quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

“Questões Políticas” – J. Stálin

“Questões Políticas” – J. Stálin 



Resenha Livro # 155– “Questões Políticas” – J. Stálin – Aldeia Global Editora Coleção Fundamentos 11

Poucos personagens históricos foram igualmente estigmatizados negativamente tanto pela direita quanto por uma certa “esquerda” quanto Joseph Stálin. Pouco importa fatos políticos incontroversos como a intervenção política decisiva do Exército Vermelho na II Guerra Mundial desde Stalingrado, do cerco de Leningrado e da batalha de Kurski, até a retomada de Berlim em favor das forças aliadas, ou mesmo o espetacular desenvolvimento das forças produtivas e da indústria desde os planos quinquenais que assombrou os mais céticos críticos do ocidente. Fatos incontroversos que só podem ser "desmentidos" por aqueles que agora tentam apagar a história ou caluniar Stálin como sanguinário assassino. 

O que gostaríamos de chamar atenção aqui é que o “consenso” entre liberais, conservadores e esquerda democrática/trotskista quanto ao esforço em demonizar Stálin e o "stalinismo" revela certamente alguma intencionalidade oculta. Apagar um legado de um fio condutor da tradição do marxismo que, interrompido no âmbito da II Internacional, encontraria em Lênin e na experiência da revolução russa a expressão de uma nova dinâmica ainda inconclusa. A sua expressão revolucionária e a sua inimiga mais encarniçada ainda hoje do fascismo e do capitalismo. 

Stálin certamente não esteve à altura de Lênin como um teórico da revolução. Mesmo porque sua trajetória de vida foi inteiramente diversa. 

Enquanto Vladimir Ilich Lênin foi filho de Professor e Diretor de Ensino e estudante universitário de Direito em Kazan, Stálin foi um simples filho de sapateiro na Georgia, tendo estudado num seminário até ser expulso antes de concluir os estudos por suas atividades políticas. Stálin passou a maior parte de sua vida como militante/ativista, o que incluía atuar em ações que envolviam agitar manifestações, greves, assaltos a bancos e arrecadar fundos para camaradas no exílio enquanto Lênin, desde o exílio, dedicava-se ao partido redigindo trabalhos para publicações e estudos sobre a realidade russa.  

Isso não significa, porém, que a contribuição teórica de Stálin deixe de ser relevante. Pelo contrário, ela preza pela objetividade e, ao estudá-la, vamos observando como muito do que é reiterado acerca do dirigente georgiano, infelizmente pela própria “esquerda”, são calúnias destinadas a desconsiderá-lo como interlocutor para as discussões sobre os desafios atuais da luta pelo socialismo/comunismo. 

A começar sempre pela má vontade em se entender a tese acerca da ideia do “socialismo num só país”. 

Certamente apenas alguém com muita pouca boa vontade diante de Stálin (e ainda assim alguém dotado de uma ingenuidade que beira a má-fé) realmente acreditaria que o dirigente do partido bolchevique após morte de Lênin (1924) até sua morte 1954 defenderia algo como a criação de um estado socialista autônomo, fechado, exclusivo e dentro das fronteiras nacionais da URRS! Nunca foi essa a concepção do socialismo num só país de Stálin e nem esta seria a forma marxista-leninista de encarar o fenômeno socialista que, em Stálin, remete sim ao internacionalismo. 

A diferença aqui reside em como garantir a sobrevivência em condições adversas de um estado isolado e especialmente na ideia de que esta sobrevivência ajudaria a fazer fortalecer a luta do socialismo em nível mundial conquanto os partidários da revolução permanente demonstravam na prática (e os arroubos de Leon Trótsky em Brest Litovisk foram a maior prova desta política) que rifar a revolução russa ou colocá-la em risco em nome de uma hipotética revolução na Alemanha, no Ocidente ou em qualquer parte, em sinal de “internacionalismo". 

Assim afirma Stálin, consoante Lênin: 

“Lênin nunca considerou a República Soviética um escalão indispensável para reforçar o movimento como um fim em si. Considerou-a sempre como um escalão indispensável para reforçar o movimento revolucionário nos países do Ocidente e do Oriente, um escalão indispensável para facilitar o triunfo dos trabalhadores do mundo sobre o capital. Lênin sabia que tal concepção é a única acertada, não apenas do ponto de vista da manutenção da República dos Sovietes. Lênin sabia que só assim se pode inflamar o coração dos trabalhadores de todo o mundo rumo às batalhas decisivas pela sua libertação. (...) Portanto, ele não se cansava de entusiasmar e fortalecer a união dos trabalhadores de todo o mundo: a Internacional”. 

“Lênin tem razão quando afirma que o movimento nacional dos países oprimidos não se deve valorizar do ponto de vista da democracia formal mas do ponto de vista dos resultados práticos dentro do balanço geral da luta contra o imperialismo, quer dizer, não deve abordar-se “isoladamente” mas numa escala “mundial”. 

Como se sabe, dentro do partido, Stálin estudou e produziu um livro específico sobre o tema das nacionalidades. Foi comissário das nacionalidades. E se o leninismo vem a ser a expressão do marxismo revolucionário na fase imperialista do capitalismo, deve-se ter em vista que justamente a questão nacional ganharia novos contornos àquela conjuntura. 

Até a II Internacional, o problema nacional era visto desde um ponto meramente formal ou jurídico falando-se apenas em “direito de autonomia” ou “autodeterminação dos povos”. A questão ganhou maior complexidade na medida em que o imperialismo resultou na dominação política e econômica de um punhado de nações sobre vastas parcelas de povos oprimidos na Ásia, África e América Latina. Isso tem algumas implicações: o proletariado dos países exploradores passa a ter responsabilidades de lutar contra a espoliação de sua burguesia contra os países oprimidos. Já a luta dos países oprimidos deve ter como norte derrotar o imperialismo e fortalecer o movimento proletário.

Esta nova particularidade inclusive criou as condições para a 1ª revolução proletária estourar dentro do elo mais fraco da cadeia imperialista, qual seja, a Rússia. 

Diz Stálin acerca destas particularidades:

“Como explicar este fenômeno peculiar da revolução russa, que não encontra precedentes na história das revoluções burguesas ocidentais? Onde reside a origem de tal singularidade?
Explica-se pelo fato de na Rússia a revolução burguesa se ter desenvolvido sob as condições de uma luta de classes mais desenvolvida que no Ocidente, pelo fato de o proletariado russo ter conseguido já então converter-se numa força política independente, enquanto a burguesia liberal , assustada pelo espírito revolucionário do proletariado , perder toda a aparência de revolucionária (sobretudo depois dos ensinamentos de 1905) e se aliar ao czar e aos proprietários rurais contra a revolução, contra os trabalhadores e contra os camponeses”. 

Dentre as peculiaridades da situação russa que criaram uma situação explosiva e favorável ao desfecho revolucionário, Stálin cita outrossim a grande concentração da indústria russa nas vésperas da revolução, com 54% dos operários russos trabalhando em empresas com mais de 500 operários (tal concentração certamente favorecia a agitação política); as escandalosas formas de exploração do trabalho associadas ao retrógrado regime político e policial do czarismo que despertavam o ódio dessa massa trabalhadora; a debilidade política da burguesia russa que como dito após 1905 se convertera numa força contra-revolucionária; a continuação da guerra imperialista que engendrou uma crise revolucionária. 

Nesta pequena brochura de 100 páginas, de forma sintética e objetiva, Stálin, partindo de citações de Lênin e de dados objetivos da história recente do movimento russo explica as questões políticas fundamentais do leninismo: o método, a teoria, a ditadura do proletariado, o Partido e mesmo o que Lênin chama de “Estilo de Trabalho”, uma combinação do pragmatismo norte-americano e o espírito revolucionário russo. 

Um bom destaque vale ser dado às páginas referentes ao problema camponês em que em poucos parágrafos Stálin explica como a dita “Teoria da Revolução Permanente” de Trótsky é na verdade uma leitura desvirtuada de uma tese de Marx que, aplicada à situação russa, engendra no rompimento da aliança com os camponeses. Ou seja a “Revolução Permanente” desvirtuada começa pela tarefa de tomar o poder imediatamente pelo proletariado enquanto Lênin assegurava esgotar toda a capacidade revolucionária dos camponeses e utilizar até a última gota das suas energias revolucionárias para completa liquidação do czarismo. 

Como dizíamos no inicio desta resenha, existe um bloqueio de todas as frentes contra a figura, o legado e as ideias de Stálin e se quisermos mesmo de Lênin, que, ainda que  eventualmente reconhecido como grande dirigente dentro dos círculos de esquerda, não é por exemplo devidamente estudados nos cursos de ciências humanas nas universidades. Com Stálin o bloqueio ainda é maior e mesmo editoras de esquerda ainda hesitam em publicar as suas obras. Por outro lado, um número cada vez maior de interessados pelo tema já dão sinais claros de que este bloqueio precisa e será quebrado. A começar pelos círculos de esquerda, discutindo junto aos setores adversários ou mesmo inimigos do marxismo-leninismo qual foi a verdade histórica dita e efetivamente ocorrida na URSS ao longo do séc. XX. 

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

“Um Diário Russo” – John Steinbeck e Robert Capa

“Um Diário Russo” – John Steinbeck e Robert Capa 

Resenha Livro #154 - “Um Diário Russo” – John Steinbeck e Robert Capa – Ed. Cosacnaify



“Um Diário Russo” pertence a um raro gênero literário que serve de fonte preciosa para compreender a história de um povo para além dos seus grandes eventos políticos: observar os costumes, a culinária, as músicas e a arte popular, a língua, enfim, a cultura, o que é propiciado neste livro como uma grande reportagem sobre a URSS de 1947, redigida pelo jornalista e escritor norte-americano John Steinbeck (já consagrado escritor quando de sua viagem à URSS destinada à compor este “Diário”) e Robert Capa, igualmente consagrado e já experiente fotojornalista de guerra, tendo já fotografado a Guerra Civil Espanhola e a Invasão da Normandia durante a II Guerra Mundial. 

Muitos de nós já devemos ter visto uma foto de Capa, uma das mais famosas do gênero de guerras, em que um combatente do exército republicano espanhol é alvejado por uma bala no peito, estirando os braços, num cenário desértico. Contexto: Guerra Civil Espanhola. 

Quanto à Steinbeck, seria agraciado com o Nobel de Literatura em 1962. Seu texto tem um estilo objetivo e realista tal qual a de um jornalista: seu olhar está sempre direcionado àquilo que revela indiretamente aspectos de personalidade captados como numa fotografia. Os traços culturais do povo e da gente comum são os temas de interesse deste diário, sendo chave aqui uma das características decisivas do bom jornalista: ser um bom observador. Isto vale tanto para Steinbeck quando para Capa. 

O plano original dos dois era fazer um retrato o mais humano e impessoal (do ponto de vista político) possível sobre a vida comum na URSS: procuraram não se envolver nos assuntos políticos e nas relações diplomáticas entre EUA e URSS. Já se iniciava momento de crescimento das tensões e hostilidades entre os dois países que dariam início à Guerra Fria: em geral os populares perguntavam aos jornalistas americanos se o seu governo tinha a intenção de atacar a URSS. A sensação era a de que o povo Russo estava cansado da guerra e sabe-se hoje que foi o povo que mais teve vidas perdidas na II Guerra Mundial. 

Principalmente nas passagens por Kiev e Stalingrado (principalmente) os jornalistas testemunharam a devastação de prédios administrativos, escolas, igrejas e campos de agricultura decorrentes da guerra. Particularmente em Stalingrado, famílias inteiras ainda viviam sob escombros. Prisioneiros de guerra alemães faziam a limpeza da destruição que causaram, pareciam ser bem alimentados e eram desprezados pela população. Com a morte de uma esmagadora maioria da população masculina as mulheres por toda a URRS, de Kiev à Georgia estavam na linha de frente das fazendas coletivas e nas fazendas estatais. Em geral percebeu-se que os russos – especialmente de Moscou – hesitavam em se aproximar de estrangeiros e especialmente de americanos. Pareceu ser uma população mais “fria”, o que foi atenuado nas viagens às províncias mais distantes. 

Mas de qualquer forma, em todos os lugares, a insistência com que o povo perguntava aos jornalista sobre a disposição dos americanos em entrarem em guerra com a URSS seria um sinal do enorme cansaço da guerra no povo soviético. Curiosamente parecia não passar pela cabeça do povo russo naquele momento um ataque da URSS sobre os EUA. 

Basicamente todos os correspondentes e jornalistas que se dispunham a conhecer a URSS eram direcionados a um roteiro comum, sempre acompanhados intimamente por representantes do governo soviético, passando por Moscou, Leningrado (São Petersburgo), Stalingrado (hoje Volgogrado) e viajando para Kiev (Ucrânia) e Tbilisi (Georgia), esta última uma espécie de “nordeste brasileiro” da URSS, localizada em região de clima mais ameno, com praias e hotéis de descansos organizados pelos sindicatos e destinados aos operários que melhor se destacam nas frentes de trabalhos, bem como os em repouso médico. 

Na Georgia a língua é diferente, no campo há a produção do Chá, bebida principal da Rússia, além da Vódka, e o fenótipo da população remete a uma mistura de italianos e ciganos. A descrição da bela e antiga Kiev também é digna de nota, em tempos em que a cidade encontra-se sob um governo  com elementos fascistas. Os horrores que os exércitos de Hitler promoveram na capital Kiev ainda era 1947 bastante presentes na memória da população daquele local: infelizmente as últimas gerações parecem ter esquecido a história. E pelo relato vemos que o exército da URSS ainda mantinha os prisioneiros de guerra, os nazistas limpando a destruição brutal e gratuita que promoveram em Kiev. 

Sobre Kiev, ainda sob destroços decorrentes da Segunda Guerra, diz o jornalista:

“Kiev deve ter sido em algum momento uma bela cidade. Bem mais antiga do que Moscou, ela é, na verdade, a mãe das cidades russas. Fundada no alto de uma colina à margem  do Dniepr, acabou crescendo e se espalhando pela planície. Seus mosteiros, fortalezas e igrejas remontam ao século XI. Foi um dos locais de veraneio prediletos dos czares, que ali possuíam palácios de férias. Seus edifícios públicos são famosos em toda a Rússia. Além disso, a cidade também era um centro religioso. Hoje, porém, está completamente arruinada. Aqui os alemães mostraram do que eram capazes”. 

Existem algumas interfaces entre o jornalismo e a história que ganham evidência em trabalhos como o de John Steinbeck e Capa. Mesmo reiterando a intenção do trabalho focar-se na vida das pessoas comuns, sobre o que conversavam, o que vestiam, fotografando e escrevendo quase como um relato objetivo mas nunca imparcial sobre a sociedade russa – nas palavras do autor, não “o relato sobre a Rússia, mas um relato possível”, temos em mãos uma fonte literária e visual que nos dá testemunho de algo a mais do que cifras econômicas oficiais, algo que não é captado por números, nem estatísticas e balanços demográficos. As descrições dos jantares na Georgia, com o hábito do anfitrião indicar um orador, a alegria das camponesas ucranianas dentro de sua jornada de trabalho rural (predominantemente feminina) e a “simpatia” geral daquele povo junto com os dois americanos, associados ao temor da guerra, revelam a sociedade como fotografias, de certa forma dá sinais da temperatura da situação política, além de dar bom material para conhecermos a cultura popular. E nesse sentido é interessante como as fotografias de Capa se somam e dialogam com o relato humano de Steinbeck. Para um historiador, tem-se em frente elementos sobre a cultura e o estado de espírito de um povo recém impactado por uma Guerra Mundial devastadora e ainda assim aparentemente otimista quanto ao seu futuro dentro do regime socialista sob Stálin.   
  

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

“A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra” – Friedrich Engels

“A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra” – Friedrich Engels 

Resenha Livro 153 - “A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra” – Friedrich Engels – Ed. Boitempo



Friedrich Engels conheceu Karl Marx em novembro de 1842, quando tinha apenas 22 anos de idade. Era filho de uma família de industriais de Barmen na Alemanha: ainda neste primeiro encontro cada um dedicava-se a uma linha de estudo diferente. Marx esboçava sua crítica à filosofia do direito de Hegel enquanto Engels observava e estudava a vida operária através dos trabalhos de negócio da família.

Seria neste contexto que em 1845 aos 25 anos de idade Engels publicaria sua primeira obra de fôlego – “A Situação da Classe Trabalhadora Na Inglaterra”. Esta obra foi lida por Karl Marx e daria concretude às teses do socialismo científico ao determinar as condições de vida do nascente proletariado industrial inglês: as jornadas de trabalho de 10 a 12 horas, o trabalho infantil e feminino, as doenças de trabalhos que levam à redução da expectativa de vida, o uso da violência policial e patronal contra as incipientes tentativas de resistências prenunciariam “O Manifesto do Partido Comunista” escrito em 1848.

O livro é basicamente o resultado das observações de Engels a partir de sua vivência direta como gerente da “Ermen & Engels” em Manchester. A observação direta envolve a pesquisa das condições de vida, de habitação, de higiene, as formas de contratação, a resistência e luta dos operários fabris e agrícolas, bem como as formas como estado e especificamente o direito e os juízes de paz se somam em defesa dos interesses dos capitalistas. Mesmo aos 25 anos e sendo filho de industrial, Engels, ele próprio um (pseudo)capitalista, já aqui se opõe diametralmente à sua classe: descreve a burguesia inglesa como a mais avarenta do mundo e o faz com números e documentos oficiais. Trata-se pois de uma pesquisa de fôlego que tem como ponto de partida a revolução industrial na Inglaterra, a introdução de tecnologias na produção que alteraram radicalmente os meios de produção, a organização e disposição do trabalho e foram conformando a proletarização das massas.

A máquina de fiar e novos arranjos que envolvem o uso do vapor e do ferro na produção destroem as antigas manufaturas de tipo medieval. Implicam na extinção da figura do artesão e do mestre – há a concentração do trabalho na fábrica e o trabalho dá-se de forma assalariada e contratual. Outrossim, observa-se que na Revolução Industrial, seu produto histórico mais relevante é o proletariado:

“Com essas invenções, desde então aperfeiçoadas ano a ano, decidiu-se nos principais setores da indústria inglesa a vitória do trabalho mecânico sobre o trabalho manual e toda a sua história recente nos revela como os trabalhadores manuais foram sucessivamente deslocados de suas posições pelas máquinas. As consequências disso foram, por um lado, uma rápida redução dos preços de todas as mercadorias manufaturadas, o florescimento do comércio e da indústria, a conquista de quase todos os mercados estrangeiros não protegidos, o crescimento veloz dos capitais e da riqueza nacional; por outro lado, o crescimento ainda mais rápido do proletariado, a destruição de toda a propriedade e de toda a segurança de trabalho para a classe operária, a degradação moral, as agitações políticas (...)”. 

Em outra passagem Engels compara a importância da Revolução Industrial Inglesa à revolução política francesa e à revolução filosófica alemã, sendo o fruto mais importante da revolução inglesa o proletariado.

Esta pesquisa surpreende o leitor atual pelo fato de ser bastante minuciosa, tanto no que se refere à coleta de dados/fontes, quanto em sua forma, buscando abranger os diversos aspectos da situação da classe trabalhadora inglesa, irlandesa e escocesa. São cerca de 350 páginas que abrangem em particular destaque o problema da habitação (havendo uma exposição detalhada dos bairros operários de diversas cidades inglesas, podendo-se constatar um cenário de completo abandono com falta de saneamento, famílias inteiras dormindo em porões, porcos chafurdando na lama junto a crianças, desregramento social com alcoolismo e perversão sexual etc.) da concentração industrial, da imigração, das mobilizações, da resistência dos patrões, além de alguns recortes específicos acerca da situação do proletariado mineiro e do proletariado agrícola.

 No que tange às formas de organização política, tem-se em mente que Engels observa uma classe ainda em formação e que luta diretamente por melhores condições (salários, menores jornadas, participação política – cartistas) formas de luta também ainda embrionárias. Tem-se em vista aqui o socialismo utópico Inglês do qual Owen é seu principal representante, já combatido por Engels:

“Os socialistas são muitos gentis e pacíficos; na medida em que só admitem como caminho para mudanças a persuasão da opinião pública, acabam por reconhecer as condições existentes, mesmo deploráveis, como justificáveis. Mas a forma atual de seus princípios é tão abstrata que jamais conseguirão convencer a opinião pública. Por outro lado, eles não se cansam de lamentar a degradação moral das classes inferiores, não consideram que a degradação moral da classe proprietária, provocada pelo interesse privado e pela hipocrisia, é bem pior e permanecem cegos a todos os elementos progressistas contidos na desagregação da ordem atual. Não compreendem o desenvolvimento histórico e, por isso, querem mergulhar imediatamente a nação nas condições do comunismo, sem o progresso da política até o ponto em que essa desapareça por si mesma. Sabem por que o operário se indigna contra o burguês, mas consideram estéril essa cólera (que, de fato, é o único meio de fazer avançar os operários) e predicam uma filantropia e uma fraternidade universal inteiramente inócuas na situação contemporânea da Inglaterra”. 

O movimento operário observado por Engels não vai além dos limites do espontâneo em sua luta contra a opressão. Sua primeira e mais primitiva forma de luta é a vingança pessoal contra o burguês, o que envolve a destruição da máquina, o assassinato do patrão ou seu preposto, o incendiar galpões de trabalho, bem como, nas greves, ataques e retaliações aos fura-greves (knobsticks). O próximo momento de organização dá-se com a associação, assembleias de delegados em datas fixas:

“Em alguns casos, tentou-se unir numa só organização de toda a Inglaterra os operários de um mesmo ramo e também houve tentativas – a primeira em 1830 – de criar uma única associação geral de operários de todo o reino, com organizações específicas para cada categoria; mas esses experimentos foram raros e de curta duração, porque uma organização desse tipo só pode ter vida e eficácia à base de uma agitação geral de excepcional intensidade”.

Em outros termos, as lutas do movimento operário inglês não saíam ainda do nível econômico para um questionamento da ordem social e política. Todavia, em que pese muitas das características daquele proletariado serem datadas para o leitor atual, a leitura da “Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra” ainda é relevante.

Trata-se de um documento histórico singular e ainda hoje uma surpreendente denúncia do modo capitalista de produção – não só pelo fato da Inglaterra ser o berço de tal civilização mas muito em função de encontrarmos aqui e ali passagens extremamente atuais, como a benevolência dos tribunais junto às classes proprietárias ou à singela carta de uma “Senhora” reclamando junto às autoridades acerca do excesso de mendigos ocupando o passeio público de Londres.  Não é muito diferente de respeitáveis “Senhoras” e “Senhores” daqui do Brasil.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

“Minha Vida” – A. P. Tchekhov

“Minha Vida” – A. P. Tchekhov 




Resenha Livro 152 - “Minha Vida” – A. P. Tchekhov – Editora 34 – Tradução  Denise Sales 

Anton Pávlovich Tchekhov nasceu numa cidade portuária ao sul da Rússia, Taganrog, em 1860. Ao contrário da maior parte dos consagrados escritores de sua geração, veio de família humilde: neto de servos, seu pai foi um humilde comerciante cheio de dívidas. 

Em 1879, Tchekhov ingressa na Faculdade de Medicina da Universidade de Moscou e passa a escrever pequenos contos nos periódicos daquela cidade essencialmente para obter sustento para si e seus irmãos. Em alguns anos esta ocupação lhe renderia não só algum retorno financeiro mas fama literária. De fato serão com os contos, publicados em revistas e periódicos, que Tchekkov vai ser consagrado como grande escritor de seu tempo, especificamente como de orientação realista que se dedica a temas corriqueiros e aspectos apenas aparentemente banais, mas que sob seu olhar, ganham tratamento profundo e universal. 

“Minha Vida” (1896) é grande o suficiente para não se tratar de um conto e é curto o suficiente para não se tratar de um romance: a melhor caracterização fica como sendo a de uma novela, observando-se de resto aquilo que é peculiar da literatura de Tchekhov: o realismo literário, a escolha de temas e eventos que não fogem daquilo que é o cotidiano de modo a extrair a força poética a partir justamente da observação do que aparenta ser superfície. 

Nesta novela temos uma história narrada em primeira pessoa pelo jovem Missail Pólznev. Aos 25 anos, após ser demitido pela 9ª vez em mais um emprego burocrático, para o desespero do seu pai, o jovem resolve romper com a lógica da divisão social do trabalho segundo a qual o trabalho intelectual reserva-se a pessoas de origem nobre como ele (filho de um arquiteto municipal, neto de um poeta e bisneto de um general) e delibera buscar um trabalho manual, conquistar efetivamente sua sobrevivência com o suor do seu labor físico – conquanto o trabalho burocrático repetitivo que supostamente seria intelectual lhe parecia ainda pior que os esforços físicos de sobrevivência do Mujique. 

O pai de Missail, um patriarca autoritário profundamente ressentido da decisão do filho, chega ao extremo de romper e tirá-lo da herança. 

Missail  surge nas ruas vestido como um simples pintor provocando diferentes reações dos habitantes da pequena província, de antiga conhecida que pretende não conhecê-lo, até poucos que vêm em sua decisão exótica algo como uma atitude admirável: este é o caso da filha do engenheiro da ferrovia, Maria Víktorovna, que viria a casar-se com o protagonista. 

E, talvez numa orientação distinta de Tolstoi, não existe aqui qualquer benevolência a priori no que diz respeito ao tratamento que o artista dá ao modo de vida dos camponeses. Se dentro das repartições públicas (trabalho intelectual) vigora a corrupção, o suborno e a burocracia, no campo (trabalho manual), onde irão morar e trabalhar o casal Missail e Maria, observarão que as condições de vida continuam sendo brutais: são vizinhos que roubam bens do sítio do casal, dificuldades na demarcação das terras, falcatruas, bebedeiras e arruaças dentre os mujiques. As dificuldades de sobrevivência e o tédio da vida repetitiva são extremos ao ponto de Maria Víktorovna abandonar seu marido e, junto ao seu pai engenheiro, viajar “para sempre” para Paris. 

O que torna esta novela interessante é que ela não oferece uma conclusão ou uma resposta definida acerca das inquietações iniciais do jovem protagonista diante da falta de sentido que a sua vida de nobre lhe reserva diante de uma sociedade inteira eivada pelo vício e pelo preconceito, de alto a baixo da escala social. É um romance que abre perguntas e não oferece tantas respostas. 

Ao final, um pequeno fio de esperança surge não através da política (ou da filantropia, que surge quando Missail e sua esposa tentam sem sucesso construir uma escola em seu vilarejo). 

A esperança vem a partir da arte:

“- Quem vai discutir? Estávamos certos, mas erramos ao colocar em prática aquilo de que estávamos certos. Acima de tudo, os nossos próprios recursos externos – será que não estavam errados? Você quer ser útil às pessoas, mas o simples fato de ter comprado uma propriedade, já desde o início, barra todas as suas possibilidades de fazer-lhes algo de útil. Depois, se você trabalha, se veste e se alimenta como mujique, com a sua autoridade, é como se legitimasse essa roupa pesada e desengonçada, as isbás horríveis, as barbas estúpidas que eles usam.... Por outro lado, suponhamos que você trabalhe longamente, muito longamente, a vida inteira e que no final das contas alcance um ou outro resultado prático, mas o que eles,  esses seus resultados, o que eles podem contra forças elementares, como a ignorância de gado, a fome, o frio a degeneração? Uma gota no mar! Aqui são necessários outros meios de luta, fortes, audaciosos, rápidos! Se quiser ser realmente útil, então saia do estreito círculo da atividade comum e procure atuar logo sobre a massa! É necessária, antes de mais nada, uma prédica barulhenta, enérgica. Por que a arte, por exemplo, a música, é tão perene, tão popular e realmente tão forte? Porque o músico ou o cantor atua logo sobre milhares”.   

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

“Rúdin” – Ivan Turguêniev

“Rúdin” – Ivan Turguêniev



Resenha Livro #151 - “Rúdin” – Ivan Turguêniev – Editora 34 – Tradução Fátima Bianchi

Ivan Turguêniev é junto com Leon Tolstoi e F. Dostoiéviski um dos principais expoentes da literatura russa do século XIX. É autor de vasta obra de teatro, poesia, contos e romances, tendo sido o primeiro dentre os três a ser consagrado no Ocidente.

Nascido em 28 de Outubro de 1818, no distrito de Oriol na Rússia, Turguêniev veio de família aristocrata: até os nove anos morou na propriedade rural da família e em seguida estudou em Moscou e São Petersburgo. Em 1838 mudou-se para Alemanha a fim de continuar os estudos em nível superior. Em Berlin fez filosofia, letras clássicas e história; participou de círculos estudantis e conheceu pessoalmente o agitador rebelde Bakunin, que serviria de inspiração para compor o personagem principal de seu primeiro romance.

Antes porém de Rúdin, publicou alguns poemas e alguns contos que seriam reunidos sob a denominação de “Memórias de um Caçador” (1852), já encontrando ressonância no público ao discutir o problema do homem do campo diante da servidão e a libertação dos servos, então em pauta. “Rúdin” foi publicado entre janeiro e fevereiro de 1856 na revista O Contemporâneo. O espetacular final do protagonista que desde uma barricada na França de 1848 morre empunhando uma bandeira vermelha, como uma espécie de Dom Quixote, num ato heroico e inútil de resistência e bravura, seria acrescentado alguns anos depois, provavelmente devido ao relaxamento da censura após a morte de Nicolau I.

O romance nos leva num primeiro momento à casa de campo de Dária Mikháilovna, uma viúva aristocrata de Moscou que anualmente dirige-se ao campo junto à sua filha Nathalia para aproveitar o verão: naqueles dias, a proprietária cuida de seu sítio pessoalmente e procura se ocupar convidando vizinhos e conhecidos para jantares e distrações, fazendo-nos conhecer diferentes tipos e personalidades. Pigassov é um dos frequentadores da casa de Dária Mikháilovna e diverte-a com o seu mal humor diante da vida e o seu ressentimento diante das mulheres.

“- Eu lhe asseguro, Aleksandra Pavlovna – proferiu lentamente Pigássov -, que nada pode ser pior e mais ofensivo do que a felicidade que chega demasiado tarde. Prazer, de todo modo, não pode proporcionar, e em compensação nos priva de um direito, do direito mais precioso – o de xingar e amaldiçoar o destino. Sim, senhora, a felicidade tardia é uma coisa amarga e ofensiva”.

Este personagem assumiria um papel importante como uma espécie de contraponto ao protagonista, Rúdin.

Rúdin surge naquele pacato sítio substituindo um Barão amigo da viúva que esteve impossibilitado de visitá-la – seu substituto num primeiro momento desperta a atenção e curiosidade dos ouvintes com sua eloquência e pleno domínio das palavras. Todos menos é claro Pigássov, um homem já velho e amargurado diante de fracassos pregressos e convencido de que “a palavra” é inútil, sempre vendo Rúdin como presunçoso – talvez por inveja, mas muito mais provavelmente em função do seu próprio passado que envolve o abandono dos estudos por fracasso pessoal e a desilusão radical diante do mundo das letras e sua utilidade.

Rúdin representa um setor da nobreza russa que conformaria aquilo a que se chama de “intelligentsia” e que em certa maneira remete ao próprio Turguêniev, uma juventude que iria estudar nas universidades Alemãs e Francesas, tinham contatos com ideias de reformadores sociais e filósofos como Kant, Hegel e Feuerbach e, ao retornar à Rússia czarista, dominada ainda pelo regime feudal no campo e com a esmagadora maioria da população vivendo na penúria e no analfabetismo, tornar-se-iam deslocados, sem conseguir de fato traduzir as ideias, ou as palavras, em atos.

Este é o drama do homem cosmopolita, como Rúdin, mesmo que se reconheça as suas boas intenções:

“- Está ouvindo – continuou Liéjnev, dirigindo-se a Pigássov – De que outra prova precisa? O senhor ataca a filosofia; ao falar dela, não encontra palavras suficientemente desdenhosas. Eu mesmo não lhe tenho grande apreço e mal consigo entendê-la: mas não é da filosofia que advêm nossos principais infortúnios! Os delírios e os meandros filosóficos nunca se enraizarão no russo: para isso ele tem muito bom senso; mas não podemos permitir que toda aspiração honesta para a verdade e a consciência seja atacada em nome da filosofia. A desgraça de Rúdin é que ele não conhece a Rússia, e essa é realmente uma grande desgraça. A Rússia pode prescindir de cada um de nós, mas nenhum de nós pode prescindir dela.”

Este deslocamento entre esta “intelligentsia” que importa filosofias ocidentais, conversa em francês dentro de pequenos círculos aristocráticos e apenas consegue “dialogar” com gente letrada, permanecendo completamente ininteligível para o mujique, sua mulher e as crianças – como atesta a tentativa frustrada de Rúdin em dar aulas de Literatura numa escola secundária – diz respeito à esta distância entre “a palavra” e à realidade, implicando na paralisia deste setor social – ao menos dentro do contexto histórico observado por Turguêniev, a Rússia de 1830-40.

Como se sabe, esta mesma  “intelligentsia” ganharia volume e expressão política ao longo do século XIX sendo a “ida ao povo” uma de suas saídas políticas desde os grupos populistas de fins do séc. XIX – com o acréscimo de que desta vez tal “intelligentsia” não se reduziria apenas a filhos da aristocracia.

De qualquer forma, os romances de Turgueniêv, Tolstoi e Dostoiéviski vão como refletindo o que foi a sociedade russa e como se deu a sua evolução durante o séc. XIX o que, dentre vários tópicos a serem analisados, oferece uma chave explicativa fundamental para se entender a razão pela qual a primeira revolução socialista do mundo estourou naquele local e naquela sociedade.  Pensar em Lênin em 1917 é certamente pensar num Rúdin em 1830.


sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

“Carlos Fonseca e a Revolução Nicaraguense” – Matilde Zimmermann


“Carlos Fonseca e a Revolução Nicaraguense” – Matilde Zimmermann 



Resenha Livro #150 - “Carlos Fonseca e a Revolução Nicaraguense” – Matilde Zimmermann – Ed. Expressão Popular 

Carlos Fonseca foi fundador, ideólogo e principal liderança política da "Frente Sandinista de Libertação Nacional", força política que dirigiu a Revolução Nicaraguense. Trata-se de evento que perdurou os anos 1970 e teve seu ápice entre os anos 1978-1979, culminando na tomada do poder político com a queda do ditador Somoza em 19 de Julho de 1979.

Alguns esclarecimentos preliminares são necessários. Augusto César Sandino a que a FSLN faz referência em seu nome foi o equivalente a José Martí do Movimento 26 de Julho da Revolução Cubana: foi um revolucionário nacionalista da Nicarágua que combateu a ocupação norte-americana na década de 1930 naquele país  sendo apropriado pelo movimento como uma referência anti-imperialista, nacionalista  e revolucionária.

Carlos Fonseca em seu exílio em Cuba seria responsável por resgatar este personagem histórico e incorporá-lo ao patrimônio dos lutadores, em especial como forma de se diferenciar e delimitar das outras oposições burguesas ao ditador Somoza, que se apoiavam eventualmente no imperialismo.

“Em 1927, Augusto César Sandino, um dos generais liberais, que combatiam o presidente imposto, negou-se a assinar uma rendição mediada pelos Estados Unidos e se pôs à frente de uma guerra de seis anos contra os marines norte-americanos. Os esforços do exército camponês de Sandino, somados  à crescente oposição à intervenção dos Estados Unidos, levou, em 1933, à retirada das tropas norte-americanas. Sandino foi assassinado em 1934 por ordem de Anastasio Somoza García, chefe de uma nova força militar, treinada pelos Estados Unidos: a Guarda Nacional. Nos anos 1960 e 1970, Carlos Fonseca deu uma nova vida ao exemplo de Sandino para inspirar uma nova geração a combater o governo e a Guarda Nacional, encabeçados pelos filhos de Anastasio Somoza”

E efetivamente nos primeiros anos de atividade guerrilheira, Fonseca buscou identificar nas montanhas sobreviventes ou filhos de combatentes do tempo de Sandino para a luta contra o ditador.

A Nicarágua é um pequeno país na América Central, fazendo divisa ao norte com Honduras e ao Sul com a Costa Rica. O poder político, após a ocupação norte-americana, era fatiado por grandes família endinheiradas organizadas no Partido Liberal (da família Somoza) e no Partido Conservador. Sua economia divide-se entre a produção de gado e especialmente a partir de meados do séc. XX na produção de algodão.

Fonseca iniciou sua militância quando estudante no  PSN (Partido Socialista Nacional), que equivalia ao Partido Comunista. Isso foi na década de 1950, quando tinha apenas 14 anos  e estudava no Instituto Nacional do Norte em Matagalpa.

Carlos Fonsceca viera de uma família humilde, sua mãe era uma costureira e teve Carlos como filho ilegítimo de Fausto Amador, homem extremamente rico e apoiador de Somoza.

O Partido Comunista logo desencantou o inquieto Carlos, já que tinha como política aliar-se aos partidos burgueses da oposição e estar contra a luta armada revolucionária: condenavam a tradição advinda de Sandino que ainda estava viva e focava sua intervenção na ação eleitoral e sindical.  Posteriormente, ficaria mais clara as diferenças entre Carlos Fonseca e o PSN:

“Os textos da maturidade política de Fonseca são extremamente críticos em relação ao PSN, partido que ele condena como colaboracionista de classe e burocrático, incapaz de encabeçar uma revolução na Nicarágua e relutante em fazê-lo. Chamava o PSN de “browderista” em referência ao secretário geral do CPUSA ( Partido Comunista dos EUA) Earl Browder, principal defensor no hemisfério Ocidental da participação dos comunistas em “frentes populares” ao lado das forças burguesas. Uma vez que Fonseca decidiu que o PSN não era genuinamente marxista, teve pouca paciência com os trabalhadores que simpatizavam com o partido”.

E o que não deixa de ser interessante é que quando a conjuntura tornou-se efetivamente revolucionária a partir de 1977, 78 e 79, enquanto os sandinistas e seu FSLN tornavam-se uma força política de massas, o PSN junto aos demais partidos burgueses ficavam em total isolamento, de modo a surgir um embate ou polarização clara entre Guarda Nacional/Somoza e FSLN/sandinistas e um vazio no centro político.

O ponto de saturação que levaria ao rompimento final junto ao partido comunista, bem como à total adesão ao método da luta de guerrilhas dá-se a partir de 1959 com a vitória da Revolução Cubana. A vitória do movimento 26 de Julho convence muitos daquela geração acerca da viabilidade de uma tática mais radical do que a via eleitoral e sindical proposta pelo PSN. É também neste contexto que Fonseca passa a estudar com mais atenção a história da Nicarágua e de Sandino.

Fonseca rompe com o PSN em 1961 e em 1963 seria criado a FSLN, primeiramente denominada FLN, uma referência às lutas de libertação nacional dos países da África.

Fonseca cumpriu um papel importante como ideólogo político daquela organização. Foi o redator do seu programa histórico que serviria de linha política mesmo após sua morte em combate em 1966.

O programa continha 13 reivindicações que envolviam a derrubada da ditadura, uma reforma agrária radical, expropriação das propriedades da família Somoza – todos foram efetivamente cumpridos ao longo dos anos 1980, talvez só se observando a reforma agrária não tão radical quanto planejada no plano original. O programa também previa nacionalização dos bancos, bem como do comércio exterior e da exploração dos recursos naturais e abolição da Guarda Nacional substituída pelo exército popular e patriótico. Defendia legislação trabalhista e programas sociais e de educação.

Um dado importante é que Fonseca não assistiu à vitória de seu movimento político: na verdade só pôde tomar parte da luta durante todo um período de refluxo das mobilizações e não assistiu ao sensacional crescimento das manifestações anti Somoza determinada pela deterioração e crise política do regime a partir de 1977, com o término do estado de sítio e a série de manifestações espontâneas, no campo e na cidade, por todo o país. O sério terremoto que abalou a capital Manágua alguns anos antes e as denúncias de mal uso do dinheiro destinado à ajuda humanitária já desgastara bastante o governo.

Todavia, este levante popular pegou mesmo os dirigentes sandinistas de surpresa e veio em sentido contrário a algumas expectativas determinadas pelo programa: os guerrilheiros partiam da organização das montanhas (campo) quando o levante teve um caráter eminentemente urbano, com participação massiva da classe operária, com barricadas nas ruas, bombas caseiras e coquetéis molotov, pichações de muro, greves, ocupações de prédios, além de participação nas lutas em armas de estudantes e mulheres. O que movia em grande parte a população era o ódio contra o ditador que se servia de métodos espúrios de repressão, atacando os bairros pobres indiscriminadamente atrás de guerrilheiros, lançando bombas aéreas e matando milhares de inocentes – o ódio contra Somoza encontrou expressão não nos velhos partidos conciliadores de oposição mas na única organização disposta a combatê-lo em armas. A população buscava a FSLN enquanto antes a FSLN buscava (sem sucesso) a população. A organização em pouco tempo cresceu num ritimo exponencial, até derrotar o ditador, a Guarda Nacional, tomar uma a uma as cidades e dirigir vitoriosamente a revolução.

Muitos outros elementos são destacados e dignos de reflexão nesta biografia de Zimmermann. O papel das mulheres e dos índios e negros na luta revolucionária, a relação entre o internacionalismo dos partidos comunistas e o internacionalismo dos movimentos guerrilheiros latino-americanos, o isolamento total do movimento guerrilheiro diante do movimento camponês e o triunfo da revolução na cidade, a relação com o sandinismo e a dimensão anti-imperialista daquela insurreição, as três frações políticas internas que dividiram a FSLN em meados dos anos 1970: além destes pontos, outros não abordados pela autora, como o governo do FSNL a partir de 1980 e a adaptação de suas direções ao poder num movimento semelhante ao Partido dos Trabalhadores aqui no Brasil, incluindo o enriquecimento de lideranças e culminando na derrota eleitoral em 1990.

A revolução nicaraguense foi a segunda e última experiência revolucionária popular vitoriosa na América Latina – seguida após o movimento de Che e de Fidel Castro. É necessário um estudo mais detalhado deste movimento e em particular daquele personagem marcado pelo ascetismo - não bebia nem fumava e reclamava uma conduta ponderada dos militantes revolucionários, inclusive no trato sexual. Carlos Fonseca, hoje ainda virtualmente desconhecido no Brasil. Com seus 1.80 de altura e sua vontade incansável de fazer triunfar a revolução, um revolucionário que, como Zapata, não bebia, não fumava e que como “Che”, acreditava que a luta guerrilheira deveria forjar um novo homem, mais solidário e fraterno. Não é só um herói da nação nicaraguense mas de toda América Latina em sua luta por emancipação .  

domingo, 18 de janeiro de 2015

“Doidinho” – José Lins do Rego

“Doidinho” – José Lins do Rego

Resenha Livro 149 – “Doidinho” – José Lins do Rego – Editora Nova Fronteira 



“Doidinho” (1933) é o segundo livro escrito por José Lins do Rego e corresponde a uma sequência da vida do personagem Carlos de Melo desde “Menino de Engenho” (1932) (Ver resenha: http://esperandopaulo.blogspot.com.br/2014/12/menino-de-engenho-jose-lins-do-rego.html). 
 
Enquanto o primeiro romance aborda a infância do personagem vivida no engenho de seu avô, o coronel José Paulino, em “Doidinho” o cenário passa a ser o colégio interno do severo do mestre Seu Maciel, localizado na cidade de Itabaiana. 


Existe elementos de mudança e de continuidade entre os dois romances sendo certamente recomendável a leitura de ambos, dentro da sequência cronológica. No que se refere à continuidade, ainda temos uma narrativa em primeira pessoa sempre buscando resgatar as percepções de mundo e as sensações experimentadas pelo menino, das lições e dos castigos na escola, dos contatos com a catequese, o sentimento de culpa religioso e o medo da morte, a experimentação sexual, o amor e a amizade. 


E os elementos que diferenciam os romances dizem respeito essencialmente ao local onde se passa a história: desde o colégio interno, localizado na cidade, longe do engenho e da família, junto a cerca de 70 meninos da Paraíba e Recife, de diversas idades, se relacionando através de brincadeiras nem sempre desprovidas de malícia e perversidade infantis: as intervenções envolvem questões pessoais que oprimem e humilham, como a mãe de um garoto que é “mulher da vida”, criando-se uma situação que engendra a saído do aluno do colégio ou o próprio Carlos (“Doidinho”), cuja tragédia familiar envolvendo o pai e mãe, ambos mortos, não o poupam de brincadeiras sinistras acerca de sua família. 


Esta sensação de que o mundo das crianças dentro do colégio remete a uma espécie de estado de natureza hobbesiano, com pouco lugar à fraternidade e muito espaço ao deboche e às delações que levam aos castigos através do bolo de seu Maciel remetem bastante este romance de José Lins do Rego ao “Ateneu” de Raul Pompéia ( Ver resenha: http://esperandopaulo.blogspot.com.br/2014/10/o-ateneu-raul-pompeia.html) 


Os poucos lances de solidariedade dentro do internato seriam cultivados através da amizade do narrador-protagonista com seu amigo “Coruja”, e ainda assim temporariamente, já que o seu colega seria posteriormente recrutado como uma espécie de ajudante do mestre, ficando responsável por fazer relatórios das arruaças, ditando nomes, para posterior castigo. 


E se observa como a metodologia da punição física, associada à educação religiosa e ao treinamento militar dizem respeito a um modelo de educação autoritário, cuja figura central do Mestre Maciel está lá para meter medo nas crianças: o que, diga-se, não impede de haver violações às normas. Da mais grave de todas, certamente foi a que envolveu Pão Duro e Clóvis, um caso de pederastia que fez estalar os bolos de muitos dedos e quase custou a expulsão dos discentes. De outro lado, tanto da descoberta desta infração, quanto de outros momentos críticos como quando um aluno mais velho não se submeteu ao diretor, o narrador chama atenção como os fatos adversos afetavam pessoalmente o velho Maciel, quase como um pai que, efetivamente, ora se desapontava, ora se orgulhava de seus alunos, frutos de sua intervenção como mestre.  Tinha uma postura autoritária e buscava meter medo nos alunos para garantir sua autoridade apenas durante o período letivo já que, durante as férias, o pequeno Carlos observou como o diretor transformava-se em homem pacífico. 


A escola ensinava na mesma sala alunos de diversas séries: havia os internos e os externos. Tomavam banho apenas duas vezes por semana de modo que era comum os estudantes  estarem com piolhos nos cabelos. A comida feita pela negra Paula era a base de carne seca e bolacha: uma ração que deixava as crianças magras. Eventualmente tomavam banho de rio. Em um dado momento puderam conhecer o cinema, naquela época, com filmes mudos, sendo a sonoplastia executada num piano. Desde a igreja, os pequenos aprendiam a ter medo do inferno: 


“Não poderíeis jamais avaliar o que sejam os sofrimentos do inferno. Lembrai-vos da maior dor que possa afligir um homem na terra, e esta dor se prolongando por séculos e séculos. Quando vos dói um dente, a vontade que vos chega é a da extração imediata, de arrancá-lo para vosso alívio. Para a dor que vos atormenta tendes logo o recurso dos remédios. Quantos não chegam à alucinação com os seus padecimentos, quantos não se beiram do suicídio! Avaliai agora uma dor sem remédio e sem jeito. Um dor que é de todo o vosso corpo, da cabeça aos pés, de todas as vossas fibras e de todos os vossos nervos; a vossa carne ardendo, derretendo-se nas chamas de um fogo mais quente que o das caldeiras, o fogo soprado pelos demônios”. (P. 81)


Quando o narrador descreve seu passado, busca identificar a sua percepção da realidade enquanto criança sem, contudo, deixar de oferecer uma descrição bastante objetiva daquele mundo. Este realismo na narrativa é típico dos escritores do modernismo em sua segunda fase: seria uma característica dos romances daquela geração de escritores regionalistas como Graciliano Ramos, Rachel de Queiróz e Amado Fontes, se relacionando tal objetividade com um esforço de reflexão acerca de problemas sociais como a seca, a migração, o trabalhador rural e a desigualdade social (não oculta mesmo aos olhos de Carlinhos em suas férias no Engenho). 


O que os escritores da 2ª Geração do Modernismo ganham em relação aos pioneiros de 1922 é uma maior consciência social, seja por meio da crítica, seja descrevendo um Brasil ainda não modernizado, o que está presente naquele engenho do avô do protagonista, um coronel que ainda tem em suas terras as relações sociais ditadas pelo mandonismo centrado na sua pessoa e mesmo as relações econômicas aparentemente feudais, com trabalhadores posseiros se submetendo ao coronel em troca de terra para plantar e proteção econômica para os tempos difíceis.  


“Doidinho” termina numa passagem de suspense com uma cena de fuga do aluno do colégio diante da inaptidão de Carlinhos em participar do desfile de 7 de setembro: o menino não tomava jeito nos treinamentos e foi rejeitado (o único), sentido -se humilhado e buscando, com a fuga, atenuar seu sentimento de culpa e tristeza. Ao que tudo indica, o escritor deixou em suspense uma história que continuaria a ser contada depois. 


O denominado “Ciclo da Cana de Açúcar” continuaria com os romances: Bangüe (1934), O Moleque Ricardo (1935) e Usina (1936)