do século XIX a um centro urbano cosmopolita com importantes reformas, novas construções e uma elite cafeeira que vai se retirando das chácaras e vindo morar nos novos bairros, como Higienópolis e a Avenida Paulista.

Ressalta-se que havia uma vinculação direta entre a economia do café e a expansão urbana de São Paulo. O comércio era movido pelo café e influenciado pelas suas cotações. Diz a historiadora Maria Izilda sobre o período de fins do XIX:

“São Paulo vivia a euforia da chegada dos novos tempos, com as referências da modernidade e do progresso. Nas novas Avenidas da cidade, recém iluminadas pela Light and Power, no lugar dos antigos carros de parelha, tílburis e bondes a burro, surgiam os bondes elétricos circulando juntamente com os primeiros automóveis; os motores movimentavam as fábricas; máquinas fotográficas registravam o processo; despontava também o cinema, reproduzindo na tela a vida em contínuo movimento. Os ritmos e fluxos da cidade se alteravam, as ditas conquistas tecnológicas acenavam que o mundo nunca mais seria o mesmo. O desejo de modernidade expandia-se e generalizava-se, sob o influxo do crescimento comercial e financeiro”.

Outro fato significativo desta história é a revolução constitucionalista de 1932. Para compreendê-la, deve-se retroceder aos momentos anteriores à revolução de 1930, quando o presidente paulista Washington Luís rompe com a linha sucessória da política do café com leite e ao invés de indicar um mineiro, indica o paulista Júlio Prestes para candidato à presidência. Forma-se uma coalização de oposição, a Aliança Liberal, dirigida por Getúlio Vargas, apoiada pelos tenentes, setores médios e estados insatisfeitos com a hegemonia paulista na política nacional – com a vitória de Júlio Prestes, irrompe a Revolução de 1930 que na verdade é um realinhamento das forças políticas dominantes, implicando no fim da República Velha e da hegemonia paulista na política nacional.

Em São Paulo, o Partido Democrático e o Partido Republicano Paulista fazem dura oposição à Getúlio Vargas. Reivindicam a normalidade constitucional e em alguns momentos falam em autonomismo de São Paulo. Ainda que o movimento armado contra as forças oficiais tenha sido deflagrado no dia 9 de Julho, já antes havia mobilização e treinamentos armados. O que há de interessante nesta Revolução é a larga participação de civis: homens nas frentes de batalhas, mulheres participando em atividades filantrópicas. Ficaram famosas as doações de ouro e joias em benefício do movimento. Em larga medida, a Revolução de 1932 foi um movimento com tonalidades separatistas mas que não envolvia “luta de classes”: era antes uma luta política contra Getúlio Vargas, por uma Constituição, que seria efetivada em 1934. Militarmente, o movimento não poderia ser vitorioso, e de fato foi derrotado. Todavia, a constituição veio e considera-se que São Paulo não saiu de todo derrotado deste movimento. Mas, outrossim, não foi uma mobilização classista, mas dirigida por lideranças da classe dominante paulista.

Os artigos seguem tratando de diversos aspectos de São Paulo, desde sua música popular até a história da conformação de seus trens. O que não deixa de ser importante lembrar é como a memória histórica acaba sendo vulnerável ao esquecimento diante de um espaço suscetível às mais rápidas transformações. Outras histórias poderiam ser contadas, como as mobilizações pelas Diretas Já em São Paulo e outras grandes manifestações cívicas na Praça da Sé, ou a participação política dos alunos da USP, para além dos acadêmicos da Faculdade de Direito. Outro ponto a se destacar é que eventualmente pensa-se que estudar a história de São Paulo pode ser apenas objeto de interesse dos conservadores. Evidentemente é um argumento falso, e os dois exemplos supracitados (e poderíamos discorrer sobre outros) já o demonstram.

Fundação de São Vicente Benedito Calixto

domingo, 3 de abril de 2016

“Três Anos” – A. P. Tchekhov

“Três Anos” – A. P. Tchekhov




Resenha Livro – 216 - “Três Anos” – A. P. Tchekhov – Editora 34

Esta novela deste escritor russo tão lembrado pelos seus contos foi publicada no ano de 1895. 

Podemos considerar a novela como um meio termo entre o conto e o romance: os contos são histórias mais curtas, devem ter maior poder de síntese quando buscam sinalizar alguma ideia ou algum fim/conclusão e costumam ter menos personagens; os romances podem ter uma solução de continuidade maior, com os mais diversos personagens e eventualmente concorrendo mais de uma história que vão se entrecruzar até o encerramento da narrativa. A novela é o elo intermediário entre o conto e o romance, tanto no que tange a extensão da história quanto ao número de personagens. De quando da publicação de “Três Anos” (1895), Tchekhov já adquirira sua fama como contista que aliás conquistara desde o tempo de estudante de medicina na Universidade de Moscou quando escrevia para o seu sustento e de sua família. Quando começa a trabalhar em 1886  na Novoie Vrêmie sua fama se alastra, destacando os trabalhos “A Estepe” (1888), “O Assassinato” (1895), conto baseado na sua experiência na ilha Sacalina participando do Censo de uma colônia Penal e a novela “Minha Vida” (1896) que tem muitas interfaces com a novela “Três Anos”

“Três anos” e uma particularidade de Tchekhov

Novela escrita em 1895, por um autor que apesar de ser filho de um humilde comerciante, ascende socialmente e recebe visitas de Górki e Lev Tolstói, A. Tchekhov observa o processo de modernização a que a Rússia passa a partir de meados e fins do século XIX. Trata-se aliás de um fenômeno mesmo mais global em que o desenvolvimento das ciências, incluindo o das ciências naturais, investe nos homens do fim daquele século a expectativa da explicação dos fenômenos do mundo a partir da ciência e das novas disciplinas que estavam sendo conformadas – a sociologia, a história e a economia enquanto disciplinas autônomas são daqueles períodos. Todo este arsenal teórico metodológico coloca-se a serviço de responder a seguinte questão: o que fazer? Qual o caminho a Rússia deve trilhar? 

Indagações especialmente pertinentes diante do novo contexto criado pela maior transformação social colocada por aquele país, o fim da servidão em 19 de Fevereiro de 1861. Certamente havia uma camada de intelectuais mais influenciados por ideias liberais do ocidente, havia setores mais conservadores pro Rússia que se ressentiam desta ocidentalização, setores intermediários. Estes pontos de vistas vão aparecendo pontualmente nas obras de Tchekhov mas sem se oferecer uma resposta conclusiva. Ou seja, em “Três Anos”, cujas temáticas principais poderíamos estabelecer como o problema geral do amor e da nova posição da aristocracia naquela sociedade em transformação, nenhuma indicação conclusiva por parte do escritor nos é colocada: é como se, para o escritor, sua função fosse a de levantar as questões sendo papel de juiz a do próprio leitor.

A questão o Amor

Aleksei Láptiev é filho de um comerciante rico de Moscou mas depois dos vinte anos muda-se com a irmã para uma cidade no distrito. Suas recordações de infância envolvem o trabalho no armazém onde era açoitado diuturnamente pelo pai o que até a vida adulta fez dele um homem fraco, vacilante e covarde. Ao que se percebe que tais hesitações acabam tendo influência direta em sua vida amorosa. Em carta a um amigo de Moscou vai revelando como sua percepção sobre o que é o amor nunca teve qualquer firmeza num sentido de uma segurança de si próprio: por um momento chegou a acreditar que o amor é um engodo, e que tudo o que existe é atração pelo sexo; logo posteriormente chegou a acreditar amar piamente uma ilustre desconhecida que sequer sabia de sua existência. Finalmente, descobriu amar Iulia Belavina, uma amiga que fazia visitas a sua irmã que estava adoentada com câncer e que objetivamente o tratava com toda a frieza e indiferença.
Certa feita Iulia esqueceu sua sombrinha na cada dos irmãos e Láptiev acreditou ser sua chance de investir sobre quem tinha por amor. Foi uma cena patética: ao devolver a sombrinha começou a beijar o objeto, fez uma declaração que o envergonharia gravemente depois e foi tratado com uma dura rejeição. Um amor não correspondido pelo visto. 

Após a declaração, porém, Iulia  fez reflexões “pragmáticas” e ponderou sobre um casamento sem amor:

“Ela estava extenuada, sem forças e agora se convencia de que recusar um homem honesto, bom e apaixonado apenas porque ele não a agradava, principalmente quando, com este casamento, havia a possibilidade de mudar a própria vida, a sua vida triste, monótona e ociosa, em que a juventude estava indo embora e não se previa no futuro nada mais agradável, recusar diante dessas circunstâncias, e por causa disso Deus até podia castigar”.

E aquele casamento até então pouco provável consumou-se sempre considerando não se tratar de um amor não correspondido, o que já era de conhecimento do casal. Iulia não o amava, mas era uma chance de se casar e sair da casa do pai, um médico opressor. O casal mudou para Moscou e ainda assim não foram felizes em sua vida marital: mesmo Láptiev que ainda amava a esposa hesitava se um casamento sem amor teria sido a melhor escolha. Após um desentendimento do casal, por exemplo:

“Mas ela (Iulia) continuou a chorar, e ele (Láptiev) sentiu que ela suportava os seus carinhos apenas como consequência inevitável do próprio erro. E a perna, que ele beijara, ela apertava contra si, como um passarinho. Então ele teve pena dela.

Iúlia deitou-se e cobriu-se inteira até a cabeça ele se despiu e também deitou. De manhã ambos sentiam constrangidos e não sabiam o que falar, e a impressão que ele tinha era que ela até mancada da perna que ele beijara”. 

A evolução ou desenvolvimento do sentimento do casal não pára por aí. Fatores externos, como o nascimento de uma filha, e o próprio tempo iriam cuidar de mudar os sentimentos recíprocos do casal. O que se conclui é que o amor não é um sentimento linear, conciso, hermético. Parece mesmo que ele domina os personagens como uma força interior e independente.      

Questões Sociais

A grande casa comercial do velho Fiodor Stepanich sinaliza os momentos de transição da Rússia em fins do séc. XIX. Se por um lado se trata de uma casa capitalista, com altos rendimentos pecuniários, intimamente é motivo de algumas pequenas desgraças familiares e revela a não superação do tratamento imposto aos servos, com o mais grave tratamento de violência às crianças e empregados, vigilância total sobre os trabalhadores e a noção de que o patrão é um grande benfeitor pelo qual todos os empregados devem rezar e agradecer. Ou seja, observa-se ainda muito de uma cultura feudal mesclada com o desenvolvimento do capitalismo o que tem implicações no próprio sucessor da grande casa comercial, Láptiev, que desde sua memória da violência que sofreu no armazém, apenas assume a direção dos negócios por obrigação, detesta tal trabalho e ao menos determina o fim dos castigos corporais. Tem-se aqui uma mudança de geração, decorrente de um gradual processo de fim de um instituto que ao acabar não poderia deixar de manter suas graves cicatrizes, como a servidão. 

terça-feira, 29 de março de 2016

“Revolucionários: Ensaios Contemporâneos” – Eric J Hobsbawm

“Revolucionários: Ensaios Contemporâneos” – Eric J Hobsbawm 



Resenha Livro - 215 - “Revolucionários: Ensaios Contemporâneos” – Eric J Hobsbawm – Ed. Paz e Terra 

“Pode ser que a forma mais simples de enfocar o problema de minha geração seja através da introspecção, ou, se se preferir, da autobiografia. Um intelectual de meia idade, e razoavelmente bem estabelecido, dificilmente pode considerar-se um revolucionário no sentido real da palavra. Porém, alguém que se tenha considerado um comunista durante quarenta anos tem pelo menos muito a recordar para contribuir à discussão. Pertenço, talvez como um de seus membros sobreviventes mais jovens, a um meio hoje virtualmente extinto, o da classe média judia da Europa central posterior à Primeira Guerra Mundial. Este meio viveu sob o triplo impacto do colapso do mundo burguês em 1914, da Revolução de Outubro e do antissemitismo. Para a maioria de meus parentes austríacos mais velhos, a vida normal terminou com o assassinato em Sarajevo. Quando diziam “em tempo de paz”, queriam dizer antes de 1914, quando a vida de “gente como nós” se abria ante eles como um caminho amplo e reto, previsível mesmo em suas imprevisões, comodamente segura e enfadonha, que compreendia desde o nascimento e passava pelas vicissitudes da escola, profissão, noites de ópera, férias de verão e vida em família, até o túmulo no Cemitério Central de Viena. Depois de 1914, tudo foi catástrofe e sobrevivência precária. Sobrevivíamos a nós mesmos e sabíamos. Fazer planos a longo prazo parecia algo sem sentido para pessoas cujo mundo havia ruído já por duas vezes em dez anos (primeiro com a guerra, mais tarde com a Grande Depressão).”

O depoimento supracitado é do historiador marxista Eric J. Hobsbawm, morto em 2012. Trata-se certamente do mais importante historiador do mundo moderno e contemporâneo das últimas gerações.

Hobsbawm tem uma vasta produções bibliográfica envolvendo as suas análises das Revoluções Francesas e Revolução industrial Inglesa – consignadas como a era da “dupla revolução” envolvendo 1789 e 1848 em “Era das Revoluções”; Sua análise da fase da expansão do capital, das suas repercussões pelo mundo em “Era do Capital”; e sua tese do “curto século XX” que teria como ponto de partida a Revolução Russa e conclusão a queda do mundo soviético em “Era dos Extremos”.

O historiador britânico é capaz de conjugar minucioso exame analítico se servindo sempre das chaves explicativas do marxismo – sem, ao certo, fazê-lo por meio dogmático – e ao mesmo tempo produz uma narrativa abundante de detalhes e fatos que revelam um assombroso repertório cultural. Neste livro, uma compilação de artigos, ensaios e palestras, somos a todo momento surpreendidos com análises em que as explicações vão se dar a partir de exemplos históricos desde países da Ásia, África e América Latina. Esta erudição vasta combinada com um rigoroso método analítico fizeram daquele historiador e seus livros, fontes seguras para uma aprendizagem do passado. Estes “Ensaios Contemporâneos” dividem-se nos seguintes tópicos: “Comunistas”, em que se descreve a origem e a conformação de alguns partidos comunistas europeus no âmbito da terceira internacional; “Anarquistas” onde há algumas considerações gerais sobre tal movimento e sua intervenção prática na Guerra Civil Espanhola; “Marxismo”, com algumas resenhas envolvendo pensadores em voga nos anos 1960 como Althusser e Karl Korsch; “Soldados e Guerrilhas” em que se discute as razões do fracasso norte americano no Vietnã, como se conforma o golpe de estado, dentre outras ideias; e finalmente “Rebeldes e Revoluções” com temas variadores desde Maio de 1968 até a geografia urbana das revoluções

Os Partidos Comunistas e a III Internacional

Sabe-se que desde Marx supunha-se necessária a criação de uma organização internacional dos trabalhadores. Uma questão complexa para o movimento operário seria a forma como esta organização internacional lidaria frente as organizações proletárias de cada país. No contexto da II Internacional, o que dilacerou qualquer possibilidade de solução de continuidade a esta coordenação entre os partidos operários nacionais e a luta internacional foi a primeira guerra mundial – com a exceção de pouquíssimos grupos, destacando-se a vigorosa denúncia de Lênin na Rússia – os partidos social democratas capitularam ao social chauvinismo e apoiaram suas respectivas nações na Guerra. Ou seja, enquanto a tática justa era de denunciar a Guerra (1914) como uma Guerra imperialista, voltada à repartição do domínio neocolonial e uma nova configuração de fronteiras na Europa, sendo certo que o papel reservado à classe trabalhadora era o de servir como bucha de canhão para suas burguesias, a social-democracia por sua vacilação política junto à classe dominante levou junto à si os trabalhadores e a II Internacional à ruína.

Seria no contexto da terceira internacional comunista, sob o impacto da revolução vitoriosa de outubro, que seriam erigidos os partidos comunistas. Já é notória uma certa crítica segundo a qual o internacionalismo da III Internacional consistia na suposição de que uma dada situação internacional implicava reações idênticas em partidos situados em contextos muitos distintos.

Houve problemas nesse sentido aqui no Brasil, no que se refere às primeiras tentativas de análise de conjuntura. Já é conhecida a interpretação feita pelas primeiras gerações de comunistas ligados ao PCB de que as relações de produção no campo do Brasil eram do tipo feudal ou semi-feudal, o que certamente decorria de uma análise mecanicista e influenciada pelos modelos interpretativos externos. Sabe-se que o feudalismo é um modo de produção baseado numa relação pessoal de vassalagem em que não há qualquer margem de remuneração pecuniária e em que há um forte lastro entre ou vínculo entre os servos e sua gleba. Dentro deste esquema interpretativo, uma tática adotada para agitar e organizar os camponeses imigrantes da fazenda de café seria supostamente a luta pela terra. Ocorre que a análise das relações de produção estavam equivocadas: como Caio Prado Jr. demonstraria depois, o sentido de nossa colonização é todo ele formatado como um empreendimento comercial destinado ao mercado externo. E mais: no que se refere às fazendas de café, já temos a superação do trabalho escravo, tratando-se de um empreendimento comercial com lastro capitalista.

A tática adequado junto ao setor camponês ao que parece não era terra, mas melhores condições de trabalho e remuneração. Fizemos todo este resgate apenas como forma de apontar os riscos que envolvem a construção de um partido cujas diretrizes, para usar uma expressão de Lênin, não partem da “análise da situação concreta”, no caso, da realidade brasileira.

Todavia, existe um outro lado da moeda. A existência de um partido internacional coordenado e articulado, lembra Hobsbawm, cumpriu um decisivo na luta contra o fascismo desde as frentes populares, contribuindo para a sua articulação, especialmente em locais onde não havia conjuntura revolucionária.

Ademais, diferente do que possa parecer, em cada país, diante de suas particularidades, resultou-se em desdobramentos diferentes de partidos comunistas.
A história do movimento político marxista Inglês pode remeter ao séc. XIX. Sabe-se que Marx chegou a depositar alguma esperança nos anos de 1840 que o movimento operário inglês poderia dar um salto qualitativo, de seu trade-unismo (reformismo) para um patamar revolucionário.

Esta esperança decorria do fato da Inglaterra ser o país capitalista mais avançado e o único com um movimento de trabalhadores da massas. Todavia, a série de revoltas e insurreições que varreu a Europa em 1848 passou imune na Inglaterra. Posteriormente, perderiam Marx e Engels tal otimismo, mesmo com a greve geral inglesa em 1880. O marxismo apenas começaria a se difundir na Inglaterra também nos anos de 1880. O movimento operário inglês fora hegemonizado até então pelos Cartistas, um movimento iniciado na década de 1830, com reivindicações bastante tímidas, a “Carta do Povo”, que pleiteava Sufrágio Universal Masculino, Eleição Anual, Participação de Operários no Parlamento e Voto Secreto. Havia ainda uma fração política ainda mais à direita, os Fabianos, que se opunham à luta de classes e defendiam o “gradualismo” por meio de reformas.

Posteriormente, o Labor Party hegemonizaria a maior massa de todo este setor reformista – a formação do Partido Comunista Inglês (1920) foi antes uma somatória de pequenos grupos que havia saído do Labor Party, fazendo com que Zinoviev afirmasse que a “Inglaterra é o local onde se faz progressos mais lentos”.

Temos por outro lado um exemplo bastante vitorioso da conformação do partido comunista, o Partido Comunista Italiano. Antes da Guerra, havia dirigentes do porte de Gramsci na prisão e algo em torno de 2000 militantes e com a queda do fascismo, sua base subiu para a casa de centena de milhares, tornando-se um partido de massas. A razão do êxito do Partido Comunista Italiano é que ele galvanizou o movimento de resistência antifascista na Itália, serviu como base de apoio para esta luta. Infelizmente, na década de 1970 este partido capitularia ao ponto de ser um dos expoentes do eurocomunismo (uma forma de reformismo), o que é tópico de uma outra história.

Os ensaios seguem abordando as experiências de partidos, movimentos, guerrilhas, golpes de estado, etc. O fato do historiador Eric J. Hobsbawm ser de certa forma contemporâneo dos eventos poderia criar algumas objeções de imparcialidade, mas este debate de neutralidade dentro da história já parece estar superado: o que importa é rigor argumentativos, análises convincentes que se dão por meio de fontes, dados, raciocínios bem desenvolvidos e claros. E tudo isso, está presente em seus trabalhos. Para os marxistas, certamente será sempre fundamental conhecer a obra de Hobsbawm, já que suas cogitações envolvem igualmente temas que nos são caros.
   

terça-feira, 15 de março de 2016

“Marx – Ciência e Revolução” – Márcio Bilharino Naves

“Marx – Ciência e Revolução” – Márcio Bilharino Naves 



Resenha Livro – 214 - “Marx – Ciência e Revolução” – Márcio Bilharino Naves – Ed. Quartier Latin 
Márcio Naves é formado em Direito pela USP, doutor  em Filosofia pela Unicamp e professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas daquela Universidade. Coordena o CeMarx, centro de estudos sobre marxismo e tem importante atuação na difusão do pensamento e obras do filósofo francês Louis Althusser aqui no Brasil.

Temos em mão um sintético livro acerca das principais ideias de Marx na forma de um itinerário: de forma concisa e objetiva o autor logrou expor, sem ser superficial, as principais ideias forças de Marx conforme sua particular evolução intelectual.

Antes de passarmos à obra propriamente dita, um rápido comentário sobre o subtítulo.

Marx, Ciência e Revolução. O destaque aqui dá-se em torno da “ciência” e reforçamos aqui o fato de que Marx ele próprio ter desenvolvido por um lado um método científico, ou seja todo um pressuposto teórico-metodológico cuja vocação é a busca pela verdade – algo que soa ambicioso aos ouvidos de alguns pós-modernos para quem a verdade seria inteligível ou uma mera construção aleatória. E mais. Marx parte da análise objetiva e da crítica para a partir dela atuar na realidade – aqui inaugurando uma nova perspectiva filosófica, qual seja, “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo”.

O que queremos pontuar aqui é que a análise científica da realidade em Marx e para os marxistas deve ser coerente com sua intervenção política – esta imbricação entre teoria e prática foi comumente chamada de práxis. Ocorre que não foram muitos aqueles que se proclamaram marxistas e que realmente estiveram dispostos a levarem esta verdade até as últimas consequências. Quando Marx analisa a Comuna de Paris de 1871, fez algumas retificações sobre o que foi dito no Manifesto Comunista colocando que, se houve algum erro dentre os communards, foi talvez falta de radicalidade: neste evento também estabelece que no período de transição, o estado burguês deve ser imediatamente destruído. Esta verdade, se coerente com os pressupostos de suas análises, certamente poderia soar extravagante para o público da época, mas, aqui, o critério para a verdade está nas suas análises e na prática observada desde Paris.

Já em muitas organizações de esquerda, aquilo que é dito junto aos trabalhadores não é resultado de um minucioso exame da correlação de forças entre as classes, o exame das forças produtivas e seu estágio de desenvolvimento, as vinculações entre o imperialismo e cada fração das burguesias, a luta cotidiana de classes: o que é dito é aquilo que se traduz em melhor coeficiente eleitoral, caindo por terra qualquer possibilidade de qualificar tais organizações “de esquerda” como marxistas. Ser marxista é de certa forma colocar-se sempre como um “filósofo” que está a todo momento em busca da verdade, se servindo das melhores ferramentas teórico-metodológicas que nos foram legadas desde tal tradição filosófica: a dialética, o materialismo histórico, o exame da luta de classes e a crítica.

Karl Marx nasceu em 5 de Maio de 1818 na cidade alemã de Trier na região da Renânia. Foi filho de um advogado liberal e de mãe cujo nome era Henriette Pressburg. A família Marx era de descendência judia mas para evitar restrições sociais, converteram-se ao protestantismo. A região da Renânia à época dos primeiros anos de vida de Marx fora anexada pela França, não dentro da órbita da Prússia dos junkers, com maior liberalização de costumes. Com a derrota das forças de Napoleão, a Renânia voltou a fazer parte da Prússia com a restauração do reacionarismo e a consolidação da aristocracia feudal: e a família Marx passou por novas dificuldades.

Marx terminou em 1935 seus estudos secundários em Trévis.  No mesmo ano dirigiu-se a então minúscula e boêmia cidade de Bonn onde foi estudar Direito e onde comenta-se envolveu-se menos às aulas e mais às farras noturnas. O pai de Marx, preocupado, manda-o estudar em Berlim, então uma cidade muito maior, onde lecionava o eminente Hegel.

No tempo de estudante em Berlim Marx relaciona-se junto aos jovens hegelianos – tal vertente “relacionava a filosofia de Hegal com a organização ‘racional’ do estado prussiano, isto é, segundo os critérios do burocratismo burguês”. Já a direita Hegeliana atuava no sentido conservador, para justificar o Estado prussiano e a política de conciliação com o feudalismo.

O primeiro embate político de Marx portanto seria contra o absolutismo prussiano. Seus textos remetiam mesmo ao jusnaturalismo e a defesa do Estado de Direito, como veremos adiante. Após a conclusão de seu curso universitário e vendo-se impedido na Prússia dos junkers de obter uma cadeira como professor universitário, Karl Marx partiu para a carreira de jornalista. Junto aos hegelianos de esquerda, fundou-se o Gazeta Renana, periódico de que Marx viria a ser Redator Chefe. Nas intervenções do jovem Marx deste período, ainda há em larga escala sua influência hegeliana. Defendia-se o Estado de Direito contra o Estado Absolutista, propugnado através de um programa democrático-radical e reformas do Estado Prussiano. Para Marx, seguindo o jusnaturalismo, o Estado deve ser a encarnação do interesse geral, sendo que todo interesse particular implica em algo “estranho à natureza do estado”.

O jusnaturalismo significa a ideia de que existem certos valores antecedentes ao estado, inerentes ao homem, e que,  no limite, deveriam ser resguardados e jamais suprimidos pelo estado. Razão e liberdade, por exemplo seriam valores a serem resguardados pelo estado. O periódico Gazeta Renana seria proibido em 1843.

É bastante pouco comentado as intervenções deste jovem Marx jusnaturalista em embate com o absolutismo. Em parte deve-se ao fato de que sua noção de estado daria um salto qualitativo radical em obras posteriores. Mas o que deve ser válido assinalar é seu engajamento numa militância dura, o que o faria, após o fechamento da Gazeta Renana, mudar-se à Paris, onde viria a conhecer de perto o movimento operário francês e publicar importantes obras como “Sobre a Questão Judaica”, “Crítica da Filosofia de Direito de Hegel – Introdução” e “Manuscritos Econômicos-filosóficos”.

O próximo momento importante dentro do itinerário é a descoberta da classe operária e do trabalho de uma forma geral como componentes essenciais para se compreender o problema da alienação. A crítica aqui encontra-se frente a Feuerbach. Este último desenvolve uma crítica da alienação religiosa em a “Essência do Cristianismo” – Marx traduz a alienação religiosa de Feuerbach para o âmbito do trabalho

“Assim o operário, no dizer de Marx nos Manuscritos econômicos-filosóficos, “torna-se tanto mais pobre quanto maior é a riqueza que ele produz”, do mesmo modo que quanto mais o homem “põe em Deus, menos ele retém em si mesmo”. 

Na questão judaica, a questão da emancipação também é estabelecida num grau superior. Não se trata para Marx de uma mera emancipação de um povo religioso, mas de uma emancipação do homem que envolve a luta pela superação de um trabalho alienado, estranhado.

O itinerário de Marx segue seu roteiro pelas obras de juventude até a Ideologia Alemã, um momento decisivo e de transição, onde conceitos fundamentais e conhecidos como estrutura e superestrutura surgem. Mas são especialmente nas obras de maturidade e no Capital que podemos encontrar uma perspectiva científica da Marx identificando a subsunção formal do capital em relação ao trabalho, uma noção mais bem talhada de modo de produção, a noção de que a superestrutura também influencia a estrutura diante de exemplos práticos do catolicismo das relações de produção feudal (refundação do materialismo histórico). Numa síntese, o que o autor sugere é que não é possível conhecer a obra de Marx a partir de uma outra obra deslocada – exige-se situá-la dentro de sua específica evolução intelectual, destacando-se que será no final de sua vida, em “O Capital” que as noções científicas de Marx estarão mais bem depuradas.

E para que continuar estudando Marx? O autor revolucionou uma série de áreas do conhecimento. Rompeu com concepções ideológicas da histórica. Estabelece interpretações sobre o domínio e exploração do trabalho, o que é urgente no contexto da reestruturação produtiva. Desenvolve uma teoria crítica em plena vigência sobre o modo de produção capitalista. E lança bases para uma teoria de transição, incluindo aspectos da organização para luta dos trabalhadores.

quinta-feira, 10 de março de 2016

“A Revolução de 1930 – Historiografia e História”- Boris Fausto

“A Revolução de 1930 – Historiografia e História”- Boris Fausto



Resenha Livro - 213 - “A Revolução de 1930 – Historiografia e História”- Boris Fausto – Ed. Companhia das Letras 
O filósofo húngaro György Lukács observou que a única ortodoxia no marxismo está em seu método. O que ele quis dizer é que aos marxistas, ao se servirem da teoria de Marx para a análise social, suas únicas premissas inderrogáveis são os pressupostos teórico metodológicos. Ou para sermos mais precisos, nossa única intransigência teórica são materialismo histórico e o materialismo dialético.

No que se refere à história, um erro fundamental e de uma má aplicação do marxismo seria o de buscar adequar uma determinada realidade aos esquemas tais quais foram examinados pelos clássicos, Marx, Engels e Lênin. O erro consiste em algo como “torturar” as fontes históricas até elas dizerem o que queremos ouvir: por exemplo a sequência dos modos de produção observados no processo de desenvolvimento histórico europeu: escravismo - feudalismo – capitalismo – socialismo. Este foi o caso de nossos primeiros (e pioneiros) historiadores marxistas, mas certamente aqui não devemos fazer um mau juízo de valor: não é o tema desta resenha, mas a recepção das ideias socialistas no Brasil foi um processo tortuoso/difícil e é natural que marxistas como Astrogildo Pereira ou mesmo Nelson Werneck Sodré violassem a regra de ouro de Lukács, implicando em interpretações mecanicistas de nossa história.

“A Revolução de 1930” de Boris Fausto é antes de tudo uma obra de discussão historiográfica que irá dialogar com uma série de interpretações que em parte estão influenciadas por um pensamento de esquerda mecanicista. Uma corrente de pensamento tradicional é a de entender o fenômeno político que remonta ao fim da República Velha e a Ascensão da Aliança Liberal encabeçada por Getúlio Vargas como uma nova composição de classes no poder: a destituição do poder das oligarquias cafeeiras ligadas ao imperialismo inglês e uma frente política que envolve uma fração militar que representaria as classes médias (tenentes) e um novo bloco burguês industrial. Aliás, este esquema interpretativo remete mesmo às diretrizes políticas da III Internacional daquele período segundo a qual os partidos comunistas deviam fazer bloco junto aos setores progressistas da burguesia para derrotar os elementos mais atrasados (“feudais”) dentro de uma estratégia que poderíamos classificar como etapista. O que é interessante é que Boris Fausto, que está fora da perspectiva marxista, passa a analisar minuciosamente os dados referentes à composição geográfica do país, elementos de sua realidade econômica, participação dos grupos sociais na renda nacional e ao descer dos esquemas teóricos aos dados concretos, observa que “a teoria não bate com a realidade”.

A discussão sobre a presença de um feudalismo ou semifeudalismo no Brasil já foi superada e um marxista que estabeleceu esta crítica de forma pioneira: Caio Prado Júnior. O feudalismo envolve camponeses se subordinando por laços pessoais ao seu senhor e uma relação de vassalagem – o trabalhador tem interesse, num plano de lutas, por terras. No Brasil desde meados do séc. XIX pode-se falar mesmo num  empreendimento comercial do café em que os barões detém a terra, os instrumentos de trabalho e compram ou alugam a força de trabalho – o trabalhador tem interesse, num plano de lutas, por melhores condições de trabalho e remuneração.

Não se pode falar de outro modo que a Revolução de 1930 foi conduzida por uma burguesia industrial coesa e organizada. O que havia no brasil era uma relação de interdependência entre a indústria e o ramo do café, e este último ainda respondia por 70% da economia nacional – e as políticas em defesa do café continuaram após a revolução de outubro, havendo apenas um deslocamento relativo das elites políticas de São Paulo. A Aliança Liberal correspondia a uma coligação de oligarquias dissidentes atrás de mais concessões, com maior destaque para o Rio Grande do Sul e Minas Gerais, que se viu prejudicada com a quebra da lógica da política do café com leite diante da escolha do sucessor paulista Júlio Prestes por Washington Luiz.

Um elemento mais radical a ser considerado são os tenentes, um movimento dos escalões mais baixos das forças armadas – são partidários do nacionalismo, do liberalismo e da centralização política. Alguns advogam a tese da salvação militar (fenômeno aliás recorrente na américa latina) no sentido de arrancar o país do domínio das oligarquias. Todavia, gradualmente, os tenentes vão sendo alijados do poder político. Conforme Boris Fausto relata:

“Embora Vargas tenha se apoiado nos “tenentes” durante os primeiros anos da década de 1930, e algumas aberturas nacionalistas difusas se devam à influência destes, a consolidação do novo governo dependia da homogeneização do aparelho militar. Isso implicava a liquidação do tenentismo como força autônoma que, a cada passo, ameaçava corroer a disciplina, sem prescindir dos “tenentes” individualmente, e o combate às organizações radicais, cuja influência ideológica, por meio da figura de Prestes, crescia nas Forças Armadas. Esses objetivos foram perseguidos por alguns quadros militares, cujo representante exemplar foi Góis Monteiro, e implicaram a condenação do Clube 3 de Outubro morte lenta”.

Diante deste quadro, a Revolução de 1930 aparece não mais como um alijamento de uma fração de classe por outra, mas pelo estabelecimento daquilo que Boris Fausto chama de “Estado de Compromisso”.

“O Estado de compromisso, expressão do reajuste nas relações internas das classes dominantes, corresponde, por outro lado, a uma nova forma de Estado, que se caracteriza pela maior centralização, o intervencionismo e não restrito apenas à área do café, o estabelecimento de certa racionalização no uso de algumas fontes fundamentais de riqueza pelo capitalismo internacional (Código de Minas, Código de Águas). 


A maior centralização é facilitada pelas alterações institucionais que põem fim ao sistema oligárquico. Intocadas em suas fontes de poder, estas subsistem como força local, embora possa haver a troca de grupos ligados ao “antigo regime”, por outros situados na oposição. Entretanto, as oligarquias se subordinam agora ao poder central, com a perda do controle direto dos governos dos estados, onde são instalados interventores federais.”


Como dizíamos, Boris Fausto tem como ponto de partida a crítica de uma certa historiografia que parte de algumas premissas que se chocam com as análises de fato. Todavia sua interpretação também deve ser submetida a algumas ponderações. O autor parece partilhar de uma orientação weberiana e em sua análise acaba dando peso exagerado nas instituições, particularmente no Estado e nos dirigentes políticos, como fonte dos desmembramentos políticos. As classes operárias ainda que estejam em maturação no período ainda poderiam ter sido melhor analisadas: não fossem relevantes, não teriam sido objeto da legislação trabalhista e sindical criadas naqueles anos. E não só os operários, as greves, o Bloco Operário e Camponês e o PCB mas a massa de trabalhadores livres e pobres que compunham os quase 30 milhões de almas daquele tempo deveria ser melhor observados já que estamos falando de períodos contemporâneos à Revolução Russa e Revolução Mexicana, além de crise mundial do capitalismo – como falava Lênin, uma era de crise, guerras e revoluções, e que ia muito além dos bastidores do poder.