domingo, 13 de janeiro de 2013

"Terra e Liberdade" - Ken Loach

Resenha Filme #4 “Terra e Liberdade” – Ken Loach




“Terra e Liberdade” aborda a Guerra Civil Espanhola a partir das experiências de David Carr. David é um jovem desempregado de Manchester, filiado ao Partido Comunista Inglês. Assistiu palestra sobre a luta contra o fascismo na Europa que o cativou a se inserir nas fileiras de batalha do campo Republicano, contra Franco e o Fascismo.

A questão do internacionalismo é reiterada ao longo do filme: das milícias do POUM (Partido Operário de Unificação Marxista) havia irlandês, francês, alemão e inglês. Sob outro aspecto o conflito apontava para o internacionalismo – o fascismo avançava sobre a Itália e Alemanha, de forma que a derrota de Franco poderia significar o fortalecimento tanto dos setores democrático-liberais, como dos partidos comunistas e socialistas naqueles países. Nesse sentido, a Espanha era observada pelo mundo e palco privilegiado da luta de classes.

David Carr, por uma questão de contingência e não, inicialmente, por opção política, adere ao POUM: ele havia conhecido militantes desta organizaão na sua viagem de trem para a Espanha.

A Guerra Civil Espanhola foi o produto de uma tentativa de golpe liderado por militares de Direita contra o governo legal e democrático. Em 17 de Julho de 1936, após um pronunciamento dos militares rebeldes, teve início a guerra. O POUM nascera em 1935, a partir de uma fusão da Esquerda Comunista Espanhola (trotskysta) e do Bloco Operário Camponês. Este último era de orientação comunista, implantado e com maior força na Catalunha, tendo como principal referência Joaquim Maurín.

O partido ao qual David se inseriu atuava na guerra por meio de milícias. Pelo filme de Ken Loach, nota-se que as brigadas mantinha tratamento equitativo entre homens e mulheres: as mulheres também tomavam parte das lutas nas barricadas e das discussões políticas. Após libertar um vilarejo do domínio fascista, o filme retrata o que seria uma primeira assembleia geral dos moradores do local. Os milicianos socialistas puderam, antes de assembleia, experimentar do ódio que aquele povoado mantinha pelos fascistas. Mães denunciavam o Padre local – que havia dedurado e provocado a morte de alguns jovens anarquistas. O ódio popular fez com que fossem feitas fogueiras e queimados os adereços da Igreja. Agora, na assembleia, ainda sob o calor daqueles acontecimentos, os moradores passaram a dirigir os rumos do povoado. Inicialmente os militantes do POUM buscavam não intervir e deixar os moradores deliberarem sobre o que fazer com as terras abandonadas. Convidados a participar do debate, os mesmos se dividem: uns defendem a imediata coletivização da terra e o fim da propriedade privada, enquanto outros defendem a manutenção da pequena propriedade e a liberdade de comerciar. Prevaleceu a 1ª tese após a defesa de um militante alemão do POUM que, oportunamente, lembrou que as hesitações e vacilações reformistas dos comunistas daquele país estava levando o fascismo ao poder – não poderiam cometer o mesmo erro na Espanha. Era parte da percepção daquele pequeno agrupamento revolucionário que a luta contra Franco caminhava junto com a revolução.

A desmobilização do POUM

No filme, podemos acompanhar cena de forte carga emotiva em que soldados do exército republicano apontam armas para os milicianos do POUM, exigindo a sua desmobilização, em troca de um exército regular, com hierarquias, sem mulheres e sem perspectiva revolucionária – um exército controlado pelo governo e internacionalmente apoiado pela URSS. A guerra revolucionária , que era então conduzida dentro desta perspectiva mobilizadora, com variações táticas, pelo POUM e pelos anarquistas da CNT, implicava na desestabilização política de um regime de conciliação com a burguesia. Além disso, uma revolução socialista em Espanha não interessava a União Soviética àquele momento – do ponto de vista diplomático a linha era não criar conflitos e ganhar tempo para se armar para o iminente conflito mundial. O Partido Comunista Espanhol stalinista entra em confronto com este campo político (Poum e anarquistas). Enquanto os fascistas eram alimentados pela máquina de Guerra da Alemanha e Itália, comunistas de um lado e anarquistas e socialistas revolucionários do outro lado da trincheira combatiam em armas nas ruas de Barcelona (Jornadas de Maio), ambos acusando-se reciprocamente de favorecerem o fascismo. O fato é que Stálin e sua teoria do socialismo em um só país via tanto como um risco revolucionário as milícias operarias que, por meio do PCE, tratava de impedir que as armas soviéticas chegassem aos milicianos. A radicalização e o transcrescimento da luta anti-fascista em uma mobilização na perspectiva socialista não estava na agenda dos burocratas de moscou. David Carr rasga sua carteira de membro do partido comunista inglês, mas, sem contarmos o final do filme, concluímos que Carr morreu ainda esparançoso quanto ao advento do socialismo. De fato a guerra civil espanhola teve como vitorioso o regime reacionário e detestável do fascismo. Mas a mobilização espontânea e generosa de milhares de brigadistas de todo o mundo e mesmo da Espanha para lutar nas trincheiras daquela guerra ainda nos lança esperança, até hoje, sobre a existência de pessoas em todo mundo que amam a liberdade e por isso estão dispostas a lutar até a morte contra o fascismo. Não Passarão!

sábado, 12 de janeiro de 2013

"A vida de Lênin" - Louis Fischer

Resenha livro #48 “A vida de Lênin” – Louis Fischer – Volume II


capa

Tivemos acesso unicamente ao volume II desta majestosa biografia do líder do partido bolchevique e da Revolução Russa Vladimir I. Lênin. Nossa edição contém do capítulo 25, “A Paz é uma Arma”, correspondente aos anos de Guerra Civil, até o capítulo 51, “O Fim”, com relatos da reação popular e da burocracia à morte do principal dirigente do país, àquela altura, já incapacitado para o trabalho.


Sobre o autor


Louis Fischer (1896-1970) foi um jornalista norte-americano que teve a oportunidade de ver de perto a realidade da Rússia dos primeiros anos pós-revolução. Iniciou a carreira trabalhando como correspondente na Revista The Nation, a mais antiga publicação em forma de revista dos Estados Unidos. Fischer participou como correspondente durante a Guerra Civil Espanhola e efetivamente tomou parte na brigada internacional contra o fascismo. Finalmente, Fisher deu aulas sobre a URSS na Universidade de Princeton, até a sua morte.

Visão panorâmica da obra

Ao contrário do que ocorre com alguns biógrafos, Fischer consegue manter certa distância crítica de seu objeto de estudo. Não hesita em estabelecer críticas e traça um panorama o mais realista possível da vida de Lênin, desde os anos do comunismo de guerra, passando pela NEP, a disputa pelo poder e a conformação da burocracia, corroborando para ascensão de Stálin - falo aqui, por suposto, do volume II da obra. Todo o relato é embasado por documentação extensa, que envolve correspondências pessoais, documentos oficiais e relatos pessoais de pessoas que conheceram Lênin.

Também a personalidade do líder é extraída de suas correspondências e de relatos de jornalistas, políticos estrangeiros, militantes do partido e diplomatas que puderam conhecê-lo pessoalmente. Em geral, a impressão pessoal destas pessoas fazem-nos crer que Lênin, pessoalmente, era uma pessoa afável e que tendia a escutar mais do que falar. Tinha estatura baixa e certa mania de forçar a vista e os olhos quando estava diante de seu interlocutor. Gostava de gatos e deixou-se fotografar em algumas ocasiões com felinos. Tal temperamento aparentemente doce contrasta com sua intransigente defesa de princípios e das suas ideias da tática e estratégia políticas, em geral. A ineficiência da administração do governo soviético, com os atrasos de abastecimento, a falta de produtos e as dificuldades de relacionamento com os camponeses implicavam em cartas bastante duras, apontando onde há o erro, condenando os responsáveis e ditando o que se devia fazer.

É bastante perceptível a clareza de Lênin quanto à necessidade de outras revoluções estourarem na Europa ocidental: esta seria pré-condição para o êxito total da Revolução Russa. Seu internacionalismo já contrastava tanto com a linha de Stálin acerca nas minorias nacionais em Rússia, quanto com a teoria stalinista de socialismo “em um só país”. Muito provavelmente, e teoria do “socialismo em um só país” deveria ter provocado risos ou, talvez, revolta e indignação em Lênin, se tivesse vivido ao ponto de conhecê-la.

Por último, o biógrafo lembra que Lênin era capaz de manter alguma separação entre relações pessoais e políticas. Ainda que os primeiros anos da revolução tenham exigido censura, prisões e pena de morte aos elementos contra-revolucionários, Lênin, por exemplo, dizia gostar da pessoa de Molotov, apesar das divergências políticas. Por outro lado, segundo Fischer, Trótsky – que, principalmente nos anos imediatamente anteriores à morte de Lênin, juntou-se a Lenin contra Stálin quanto à questão da Geórgia –não causava uma boa impressão pessoal ao líder do partido bolchevique. Lênin achava Trótsky excessivamente vaidoso e muito focado no aspecto administrativo e não político dos problemas. Entretanto, em sua carta testamento, não deixou de citar Trotsky como um dos militantes mais capazes. (Stálin não é citado por Lênin).
 
Comunismo de Guerra

O livro inicia-se narrando a difícil situação do Estado Operário, diante da guerra imperialista e da contra-revolução burguesa, envolvendo desde elementos que vão do antigo feudalismo russo, até mencheviques e socialistas revolucionários (partido socialista moderado com maior adesão no campo), todos engajados em desestabilizar o regime dos Soviets. Durante os primeiros momentos da revolução russa, o Estado Operário buscou estabelecer um controle total sobre economia e sociedade. O monopólio do comércio exterior por parte do estado, a proibição da comercialização e a distribuição de terras aos camponeses, com o fim do comércio neste setor, tinha a ver com o próprio esforço de sobrevivência da Rússia. O país, que já sofrera com os efeitos da guerra e com a guerra civil, via seu parque produtivo completamente desorganizado, levando ao desabastecimento nas cidades, à fome e epidemias, como de tifo. A vitória definitiva do exército vermelho sobre as forças da reação ainda não resolveriam outros impasses significativos naquela país. Uma dificuldade particularmente significativa era a falta de quadros capazes de assumir o Estado e mesmo as tarefas administrativas: muitos dos revolucionários bolcheviques tombaram na sangrenta Guerra Civil.

Em síntese o comunismo de guerra implicou no controle estatal direto da economia, em decorrência da fuga dos capitalistas, da destruição do mercado pela guerra e relação de desconfiança com a classe camponesa. A tensão entre cidade e campo expressava um desnível nas relações sociais entre a Rússia e os demais países capitalistas. Enquanto estes já possuíam um proletariado em expansão e organizando-se, a Rússia ainda era um país predominantemente rural, com maioria populacional camponesa. Inicialmente, os bolcheviques distribuíram as terras aos camponeses, montaram algumas cooperativas agrícolas, estatizaram fábricas e proibiram o comércio. Havia distribuição de tíquetes e talões de racionamento no lugar de pagamentos em moeda e trocas diretas de produtos. Ainda assim, ao longo do livro somos constantemente deparados com uma Rússia extremamente carente materialmente, com enormes dificuldades de locomoção sobre seu enorme território, com a fome e as mortes assombrando a cidade e o campo.

Em termos práticos as primeiras medidas tomadas pelo estado operário envolviam: requisição de cereais, o que era feito com muita dificuldade já que os camponeses escondiam parte da produção para comercializar clandestinamente; nacionalização de todos os bancos, fábricas e terras; decreto do trabalho obrigatório; requisição da produção agrícola; Retirada da Rússia da Primeira Guerra Mundial, estabelecida por meio do meio do Acordo de Brest-Litovski.

Paz, Terra e Pão

Sobre a questão da primeira guerra mundial, é válido um pequeno destaque. Deve se observar que ela é um dos motivos que explicam a própria Revolução Rússia. Tratou-se a guerra de um conflito extremamente impopular naquele país, em particular em função dos cerca de quatro milhões de russos mortos. O descontentamento da guerra e as desersões foram instrumentalizados politicamente pelos bolcheviques.

Após a Revolução de fevereiro, com a vinda de Lênina da Finlândia, de forma clandestina e com anuência dos alemães, o dirigente manifestou aquilo que ficou conhecido como as teses de abril. O pilar da tese era “Paz, Terra e Pão”, palavra de ordem da subsequente à revolução (ou golpe?) de outubro de 1917.

Em meio a toda esta turbulência, Lênin veio a se destacar como líder por meio de suas intervenções nos órgãos do partido e nos veículos de imprensa. Defendia suas posições com ênfase e força, mas quando era derrotado, centralizava-se pelo partido. Fischer cita alguns pontos de divergência entre os bolcheviques, destacando-se, particularmente, a questão das nacionalidades, o problema do comércio exterior, a relação conflituosa com os camponeses e estreitamento cada vez maior (implicando em maior autoritarismo político) entre estado e partido.

A Questão Nacional

A questão nacional colocou-se com vigor em um país de proporções continentais. Não é difícil perceber a enorme tarefa que estava à frente dos bolcheviques: articular diferentes etnias, línguas e culturas dentro de uma União de Repúblicas Soviéticas. “Como se fora gerente de uma empresa gigante, Lênin sabia que não podia ser rígido, tinha de manobrar, para que as coisas pudessem andar. Para espalhar a revolução, ordenou ao exército vermelho avançar Polônia adentro no verão de 1920. Mas ordenou contenção na reconquista das áreas do antigo império czarista”.

O fato é que um encaminhamento satisfatório para a questão das nacionalidades no interior da União Soviética envolvia a análise de cada caso em concreto – haviam regiões muçulmanas, e outras em que vigorava forte tendência anti-russa. Lênin advogava pela “independência” destes países, buscando relacionar a intervenção soviética como parte de uma luta geral anti-imperialista. Divergia de Stálin (ele próprio georgiano) que advogava um controle mais duro junto a tais nacionalidades. Ambos não abriam mão da liderança do Estado Operário frente às minorias étnicas da rússia. A diferença foi a de que Stálin advogava um controle ainda maior e mais duro, sem concessões.

Luta de classes sob o estado operário

Não só o descontentamento e o espírito separatista ou nacionalista de alguns povos da Rússia punham em risco a coesão e estabilidade do governo. O fato é que se observa a reprodução da luta de classes dentro do Estado Operário. O descontentamento dos marinheiros de Kronstadt (1921), uma rebelião operária esmagada pelos bolcheviques, e que ainda hoje divide ativistas quanto à conduta dos bolcheviques e de Trótsky. Greves ocorreram durante os anos 1920 da URSS e o descontentamento aumentava – na cidade pela falta de abastecimento, pelas epidemias, pela ineficiencia administrativa e corrupção, e no campo especialmente pela política de requisição forçada. Neste contexto, o governo operário adota a NEP (Nova Política Econômica), uma tentativa de restaurar elementos do capitalismo para avançar no desenvolvimento material e administrativo de um estado ainda esfacelado pela revolução e guerra civil. Lênin escreve artigos defendendo a implantação de empresas estrangeiras na Rússia – só assim, poderiam desenvolver as técnicas de produção, já que a produtividade do trabalho era muito baixa na Rússia. No campo ainda se trabalhava com os arados da época medieval. Outras diretrizes da NEP: liberdade de comércio; autorização para o funcionamento de empresas particulares; liberdade de salário para os empregados. O slogan pelo qual ficou conhecida a restauração parcial capitalista na URSS é "dar um passo para trás e dois para frente."

Últimos momentos da vida de Lênin

Lênin dedicou inteiramente sua vida à causa da Revolução. A partir da tomada do poder político pelos bolcheviques, relata-se que o mesmo trabalhava de 12 a 14 horas por dia. Todos os médicos foram unânimes em dizer que a gradual convalescência tinha a ver com o excesso de labor. Em sua sala de estudos, empilhavam-se livros sobre história, economia, relatórios da produção industrial e agrícola da Rússia, jornais e periódicos internacionais. Lênin dizia não ter tempo para ler romances, saia pouco, ia pouco ao teatro, e estava sempre acompanhado de Krupskaja, companheira e militante bolchevique. Antes de morrer, uma das principais preocupações de Lênin era a burocratização do poder, observada por por meio de uma série de exemplos de ineficiência administrativa ou mesmo corrupção – ineficiência que, por suposto, criava descontentamento popular e punha em risco mesmo a sobrevivência do estado operário. Lênin via se formar um contingente de burocratas intermediários sem qualquer preparo técnico para dirigir as fábricas, conduzir e administrar os serviços estatais, etc. Nos últimos anos de vida, já havia observado a excessiva concentração de poder nas mãos de Stálin. Para Lênin, o mais importante era a sobrevivência do governo soviético russo, mesmo havendo de fazer concessões.

A Nova Política Econômica é parte desta preocupação em fazer concessões para salvar o governo operário, assim como a diplomacia soviética e a condução política das nacionalidades remotas da Rússia. A falta de “democracia” e a centralização do poder não se explicam, naquele contexto, como algum desvio, ou o fruto de um temperamento “autoritário” de Lênin. Como político genial que foi, tenha certo senso pragmático (a teoria, para Lênin, é um guia para a ação). Entendia o partido como uma organização centralizada, com hierarquia e disciplina - sem este tipo de organização, pensava Lênin, jamais poderiam ter se organizado, principalmente nos anos de repressão czarista, até a tomada do poder político. Fischer nos faz crer que para um país atrasado como a rússia, avançar e dar passos em direção à industrialização, era necessário um regime mais centralizado.

Lênin também sabia bem que no campo havia uma tendência pró-capitalista e para garantir a direção do proletariado no governo, tinha de fazer concessões. Sabia e reiterava francamente que tanto do ponto de vista do desenvolvimento das técnicas de produção, quando do nível educacional, cultural e civilizatório do povo russo naqueles anos estava inferior à situação média dos países capitalistas.

O legado

O legado de Lênin traduz-se pelo seu exemplo de vida: foi um homem que vivem cada minuto da vida adulta pensando e agindo em torno da luta socialista. Literalmente, morreu de tanto trabalhar. Sua obra teórica igualmente merece lembrança, como parte do legado do que há de mais importante dentre os autores ligados à tradição marxista.

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

"A Revolução Traída" - Leon Trotsky

Resenha #46 "A Revolução Traída: o que é e para onde vai a URSS" - Leon Trotsky. Ed. Sundermann



Leon Trotsky nasceu no distrito de Oblast na Ucrânia em 1879. Iniciou sua trajetória política como um socialista independente: é no decurso da Revolução que adere ao partido bolchevique de Lênin. Destaca-se como orador e agitador: é eleito presidente do soviet de Petrogrado e lidera o Comitê Militar Revolucionário que viria a concretizar a tomada do Palácio de Inverno, a queda de Kerensky e a tomada do poder pelos bolcheviques.

Uma vez consumada a Revolução de Outubro, Trotsky exerceu as funções de Comissário do Povo para Negócios Estrangeiros (quando foi destacado para negociar com a Alemanha o pacto Brest-Litovski) e Comissário do Povo para os Assuntos Militares (quando viria a organizar e liderar o exército vermelho, instrumento militar decisivo para a sobrevivência da revolução durante a guerra civil (1918-1920).

“A Revolução Traída: o que é e para onde vai a URSS” foi escrita no ano de 1936, quando Trotsky encontrava-se no exílio no México. Vale recordar que, com a morte de Lênin, houve uma re-ordenação das forças internas do partido bolchevique. Já desde os últimos momentos de vida de Lênin, já se esboça tensões políticas acumuladas: em 1924, Trótsky publica “As Lições de Outubro” em que critica Stalin e a direção do Komitern por sua política frente ao levante operário na Alemanha em 1923. As mesmas hesitações daquele campo político, segundo Trotsky, também puderam ser vistas às vésperas da Revolução de Outubro. Outrossim, já naqueles anos, surge, de forma embrionária, a oposição entre duas estratégias para o movimento: a tese de Stálin (que é a personificação da burocracia) do “Socialismo em um só país” e a perspectiva internacionalista da Oposição de Esquerda e de Trotsky.

Em 1927, Trotsky é afastado do partido e, dois anos depois, é expulso da URSS. Poucos foram os personagens na história que foram tão perseguidos e caluniados por uma poderosa máquina burocrática: o trotskysmo é um inimigo declarado da burocracia, que irá caçar Trotsky e seus familiares até conseguir calar sua voz em 1940, com seu assassinato no México.

Foi no exílio que Trotsky produziu a maior parte de sua obra escrita. “A Revolução Traída” é um destes ensaios do tempo fora da URSS: a partir de uma vasta e crítica pesquisa de números oficiais e estimativas acerca da produção industrial, agrícola, da produtividade do trabalho e do nível de desenvolvimento das técnicas de produção, Trotsky elabora uma poderosa síntese histórica, buscando descrever a natureza política do estado soviético e o papel histórico da burocracia.

O Caráter do Estado Operário

Segundo Trotsky, a “ditadura do proletariado é uma ponte entre as sociedades burguesa e socialista. A sua própria essência confere-lhe, pois, um caráter temporário. O Estado que realiza a ditadura tem por tarefa derivada, mas absolutamente primordial, preparar a sua própria abolição”. Ora o que se via então na União Soviética era um movimento contrário: conforme se fortalecia o poder da burocracia, esta se afastava cada vez mais das massas e das organizações de democracia direta. Restaurava-se o direito burguês, com a finalidade de garantir a posse e usufruto de bens por parte da camada privilegiada. O Estado ao invés de agonizar, “torna-se cada vez mais despótico; se os mandatários da classe operária se burocratizam e a burocracia eleva-se acima da sociedade renovada, não é por causas secundárias, como as sobrevivências históricas do passado etc., é em virtude da inflexível necessidade de formar e de conservar uma minoria privilegiada enquanto não é possível assegurar a igualdade real.”

Enquanto já nos anos 1930, a burocracia soviética e seus “amigos do ocidente” como o casal Webb, já alardeavam solenemente o fim da divisão das sociedades em classes e uma realidade socialista na URSS, Trotsky, ancorado especialmente nos níveis de produção e produtividade do trabalho, entende que o Estado Operário, para se encontrar ainda no primeiro estágio do socialismo, precisa encontrar um equilíbrio entre produção e consumo, realidade bastante distinta da URSS. O mesmo podia-se dizer com relação ao nível de desenvolvimento das forças produtivas: naquela conjuntura, inferior aos países capitalistas. Vale ressaltar os inúmeros exemplos de desigualdade social, com o acesso aos bens de consumo e conforto exclusivos aos burocratas, enquanto parcelas significativas do proletariado e do campesinato persistiam em condições sociais análogas ao do tempo dos czares. Aliás, mesmo as relações de Mando, a restauração da hierarquia dentro das forças armadas e da polícia (os três fenômenos discutidos por Trotsky) só faziam com que o Estado Operário se aproximasse mais do passado feudal do que do futuro comunista. Assim, mesmo com a planificação da economia e o monopólio do comércio exterior, Trotsky não caracterizava o Estado Operário, naquele momento, como socialista: tratar-se-ia de um estado operário a meio caminho entre o capitalismo e o socialismo. A vitória do socialismo na URSS dependeria da vitória das revoluções operárias nos países avançados do capitalismo: uma nova revolução socialista na europa criaria a força e confiança para o proletariado e as massas russas avançassem sobre a burocracia, promovendo a necessária Revolução Política. Dois caminhos estavam em aberto para URRS naquela conjuntura: o perigo da restauração capitalista (reação) ou uma nova revolução, de tipo política, que viria a derrotar a burocracia e restabelecer o regime de produção planificada para melhor satisfação das necessidades humanas.

A Burocracia Soviética cumpre, segundo Trotsky, um papel análogo à “reação termidoriana”. O significado da expressão remete a derrubada do setor mais radicalizado da Revolução Francesa (Jacobinos), iniciando-se o período da reação, com a extinção das medidas revolucionárias e perseguições dos antigos líderes. A explicação para a equiparação da burocracia à reação encontra os seus fundamentos na história:

“O Caráter proletário da Revolução de Outubro resulta da situação mundial e de certa relação de forças no interior. Mas, na Rússia, as classes tinham-se formado no seio da barbárie czarista e de um capitalismo atrasado, e não tinham sido preparadas de encomenda para a Revolução socialista. Muito pelo contrário, foi precisamente porque o proletariado russo, em muitos aspectos, ainda atrasado, conseguiu dar o salto em alguns meses sem precedentes na História, de uma monarquia semifeudal para uma ditadura socialista, que a reação foi obrigada, inelutavelmente, a fazer valer os seus direitos no interior das próprias fileiras. Ela cresceu no decurso das ondas que se seguiram”.

Outra razão para o fortalecimento da burocracia deu-se na medida das derrotas do proletariado em nível mundial. Em contraposição à perspectiva do internacionalismo, a burocracia soviética (e sua tese de Socialismo em um só país) ganhava segurança, enquanto a classe operária dos países europeus sofria derrotas históricas: a derrota da insurreição na Alemanha em 1923, Estônia em 1924, a liquidação da greve geral na Inglaterra e a derrota da revolução chinesa em 1927 foram implicando na desilusão crescente das massas na perspectiva da revolução mundial, “permitindo à burocracia soviética elevar-se cada vez mais como alto farol indicando o caminho da salvação”.

Hoje, mais de oito décadas depois de “A Revolução Traída”, esta bela obra de história ainda tem força para formar politicamente e inspirar novas gerações à luta socialista. A defesa intransigente dos princípios marxistas acerca da revolução mundial e de seu sentido igualitarista – em contraponto à conformação de uma burocracia dirigente que viria a ser parte da restauração capitalista – ainda se mantêm bastante atual, quando parcelas da esquerda ainda depositam esperanças em torno de governos da Frente Popular, com deformações análogas ao stalinismo. A crítica radical à burocracia – buscando identificar como e porquê se fortalece – parece-nos ser o que há de mais atual em “A Revolução Traída”.

sábado, 15 de dezembro de 2012

"Rumo à Estação Finlândia" - Edmund Wilson



Resenha #45 “Rumo à Estação Finlândia: escritores e atores da história”  - Edmund Wilson


A Estação Finlândia sobre a qual  o título do ensaio do jornalista norte americano Edmund Wilson faz menção refere-se à estação de trem pela qual o líder do partido Bolchevique V. I. Lênin embarcou à Russia em abril de 1917.

Como se sabe, as lutas sociais contra a autocracia e o regime dos Czares na Rússia datam desde o final do século XIX. O próprio irmão mais velho de Lênin envolvera-se no grupo terrorista “Pervomartovtsi” e foi morto, aos 21 anos de idade, fato que teve implicações objetivas na vida de Lênin (dificuldade de acesso a estabelecimentos superiores de ensino em função do passado do seu irmão) e dos desdobramentos em sua política, que seria consolidada a partir do marxismo.

Em 1905, uma grande mobilização em São Petersburgo exigindo reformas democráticas e liberalizantes terminou com naquilo que ficou conhecido como domingo sangrento, quando a guarda imperial massacrou os manifestantes pacíficos em praça pública.  

Após o domingo sangrento, as forças da reação ganharam força, assim como as perseguições políticas, censuras e expurgos. Entretanto, o grande número de mortos russos na 1ª Guerra Mundial,  o descontentamento dos camponeses, submetidos à relação feudal de produção e a fome nas cidades criariam o caldo a partir do qual um conjunto de mobilizações culminaria nas  revoluções de fevereiro e outubro de 1917.

As conjunturas revolucionárias, esquinas perigosas da história, são capazes de surpreender até mesmo os mais bem preparados líderes políticos,  tal qual Lenin.  Assim, em 1922 de janeiro de 1917, Lenin disse a uma plateia de jovens, em uma conferência sobre a Revolução de 1905: “Nós, que pertencemos à Geração mais velha, talvez não vivamos o suficiente para ver as batalhas decisivas da revolução vindoura”. Pois é justamente o lado mais humano das personagens (com as suas contradições internas, seus traços de personalidade e suas relações pessoais), um dos aspectos que Wilson mais busca destacar dos seus “atores da história”.

“Rumo à Estação Finlândia” é um ensaio que versa sobre a história das ideias. Tem como ponto de partida a análise das ideias do historiador francês Michelet (autor de importante obra sobre a Revolução Francesa), fazendo um itinerário que vai do momento em que a burguesia ainda mantém uma perspectiva revolucionária, passando pela fase de declínio da tradição revolucionária burguesa em Renan, Taine e Anatole France. O movimento prossegue, agora descrevendo a origem do socialismo, primeiro por meio do socialismo utópico (Babeuf, Sain-Simon, Fourier e Owen), pelo socialismo científico de Marx e Engels, até, finalmente, atingir a estação Finlândia, correspondendo a momento de intervenção revolucionária do proletariado a partir de Lênin e Trótsky.

Vemos assim, a partir de uma leitura panorâmica de “Rumo à Estação Finlândia”, a correspondência entre as ideias, os escritores e os atores da história e a co-relação de forças entre as classes sociais, em determinado momento da história: Michelet foi pioneiro por ser o primeiro historiador a encarar seu objeto de estudo como produto da ação humana. A história, em Michelet, não é feita exclusivamente por grandes líderes que conduzem o processo histórico: “outra coisa que essa História  demonstrará com clareza, e que vigora em todos os casos, é que o povo era normalmente mais importante que os líderes. Quanto mais fundo escavei, mais me convenci de que o melhor estava no fundo, nas profundezes obscuras. E compreendi que é um grande erro tomar esses oradores brilhantes e poderosos, que exprimiam o pensamento das massas, como os únicos atores desse drama. Eles receberam impulsos de outrem muito mais do que o impediram. O ator principal é o povo”.

Michelet expressa as ideias da nova classe dominante burguesa: busca, nestes marcos de transformação social, criar um novo método para escrever sobre a história – e escreve, emblematicamente, sobre a Revolução Francesa, experiência que derrotou a monarquia e o feudalismo na França, repercutindo, o evento, por todo o mundo.

A voga revolucionária burguesa ganharia algum fôlego com a primavera dos povos de 1848. Entretanto, a classe burguesa, com o advento da revolução industrial e o surgimento do proletariado, passa a temer o crescimento deste novo ator político. Assim a revolução de fevereiro e outubro de 1948 em França contou com a participação de socialistas dirigidos por Auguste Blanqui, que dirigiu desde Paris uma insurreição em junho daquele ano, esmagada pela reação. Se à grande burguesia industrial interessava um regime liberal e constitucional, ao mesmo tempo, a agitação e radicalização política poderia colocar aqueles processos revolucionários fora do controle da burguesia. É nesses marcos que autores como Renan Taine ou Anatole France já representam um momento em que a produção das ideias burguesas perdem o ímpeto revolucionário. Entra em cena, do ponto de vista da teoria da história, a equiparação entre a mesma e as ciências naturais. Segundo Wilson, “o entusiasmo pela ciência que caracterizara o iluminismo persistia, sem o entusiasmo político do Iluminismo”.

Os personagens da história, para além do mito

Como analisamos, “Rumo à Estação Finlândia” aborda um conjunto de pensadores e escritores que viveram entre os séculos XVIII, XIX e XX. Trata-se de um ensaio que versa sobre a história das ideias: o leitor vai percebendo como o desenvolvimento do processo histórico caminha pari passu com o universo de escolhas e expectativas de cada autor para cada contexto histórico e para cada correlação de forças entre as classes sociais. Acompanhamos uma trajetória que vai da burguesia em sua fase revolucionária, da burguesia em sua fase conservadora desde que à frente da sociedade e sob a pressão da insurreição proletária, dos pensadores socialistas utópicos, do socialismo científico e do movimento socialista colocado em prática na Rússia de 1917.

Edmund Wilson foi um jornalista e crítico literário norte-americano. Foi editor da revista “Vanity Afair” e da “The New Yorker” (Revista que existe até hoje e que equivaleria a nossa Piauí). Não se trata de um autor marxista: muito pelo contrário, o autor, em diversas passagens, tece duras críticas a um dos pontos mais centrais do marxismo, a dialética. Segundo Wilson, a dialética, em Marx e Engels, quando relacionada à análise da história, assume, sem que os autores o percebam, um caráter metafísico. Assim, o ensaísta vai relatando uma série de textos e cartas de Marx e Engels que fazem crer que ambos tinham uma noção teleológica da história, o que é alcançado por meio de uma noção vaga do sentido de dialética.

O fato é que a dialética hegeliana, assumida pela teoria marxista, não corresponde a uma ideia irracionalista, mística, etc. A dialética é re-elaborada pelo marxismo, relacionando-a com os conflitos de classe que dão propulsão à história. Não se trata de um mecanismo “oculto” ou, como em Hegel, um movimento que leva o filósofo a uma espécie de verdade ideial, mas de método fortemente imbricada no materialismo, na análise concreta da realidade concreta.

Feita esta consideração, “Rumo à Estação Finlândia” é um livro que vale a pena ser lido, eventualmente para situar como um liberal (com vasto repertório cultural) interpreta e critica o marxismo, que reivindicamos. Trata-se de uma crítica que parte de um ponto de vista especial e incomum.

Citação Final

“Quanto aos objetivos e ideais do marxismo, há neles uma característica que atualmente é encarada com suspeita, e não sem razão. Não basta que o estado assuma o controle dos meios de produção e se estabeleça uma ditadura que defenda os interesses do proletariado para que esteja garantida a felicidade de ninguém – exceto dos próprios ditadores. (...) Porém, feitas todas essas considerações, resta algo mais importante que é comum a todos os grandes marxistas: o desejo de abolir os privilégios de classe baseados no berço e nas diferenças de renda; a vontade de estabelecer uma sociedade em que o desenvolvimento superior de alguns não seja custeado pela exploração – ou seja, pela degradação proposital – de outrem: uma sociedade que seja homogênea e cooperativa, algo bem diverso de nossa sociedade comercial (...)”.   

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Triologia Suja de Havana - Pedro Juan Gutiérrez


Resenha Livro #44 Triologia  Suja de Havana - Pedro Juan Gutiérrez




Triologia Suja de Havana narra a vida cotidiana do povo cubano durante o contexto de grave crise econômica por que passa Cuba durante os anos de 1990.

Como se sabe, Cuba, em 1959, passou por uma revolução popular que pôs fim à ditadura corrupta de Fulgêncio Batista. Inicialmente, a revolução cubana não teve um caráter socialista, tal qual a revolução russa de outubro de 1917. Tanto é verdade que mesmo o governo dos EUA inicialmente (antes das nacionalizações) viu com simpatia aquele movimento, sugerindo eventual adesão da Ilha aos ditames do imperialismo após a fase revolucionária. Na verdade, Cuba, até a revolução, foi um país dominado pelo imperialismo – seja em sua fase colonial por Espanha seja em sua fase independente pelos EUA. Com as nacionalizações e frente ao contexto geopolítico internacional da Guerra Fria, a nação Cubana aderiu ao campo socialista, colocando-se em lado oposto ao imperialismo norte-americano. No âmbito tanto da economia quanto da política, a ilha tinha a URSS como principal aliada: com o fim da URSS a partir de 1990 Cuba viveu uma grande crise econômica, desde que perdera uma parceira comercial que praticamente a sustentava economicamente.

Pedro Juan narra como os cubanos vão sobrevivendo frente à crise.  Seu texto dialoga com o jornalismo, desde que as histórias narradas contêm uma forte carga de realismo e mesmo de objetividade.  Em meio a uma situação de escassez de alimentos, de moradia digna e de acesso a algum serviço público de qualidade, os personagens aparecem como indivíduos abandonados e que lutam pela sobrevivência diariamente: muitas das mulheres (e alguns homens) optam pela prostituição enquanto outros lidam com contrabando, compra e venda de alimentos e outros bens de baixo valor, além dos trabalhos estatais muito mal remunerados.

Do ponto de vista político, a impressão que o leitor tem é a de que a perspectiva da criação de um novo mundo socialista, em que os valores de solidariedade, fraternidade e coletividade sejam hegemônicos, choca-se  com uma realidade de escassez, de fome e de miséria do povo cubano. A luta pela sobrevivência vem antes da luta abstrata por um outro tipo de sociedade. Cada história individual relatada mostra personagens que passam fome e em extrema penúria, passando-se em branco eventual interesse pela grande política por parte da esmagadora maioria dos personagens. Se por um lado há a expectativa de que, num país que reivindica o socialismo, houvesse a percepção crítica da população acerca da realidade e dos problemas pelos quais passam, o que se percebe é uma sensação de indiferença com relação à política: luta pela sobrevivência e o contexto de total escassez criam condições para uma situação que remete à animalização do homem. A sexualidade exacerbada do narrador Pedro e dos demais  aparece repetitivamente no ensaio. São relatadas a todo momento cenas de sexo, como se o ato sexual fosse um mecanismo de compensação à vulnerabilidade da vida.

Raramente, há críticas sutis à burocracia, sugerindo que eventuais indivíduos bem relacionados com o governo não estivessem sofrendo as mesmas agruras que o povo. Entretanto, como afirma José Rubens Siqueira, “os personagens deste livro são sobrevivente que não questionam o comunismo revolucionário do sistema e ao mesmo tempo não acreditam nele”.  Ou seja, os desafios da construção de uma nova sociedade passam longe dos interesses daqueles que a cada dia buscam o mínimo para sobreviver.

Assim, os anos de crise são marcados por desilusão, sem que a mesma se traduza em algum momento em revolta ou rebelião contra a ordem dominante.

A leitura deste livro pode chocar muitos que ainda interpretam Cuba como um país isento de contradições, particularmente frente à consolidação de uma burocracia dirigente em detrimento da conformação de um socialismo “de baixo para cima”, a partir da tomada do poder político pelas massas. Como se sabe, é impossível construir o socialismo em um país só e a tragédia cubana, além do bloqueio econômico, refere-se à ausência da generalização do socialismo em nível mundial.  

Não se pode, por outro lado, perder de vista a existência de inimigos do socialismo que podem tirar proveito dos relatos de “Triologia Suja de Havana” para denunciar a suposta inviabilidade do socialismo de maneira geral. Além do embargo promovido pelos EUA, a crise relatada no livro é parte da crise do socialismo em nível mundial. A incredulidade com relação ao socialismo generalizou-se mundialmente a partir da emergente hegemonia neoliberal, também a partir dos 1990. 

Seja como for, é por meio da contextualização histórica que o livro de Pedro Juan Gutiérrez deve ser visto: como parte de um momento histórico de crise de alternativas societárias ao capitalismo e isolamento geopolítico total de Cuba. As derrotas do socialismo não devem servir de base para uma restauração capitalista, mas pela renovação deste modelo societário, fazendo-se autocríticas e aprendendo sempre com os erros do passado.

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Cultura e Sociedade no Brasil - Carlos Nelson Coutinho


Resenha livro #43 “Cultura e Sociedade no Brasil: ensaios sobre ideias e formas” – Carlos Nelson Coutinho



O livro coresponde à compilação de ensaios de Carlos Nelson  Coutinho escritos num intervalo de 30 anos. O que unifica os ensaios é a análise da cultura e, particularmente, da produção artística do Brasil a partir da opção teórico-metodológica marxista. Dentro do campo marxista, o autor serve de categorias como “revolução passiva” , “Via prussiana”, “Sociedade civil” ou “intimismo a sombra do poder” dentre outras expressões decorrentes do pensamento de destacados intelectuais marxistas, a saber: G. Lukács, A. Gramsci e V. Lênin.

A opção teórico metodológica de Coutinho parece não sofrer grandes mudanças ao longo destes 30 anos. Há a sensação de que os escritos têm como mínimo denominador comum o esforço de relacionar a arte e a cultura de forma geral com as transformações econômicas e políticas de maiores proporções, partindo do Brasil colônia, passando pela modernização conservadora e inserção do país ao capitalismo em suas fases industriais (a partir dos anos de 1930) e o capitalismo monopolista de estado (a partir do golpe e do regime militar).  

Nas palavras do autor, “(...) não proporia uma leitura conjunta destes ensaios se não estivesse convencido de que eles possuem uma unidade substancial, tanto de método como de conteúdo”. Assim, o autor tem como fio condutor de suas analises da produção literária no Brasil as interações entre arte/cultura e as relações sociais dominantes de determinada conjuntura.  Os artigos reiteram ser somente possível entender os “fenômenos artísticos e ideológicos quando estes aparecem relacionados dialeticamente com a totalidade social da qual são, simultaneamente, expressões e momentos constitutivos”.

Tomada de posição política e Contextualização Histórica

Esta unidade entre artigos escritos em um intervalo de três décadas é possível de ser percebida não só  pelas escolhas das categorias sociológicas para análise da realidade, mas também pela própria orientação política de Coutinho, para quem uma arte superior  seria produto de uma verdadeira cultura nacional popular, realidade que apenas teria concretude numa sociedade socialista.   

A opção teórico metodológica marxista igualmente repercute nos ensaios quando o autor “historiciza” os fenômenos culturais ou a produção literária e intelectual de pensadores e escritores brasileiros.  “Historicizar” significa contemplar as obras também como produto das relações sociais dominantes em cada período. Significa analisar o universo de escolhas possíveis a cada autor/artista, e interpretar o porquê de cada escolha, apontando para o conteúdo político do resultado final das obras intelectuais. Significa, portanto,  analisar o contexto histórico geral (economia, sociedade e política) a partir da qual o artista/autor intervem,  sem cair no anacronismo, ou seja, determinando que a obra de arte “poderia ter tido um resultado diferente”, não considerando o universo/repertório de possibilidades de escolhas de cada momento histórico. (Anacronismo, portanto, é desconsiderar que determinada opção simplesmente não estava colocada em dado período histórico).

Desta forma, dificilmente haveria no Brasil do início do séc. XX autores que tivessem acesso às obras marxistas, além da “sociedade civil” (Gramsci) não estar estruturada o suficiente de forma a criar uma arte nacional popular verdadeiramente aliada aos setores explorados pelo capitalismo. Lima Barreto simpatiza com a Revolução Russa, mas sua simpatia é antes intuitiva do que resultado de uma profunda convicção política. Ainda assim, o autor de Policarpo Quaresma, ao estabelecer uma crítica radical e irônica aos poderes políticos de sua época, aponta para um novo tipo de arte que supera a lógica ornamental e formalista decorrentes da relação de subordinação dos intelectuais  ao poder– realidade que marca o romance brasileiro do séc. XIX e é produto do “intimismo a sombra do poder”. (Lukács).

A busca de uma interação entre as produções culturais e a totalidade das relações sociais de cada conjuntura histórica implica, em Coutinho,  na não adesão a uma certa crítica literária que centra sua análise exclusivamente nos traços biográficos do autor. Assim, a análise de Lima Bareto não está ancorada em evidenciar o alcoolismo ou eventuais patologias individuais do escritor/jornalista, mas sim estabelecendo sua obra (contestadora e intuitivamente socialista/igualitarista) como o resultado da percepção de mundo do autor e a do repertório cultural disponível no Brasil do início dos anos 1920: há também de se considerar as possibilidades abertas para uma nova posição social do intelectual a partir das transformações por que passa o país (urbanização, gênese de uma incipiente classe operária e  inserção do capitalismo pela “via prussiana”, o que significa a sobrevivência e a coexistência de elementos pré-capitalistas no processo de modernização conservadora). Além de Lima Barreto, são objeto de análises específicas Graciliano Ramos, Caio Prado Júnior e Florestan Fernandes.  

Sínteses 

Os diversos ramos da nossa literatura e produção intelectual têm a ver inicialmente com a posição social dos intelectuais frente à inserção do Brasil ao capitalismo. A reiteração do fato do Brasil ter passado por um processo de "revolução passiva" (Gramsci), serve, nos ensaios, para justificar as dificuldades dos intelectuais de superarem sua subordinação à classe dominante, criando condições para a ocorrência de uma arte Ornamental, vício que será superado a partir da literatura realista e humanista de Lima Barreto e Graciliano Ramos. Há, na tradição literária brasileira, o fato dos intelectuais estarem condicionados ao “intimismo a sombra do poder”.  O escritor de valor superior é aquele que, escrevendo sobre as questões de seu tempo, consegue, outrossim, criar personagens de caráter universal expressando possibilidades de interpretação que vão além do mero relato do tempo presente, havendo mesmo projeções em direção ao futuro em suas obras.  

A leitura “Cultura e Sociedade” é de difícil assimilação, desde que a crítica literária parte do pressuposto de que o leitor tenha certo repertório cultural inicial para melhor compreender os exemplos comparativos de diversos autores, escritores e intelectuais citados por Coutinho. A leitura do livro, outrossim, pode ser pedagógica, talvez menos pelas interpretações pessoais de Coutinho acerca do valor literário de cada escritor e mais em função do seu método de análise. O nome da compilação “Cultura e Sociedade” deixa claro, desde já, que a tarefa do crítico literário não pode se resumir à interpretação da obra e do autor “em si”, mas na complexa interpretação das relações entre arte/cultura e a totalidade das relações sociais. Estudar a literatura e a produção cultural no Brasil é parte do esforço maior de análise da realidade nacional, tarefa necessária àqueles que têm como meta a superação da sociedade capitalista e a transição rumo ao socialismo. 

domingo, 22 de abril de 2012

Palestra - Alex Callinicos - Marxism Festival

Palestra #3 – Alex Callinicos


Esta palestra foi proferida durante a edição de 2009 do “Marxism Festival”. Este evento reúne intelectuais e ativistas de todo o mundo para dialogar e debater as pautas mais importantes da agenda da esquerda anticapitalista, socialista e revolucionária. Esta palestra teve como tema “O Que Significa Ser Um Revolucionário Hoje”. A mesa é composta por Callinicos e o famoso filósofo esloveno Slavoj Zizec.

Alex Callinicos é dirigente do Socialist Workers Party (SWP), principal partido anticapitalista da Inglaterra.

Seguem alguns destaques da intervenção de Callinicos. O objetivo desta resenha é contribuir com aqueles que não dominam a língua inglesa e desejem conhecer as teses de Callinicos. Outrossim, não se trata de uma tradução do debete, mas de alguns destaques pessoais que podem eventualmente ser objeto de debates e controvérsias quanto à tradução e/ou interpretação do que é dito.

O link do debate é: http://www.youtube.com/watch?v=qDJEwfTOGcI

1- Pensar sobre o que significa ser um revolucionário hoje deve partir da análise do capitalismo hoje, destacando em particular o fato de o capitalismo passar por sua maior crise desde 1929. (O vídeo data de dois de Julho de 2009. A crise em questão é aquela iniciada no ano de 2008).

2- A natureza desta crise é uma combinação da super- acumulação e financeirização da economia. É uma crise que tem a ver com a própria natureza do capitalismo. O que a torna particularmente perigosa é o fato de que aqueles que lidam com a crise diretamente (economistas, jornalistas econômicos e políticos burgueses) não apresentarem saídas fora do espectro do capitalismo, estimulando a criação de novas bolhas especulativas e retro- alimentando a própria crise. Por ser uma crise do tipo de super- acumulação, o incremento da financeirização da economia não resolve, mas agrava o problema.

3- Enquanto isso, os economistas marxistas já vinham destacando as contradições da lógica da super acumulação e os riscos de uma crise de grandes proporções no capitalismo a partir de sua própria lógica interna de funcionamento. Estes pensadores marxistas podem ser reivindicados, pois suas previsões se mostraram empiricamente corretas.

4- Esta “satisfação” dos marxistas por terem acertado o prognóstico da crise com anos de antecedência não pode ser superdimensionada. O paradoxo da situação é que, apesar da crise ser hoje uma realidade, os movimentos anti- capitalistas em todo o mundo encontram-se fracos e desorganizados. Existe um enorme vácuo entre as análises marxistas da economia e nossa capacidade de operar em termos práticos, apresentar alternativas políticas e organizativas à crise capitalista.

5- Slavoj Zizec é uma importante fonte para aqueles que estão em busca de saídas políticas. Em particular, Callinicos destaca sua contribuição acerca de Lênin, organizando uma conferência sobre o revolucionário russo, além da publicação de um livro acerca de Lênin. (Publicado no Brasil pela Boitempo - "Lênin - Às Portas da Revolução").

6- Marx na obra "Ideologia Alemã" diz ser o comunismo não uma mera ideia, mas o movimento real em direção à abolição do sistema vigente. Esta ideia é hoje bastante atual: é necessário pensar menos o comunismo teoricamente e mais como um movimento político real.

7- Gramsci vivencia um período histórico parecido com o nosso e pode ser uma importante fonte para os marxistas de hoje. Ele analisa a partir da prisão o capitalismo passando por sua 1ª Grande Crise (Crise que se inicia em 1929). Assim, seus cadernos do cárcere apontam temas como a economia global e as bases para uma intervenção política dos marxistas frente à uma situação de crise.

8- Uma análise marxista sobre a crise econômica passa por observar as oportunidades criadas, os espaços criados pela crise para agitar e intervir politicamente, tirando proveito das "brechas" abertas pelos momentos de crise. Esta lição de Gramsci pode ser aproveitada para o momento presente.

9- O marxismo é uma teoria que aborda as contradições, os conflitos são parte essencial da filosofia da práxis (forma como Gramsci chama o marxismo), tornando atual o projeto revolucionário, que não é a simples e pacífica tomada de poder pelas classes subalternas, mas a expressão de um movimento ele-próprio eivado de contradições.

10- O marxismo não é apenas um meio de apontar as contradições da ideologia dominante, mas um meio de criticar as próprias ilusões criadas por dentro dos movimentos populares e dos trabalhadores. É por meio do marxismo, por exemplo, que se pode estabelecer a crítica radical que interprete, por exemplo, a adesão de parcelas importantes do proletariado e do povo alemão e italiano ao nazi-fascismo.

11- A esquerda pode iludir-se e isso costuma ocorrer com maior frequência nos momentos de refluxo. A criação de ilusões não só pelas classes dominante mas pelas classes populares devem ser objeto da crítica marxista.

12- A filosofia da práxis em Gramsci igualmente diz ser o momento em que as classes populares aprendam a arte e governar.Não no sentido da "pequena política" parlamentar, mas no sentido da "grande política" (Gramsci), considerando o poder político para além da mera lógica parlamentar. Neste ponto, Callinicos busca se diferenciar de autores (como Tony Negri) que afirmam “mudar o mundo sem a tomada do poder”. Até por ser dirigente de um partido político, Callinicos não poderia concordar com esta tese.

13- Ainda que o centro determinante do capitalismo seja as relações de produção (portanto, o centro do capitalismo é sua esfera econômica), as contradições econômicas encontram-se condensadas nos aparelhos políticos, no Estado. Assim, os socialistas devem direcionar suas forças contra o estado e não simplesmente ignorar a questão do poder político.

14- A necessidade da luta a longo prazo pelo poder é parte do que "é ser um revolucionário hoje". A organização política também se torna importante, apesar da atual desconfiança com relação aos partidos políticos. Um dos desafios dos revolucionários de hoje é reivindicar a organização partidária, levando-se em consideração a tarefa de organizar para contra-atacar as forças dominantes, organizar para desenvolver consciência política dos trabalhadores e do povo, organizar para a tomada do poder político e educar politicamente as classes dominadas, etc.

15- A experiência do NPA (Novo Partido Anti-capitalista) na França revela a tentativa tanto de manter a ideia da necessidade de se construir partidos revolucionários, quanto da tentativa de fazê-lo sob uma “nova forma” (daí a expressão “novo partido"). Esta nova forma a ser criada é um dos desafios dos revolucionários de hoje.

16- Lukács diz que o intermediário necessário entre teoria e prática políticas é promovida pela organização política. E a organização política dá-se por meio do partido político em Callinicos.