segunda-feira, 19 de outubro de 2015

“ Marx – Vida e obra” – Leandro Konder

“ Marx – Vida e obra” – Leandro Konder 



Resenha Livro – 195 -  “Marx – Vida e obra” – Leandro Konder – Ed. Expressão Popular 
Leandro Konder foi um importante intelectual marxista brasileiro falecido recentemente, em novembro de 2014. Seus estudos sobre alienação (“Marxismo e Alienação”) e sobre a recepção das ideias marxistas no Brasil ao longo do séc. XX (“Derrota da Dialética”) devem ser consultados por todos ativistas revolucionários do país. Seus textos são acessíveis e didáticos: a facilidade com que traduzia conceitos filosóficos, como materialismo, alienação ou dialética numa linguagem acessível não só a intelectuais, mas à juventude e aos trabalhadores revela um conhecimento teórico profundo. 
Nesse sentido, Leandro Konder remetia ao que Gramsci denominava “intelectual orgânico”: seu pensamento e sua produção teórica poderiam ser facilmente assimiladas por operários num curso de formação. Certamente foge do perfil academicista que também está presente na tradição marxista nacional. 
Objetivo, sintético e escrito com elegância, este livro foi originalmente publicado em 1968, adquirindo novo lançamento apenas com um prefácio atualizado. Seu propósito é descrever os principais fatos referentes à agitada vida de Marx, seja como intelectual, seja como organizador e ativista do movimento operário europeu, desde o jornalismo passando à Associação Internacional dos Trabalhadores (fundada em 28 de setembro de 1864); também Leandro Konder concomitantemente à descrição da vida de Marx vai expondo suas ideias chave, dando ao leitor as origens dos fundamentos do pensamento marxista,  como materialismo (em termos marxistas), a alienação ou o fetichismo da mercadoria. Trata-se portanto de uma pequena biografia e de uma sintética história da evolução das ideias de Karl Marx. 

Karl Marx nasceu em 5 de maio de 1818 na cidade de Treves ao sul da Prússia. O pai de Marx era filho de rabino Judeu. Hirschel Marx era advogado e era um judeu não praticante, com pensamento liberal. Sua mãe era de origem holandesa, e também de origem judia. O contexto histórico da Europa de então era de fortalecimento do conservadorismo diante da queda de Napoleão e da conformação da Santa Aliança que buscava restituir o absolutismo no continente Europeu. Com a subida ao poder por Guilherme III, o pai de Marx viu-se obrigado a converter-se ao protestantismo. Pode-se dizer em suma que Marx na infância viveu numa cidade de 12 mil habitantes sob a ameaça de um governo absolutista autoritário e com ranços antissemitas pertencendo a uma família da pequeno burguesia. 

Consta que na escola em seus exames finais, Marx teve de dissertar sobre o tema “Reflexões de um jovem a propósito da escolha de uma profissão”. Suas cogitações de certa forma já sinalizavam sua atuação futura, sempre associando a teoria com a prática, com uma ambição de transformar a realidade. Diz Konder:

“Em sua dissertação, Karl desenvolveu – aos dezessete anos – duas ideias que deveriam acompanha-lo pelo resto da vida. A primeira era a ideia de que o homem feliz é aquele que faz os outros felizes; a melhor profissão, portanto, deve ser a que proporciona ao homem a oportunidade de trabalhar pela felicidade do maior número de pessoas, isto é, pela humanidade. A segunda era a ideia de que existem sempre obstáculos e dificuldades que fazem com que a vida das pessoas se desenvolva em parte sem que elas tenham condições para determina-las”. 

De fato, temos aqui de forma ainda muito embrionária teses como a ideia de que “os homens fazem a história, mas não a fazem de acordo com a sua vontade exclusiva, mas consoante as condições históricas herdadas”, reflexão com que Karl Marx iria analisar em 1871, muitos anos depois, os eventos históricos da Comuna de Paris. 

Após os estudos secundários, Marx matricula-se na Universidade de Bonn, onde estuda direito, história, filosofia e arte. Também é uma fase em que se envolve com a boemia, escreve poemas, sem envolve em um duelo (do qual sai com uma cicatriz no rosto); certa vez exagerou no álcool e na farra noturna e foi detido. Destaca-se que Bonn era então uma pequena cidade, provinciana, e então o Pai de Marx, preocupado com o futuro do filho, manda-o estudar em Berlim. 

Desde Berlim, uma cidade completamente nova, com 300 mil habitantes, Marx entraria em contado com as ideias de Hegel que ali lecionara e morrera em 1831. O objetivo de Marx então, ao se aproximar dos grupos hegelianos e se aproximar das tendências de esquerda deste filósofo, é completar seu curso e preparar seu doutorado vindo a ser professor catedrático. Conseguiu concluir uma tese de doutorado original cujo tema era “A diferença entre a filosofia da Natureza de Demócrito e a de Epicuro”. Todavia, na Prússia de Guilherme IV não havia cátedras para um pensador progressista como Marx, impossibilitando-o de alcançar a vaga de professor e já criando um embaraço econômico. 

Foi a partir do jornalismo que Marx conseguiu conquistar as primeiras fontes de renda a partir de 1840 – há de se constatar que neste período, o Mouro já estava noivo de Jenny von Westphalen, companheira por toda sua vida. 

Marx contribuiu em inúmeras publicações e dirigiu a Gazeta Renana e posteriormente a Nova Gazeta Renana. Frequentemente arranjava problemas políticos em função de sua análise crítica da conjuntura, o que valeu a ele a primeira mudança para Paris em 1943, com o fechamento da Gazeta Renana. A estadia na França renderia importantes frutos, conforme relata Konder. Desde Paris, Marx pôde observar um movimento socialista de operários bem como entrar em contato com tal organização – fato que certamente o impressionou. E mais:

“Enquanto preparava a edição do primeiro número de Anais-Franco Alemães, Marx escreveu uma  “Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”, na qual mostrava que as considerações teóricas de Hegel sobre o direito eram inócuas, porque não indicavam os meios práticos, materiais e sociais, capazes de levar à efetiva superação dos problemas humanos que elas abordavam. 
“O poder material – dizia Marx – só pode ser vencido pelo poder Matrial”. E aos que pudessem perguntar se as ideias por acaso não teriam valor algum, ele respondia antecipadamente – “A teoria também se transforma em força material quando se apodera das massas”

Outro momento a se destacar da biografia seria o encontro com Engels. Os dois haviam se conhecido em 1842 quando Engels (natural de uma região da Prússia próxima a Treves) fez uma visita à redação de Gazeta Renana. Porém a aliança duradoura seria após a publicação por Engels do importante livro “A Situação da classe trabalhadora na Inglaterra”, dois anos depois, em que faz uma minuciosa exposição das condições de vida e das formas de luta do proletariado inglês dos primeiros momentos da revolução industrial. O texto de Engels interessou bastante Marx, aproximando-os e ligando-os como parceiros por toda a vida. 

A vida pessoal e familiar de Marx foram também marcadas por grandes dificuldades financeiras. Frequentemente obrigados a mudar de país em função da atividade político-intelectual, Marx e sua família estiveram na França, Bélgica e finalmente na Inglaterra onde passaram os piores apertos financeiros. Karl sofria de fortes de cabeça e tinha furúnculos que atormentavam, e ainda assim consta que até a velhice dedicou-se com o afinco ao estudo dos mais variados temas, da filosofia à arte, à aritmética, astronomia, história antiga do Egito, chegando mesmo a tentar aprender o Russo, desde que aquela nação chamou-lhe atenção no final de sua vida – Marx previa um desmoronamento do reino dos Czares e estudou com afinco dados sobre aquele país.     

O velho mouro faleceu em 14 de março de 1883 diante de um abcesso no pulmão, dois anos após a morte da mulher, Jenny. Sobre projeção posterior, remetemos à conclusão de Konder:

“Marx elaborou as bases de uma vasta concepção do homem e do mundo. Por força das condições em que viveu e em virtude da urgência das tarefas que se impôs, não pôde desenvolver suas ideias no que concerne aos diversos planos da atividade humana: concentrou-se no exame dos problemas econômicos, sociais e políticos. Sua contribuição à história da cultura, entretanto, ultrapassa os limites da economia, da sociologia e da política. Como diversos marxistas contemporâneos têm demonstrado – sobretudo G. Lukács, Antonio Gramsci e os pensadores da Escola de Frankfurt – a obra de Marx revela uma espantosa vitalidade quando a confrontamos com as mais variadas questões da época presente”.

A importância de se conhecer a vida e a obra de Marx diz respeito a saber situar as obras originais que deverão ser consultadas para a formação marxista. Um ponto de partida para um estudo específico das obras de Marx pode ser este belo ensaio de Leandro Konder. 

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Resenha Livro – “Os Grandes Líderes – Kadafi” – Benjamin Kyle – Ed. Nova Cultural

“Os Grandes Líderes – Kadafi” – Benjamin Kyle



Resenha Livro – 194 - “Os Grandes Líderes – Kadafi” – Benjamin Kyle – Ed. Nova Cultural 

Aqueles que reivindicam a visão social de mundo marxista-leninista nunca devem perder de vista a última das teses de Feuerbach elencada por Marx segundo a qual: até então, os filósofos de contentaram em interpretar o mundo, sendo necessário agora transformá-lo. A questão chave aqui está em aliar teoria e prática e, nesse sentido, as discussões teóricas devem ser feitas de forma muito minuciosa: um pequeno desvio teórico pode ter graves consequências na prática, na política adotada pelos revolucionários. 

Estes desvios parecem ter ocorrido no caso da chamada Primavera Árabe, uma série de agitações políticas que modificou o cenário político de diversos países do norte da África e Oriente Médio a partir de 2010. Ao que tudo indica, olhando o fenômeno em perspectiva, 5 anos depois, faltou a muitos de nós senso crítico, decorrente de maior esclarecimento sobre a história política e aspectos da conjuntura daquela região geográfica, fazendo com que mobilizações que rapidamente foram desviadas pelo imperialismo, fossem chamadas de “revoluções populares”. 

Um caso emblemático é o Egito, quando de fato massas populares ocuparam a praça Tahir e Mubarak foi obrigado a sair do poder, após os militares descobrirem que o ditador esteve em contato com o exército israelense buscando articular um ataque do estado de Israel sobre o Egito para dividir o movimento e fazer com que ele retomasse o poder, configurando alta traição à nação. Certamente tal revolução não foi um movimento dirigido pelos trabalhadores através de órgãos de duplo poder ao estilo de soviets, como forma de fazer avançar a consciência daquele povo. A maior força política, a irmandade muçulmana, assume o poder e hoje coloca na cadeia muitos daqueles que estavam na Praça Tahir. 

Poderíamos continuar cogitando o que representou a “revolução” na Síria senão num claro massacre do imperialismo, se servindo aos olhos do mundo de forças extremistas terroristas contra um governo nacionalista burguês, fazendo-nos perguntar qual é o sentido de uma política contra Assad, incluindo solicitação de armas junto ao imperialismo, como a  política levada a cabo pelo PSTU.

A história da Líbia também deve ser objeto de maiores esclarecimentos pela esquerda. Kadafi é derrubado por intervenção militar de forças das nações unidas e tal “revolução” leva ao poder grupos armados islâmicos. Prevalece o discurso do imperialismo que vem pelo menos desde 40 anos atrás de Kadafi como um ditador sanguinário. Mas talvez poucos saibam que Kadafi nacionalizou logo no início do seu governo 51% de todo o petróleo estrangeiro e melhorou sensivelmente o nível de vida na Líbia, construiu estradas pelo vasto deserto do país, hospitais, escolas e programas de irrigação para ampliar terras aráveis. Em 1977 a renda per capta seria na Líbia de 6, 451 dólares a mais alta do continente Africano, produto de um projeto de distribuição de riqueza do petróleo. Certamente, foi um líder extravagante, além de autoritário. Mas comecemos desde sua infância.

A Líbia surgiu como estado nacional após a II Guerra Mundial, com a derrota da Itália que até então controlava aquela região. Antes, era uma expressão geográfica que envolvia cidades mais desenvolvidas como Trípoli e Bengázi e o vasto deserto do Saara, que compunha a maior parte do “país”. Kadafi nasceu em 1942 numa família de beduínos, tribo de nômades do deserto. De formação muçulmana, nunca abandonaria a religião, aplicando-a como princípio de política de estado, o que faria dele um inimigo voraz do estado de israel. 

Ainda na Juventude demonstra interesse pela política e pelo rádio escuta os discursos do político nacionalista egípcio Gamel Abdel Nasser. Dos seu tempo como estudante até a tomada de poder através de um golpe de estado com apenas 27 anos, Kadafi sempre teve como referência política o dirigente nacionalista egípcio. Basicamente, sua orientação envolvia unir todos os estados árabes da região, inclusive num futuro estado único, e lutar contra a instalação de um estado judeu na palestina. 

Foi no dia 01.09.1969 que uma conspiração dirigida e centralizada por Kadafi depõe o Rei Idris, funda a República Árabe da Síria, que seria na prática governada por um Conselho de Comando Revolucionário. Na pratica, gradualmente o poder se centralizaria nas mãos de Kadafi como uma ditadura. E aqui não se deve omitir o fato de que o regime de Kadafi perseguiu intelectuais e estudantes, matou oposicionistas, inclusive no exterior, queimava livros considerados subversivos. 

Outro aspecto que tornou a história/trajetória de Kadafi controvertida foi seu apoio incondicional a ações “terroristas” relacionadas à morte de cidadãos norte-americanos ou israelenses. Apenas para citar um caso, remetemos às olimpíadas de Munique de 1972 em que  onze atletas foram assassinados e dentre os autores sobreviventes, foram recepcionados como heróis na Líbia de Kadafi. 

Temos então um governante que condena o comunismo e o capitalismo, que procura sinceramente colocar-se ao lado do povo, sem porém, admitir divergências, que promove reformas sociais que transformam a Líbia e conquistam a simpatia, principalmente da população do deserto. Já a população da cidade questiona Kadafi pela fuga de estrangeiros do país e pela proibição de jogos e bebidas, além do uso de jeans e saias curtas, conforme padrões religiosos. 

Ao que tudo indica, Kadafi não foi um líder corrupto, como os políticos sob os quais se apoiam sempre o imperialismo. Era um asceta, tanto que diligenciava numa tenda feita de pano e vestia-se como um beduíno, acreditando estar cumprindo uma missão designada por Allah. Seus objetivos remotam ao nacionalismo pan árabe de Nasser, com a diferença de que Kadafi o lavava de forma muito mais radical e nada diplomática – daí sua simpatia com os grupos armados islâmicos. Uma liderança cheia de contradições, mas que, pelo que avaliamos, parece ser um aliado tático muito mais favorável do que a ONU imperialista, interessada em nada mais nada menos do que lucro aos capitalistas. E daí fazemos o balanço: foi certo apoiar a queda de Kadafi? Na nossa opinião, não. 


terça-feira, 13 de outubro de 2015

“Os Irmãos Karamazov (Vol. 1)” – Fiódor Dostoiéviski

“Os Irmãos Karamazov (Vol. 1)” – Fiódor Dostoiéviski 






Resenha livro - 193 “Os Irmãos Karamazov (Vol. 1)” – Fiódor Dostoiéviski – Editora 34 – Tradução Paulo Bezerra 
Tivemos acesso a uma bela edição publicada pela 34 da última obra publicada por Dostoiéviski, “Os Irmãos Karamazov” (1881). Chamamos aqui a atenção dos leitores para os riscos que envolvem a leitura de autores russo, e particularmente deste escritor, a partir de editoras de livro bolso que partem da tradução em segunda mão de uma tradução em francês. Traduzir Dostoiéviski parece ser um enorme desafio dado seu estilo que envolve segui o fluxo de pensamento dos personagens implicando em parágrafos de folhas inteiras. 

Podemos aqui começar a falar algo sobre o estilo literário do escritor Russo, que para todos os fins, é de difícil classificação dentre alguns modelos conhecidos correspondentes a meados e fins do séc. XIX como romantismo, realismo-naturalismo ou simbolismo. O estilo de Dostoiéviski é inconfundível e próprio e a fala de seus personagens envolve um fluxo de pensamentos bem como uma densidade de emoções ao ponto de transmitir a turbulência da alma humana e revelar até a mais completa nudez a percepção de mundo das personagens – a sensação ao ler os diálogos é a de que existe um tensão permanente, e de que os personagens estão pronto para se revelar, ora desde seu lado diabólico, ora desde sua perspectiva divina. Onde há constrangimento ou onde há ódio, todas as sensações, surgem-nos sempre de forma intensa, o que deve render interesse aos leitores que se identifica psicologia/psicanálise. É provável que esta capacidade de sondar o poço de contradições que é alma humana foi o que fez S. Freud afirmar ser este o mais importante livro de Dostoiéviski.
Ainda quanto ao estilo, há descrições das paisagens e elas remetem à Rússia rural XIX: monges, criados e os três personagens decisivos, Os trejeitos, a aparência física, os campos de trabalho rural, bosques e penumbras, os monastérios são descritos com à forma realista e dão ao leitor uma imagem bastante viva da história. Mas os diálogos e a trajetória das personagens percorrem o espaço sem um sentido que alcance a percepção ou algo previsível do leitor. 

São três os personagens centrais desta história que compõe a família Karamazov. O Pai de Dimitri, Ivan e Aliócha é Fiódor Karamazov, um homem devasso e sem escrúpulos, que quando teve de cuidar de um dos filhos pequenos, abandonou-o aos cuidados de um dos seus criados Griori para poder continuar sua vida de farras, com bebidas e mulheres. Possui bens e terras mas ao que tudo indica de forma desonesta. 

“Pode-se, é claro imaginar que educador e pai poderia dar semelhante homem. Justo como paiaconteceu-lhe o que teria de acontecer, isto é, ele abandonou de vez e inteiramente seu filho com Adelaia Ivánovna, não por raiva dele ou quaisquer sentimentos de marido ofendido, mas apenas porque os esqueceu por completo” (Pg. 20)

Outro personagem intrigante e que merece um destaque por remeter à Dostoiéviski é Aliocha. É o filho mais jovem dentre os três Karamazov, decide entregar sua vida à religião e vive num monastério onde tem como principal guia espiritual um não menos curioso stárietz Zossima. Por meio destes dois personagens, Dostoiéviski dá alguns indicações sobre sua ideia religiosa sobre a questão da igreja ortodoxa na Rússia, como lidar com aqueles que não têm fé e mesmo sobre o que viria a ser o inferno. Parte de citações bíblicas, mais do que em outros clássicos como Crime e Castigo e O Idiota, mas ainda tendo cogitações semelhantes: o sentimento de culpa (crime e castigo), viver sem pecar em sociedade (o idiota).

Nesta passagem, Stárietz Zossima, um sábio monge da igreja ortodoxa nos informa sobre o inferno:

“Do Inferno e do Fogo do Inferno, uma reflexão mística 
Padres e mestres, tenho pensado: “o que é o inferno?”. E julgo assim: “É o sofrimento de não mais se poder amar” Uma vez, no infinito do existir que nem o espaço nem o tempo podem mesurar, um ser espiritual ganhou, com sua aparição na Terra a capacidade de dizer consigo “Eu existo, eu amo”. Uma vez, só uma vez lhe foi dado um instante de amor ativo, vivo, e para tanto foi concedida a terra, e com ela o tempo e os limites, e então: esse ser feliz rejeitou o dom precioso, não o valorizou, não o amou, zombou dele, ficou insensível. Depois de deixar a terra, este ser vê o seio de Abraão, e conversa com Abraão, como consta na parábola do rico e de Lázaro, e contempla o paraíso, e pode subir até o Senhor, mas se tortura justamente porque subirá à presença do Senhor sem o haver amado, entrará em contato com aqueles que o amaram e de cujo amor ele desdenhara. Porque vê com clareza e já diz de si para si: “Agora já tenho o conhecimento e mesmo havendo ansiado por amar, já não haverá proeza no meu amor e também não haverá sacrifício porquanto terminou a vida terrena e Abraão não me trará sequer uma gota de água viva”.

Pelos diálogos de Aliocha e recomendações de Stárietz observamos que a vida monástica diz respeito à dedicação diuturna da caridade e do ofício da reza. O interessante é que os monges não rezam por suas almas mas sim pela vida de toda humanidade e mesmo projetam o paraíso no céu desde dia em que cada ser humano adquirir uma certa consciência de que a violação de uma norma por um terceiro é de co-responsabilidade (espiritual?) de todos.

O que é certo é que Os Irmãos Karamazov é um livro da mesma magnitude de outros clássicos do autor, como Crime e Castigo, O Idiota ou mesmo Memórias de SubSolo, um livro que tanto encantou Nietzche. Nele está ausente a ação e o suspense do Crime e o Castigo e o humor e ironia além da crítica social de O Idiota, mas é o que melhor o escritor trabalho a título de romance psicológico.  

A edição 34 dividiu o livro em 2 volumes. Esta Resenha tratou até o primeiro volume que acaba no Livro VI “Um Monge Russo” Pg. 425. Posteriormente faremos a resenha do volume 2 que termina num epilogo na Pg. 987. 

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

“A Comuna de Paris” – Vladimir I. Lênin

“A Comuna de Paris” – Vladimir I. Lênin





Resenha Livro – 192 -  “A Comuna de Paris” – Vladimir I. Lênin – Ed. Kiron – (org. Gilson Dantas)

A Comuna de Paris despertou e desperta a atenção de todos os militantes e estudiosos das lutas dos trabalhadores pelo seu pioneirismo. Trata-se do primeiro levante em que os trabalhadores, ainda que organizados de forma incipiente enquanto classe (em sua maioria artesãos e pequeno burgueses), tomaram de assalto os céus, expulsaram a burguesia francesa de Paris para Versalhes e tomaram medidas políticas que assombram pelo seu caráter revolucionário ainda nos dias de hoje como a dissolução da polícia e a constituição do povo em armas e mesmo medidas administrativas radicais como salários dos representantes da Comuna equivalente ao salário de um trabalhador comum, de 6000 Francos, além do estabelecimento de mandatos revogáveis a qualquer instante.

Diante de toda esta relevância para o movimento operário, muitos escreveram e analisaram o movimento, a começar por Marx e Engels que em 1871, quando Paris ergue-se contra o governo Francês e sua classe dominante instalados em Versalhes, redigem artigos desde a Associação Internacional dos Trabalhadores, depois reunidos em livro em “Guerra Civil na França”.

Inicialmente, Marx encarava com reservas a possibilidade de um movimento revolucionário vitorioso em França, onde as forças políticas predominantes desde a Comuna eram os Blanquistas e os Proudhounistas, estes últimos associados à I Internacional. Blanqui era uma liderança política bastante prestigiada, porém propugnava uma política de assalto e tomada do poder por um grupo de vanguarda, um conjunto de líderes determinados que substituiria, como direção, a vontade das massas. Proudhon, mais próximo das ideias de Marx, defendia o cooperativismo e mesmo métodos pacíficos de transformação social.

Esta edição “A Comuna de Paris” conta com textos de Lênin entre 1905 e 1919.

Em “A Comuna de Paris e as tarefas da ditadura democrática” (1905) há uma polêmica partidária. Trata-se de uma discussão sobre a participação dos revolucionários dentro do parlamento burguês. Como será recorrente, o futuro dirigente da revolução russa extrairá lições daquela experiência histórica em França:

“Antes de mais nada, ensina-nos que a participação de representantes do proletariado socialista com a pequena burguesia num governo revolucionário é perfeitamente admissível por princípio e absolutamente obrigatório em determinadas condições. Ensina-nos, além disso, que a verdadeira tarefa que a Comuna teve de cumprir foi, acima de tudo, o exercício da ditadura democrática e não socialista, ou seja, a aplicação de nosso “programa mínimo”. Por último, esta informação recorda-nos que, ao tirarmos ensinamentos da Comuna de Paris, não devemos repetir os seus erros (não tomaram o Banco de França, não empreenderam a ofensiva contra Versalhes, não elaboraram um programa claro) mas os seus passes práticos que tiveram êxito e que apontaram  caminho certo”.

Destacamos que alguns dos erros táticos do movimento seriam apontados já antes por Marx e Engels como fontes de ensinamento. Os communards poderiam ter tomado e nacionalizado o Banco de França criando uma forte pressão política para a negociação e contra o massacre perpetrado dois meses depois do início do movimento. A hesitação no plano militar fez com que Thiers, que acabara de perder a guerra com a Prussia, negociasse a soltura de seus soldados aprisionados na guerra com o fim específico de tomar Paris.

Os demais textos foram escritos ora por ocasião do aniversário da Comuna ou especificamente em discussões sobre a teoria de transição, que surgem em capítulos do “Estado e a Revolução” (1917), um livro decisivo em que Lênin esboça uma Teoria da extinção do estado concomitante à tomada de poder pelos trabalhadores:

“Ora, e, uma vez que é a própria maioria do povo que reprime os seus opressores, já não é necessária uma “força especial” para a repressão. É nesse sentido que o estado começa a extinguir-se. Em vez de instituições especiais de uma minoria privilegiada (funcionalismo civil privilegiado, comando do exército permanente) a própria maioria pode realizar diretamente as funções do poder político, e quanto mais a própria realização das funções do poder do Estado torna-se de todo o povo, menos necessário se torna esse poder”. 

Estima-se em 30 mil mortos ao fim de confronto e centena de milhares entre presos e deportados. Paris foi afogada em sangue numa matança jamais vista, o que revelava como o ódio de classes em muito superava o maior dos chauvinismos. Da Comuna de Paris a esquerda em todo mundo retirou o símbolo da bandeira vermelha que remete ao igualitarismo, à luta por uma sociedade não mais desigual ou não mais cingida em classes sociais, à sociedade comunista.  Pelo seu pioneirismo e seus mártires, merece ser saudada e, mais importante, estudada, pelas diversas lições que nos deixou.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

“Os Grandes Líderes – Ho Chi Minh” – Dana Ohlmeyer Lloyd

“Os Grandes Líderes – Ho Chi Minh” – Dana Ohlmeyer Lloyd




Resenha Livro - 191 -  “Os Grandes Líderes – Ho Chi Minh” – Dana Ohlmeyer Lloyd – Ed. Nova Cultural
Costuma-se dizer, com certo acerto, que a história que prevalece e aquela nos é contada é como a “história dos vencedores”. Assim, ao estudarmos a história do Brasil colonial, pouco ou nada nos é contado acerca do Brasil pré-colombiano (até pela falta de fontes históricas), mas mesmo depois de 1500, havendo pouco espaço para reflexões sobre como o empreendimento colonial era percebido desde o ponto de vista do índio. O mesmo pode ser dito do negro escravizado. Predomina-se por outro lado a história dos vencedores, a organização política dos portuguêses na Colônia desde as Capitanias Hereditárias e os Governos Gerais e no que se refere a sua relação com o índio e o português, o regime de organização das plantations, enfim, as fontes que restam determinam o ponto de vista e interesses do vencedor. 

Podemos dizer que o caso da Guerra do Vietnã contraria em certo sentido a lógica da “história dos vencedores”. Este pequeno país do sudeste asiático conquistou a libertação colonial Francesa (1954) e, particularmente, a expulsão dos norte-americanos em 1969. E o que se sabe sobre os eventos da chamada Guerra do Vietnã dentro do senso comum rementem mais à situação dos “vencidos”(EUA) do que aos “vencedores” (Vietnã). 

Em outras palavras, quando se pensa na luta do Vietnã pela sua independência, vem-nos à mente os soldados norte-americanos perdidos num país exótico, fechado, por montanhas e florestas tropicais, banhado pelas chuvas de monções, enfrentando guerrilheiros em menor número, mas com disposição heroica para o enfrentamento. Lembra-se do ópio  que se alastrou entre as tropas norte americanas (ironicamente, uma droga que junto com o álcool foram introduzidas no Vietnã pelo lucro e pela dominação durante a colonização  francesa) gerando a desmoralização dos militares dos EUA. E o mais importante, vêm nos à mente as enormes manifestações de fins dos anos 1960 dentre os universitários norte-americanos contra a guerra do Vietnã que teve um peso relativo na retirada das tropas – certamente muito menor do que o heroísmo da Frente de Libertação Nacional, uma organização criado no Sul do Vietnã para apoiar a unificação e o Vietminh, dirigido por Ho, desde o norte do país. 

Para além do estranhamento ou da percepção do exótico, vale conhecer mais de perto aquela experiência histórica. Não só pela luta de independência: o Vietnã advém de uma tradição histórica milenar, relacionada à China, e certamente este orgulho nacional pesou na inviabilidade do projeto de dominação estrangeira.

Os vietnamitas são de origem de povos da Mongólia  e de povos da Indonésia desde pelo menos 300 a.C. O budismo sempre foi a religião principal daquele povo até que no séc. XVII missionários católicos introduzissem esta religião por lá, permanecendo por séculos  naquele país. Os missionários católicos foram estimulados pelos administradores coloniais e estariam ao lado dos colonizadores, como veremos.  

Houve um período de dominação chinesa em 111 a.C por meio do imperador Wu Ti, da dinastia Han, reinado que durou dois séculos, facilitando a introdução de elementos culturais chinenses na região como taoísmo. No séc. X os vietnamitas reconquistariam sua independência para, no contexto das grandes navegações e o desenvolvimento do capitalismo comercial, Portugueses, Holandeses e Franceses chegassem ao sudeste asiático. 

Dana LLoyd refere-se ao início da intervenção francesa:

“De todas as potências coloniais, a França foi a que mais persistiu no Vietnam, a partir do início do século XVII, quando uma missão liderada pelo padre jesuíta Alexandre de Rhodes, converteu milhares de vietnamitas ao catolicismo. Tempos depois, o governo francês começou a intervir militarmente na região alegando perseguição a seus missionários católicos e aos poucos conquistando seus territórios”. 

Quer dizer, sob o pretexto religioso, a dominação colonial do Vietnã remete ao período das Grandes Navegações e sua libertação uma luta que seguiria anos a fio.

Ho Chi Minh nasceu com o nome de Nguyen Sinh Cung em Anam em 1890 numa família em que pais e irmãos se dedicavam à luta anti-colonialista. Ainda criança foi expulso de uma escola por distribuir jornais anticolonialistas. Acerca de suas leituras na juventude, diz o próprio Ho:

“Quando era jovem estudei o budismo, o confucionismo, o cristianismo e o marxismo. Há algo de bom em cada doutrina”.

Chegará um momento ainda na juventude que passará um ano num monastério budista. Algo a acrescentar é que aquela tradição se baseava numa cultura de transmissão oral, de forma que não sabemos de textos ou livros produzidos por Ho. 

Ainda jovem, Ho junta-se à tripulação de um navio mercante francês para trabalhar como cozinheiro e assim conhecer o mundo. Por meio de contatos de seu pai (ele também um ativista), faz contato com compatriotas na França e filia-se ao Partido Comunista Francês. (1920). Três anos depois vai à Moscou, onde assiste ao V Congresso da Internacional Comunista. 

De volta ao Vietnam, e junto com a bagagem cultural adquirida no exterior, Ho soube associar a teoria revolucionária  à rica tradição filosófica oriental:

“Para conscientizar os camponeses vietnamitas, Ho utilizou os princípios marxistas, aos quais acrescentou um elemento tomado da antiga filosofia chinesa: aquilo que o sábio Confúcio chama de shu – uma tradução aproximada dessa expressão seria “coração comum”, isto é, o sentimento de dar e receber entre os indivíduos, com a consciência de que todos os homens são irmãos. 

Ho Chi Minh combinava com naturalidade as ideias marxistas-leninista com antigas e respeitadas tradições vietnamitas. Seu povo acreditava numa vida frugal de aldeia, onde as necessidades da comunidade precediam as individuais”. 

Durante a II Guerra Mundial a co-relação de forças e a geopolítica muda no sudeste asiático e no mundo, embaralhando a situação. O Japão, membro do eixo, passa a ser o invasor e o novo inimigo comum de Vietnã e China. De outro lado, URSS e França têm toda a sua força de guerra voltada para o conflito na Europa. E será no contexto do fim do conflito bélico mundial que o Vietminh tomará o poder no Vietnã fazendo com que Ho Chi Minh, àquela altura já considerado um herói da resistência, torne-se o  Presidente da República Democrática do Vietnã. 

Logo os franceses colonizadores entram como reação e inicia-se a guerra da Indochina que irá durar de 1946 até 1954, com a derrota dos franceses, mas ainda assim, com um Tratado (Tratado de Genebra) que prevê a divisão do país em norte e sul. Os EUA deram uma solução de continuidade ao confronto a partir de uma provocação: moveram um navio espião no golfo de Tonquim esperando uma reação vietnamita, que veio, e em contrapartida, atacaram bases militares no Vietnã do norte (1964). A preocupação do imperialismo naquele contexto era a expansão do comunismo pelo sudeste asiático, daí o apoio junto Vietnã do sul para derrotar o Vietnã do norte. Era necessário destruir o regime comunista do norte, como no caso da Coréia, sempre tendo em vista o contexto da Guerra Fria. 

Ho Chi Minh não pôde ver a reunificação de seu país sob bases socialistas a partir da expulsão total do imperialismo norte-americano. Faleceu em 3 de Setembro de 1969, enquanto a reunificação para formação da República Socialista do Vietnam deu-se em 2 de Julho de 1976. 

O livro de Dana O. Lloyd tem um caráter enciclopédico,  com muitas informações, imagens e buscando registrar a história tanto do Vietnã quanto do maior dirigente de sua libertação de forma concisa e objetiva. Apenas por isso, cumpre uma função extraordinária diante da falta informações a respeito daquela nação e de Ho, de seu processo heroico de emancipação que assombrava então os espectadores ocidentais, com HO CHI MINH e seus guerrilheiros com disposição de luta até morte pela liberdade, formados numa moral marxista e de milenares valores orientais. 

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

“A Política dos Juristas” – Carlos Miguel Herrera

“A Política dos Juristas” – Carlos Miguel Herrera 


Imagem - Hans Kelsn - Jurista austríaco

Resenha Livro – 190-  “A Política dos Juristas: Direito, liberalismo e socialismo em Weimar” – Carlos Miguel Herrera – Ed. Alameda

Carlos M. Herrera é jurista e filósofo, argentino e professor da Université de Cergy-Pontoise. Num primeiro exame dentre os capítulos da obra, dedicados a autores bastante trabalhados dentro da Filosofia do Direito como o austríaco Hans Kelsen e Carl Schmitt, pode-se ter a errada impressão de se estar diante de um ensaio destinado ao público das ciências jurídicas, mais particularmente de interessados por filosofia do direito e direito constitucional. Isto por causa da referência a Weimar, cidade que expressa  marco dentro da evolução política dos direitos humanos/constitucionais, juntamente com a Constituição Mexicana de 1917.

Apenas para situar rapidamente o leitor, o assim chamado primeiro ciclo dos direitos humanos surge no contexto do liberalismo e da afirmação do indivíduo frente ao arbítrio do estado absolutista – nesse sentido suas principais referências documentadas são a Declaração Francesa de Direitos do Homem e do Cidadão e a Declaração de Virgínia (1776). Partindo da ideia de um direito natural que deveria ser resguardado pelo Estado, defendem estes pioneiros o direito de propriedade, o direito de poder se insurgir contra governo despóticos e a necessidade da separação de poderes (Montesquieu), para evitar o arbítrio estatal. Já os direitos humanos de segunda geração são produto da revolução industrial do séc. XIX, da emergência dos trabalhadores e a co-respectiva luta social por direitos trabalhistas e assistência do estado. É nestes marcos que tanto a Constituição de Weimar (1919) quanto a Constituição Mexicana de 1917 nascem sob o signo do pioneirismo: elas se adiantam ao reconhecer e positivar direitos sociais ditos de segunda geração.

Dizíamos que o ensaio de Carlos Herrera não encerra interesse aos operadores do direito. Isto porque seu objeto de estudo são as fontes teóricas, na filosofia do direito e na ciência política, que demarcaram um dos períodos mais ricos e férteis na produção de ideias. Há riqueza no contraponto de correntes de pensamentos distintos, durante a República de Weimar (1919-1933) na Alemanha. Trata-se de período que antecede a ascensão dos nazistas. Em Weimar há regime misto de parlamento e presidencialismo, com um chanceler. A ironia da história é justamente observar, conforme diria Adorno, que a ascensão e vitória do fascismo é o resultado de uma revolução derrotada – aquela experiência democrática mostrou-se frágil o bastante para a articulação, crescimento e tomada do poder pelos nazistas, em que pese a efervescência cultural e riqueza no plano do debate de ideias, como se observa no livro.

No contexto de Weimar, três pensadores são analisados com mais detalhes, podendo-se dizer que o primeiro deles, um dos fundadores da sociologia moderna, e jurista de formação, Max Weber, teria não só influenciado enquanto teórico mas enquanto sujeito político aquele contexto histórico– em vida, defendia, coerentemente ao seu sistema teórico, que a melhor saída para a Alemanha de Weimar era um poder mais centralizado, ou seja, não o parlamento republicano, mas a....monarquia. Assim preleciona Carlos Herrera:

“De fato, Max Weber era hostil ao parlamentarismo “puro”, representado nessa época pela Terceira República Francesa, e havia sustentado publicamente, em dezembro de 1919, que o ‘o parlamentarismo e, de fato, as desavenças partidárias são evitáveis se o executivo unitário está nas mãos de um Presidente eleito por todo o povo”. A partir desta ótica, “um presidente que se apoia sobre a legitimidade da eleição popular” seria o melhor contrapeso ao Parlamento. Esta justaposição entre um presidente plebicitário e um Parlamente ativo constitui o que ele chama, em Economia e Sociedade, de “um governo representativo-plebiscitário”. Para ele, efetivamente o meio cesarista era o plebiscito.”

Ressalta-se que “Economia e Sociedade” é a obra mais importante de Max Weber e foi publicada após a morte do sociólogo alemão por sua ex-mulher Marianne. Ainda sobre suas referências sobre política e direito, Weber tem sua conhecida tese sobre legitimidade e dominação: a legitimidade formal dá-se por meio da dominação que se expressa pela administração burocrática. (Dominação Racional).

Neste aspecto, ao discutir a questão da democracia, Weber e Hans Kelsen, o importante jurista vienense combinam-se dentro de um ponto de vista formalista.

Kelsen propõe uma teoria pura do direito que teria um sentido científico e autônomo em relação às demais disciplinas ou ramos das ciências humanas. O Direito teria uma forma de interpretação autêntica e não autêntica conforme a adequação do operador a um rol já pré-definido de possibilidades hermenêuticas: como se houvesse um quadro para além do qual o sistema jurídico não perpassa, deixando assim de ser autenticamente direito o que está fora desta moldura rígida. Seu sistema jurídico é escalonado e nisso influencia modelos jurídicos em todo mundo, incluindo o sistema jurídico brasileiro.

As normas jurídicas em Kelsen se dividem hierarquicamente tendo em cada escala uma base de legitimação da escala anterior, até a Constituição. E o que justificaria a constituição seria uma norma hipotética fundamental, norma abstrata e pressuposto que legitima todo o ordenamento. Aqui temos um breve apanhado das cogitações jurídicas de Kelsen. A discussão que Carlos Herrera propõe é buscar as interfaces entre Kelsen e a política, o que acaba indo muito além de um formalista positivista. Do ponto de vista político, Kelsen se colocava como um social-liberal, mesmo reconhecendo a necessidade de reformas para pacificar os conflitos sociais, o que contraria um pouco a noção de um velho conservador positivista que dele pode se extrair.

Finalmente, o ensaio de Herrera é concluído com um autor controvertido seja em seu pensamento seja em sua intervenção política. Se Weber representa o sistema da dominação burocrática, racional, e se em Kelsen vislumbra-se o liberalismo com alguma coloração de reformas sociais, em Schmitt há muita influência e diálogo com autores marxistas, como Lênin e Luckács. Todavia não foi um marxista e se apropriava da teoria e das ideias de ditadura do proletariado como formas ou modelos de possível aplicação dentro do universo....burguês.

Segundo Herrera, Schmitt já era um pensador reacionário nos anos 1920. Será um dos representantes jurídicos do Reich na causa pela destituição do governo social-democrata da Prússia sob o governo Von Popen. E em maio de 1933 filia-se ao partido nazista.

Todavia, há uma intensa interlocução entre este reacionário jurista e alguns textos marxistas que deverão ao menos influenciá-lo a entender o direito e a política não em termos formais e burocráticos, tais como Weber e Kelsen, mas como manifestação de poder, choques de classes e dominação, o que confere por exemplo com o que diz sobre o assunto Lênin em o “Estado e a Revolução”. E assim diz Herrera:

“Deve-se sublinhar desde agora a noção que interessa ao jurista alemão (Carl Schmitt), a da ditadura do proletariado nos bolcheviques, pois esta terá uma importância primordial para o desenvolvimento de suas próprias teses. Para Schmitt, com efeito, a teoria da ditadura do proletariado, tal como entendem Lênin e Trótsky, sobretudo em razão do seu caráter transitório, permite recuperar um aspecto esquecido pelo direito público burguês: a ditadura é um meio técnico (technische Mittel) para alcançar um objetivo determinado. Segundo Schmitt, este caráter  técnico da ditadura, cujo conteúdo está só determinado pelo interesse dos resultados a serem obtidos, implica que ela não pode ser definida em geral como supressão da democracia” 

Se observarmos os desdobramentos finais da República de Weimar, talvez temos de reconhecer que a orientação de Carl Schmitt que leva menos em consideração os pressupostos liberais e os mecanismos burocrático-racionais,  e mais as relações de força e de poder, além da “realpolitik”, acabaram prevalecendo na Alemanha.  É bom lembrar que o Partido Social Democrata, apesar do tamanho e peso político, era dirigido por reformistas que provavelmente tinham ilusões de que através do aparato estatal seria possível contornar o perigo nazista. Enxergaram mais longe os marxistas russos e Carl Schmitt, influenciado por eles. Uma ironia da história com fim trágico. 

terça-feira, 8 de setembro de 2015

“As Ruas e A Democracia: Ensaios sobre o Brasil Contemporâneo” – Marco Aurélio Nogueira





Resenha Livro - 189-  “As Ruas e A Democracia: Ensaios sobre o Brasil Contemporâneo” – Marco Aurélio Nogueira – Ed. Contraponto / Fundação Astrojildo Pereira 



Marco Aurélio Nogueira é cientista social, professor e diretor do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da UNESP-SP. O professor é articulista do jornal “O Estado de São Paulo” e compõe o Conselho Editorial da Fundação Astrojildo Pereira, que também tem dentre seus quadros intelectuais como Celso Frederico, Cesar Benjamin, Luiz Eduardo Soares, Luiz Gonzaga Beluzzo e Paulo Bonavides. Estas breves considerações iniciais servem para situar o leitor quanto aos pressupostos teórico-metodológicos e à orientação política de Marco Aurélio nesta obra, que na verdade é uma compilação de artigos que tem como fio condutor as manifestações de Junho 2013 e seus desdobramentos .
Certamente o autor não segue uma linha marxista-leninista ortodoxa. Quando se escreve sobre política e procura-se extrair diagnósticos bem como prover prognósticos ou soluções, dificilmente não se abre ao leitor qual são os rumos societários desejados e qual é a política adequada e desejada (pelo ponto de vista do autor). 

Nestes marcos, o autor se situa nos quadros de um reformismo de esquerda, buscando novos papeis do estado e da política que acompanhem uma nova dinâmica veloz em andamento e transformação que é a da sociedade civil. Trata-se de um democrata que busca reformar a democracia sem ilusões acerca de reformas políticas pontuais (voto distrital ou não, financiamento público ou não), mas buscando mesmo ressignificar  o papel de representar politicamente e combiná-lo com a nova tendência participativa, horizontal e não profissional da política. 

Em mais de um momento, Marco Aurélio afirma que o Brasil (e o Mundo) vive um momento de crise de identidade e uma crise política. Nossa crise política tem como origem a cisão entre uma sociedade que anda a passos largos em contraponto ao Estado que ficou para trás:

“Um último círculo precisa ser lembrado. Ele tem a ver com algo que se espalha pelo mundo como um furacão. É que a Política se dissociou da sociedade. Não diaologa mais com ela como opinião pública, como sociedade civil ou como estrutura social. O sistema político se isolou, vive encastelado concentrado em seus próprios interesses. Não se reforma e não se deixa reformar. Permanece como que acorrentado a um tempo pretérito, ao passo que a sociedade avança pelas ondas líquidas e digitais da vida hipermoderna”.

Uma reforma política diferenciada das propugnadas seria a solução. Ainda quanto à reforma política, diz o autor: 

“Uma reforma política digna do nome não pode privilegiar a moralização. Seu eixo é o revigoramento das instituições, a busca de coerência dos partidos, a lisura dos pleitos, a expressão facilitada e equilibrada das preferências da população, a inclusão de novos eleitores. Sua razão de ser é a revitalização das relações entre as pessoas e a sociedade civil e o Estado. É Recuperação do valor da política.

Porque para se ter política mais “limpa” e de melhor qualidade, é preciso que se tenha mais política. A reforma de que se necessita é um caminho para que a sociedade se articule melhor com o sistema político, projete nele seu modo de viver, pensar e fazer política”.

É muito comum ao fazermos uma análise de conjuntura – e é disso que se trata a compilação de textos em “As Ruas e A Democracia” – projetarmos nos mínimos detalhes a orientação política, o que de resto é bastante natural, frente à inviabilidade da neutralidade em qualquer base textual, ainda mais em termos de política. No que diz respeito à orientação reformista ou social democrática do autor, acaba perdendo espaço os principais lances de luta classes que atravessaram os manifestações de Junho de 2013 em troca de discussões eventualmente infrutíferas em torno dos aparelhos ideológicos do estado, reformas institucionais, modelos de governabilidade, etc. 

Por exemplo, nos artigos fala-se muito pouco sobre a mobilização da juventude e dos estudantes especificamente sobre o aumento das tarifas, elemento detonador das manifestações que de São Paulo, repercutiram nacionalmente e colocaram na defensiva a classe política de todo o país. O autor trata as manifestações como um movimento indistinto e uniforme desde as primeiras passeadas do passe livre em São Paulo, até as primeiras manifestações de massa essencialmente progressivas, até o “giro à direita” com a carnavalização do movimento numa ação orquestrada pelos oligopólios midiáticos que procurou transformas a “revolta” num “ato cívico”, estigmatizando “vândalos”  dos bons manifestantes.  

Os textos não fazem menção à greve geral convocada pelas centrais sindicas, ainda que a mesma não tido o peso que merecia. 

Por outro lado, as reflexões do autor sobre o novo ativismo dão pistas para se compreender como agem e quais são os limites de uma nova geração de militância, sendo de extrema importância sua leitura também para nós marxistas:

“Novas modalidades de engajamento antes de tudo jovens, mas não se resumem a eles pois tendem a crescer como uma espécie de paradigma da ação política. Sua característica essencial é o questionamento do ativismo tradicional sustentado por organizações hierárquicas, classes sociais e causas gerais. O novo ativista luta por direitos e reconhecimento, não por poder. São sacrifica  a vida pessoal em nome de uma causa coletiva ou da glória de uma organização. Não se referencia por líderes ou ideologias. Age festivamente e se rotinas fixas, valendo-se muitas vezes da sátira e do deboche. É multifocal, abraça várias causas ao mesmo tempo. Sua mobilização é intermitente. Muitos atuam de modo pragmático, profissionalizam-se como voluntários, buscam resultados mais do que confrontação sistêmica. Seu ambiente são as redes sociais, sua maior ferramenta a conectividades”.

Como resposta às manifestações de Junho, a presidenta Dilma R. elaborou 5 Pactos como resposta às exigências das ruas. Como se sabe, os protestos tiveram suas bandeiras diluídas e diversas pautas, mas de forma geral revelaram descontentamento com os governantes que aí estão, contra a corrupção, melhoria nos serviços públicos ou contra as obras da Copa das Confederações do Mundo. Dos mais importantes destes pactos, um plebiscito para uma assembleia constituinte para reforma política foi logo rejeitado pela classe política e OAB, sendo abandonada qualquer perspectiva de uma reforma política que, como dizem os petistas, “radicalize” a democracia no Brasil. Os demais Pactos propostos foram mais investimentos em saúde, educação, transporte público e responsabilidade fiscal. 

E, ainda,  2015 assistiríamos ao aumento da passagem em São Paulo para 2,50. 

“As Ruas e a Democracia” de Marco Aurélio Nogueira oferece-nos uma visão panorâmica dos eventos de Junho de 2013 complementados com artigos e reflexões sobre economia e sociedade do Brasil do período de transição entre o final do governo Lula e início do governo Dilma. É uma fonte rica em informações, dados e mesmo reflexões que ajudam a delimitar um painel do período. Todavia, para uma investigação mais totalizante de todos este objeto de estudo torna-se necessário situar a discussão desde a perspectiva da classe que vive do trabalho, o que envolveria dar um maior protagonismo aos trabalhadores e ao mundo do trabalho nas suas análises.